O Critério de Salomão

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Salomão ante as duas mães

Um Bebê e Suas Duas Mães

Para ler:

Então duas prostitutas vieram ter com o rei e apresentaram-se diante dele. Disse uma das mulheres: “Ó meu senhor! Eu e esta mulher moramos na mesma casa e eu dei à luz junto dela na casa. Três dias depois de eu ter dado à luz, esta mulher também teve uma criança; estávamos juntas e não havia nenhum estranho conosco na casa: somente nós duas. Ora, certa noite morreu o filho desta mulher, pois ela, dormindo, o sufocou. Ela então se levantou, durante a noite, retirou meu filho do meu lado, enquanto tua serva dormia; colocou-o no seu regaço, e no meu regaço pôs seu filho morto. Levantei-me para amamentar meu filho e encontrei-o morto! Mas, de manhã, eu o examinei e constatei que não era o meu filho que eu tinha dado à luz!”

Então a outra mulher disse: “Não é verdade! Meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!” E a outra protestava: “É mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo!” Estavam discutindo assim, diante do rei, que sentenciou: “Uma diz: ‘Meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!’, e a outra responde: ‘Mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo!’ Trazei-me uma espada”, ordenou o rei; e levaram-lhe a espada. E o rei disse: “Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a uma e metade à outra.”

Então a mulher, de quem era o filho vivo, suplicou ao rei, pois suas entranhas se comoveram por causa do filho, dizendo: “Ó meu senhor! Que lhe seja dado então o menino vivo, não o matem de modo nenhum!” Mas a outra dizia: “Ele não seja nem meu nem teu, cortai-o!” Então o rei tomou a palavra e disse: “Dai à primeira mulher a criança viva, não a matem. Pois é ela a sua mãe.”

Todo o Israel soube da sentença que o rei havia dado, e todos lhe demonstraram muito respeito, pois viram que possuía uma sabedoria divina para fazer justiça.

1 Reis 3:16-28

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Uma Proposta para Critério

“Você seria capaz de se sabotar em prol de algum bem?”

Foi essa a pedra de toque o famoso rei de Israel usou para distinguir a mãe verdadeira da impostora: somente a primeira seria capaz de tão grande ato de renúncia. Essa história grande parte dos leitores já deve conhecer, seja por leitura da Bíblia ou do “ouvi falar” e de forma alguma venho fazer proselitismo de Javé usando os bons momentos de seus escolhidos. O que tenho em mente é se, por acaso, não seria possível generalizar a “metodologia” de Salomão para avaliar a sinceridade de alguém na busca pelo conhecimento.

Não me considero bom em “lançar moda” – aliás esta seria minha primeira tentativa -, mas ainda assim gostaria de propor um critério para se avaliar a honestidade intelectual dos defensores de alguma tese: eles devem permitir que sua própria pesquisa seja posta em xeque. Para isso, são necessárias, pelo menos, duas coisas:

  1. Transparência: uma descrição precisa do modus operandi deve ser feita, base de dados deve ser pública e bibliografia bem referenciada.
  2. Um advogado do diabo: assumir provisoriamente um ponto de vista que não é o seu, como uma teoria rival ou até mesmo uma tentativa refutação, tudo para achar brechas em sua próprias alegações (1);

Se bem satisfeitas essas condições, o resultado será a exibição públicas das fraquezas de seu estudo, mas a verdade por trás dos fatos agradece, seja ela qual for.
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O que este Critério não é

Para delimitar sua aplicação, gostaria de começar por eliminação, deixando claro o que ele não pode fazer ou ser. Aqui uso seu conceito mais amplo, como o que Salomão intuitivamente adotou, não somente o acadêmico.

  • Uma garantia de idoneidade, caso se passe nele: No começo do século XXI, certo deputado brasileiro líder de um partido aliado ao do governo sentiu-se vendido quando o executivo lavou as mãos em um escândalo que envolvia um de seus colegas. Como desforra, denunciou um esquema de corrupção maior ainda, encabeçado pelo partido do próprio governo e no qual ele próprio estava envolvido. Vulgarmente falando, “tacou m* no ventilador”. Se você considerar que moralidade está mais no resultado que nas intenções (i.e., algum grau de utilitarismo), então ele passou no critério, ao menos nesse episódio, pouco importando que não fosse recomendável votar nele;

  • Atestado de desonestidade, caso NÃO se passe nele: talvez o leitor tenha algum primo, amigo, vizinho ou conhecido que é bom parceiro, marido, pai e funcionário, mas basta tocar em algum ponto nevrálgico – que pode ser religião, política, sexo, futebol, etc. – para que vire um cão raivoso a defender as posturas mais tacanhas e controvertidas. Justifica (ou minimiza) massacres, relativiza más ações, adota “dois pesos, duas medidas”, faz vista grossa a atos dúbios e daí para baixo. Seria ele hipócrita? Muito provavelmente, não. Apenas mais um exemplo da incrível capacidade humana de compartimentalizar sua moral e continuar vivendo candidamente cheio de contradições. Pode-se comprar sem medo um carro usado dele, mas para certos assuntos é melhor não procurá-lo;

  • Garantia que esteja certo: Se você clama aos quatro ventos que não é o dono da verdade e que ninguém é infalível, então quais são suas falhas? Seria uma boa pergunta para uma entrevista de emprego. Adotar o critério seria uma forma de respondê-la e conciliar suas pretensas palavras de humildade com suas atitudes;

  • Comprovação de que esteja errado, caso NÃO o siga: Você pode se portar da forma mais arrogante do mundo e ainda calhar de estar do lado certo. Um exemplo clássico foi o livro Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, de Galileu Galilei. Partidário do sistema heliocêntrico de Copérnico, Galileu se animou quando um amigo seu, o cardeal Maffeo Barberini, foi eleito papa, com o título de Urbano VIII. Essa poderia ser a oportunidade para Igreja Católica adotar de vez o novo modelo e abandonar as ideias geocêntricas de Aristóteles e Ptolomeu. Obteve, então, autorização para escrever um livro apresentando os dois sistemas, mas com a condição de deixar o resultado final em aberto, mostrando os prós e contras de cada um de forma equilibrada. Galileu, contudo, não se conteve deu os melhores argumentos para seu modelo preferido e deixou a defesa do sistema geocêntrico a cargo do fraco personagem Simplício, cujo nome diz tudo. Urbano VIII deve ter se sentido bem ultrajado pela petulância de seu pupilo e deixou-lhe aos “cuidados” do Santo Ofício (2). O já idoso astrônomo teve de se retratar de forma humilhante e passou seus últimos dias em prisão domiciliar. Acontece que ele estava certo… Bem hoje nós o sabemos, mas àquela o sistema geocêntrico ainda não caducara por completo e o heliocêntrico ainda tinha vários furos (3). Galileu não passaria no critério, ainda que sua premissa para o funcionamento do sistema solar estivesse correta.

  • Demonstração de ausência de viés: o viés é como o sotaque: se alguém fala sem sotaque (viés) é porque o sotaque (viés) dele é igual ao seu. Qualquer pessoa sempre possuirá uma opinião preferida sobre algum assunto (não ter posicionamento definido também é uma opinião) e, mesmo que reconheça as limitações dela, tenderá a protegê-la de algum modo. O que o critério vem propor é dar um pouco de ética ao viés, colocando limites na ambição de protegê-lo (4).

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Para o que serve, então?

Alvo pintado em torno de flecha

Existe uma receita simples para produzir uma nova pseudociência:

  1. Tenha um ideia preconcebida de como a Natureza de comporta;
  2. Reúna tudo que corroborar sua tese;
  3. Desconsidere tudo que for contrário a ela;
  4. Repita o processo a partir do nº 2.

Os criacionistas, principalmente os adeptos da “Terra Jovem”, são peritos nessa arte. De forma alguma ela é exclusiva deles, apenas a praticam de forma indecente de escancarada, e na prática, qualquer grupo pseudocientífico se vale dela: astrólogos selecionam previsões mais certeiras, viúvas de Stalin e crias de Mao relevam a morte de milhões como um mal necessário para se chegar ao verdadeiro socialismo, e analistas de risco simplificam o mundo para que ele caiba em sua matemática. Qualquer tentativa de debate
com gente desse tipo é inútil porque eles já têm a resposta e tudo que disser será filtrado, distorcido, corrompido ou descartado.

Agora, se você encontrar alguém que passe pelo critério e, por acaso, ele também te considere aprovado, então há condições suficientes (5) para que algo realmente auspicioso surja de uma troca de ideias entre vocês, pois nenhum debate tem condições de inovar se ninguém arreda pé. Isso seria uma briga de torcidas, tão comuns no meio virtual. Melhor deixar esses “torcedores” em seus cercadinhos ideológicos, a lançar flechas sobre seus anteparos preferidos para só depois pintar o alvo em volta.

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Quem não passa no Critério

Segue uma lista não exaustiva de indivíduos ou grupos cuja chance de autocrítica, por razões diversas, tende a zero.

  • Literalistas bíblicos: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). Acontece que a própria verdade está na Bíblia e, o mais restritivo ainda, no próprio Jesus (cf. Jo 14:6). Assim, qualquer coisa que conflite com as Escrituras é, por definição, falsa. Seria um exagero afirmar que cada seita cristã moderna tem sua própria verdade, pois, mesmo com toda a diversidade, os protestantes, vistos de longe, lembram mais variações de um mesmo tema se que diferem sobre questões em aberto ou passíveis de reinterpretação, mas cada fiel ainda consegue se diferenciar do mundano “homem natural”. Os católicos possuem um grau extra de liberdade intelectual ao aceitarem, além da Escritura, a “Tradição” (oral e escrita), que permitiu sua doutrina constantemente evoluir, embora lentamente;

  • Allan Kardec: apesar de incorporar boa parte dos modismos intelectuais de sua época, Kardec peca pela falta de transparência. Sabe-se, em linhas gerais, como ele trabalhava, o princípio do Consenso Universal dos Espíritos, etc., mas qual era a base dados que ele tinha, afinal? Há trabalhos com médiuns (ou psíquicos) já atuantes na Era Vitoriana que são muito melhor documentados que a Codificação (6), como a Sra. Piper;

  • Ortodoxia Espírita: caso Kardec estivesse vivo hoje, ele seria kardecista? Se repararmos bem, Kardec deu mostras de mudar certas opiniões ao longo da carreira(7), mas um belo dia ele se foi, como todo mortal. Ninguém pode alterar o que ele já escreveu, óbvio, mas o quanto ainda é válido hoje? Ninguém aprende Química pela obra de Lavoisier, Física pelos Principia Mathematica (8), nem Teoria da Evolução com Darwin. São clássicos que muitos professores exibem orgulhosos em suas estantes, buscam citações e inspiração, mas não criam apostilas com eles, porque há muito estão defasados. Entretanto, se a Codificação virou um cânon fechado, então passou a progressivamente padecer dos males do literalismo bíblico. Há que sugira que notas de rodapé bastariam, mas a quantidade delas tende a aumentar com tempo, o que pode tornar o panorama a longo prazo um tanto incômodo, além de não sanarem as questões em que a Codificação é omissa e que a literatura mediúnica não tem o mesmo status para resolver. Fazer um terceiro Livro dos Espíritos, com mais abrangência e transparência, e deixar os de Kardec no pedestal de honra seria uma solução, mas quem se habilita e que preço pagará? Por outro lado, os que mais protegem a imutabilidade de Codificação (9) acabam por matar seu espírito original (com o perdão do trocadilho);

  • CSI: Não é daquela série policial que estamos falando, mas do Committee for Skeptical Inquiry (“Comitê para Investigação Cética”). Fundado em 1976 por Paul Kurtz (10) e contando com a participação de cientistas renomados, filósofos e até algumas “celebridades céticas” (como James Randi e Carl Sagan), o CSI pegou a crista da onda do misticismo barato trazido pelos newagers da contracultura, procurando dar uma “ducha de água fria” nos esotéricos, ufólatras ou autoproclamados paranormais, seja na grade mídia ou por meio de seu periódico Skeptical Inquirer. O problema foi que, no afã de combater a pseudociência, a atitude do CSI prejudica a pesquisa genuína de fenômenos ainda inexplicados por causar preconceito, medo do ridículo e falta de verbas aos cientistas realmente sérios e interessados nesses fenômenos. De certa forma, por vezes seus membros se mostram mais como “inquisitores” do que verdadeiros “inquiridores” (11);

  • Ideólogos político-econômicos: temo muito os que têm pretensão de santidade, pois não há grau de pureza que os satisfaça. Se eles têm na mão um poder decisão que afeta milhões e uma ideologia inflexível na cabeça, é apenas uma questão de tempo para uma tragédia ocorrer. Impérios teocráticos que o digam. O que muitos não percebem, contudo, é a existência de “religiões seculares”, cujos adeptos não captaram muito bem o espírito libertador de seus “gurus”. É o que notadamente ocorre no campo conhecido como “Economia Política”. Em se tratando do grau de intervenção estatal na sociedade, um extremo abriga o liberalismo, cujo louvor da livre iniciativa como motor do progresso geral – por mais egoísta que fossem os motivos dos indivíduos – acabou por creditar uma quase onipotência aos mercados. No outro lado, encontra-se o dirigismo socialista, com sua crença que um punhado de comissários – assessorados (ou não) pelos técnicos certos – é capaz de decidir o que é melhor para nós, em todas as esferas da vida. Cada extremo produziu suas próprias tragédias, mas seus adeptos jamais as reconhecerão (12). Afinal, já que a culpa foi deles, colocam-na em quem quiser;

  • Psicanalistas: polêmicas desde o começo, as teses de Sigmund Freud não incomodam mais pelo forte papel que dão impulso sexual, mas porque não mais o destrincham tanto como suas irmãs de estudo da mente humana. Nascida na virada dos século XIX para o XX, teve por base as observações clínicas do Dr. Freud para a elaboração de uma “teoria da mente” e, até aí, foi mais uma “ciência de observação” positivista, ao estilo do que Espiritismo se propunha originalmente. Acontece que o tempo passou e, de certa forma, a psicanálise começou a padecer de uma dificuldade em comum com Espiritismo: ficou centrada demais na obra na pessoa de seu fundador. Freud até revisou alguns pontos seus, mas, como todo bom mortal, faleceu um belo dia e ninguém pôde a mudar uma vírgula sequer depois. Ou melhor, surgiram “dissidentes” a propor formas alternativas de terapia em um ou outro aspecto e as discussões no meio psicanalítico ganharam ares de rixas entre seitas (13). Enquanto isso, a neurologia, a psiquiatria e outros ramos da psicologia avançaram por contra própria e por vezes discordaram do Doutor (14). As respostas aos desafios muitas vezes vieram na forma de pesada retórica, como se a psicanálise justificasse a si mesma (15). Mas, afinal, ela uma ciência? Vai depender de qual critério se use. O filósofo da Ciência Karl Popper a colocou ao lado da astrologia e do marxismo em termos de cientificidade (16). Outros filósofos seriam mais gentis, mas não muito (17). Os profissionais, em defesa própria, podem desfilar exemplos de cura como prova de eficácia (18), só não garantem se alcançaram o resultado devido à teoria que advogam ou por serem bons e perspicazes ouvintes, além de sugestivos conselheiros (19). Ao menos, a teoria psicanalítica serve de filosofia (20) e literatura (Freud tinha boa prosa), mas tome cuidado ao argumentar com um adepto dela: você pode descobrir que é sexualmente frustrado (21).

Pausa para pedradas.

Será que sobrou alguém?
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Quem passa?

Destruição de Sodoma e Gomorra

O livro de Gênesis traz uma impressionante “barganha” feita pelo patriarca Abraão:

Disse mais o Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito,
Descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.
Então viraram aqueles homens os rostos dali, e foram-se para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do Senhor.
E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio?
Se porventura houver cinquenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinquenta justos que estão dentro dela?
Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?
Então disse o Senhor: Se eu em Sodoma achar cinquenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.
E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza.
Se porventura de cinquenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco.
E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta.
E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez.
E retirou-se o Senhor, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou-se ao seu lugar.

Gn 18:20-33

Mas nem dez Abraão achou e as cidades foram destruídas. O máximo que pôde fazer foi alertar seu sobrinho Ló e sua família para que partissem de lá.

Não estou dizendo que não haja ninguém que siga o critério e, muito menos que algo será destruído. Reconheço que não fiz nenhuma busca em profundidade e que o impulso mais natural do ser humano é violar o critério. Contudo, um nome eu gostaria de assinalar pois ele (I) se destaca da massa e (II) foi muito criticado justamente por seguir o critério:

Dr. Ian Stevenson (1918 – 2007)

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Notas

(1) A título de curiosidade, o Promotor da Fé (vulgo, “Advogado do Diabo”) foi uma figura criada pela Contrarreforma e seu papel era o de questionar o caráter em vida do candidato a santo (ou beato) ou a veracidade (e inexplicabilidade) dos milagres atribuídos a ele, em oposição ao Promotor da Causa (ou “Advogado de Deus”). Essas funções foram, na prática, extintas durante o pontificado de João Paulo II, o que resultou numa profusão de canonizações. [voltar]

(2) Que a Igreja Católica tem seu quinhão de pecados, não se discute. Contudo o episódio de Galileu não está entre eles. Ele é, sem dúvida, uma das maiores injustiças que evangélicos, ateus militantes e espiritualistas e outros anticlericais têm lhe imposto, pois, longe de ser uma prova de ser uma prova de obscurantismo, ele é uma demonstração de como a Ciência da época ainda dependia muito de relações de patronagem. O fato foi que Galileu traiu a confiança de um amigo e protetor, que reagiu com fúria. Tivesse ele sido um pouco menos “gaiato”, poderia continuar a ter debates proveitosos (embora tensos) com intelectuais acerca dos “Dois Sistemas do Mundo”, muitos deles clérigos ou tão devotos quanto ele. Já existe considerável literatura erudita e popular que desfaz esse mito (cf. [Gould, cap. II, pp. 61-4], [Letin, cap. IV], [Nantes, pp. 65-83] e [Woods, cap. V, pp. 68-76]), assim como ainda há muita gente a insistir nele. [voltar]

(3) O modelo geocêntrico de Ptolomeu estipulava que a trajetória dos planetas seria uma composição de dois movimentos circulares. O primeiro e maior, chamado de deferente, seria descrito em torno do centro do sistema solar e o segundo, chamado de epiciclo era descrito em torno de um posição fictícia (ou hipotética “esfera de cristal”) que, por sua vez, percorreria o deferente. Isso era uma forma de explicar porque os planetas ora avançavam para, em seguida, diminuir sua velocidade até inverter o sentido do movimento e, por fim, retomar a direção original ao realizar um pequeno “laço”.

Epiciclos de Ptolomeu

Em princípio, o sistema ptolomaico até não era tão complicado assim, porém, sucessivos refinamentos posteriores ao sistema levaram a um aumento de sua complexidade com introdução de epiciclos de epiciclos, não só para conformá-lo melhor às observações, mas também ao princípio aristotélico de que só o movimento uniformemente circular era autossustendado (Ptolomeu aceitava órbitas excêntricas e de velocidade variável em relação o centro do deferente).

Já no Renascimento, Nicolau Copérnico propôs colocar a Terra no centro do universo como uma forma de resolver uma complicação que modelo de Ptolomeu já tinha desde o berço [Aaboe, cap. II, p. 111]: os cálculos para os epiciclos dos planetas interiores (Mercúrio e Vênus, que teriam órbitas menores que a do Sol) eram diferentes dos exteriores (Marte, Júpiter e Saturno). Colocando o Sol no centro e a Terra entre esses dois grupos, isso se tornava uma consequência do movimento relativo entre eles, ao passo que no modelo de Ptolomeu era algo arbitrário. O modelo de Copérnico, contudo, não abria mão dos epiciclos e ainda tinha dificuldades extras a explicar, como o fato de os objetos em queda não ficarem para trás conforme a Terra girasse ou a ausência de alteração na posição das estrelas ao longo do ano.

Por essas razões sua aceitação não foi tão rápida assim. Para acelerar esse processo, Galileu difundiu descobertas suas feitas com a luneta astronômica e que corroborariam seu modelo preferido: a descoberta dos quatro maiores satélites de Júpiter e de que o planeta Vênus possuía fases, como a Lua. Além disso, sua elaboração do “princípio de inércia” justificava porque os corpos acompanhavam a Terra em seu deslocamento.

Entretanto isso não era suficiente: o fato de Vênus girar em torno do Sol não impedia que o Sol, por sua vez, continuasse a girar em torno da Terra. O mesmo raciocínio serve para Júpiter e seus satélites. De fato, um contemporâneo seu – Tycho Brahe – concebeu um sistema geo-heliocêntrico com a Terra ao centro, a Lua e o Sol a orbitando diretamente, e todos os outros planetas girando em torno dele.

Sistema cosmológico de Tycho Brahe

Sistema cosmológico de Tycho Brahe. Fonte: Observatório Nacional

O sistema de Tycho Brahe era matematicamente equivalente ao de Copérnico e ainda tinha a vantagem de não precisar responder à aparente ausência de uma modificação cíclica no posicionamento das estrelas ao longo do ano (paralaxe estelar), só confirmada em 1727. Os proponentes do heliocentrismo alegavam que a “esfera das estrelas” estaria muito mais afastada que as demais e, por isso, imperceptível. Embora a essência desse raciocínio se revelasse correta no futuro, à época era apenas uma hipótese ad hoc inverificável e não muito intuitiva.

Embora tivesse rompido com a tradição aristotélica em muitos pontos, Galileu ateve-se a ela em outros. Por exemplo, insistiu nas órbitas circulares, cêntricas e de velocidade constante para os corpos celestes, o que prejudicava a concordância do modelo com as observações. Galileu, inclusive, trocou correspondência com o astrônomo Johannes Kepler – antigo colaborador de Brahe em medições astronômicas e que aperfeiçoara o modelo heliocêntrico estipulando órbitas elípticas e velocidade variável -, mas o ignorou solenemente.[voltar]

(4)Uma anedota sobre o filósofo e matemático Bertrand Russell diz que, certa vez, quando perguntado se morreria por suas crenças, ele prontamente respondeu: “Claro que não. Afinal de contas, posso estar errado”. Também apresentada na forma de um aforismo: “nunca morreria por minhas crenças porque posso estar errado”. Não consegui encontrar a origem dela e vários outros também não. Até mesmo a Wikipedia a classifica como “em disputa”. Apócrifa ou não, essa história representa bem a ideia passada aqui. [voltar]

(5) Repare bem: a conformidade com o critério por ambas as partes é uma condição suficiente para um diálogo produtivo. Em instante algum é dito que ela é uma condição necessária e muito menos “necessária e suficiente”. Até mesmo de arranca-rabos pode-se extrair algo de bom, inclusive o que não fazer. [voltar]

(6) Nas andanças pela internet, encontrei o artigo O Dossiê Canuto Abreu, que traz algumas informações curiosas:

Escreveu Carlos de Brito Imbassahy, sob o título “Dr. Canuto de Abreu” (“Mundo Espírita”, PR, de 31.08.1980): “Os tempos se passam”. Indo a São Paulo em companhia do Olympio (que fazia vez de meu irmão), e da esposa, fomos almoçar com o Dr. Canuto de Abreu; nesta tarde, ele nos leva para os seus arquivos particulares e nos mostra um “dossier” contando-nos a história.

“Estava na França pouco antes de estourar a Guerra de 1939 quando, intempestivamente, fui procurado por dois cidadãos que se apresentaram e se disseram que ali estavam por ordem espiritual. Os cidadãos haviam recebido instrução de seus guias que deveria vir do Brasil uma determinada pessoa em tais circunstâncias que coincidiam exatamente com as minhas (dizia o Dr. Canuto) e que a esse cidadão deveriam ser entregues os arquivos particulares do próprio Allan Kardec, pois a Europa iria passar uma fase conturbada de guerra e, se esses documentos fossem encontrados, seriam destruídos”.

Ali estava, diante de mim e de Olympio, a letrinha de Kardec, suas opiniões e um envelope “confidencial-não pode ser publicado”. Mostrou-me seu conteúdo dizendo:

“Gostaria de doar este acervo à Federação Espírita Brasileira, mas ela é roustainguista e, na certa, não vai admitir que seja ela própria a portadora de documentos que condenam “Os Quatro Evangelhos” (de Roustaing!).

Disse isso e mostrou-me duas cartas manuscritas onde, por cima, lia-se:

“Carta enviada ao senhor João Batista Roustaing, cartas essas que são um libelo terrível, no qual acusa o “colega” de controverter a ordem doutrinária, deixando-se envolver por mistificadores cujo único objetivo era desmoralizar o sistema de comunicação com os mortos.”

E prossegue:

Jamil Salomão (CF [Correio Fraterno] do ABC, janeiro/1990) escreveu, sob o título “J. B. Roustaing, o Judas do Espiritismo”:

“Esta afirmativa é atribuída a Allan Kardec”, feita em uma carta endereçada ao insigne escritor Léon Denis, cujo próprio original se encontra em poder do Dr. Canuto de Abreu, conhecido intelectual e espírita da capital de São Paulo, que possuía farto material que pertencia a Kardec. Numa Visita fraterna ao Dr. Canuto, pelos idos de 1974, em companhia do Dr. Freitas Nobre e da médica Dra. Marlene Severino Nobre, ouvimos essas revelações surpreendentes, pois desconhecíamos a existência de um documento de tal importância. Imediatamente foi solicitado ao Dr. Canuto de Abreu permissão para a divulgar o material, bem como obter cópia do mesmo, a fim de ser noticiado no jornal “A Folha Espírita”, que estava sendo lançado naquela época, como o primeiro jornal espírita a ser colocado nas bancas públicas e com distribuição nacional. O Dr. Canuto se mostrou temeroso, não permitindo a divulgação da carta de Kardec, na qual atribuía a Roustaing a condição de traidor dos postulados espíritas, ao lançar “Os Quatro Evangelhos”, atribuindo-lhes o título de “Revelação da Revelação”, o que poderia ser motivo de uma cisão no movimento espírita.”(…)

A que o articulista acrescentou:

Comentário: Quanto ao escrúpulo do Dr. Canuto de Abreu, e agora de seus familiares, em não dar publicidade às cartas de Allan Kardec contra Roustaing, ocorre-nos lembrar à distinta família que, se o plano espiritual se preocupou com a preservação dos documentos de Kardec, incluídas as referidas cartas, não foi para que elas permanecessem desconhecidas do público espírita. É óbvio, caso contrário os espíritos deixariam que tais documentos fossem destruídos pelos invasores alemães, como estava previsto. Com essa atitude, a nosso ver, equivocada, da respeitável família Canuto de Abreu, apenas se exumaram, em Paris, as cartas de Allan Kardec para dar lhes nova sepultura, no Brasil. E perguntamos: Para que? Consultando sobre o paradeiro dessas cartas, informou Carlos de Brito Imbassahy que conforme lhe disseram, elas estariam em poder de um neto do Dr. Canuto de Abreu. Fazemos este apelo a quem guarde estas cartas de Allan Kardec: que as entregue para divulgação, a um jornal de grande circulação, “Correio Fraterno do ABC” ou “Jornal Espírita”, a meu ver, os mais credenciados para dar-lhes publicidade.

Só com isso não dá para saber o quanto esse material dos primórdios da codificação seria elucidativo sobre a metodologia do Codificador. O que se pode dizer é que, enquanto inacessível ao público, ele tem o mesmo valor de um tesouro no fundo do mar: nenhum. [voltar]

(7) Por exemplo: as mudanças ocorridas entre a primeira e segunda edição de O Livro dos Espíritos e a considerável mudança de opinião de Kardec quanto à evolução biológica, ao longo da Codificação. Compare o que ele diz no capítulo III de O Livro dos Espíritos

A diversidade das raças humanas vem ainda em apoio desta opinião. O clima e os hábitos produzem, sem dúvida, modificações das características físicas, mas sabe-se até onde pode chegar a influência dessas causas, e o exame fisiológico prova a existência, entre algumas raças, de diferenças constitucionais mais profundas que as produzidas pelo clima. O cruzamento de raças produz os tipos intermediários; tende a superar os caracteres extremos, mas não cria estes, produzindo apenas as variedades. Ora, para que tivesse havido cruzamento de raças, era necessário que houvesse raças distintas, e como explicarmos a sua existência, dando-lhes um tronco comum e sobretudo tão próximo? Como admitir que, em alguns séculos, certos descendentes de Noé se tivessem transformado a ponto de produzirem a raça etiópica, por exemplo?

Uma tal metamorfose não é mais admissível que a hipótese de um tronco comum para o lobo e a ovelha, o elefante e o pulgão, a ave e o peixe. Ainda uma vez, nada poderia prevalecer contra a evidência dos fatos.

Seção VI -“Considerações e Concordâncias Bíblicas Referentes à Criação”, q. 59

Com o que aparece em A Gênese

Se os seres orgânicos complexos não se produzem dessa maneira, quem sabe como eles começaram? Quem conhece o segredo de todas as transformações? Quando se vê o carvalho e a bolota (de onde ele nasce), quem pode afirmar que não existe um elo misterioso entre o pólipo e o elefante?

Cap. X, 23.

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(8) Embora tenha sido um dos criadores da Análise matemática (a que chamava de “método das fluxões”), Issac Newton não o utilizou em seu colossal Principia Mathematica. Talvez pelo método ainda ser novidade e por ele mesmo ainda estar em disputa pela primazia da descoberta com o matemático alemão Leibniz, Newton adotou métodos de resolução geométricos que remontam aos antigos gregos, mas que não eram questionados. O resultado final foi um livro bem indigesto. [voltar]

(9) Alô, GAE. [voltar]

(10) Originalmente denominado Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (“Comitê para a Investigação Científica de Alegações do Paranormal”), suas inicias (CSICOP) constituíam uma espécie de acrônimo com a mesma pronúncia inglesa que Sci Cop, algo como “polícia da Ciência”. [voltar]

(11) Nas próprias palavras de Carl Sagan:

(…)Aqueles que são alvos das análises da CSICOP formulam às vezes exatamente esta queixa: ela é hostil a toda nova ideia, dizem, chega às raias do absurdo com seu desmarascamento previsível, é uma organização de vigilância, uma Nova Inquisição, e assim por diante.

A CSICOP é [grifo do autor] imperfeita. Em alguns casos, essa crítica é em certa medida justificada. Mas, de meu ponto de vista, ela desempenha uma função social importante – como uma organização bem conhecida que a mídia pode recorrer quando deseja escutar o outro lado da história, especialmente quanto uma afirmação surpreendente da pseudociência é considerada digna de ser notificada. A regra era (e para grande parte da mídia global ainda é) que todo guru levitador, todo visitante alienígena, todo canalizador e todo aquele que cura pela fé fosse tratado de forma superficial e acrítica. Não havia memória institucional no estúdio de televisão, nos jornais ou nas revistas sobre alegações semelhantes já desmascaradas como fraudes e logos. Embora ainda não seja uma voz bastante forte, a CSICOP representa um contrapeso à credulidade da pseudociência, que parece ser uma segunda natureza de grande parte da mídia.

[Sagan, cap. XVII, pp.291-2]

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Smith x Marx

Adam Smith(E) e Karl Marx: dois profetas, duas Escrituras, dois deuses.

Os humanos são seres que reagem a estímulos: amor e dor, chicote e cenoura, prêmio e castigo. Se acha isso um reducionismo, saiba que está nas entranhas nas religiões judaico-cristãs que, por mais que digam que “não é bem assim”, partilham de dueto similar: “céu e inferno” (ou colônia e umbral, se preferir). Os economistas clássicos sabiam disso e tinham a vantagem, em relação aos religiosos, de poder quantificar o empenho em cifrões. O livre comércio tornou-se a vaca sagrada de gerações de políticos justamente por tornar a “cenoura” maior e mais apetitosa. Qualquer interferência destruiria a motivação individual e acabaria se tornando maléfica, por mais que fosse bem intencionada. Por exemplo, Adam Smith, no seu clássico A Riqueza das Nações, assim explicou como um controle de preços em época de escassez poderia levar a desastres:

Quem quer que examine atentamente a história das fases de miséria e penúria de víveres que têm afligido qualquer região da Europa, no decurso do presente século [XVIII] ou dos dois séculos anteriores – sendo que de várias delas possuímos relatos bastante precisos – constatará, como creio, que jamais uma carestia se originou de uma associação ou conluio entre os comerciantes internos de trigo, nem de qualquer outra causa que não fosse uma escassez real, resultante, por vezes, ocasionalmente, em determinados lugares, da devastação da guerra, porém, na grande maioria dos casos, das estações pouco favoráveis; constatará igualmente que uma fome geral nunca se originou de outra causa senão da violência do Governo, que, na tentativa de remediar os inconvenientes de uma carestia, recorreu a meios inadequados.

Em um país produtor de trigo e de grande extensão, se entra todas as suas regiões existir liberdade de comércio e de comunicação, a escassez gerada pelas estações mais desfavoráveis nunca pode ser tão grande a ponto de provocar uma fome, por outro lado, a colheita mais precária, se administrada com parcimônia e economia, será capaz de sustentar, através do ano, o mesmo número de pessoas que se alimentam com maior abundância com uma colheita mais farta. As estações mais desfavoráveis para a colheita são as de seca excessiva ou de chuvas excessivas. Entretanto, já que o trigo se desenvolve de maneira igual tanto em terras altas como em terras baixas, em solos de natureza mais úmida e em solos de natureza mais seca, a seca ou o excesso de chuvas, que são prejudiciais para uma parte do país, são favoráveis para outra; e, embora tanto na estação de secas como na estação chuvosa, a colheita seja bastante menos abundante do que em uma estação favorável, acontece que nessas duas estações desfavoráveis, o que se perde em uma região do país, de certo modo é compensado pelo que se ganha em outra. Nos países produtores de arroz, onde a colheita não somente requer um solo muito úmido, e onde também, durante um determinado período do cultivo, o arroz deve crescer debaixo d’água, os efeitos de uma seca são muito mais funestos. Não obstante isso, mesmo em tais países, a seca talvez dificilmente seja alguma vez tão generalizada a ponto de provocar necessariamente uma fome, se o Governo permitir o livre comércio. A seca de Bengala, há alguns anos [1770], poderia provavelmente ter provocado uma carestia muito grande. Possivelmente, algumas medidas inadequadas, algumas restrições pouco sensatas impostas pelos empregados da Companhia das Índias Orientais ao comércio do arroz tenham contribuído para transformar essa carestia em uma fome generalizada.

Quando o Governo, para remediar os inconvenientes de uma carestia, ordena a todos os comerciantes que vendam seu trigo a um preço que ele presume razoável, de duas uma: ou os impede de comercializá-lo – o que, às vezes, pode produzir fome, mesmo no início da estação – ou, se os comerciantes levam o trigo ao mercado, o Governo dá condições à população – e com isso a estimula a fazê-lo – de consumir o estoque tão rapidamente, que inevitavelmente haverá fome antes do fim da estação. A liberdade ilimitada e irrestrita de comercializar cereais não só constitui a única medida eficazmente preventiva das agruras da fome, como também representa o melhor paliativo para os inconvenientes da carestia; com efeito, os inconvenientes de uma real escassez não podem ser remediados; para eles só existem medidas paliativas. Não há nenhuma atividade que mereça mais plena proteção da lei, nenhuma exija tanto; e isso porque nenhuma outra atividade está tão exposta à reprovação popular.

[Smith, Livro IV, cap. V, pp. 31-2]

Smith acertadamente atribui a fome de Bengala (atual Bangladesh e arredores) à impiedosa ação da Companhia da Índias Orientais. Tendo se tornado, em termos práticos, dona da região, ela impôs o monopólio comercial, aumentou o imposto agrário, direcionou a produção para a exportação e proibiu a estocagem de grãos, tudo em meio a época de seca e más colheitas. Resultado: dez milhões de mortos ou um terço da população local. Os revolucionários comunistas do século XX também se notabilizaram por produzir epidemias de fome (como o holodomor na URSS de Stálin e o Grande Salto para frente, na China de Mao), porém, em vez da maximização de lucros, objetivo deles era a reengenharia social à toque de caixa para trazer o paraíso à Terra e superar o capitalismo (cf. [White, pp. 463, 523-6]). No Brasil, embora ainda haja problemas com a seca nordestina e em bolsões de miséria, não há, na história recente, uma crise de inanição tão generalizada. Contudo, houve uma carestia e relativo desabastecimento durante o “Plano Cruzado” (1986), quando uma tentativa de violar a “Lei da Oferta e Procura” por meio de um tabelamento de preços, associada à uma economia fechada, desestimulou o comércio. Oito anos depois, o Plano Real teve a virtude de compensar a esperada elevação da demanda que se seguiria ao controle dos preços (dessa vez por uma paridade cambial ao dólar) com a abertura da economia e, portanto, aumento da oferta.

Quer dizer que Adam Smith estava absolutamente certo, não? Nem tanto. De fato, o poder dos governos de produzir desastres é grande – daí a defesa apaixonada de alguns pelo “Estado mínimo” -, mas se a única coisa a esperar de agentes individuais é “satisfação de seu próprios interesses”, por que razão eles haveriam de vender alimentos para um bando de famélicos sem dinheiro? Ainda mais se houver acesso a outros mercados mais promissores! Foi essa a armadilha que os ingleses montaram para os indianos na Era Vitoriana, quando a Coroa já havia assumido controle direto do subcontinente. Por ocasião de uma seca em 1876, o governo colonial quase nada fez em amparo à população e, quando muito, criou frentes de trabalho insalubres. A boa notícia foi que o comércio continuou a fluir sem empecilhos e quem ainda tinha alguma produção pôde escoá-la para os portos usando alguma ferrovia construída pelos ingleses (cf. [White, pp. 377-84]). Curiosamente, dois anos antes o governador de Bengala, Richard Temple, conseguiu prevenir um desastre importando meio milhão de toneladas de arroz da Birmânia, que distribuiu aos necessitados. Como foi muito criticado por essa forma de gastar dinheiro do Tesouro, mostraria depois ter “aprendido a lição”.

Justiça seja feita: toda essa omissão não pode ser atribuída exclusivamente às ideias de Adam Smith. Ele próprio reconhecia que nem tudo era da alçada do livre mercado:

O terceiro e último dever do soberano ou do Estado é o de criar e manter essas instituições e obras públicas que, embora possam proporcionar a máxima vantagem para uma grande sociedade, são de tal natureza, que o lucro jamais conseguiria compensar algum indivíduo ou um pequeno número de indivíduos as crie e mantenha. Também o cumprimento deste dever exige despesas cujo montante varia muito conforme os diferentes períodos da sociedade.
[Smith, Livro V, cap. I, parte III, p. 198]

Foi preciso adicionar outro arcabouço teórico para que os governantes pudessem lavar as mãos sem se tornarem mal vistos: a teoria populacional de Thomas Malthus. Publicada originalmente em 1798 no tratado Um Ensaio sobre o Princípio da População e como ele afeta o Futuro Desenvolvimento da Sociedade, ela, super-resumidamente, advoga que a população tende a crescer de forma geométrica (1, 2, 4, 8, 16 …), ao passo que os meios de subsistência cresceriam de forma aritmética (1, 2, 3, 4, 5 …). Já que essas duas razões de crescimento não se encaixam, não o só número de seres humanos acabaria limitado pela Natureza, como também a qualidade de vida deles:

A fome parece ser o último, o mais horrível recurso da natureza. O poder da população é tão superior ao poder da terra em prover subsistência para o homem, que a morte prematura deve de uma forma ou de outra visitar a raça humana. Os vícios da humanidade são ativos e capazes agentes do despovoamento. Eles são os precursores no grande exército da destruição; e frequentemente dão cabo ao horrível serviço por contra própria. Mas caso falhem nessa guerra de extermínio, doenças endêmicas, epidêmicas, pestilências e pragas avançam em terrível sucessão e varrem seus milhares e dezenas de milhares [de vidas]. Caso o sucesso ainda seja parcial, uma gigante e inevitável fome espreita ao fundo e, com um poderoso golpe, nivela a população com o alimento do mundo.

Malthus, Thomas R.; An Essay on the Principle of Population, cap. VII, parágrafo 20, primeira edição (1798).

Era Malthus um crápula? Não, apenas alguém sinceramente preocupado com persistência da pobreza no mundo, em meio a uma relativa prosperidade econômica geral. Sua solução para o problema – exposta mais enfaticamente nas edições posteriores – se encontrava na melhoria e “restrição moral” da humanidade. Ou seja, pensar menos “naquilo”. Muito já se discutiu a respeito de sua obra, mas a principal refutação veio pela prova do tempo: novos métodos contraceptivos associados a uma melhora geral das camadas mais baixas do povo levaram à queda da natalidade, além de a “Revolução Verde” ter expandido rapidamente a oferta de alimentos. Nem por isso o malthusianismo deixou de se reciclar e sua roupagem atual apela para questão ecológica. Por ora, é interessante constatar aqui existência de distorções popularescas do malthusianismo à época da “Economia Clássica”. O escritor vitoriano Charles Dickens, em Um Conto de Natal (1843), retratou o avarento Scrooge como um adepto delas logo no primeiro capítulo, como desculpa para sua sovinice.

– Desejo que me deixem em paz; já que os senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu não faço banquetes para mim próprio pelo Natal, vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço muito em dar minha contribuição às organizações de que falamos ainda há pouco [prisões, asilos, casas de correção], e elas não ficam barato! Aqueles que tiverem necessidade que recorram a elas.

– Muitos não o podem fazer, outros preferem a morte.

– Se preferem a morte, – disse Scrooge –, está ótimo! Que morram! Isso virá diminuir o excesso de população. De resto, queiram desculpar-me, porém não estou bem a par dessa questão.

Não foi à toa que o Ministro das Finanças por ocasião da fome indiana de 1876-7 – Sir Evelyn Baring (futuro Lorde Cromer) – declarou: “Toda tentativa benevolente de mitigar os efeitos da fome e do saneamento precário só serve para aumentar os danos resultantes da superpopulação” (cf. [White, p. 380] e [Davis, cap. I, p.32]).

Não é apenas o pessoal mais, digamos, à direita que é capaz de endurecer o coração ante o sofrimento alheio. Esquerdistas comumente fazem vista grossa às matanças promovidas por revolucionários, como a política do Terror durante a Revolução Francesa, os gulags soviéticos e o paredón cubano. E você não precisa(va) estar do lado errado da fronteira para se tornar escorregadio. Um exemplo emblemático foi a postura Noam Chomsky – linguista e ativista norte-americano cheio de publicações – ante o genocídio cambojano dos anos 70:

In extremis, os que pensam conforme aquilo em que desejam acreditar preferem abandonar por completo a realidade e a moral a renunciar a suas escolhas reconfortantes. No fim da década de 1970, Chomsky ridicularizou sistematicamente a ideia de que Pol Pot pudesse ser um assassino em massa, apesar do depoimento de muitos cambojanos que tinham fugido pela fronteira. “Os refugiados fica assustados e indefesos, à mercê de forças alheias”, disse ele aos leitores de The Nation em junho de 1977. “É natural que tendam a contar o que acreditam que seus interlocutores queiram ouvir. (…) Especialmente, os refugiados questionados por ocidentais ou tailandeses têm interesse especial em relatar atrocidades por parte dos revolucionários cambojanos, fato óbvio que nenhum repórter sério deixará de levar em conta.” Dois anos depois, após a derrubada de Pol Pot, as imensas pilhas de crânios humanos em seus campos de extermínio confirmaram que não eram os refugiados que se haviam iludido. A estimativa mais abalizada é que, entre abril de 1975 e janeiro de 1979, o Khmer Vermelho tenha matado 1.670.000 cambojanos, ou 20% da população – proporcionalmente, a maior carnificina já infligida por um governo a seus súditos. Todavia, mesmo em 1980, ao publicar After the Cataclysm: Postwar Indochina and the Reconstruction of Imperial Ideology [“Depois do cataclismo: a Indochina do pós-guerra e a reconstrução da ideologia imperial”], Chomsky recriminou os que aplicavam a palavra “genocídio” a esse Holocausto. “As mortes no Camboja não resultaram da matança sistemática e da inanição promovidas pelo Estado, mas são atribuíveis, em larga medida, à vingança dos camponeses, a unidades militares indisciplinadas, fora do controle do governo, à fome e à doença que são uma consequência direta da guerra norte-americana, ou a outros fatores desta natureza.” Afinal, por que continuar reprisando a questão desses cadáveres? “O lado positivo do quadro [do Khmer Vermelho] foi praticamente apagado”, reclamou Chomsky. “O lado negativo tem sido apresentado a uma plateia em massa, numa saraivada de informações que encontra poucos paralelos históricos, excetuada a propaganda dos tempos de guerra.”

Noam Chomsky sempre concedeu o benefício da dúvida a regimes antiamericanos como os de Pol Pot ou Slobodan Milosevic, esforçando-se por minimizar a escala de seu terrorismo e duvidando até das provas mais criteriosamente ratificadas. (…)

[Wheen, cap. XI, pp. 323-4]

A origem dessa dissonância cognitiva é antiga. Já no Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels assim clamaram aos operários:

Os comunistas consideram indigno dissimular as sua ideias e propósitos. Proclamam abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados derrubando pela violência toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam ante a ideia de uma Revolução Comunista! Os proletários não têm nada a perder com ela, além das suas cadeias. Têm, em troca, um mundo a ganhar.

PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!

De lá para cá, muitos dos que deram atenção a esse chamado perderam o ganha-pão, a integridade física, própria vida e a de seus filhos. A arapuca contida nele talvez tenha sido identificada por ninguém menos que Josef Stálin numa frase que lhe é atribuída (embora de origem incerta): “a morte de um homem é uma tragédia; a de milhões, uma estatística.” Ou seja, quando pessoas deixam de ser vistas com indivíduos e passam a ser tratados como coletivos, perde-se a compaixão por elas. Ficam como se fossem as células de um organismo, que não têm consciência individual e são continuamente trocadas. Apenas o organismo permanece e importa. Assim, que mal há se milhões morrem, mas a economia vai bem ou se está mais próximo da concretização do modo de produção socialista?

Há quem diga que a moral judaico-cristã é narcisista porque seu conceito de salvação é um processo essencialmente individual, ao contrário da redenção coletiva proposta por ideologias. Se assim for, melhor, pois só conseguimos nos colocar nos pés de outros indivíduos – a quem, segundo essa moral, devemos amar como nós mesmos -, não de abstrações numéricas. [voltar]

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Freud x Jung

Sigmund Freud (E) e Carl Jung: discípulos ameaçando o reinado dos mestres desde os tempos de Platão e Aristóteles.

O historiador Paul Johnson descreveu de forma pesada a relação entre Freud e círculo mais íntimo:

Freud era bem mosaico nas suas convicções sobre a questão do que era justo. A tradição de tolerância, de pontos de vista e de uma liderança policêntricos, não o atraía. Max Graf, pai do Pequeno Hans, disse que o clima no gabinete de Freud era “o da fundação de uma nova religião”. Os pacientes eram “os apóstolos” e Freud, “embora atencioso e de bom coração em sua vida privada”, era “duro e inflexível na apresentação de suas ideias”[229]. Freud tinha a sua pequena corte, da mesma forma que os sábios hassídicos. Formada inicialmente em 1902, nela ele nunca tolerou uma oposição séria a sua pessoa. Alfred Adler (1870 – 1937), um dos primeiros e mais brilhantes de seus membros, foi tratado – quando uma vez ele arriscou a discordar – não como um colega exercendo a crítica, mas como um heresiarca, ou ainda, por um termo que os marxistas iriam popularizar:’dissidente’. Como Graf colocou a situação: “Foi um julgamento e a acusação que pesava sobre o réu era de heresia … Freud, na condição de líder da igreja, excomungou Adler; ele o expulsou da igreja oficial. Durante um período de alguns anos, eu vivenciei todo o desenvolvimento de uma igreja”. Daí em diante, a excomunhão (herem), foi muito usada, principalmente no caso de Jung, o maior de todos os heresiarcas. O rompimento com Jung foi particularmente rancoroso, pois, como Jones colocou, ele deveria ter sido o Josué do Moisés de Freud. Seu “semblante mostrava um aspecto exultante quando falava de Jung: ‘Esse é meu filho querido, com quem eu estou muito satisfeito’. “Quando o império que eu fundei ficar órfão”, ele escreveu, “cabe a Jung herdá-lo todo, e a ninguém mais”[230].

[Johson, parte V, pp. 432-3]
Notas de autor:

[229]Citado em Roazen, op. cit., 197. (No caso, Paulo Roazen, Freud and his Followers, Londres, 1976.)
[230] Jones, op. cit., ii 33. (No caso, Ernest Jones, Life and Work of Sigmund Freud, 3 vols. (Nova York, 1953-7).

Embora fosse de família judia, Freud não era religioso e muito menos praticante. Ainda assim, aspectos da cultura judaica permearam sua obra, como a experiência subjetiva da interpretação da mente, que tem paralelos com estilo de exegese de expoentes da mística judaica:

Freud, na tradição judaica irracionalista, foi mais um Namânides ou um Besht [místicos] do que um Maimônides [racionalista]. Mas, talvez exatamente por isso, ele tornou-se um pilar central da estrutura intelectual do século vinte, uma construção com bases predominantemente irracionais. Para variar a metáfora, podemos dizer que ele deu à humanidade um novo espelho, pois nunca nenhum homem mudou de maneira tão radical e irreversível a maneira pela qual as pessoas se olham a si mesmas; ou mesmo a maneira como elas falam de si mesmas, pois ele também mudou o vocabulário da introspecção.
[Idem, p. 434]

E assim, um ateu teria criado seu próprio credo. Mas não do nada. [voltar]

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Masters of Sex - a série

FREUD LEVOU PAU EM GINECOLOGIA!

Um dos mais controversos pontos talvez seja a questão do orgasmo feminino no desenvolvimento sexual da mulher:

Se a vivência do sentimento de prazer sexual acaba por ser tão subjetiva, é lógico pensar que os fatores culturais tê um peso importante em sua experimentação. A expectativa que se tem do orgasmo é culturalmente determinada. Atualmente, as mulheres ocidentais esperam e desejam ter orgasmos e seus companheiros sexuais esperam também que elas os tenham. Quando não é assim, pensa-se que algo vai mal. Sem dúvida, até há poucos anos acreditava-se que as mulheres não tinham capacidade de experimentar prazer sexual, e que, nas poucas que o sentiam, isto era considerado um defeito ou, pelo menos, em hipótese alguma, devia ser exteriorizado. A tradição vitoriana fez com que as mulheres acreditassem que, na melhor das hipóteses, o orgasmo era algo pecaminoso.

Nesse contexto, surgiu a obra de Freud, que afirmou que existiam dois tipos de orgasmo feminino: o clitoriano e o vaginal. A afirmação em si não teria provocado maiores problemas se Freud não tivesse acrescentado que os orgasmos clitorianos (obtidos por meio da masturbação e por atos alheios ao coito) evidenciavam a imaturidade psicológica da mulher, enquanto os orgasmos vaginais (decorrentes do coito) eram os verdadeiramente saudáveis e maduros. Em seu ensaio Algumas consequências psicológicas da diferença anatômica entre os sexos, Freud escreveu que “a supressão da sexualidade clitoriana é um requisito necessário para o desenvolvimento da feminilidade”. A partir desta teoria freudiana, criou-se uma importante controvérsia entre a natureza e as implicações do orgasmo feminino, em virtude da qual inúmeras mulheres foram classificadas de neuróticas. Na realidade, segundo diversos estudos, só uma pequena percentagem de mulheres (em torno de 30% a 40%) atinge um orgasmo durante o coito, sem nenhum outro tipo de estimulação simultânea. Isto ocorre, talvez, devido a diferenças na sensibilidade genital e não a fatores como imaturidade, ansiedade e comunicação deficiente com o parceiro.

Por outro lado, numerosos estudos demonstravam que, em termos fisiológicos, existe apenas uma resposta orgástica. Um orgasmo obtido por meio da estimulação do clitóris é idêntico, fisiologicamente falando, a outro obtido pelo coito. Apesar disto, a ideia da existência de dois diferentes tipos de orgasmos tem-se mantido e chegou até os nossos dias. Talvez seja porque se confundiu a resposta fisiológica com a experiência orgástica das mulheres. Neste ponto, é verdade que as mulheres capazes de conseguir orgasmos clitorianos e vaginais descrevem dois tipos de experiência diferentes. Mas isto é devido à diferente experiência emocional, não à uma diferente resposta física. De fato, entre as mulheres, há preferências para todos os gostos. Enquanto umas preferem o orgasmo coital porque a experiência parece-lhes satisfatória, embora o orgasmo seja menos intenso, outras valorizam o orgasmo clitoriano, possivelmente pelas vantagens que este envolve, quanto a sua maior intensidade e por não se verem envolvidas pelas necessidades e pelo ritmo de seu companheiro sexual.

Em conclusão, atualmente não se considera patológico o fato de não se atingir o orgasmo por meio do coito; aceita-se que a resposta fisiológica, como a descrevemos anteriormente [dividida nas fases excitação, platô, orgasmo e resolução], é a mesma seja qual for a estimulação e o tipo de orgasmo, e considera-se que nenhum deste tipos é mais maduro ou imaturo, melhor ou pior que o outro.

[Enciclopédia da Sexualidade, vol. I, pp.58-60]

Masters of Sex - a série

A série Masters of Sex reconta a trajetória das pesquisas de William Master e Virginia Johson (acima, uma foto real deles), alfinetando o pai da psicanálise no sexto episódio da primeira temporada. Ignoro o quanto a dramatização é fiel aos fatos, mas a série dá um bom sentimento entre a diferença entre pesquisa a partir de experimentos controlados com boa base de dados e uma teoria de poucas amostras e muita especulação.

A resposta fisiológica do orgasmo foi primeiramente estudada por William H. Masters e Virginia E. Johnson, no fim dos anos 50 e começo dos 60 do século XX, tendo seus resultados publicados em Human Sexual Response, lançado em 1966. Suas pesquisas utilizaram o que havia de mais avançado na época (como eletrocardiogramas e eletroencefalogramas), além de instrumentos de invenção própria (como um vibrador transparente munido de iluminação interna, para registrar o comportamento do canal vaginal), e, de fato, não apontaram diferenças na forma como o corpo feminino reponde aos dois tipos de orgasmo. Com o posterior avanço da tecnologia, contatou-se, por meio de tomógrafos, que o cérebro feminino tem diferentes áreas ativadas durante cada um deles, o que pode explicar as distintas experiências subjetivas relatadas pelas que conseguem vivenciar os dois tipos. Acrescente-se à discussão o famigerado “ponto G”, cuja existência e localização no canal vaginal ainda é debatida. Talvez uma sensata opinião seja a proferida pelo cientista Emmanuele Jannini (citado no link anterior):

Uma mulher deve ter uma compreensão de quem ela é, como é constituído seu corpo, qual é capacidade de seu corpo, mas não deve buscar por algo como se fosse uma corrida, um jogo, um dever. Buscar o ponto G ou o orgasmo vaginal como uma necessidade, como um dever, é a melhor maneira de perder a felicidade do sexo.

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Diagrama do solipsismo.

Uma armadilha em as correntes psicanalíticas caem muitas vezes é a do “solipsismo metodológico”: a crença que o conteúdo dos pensamentos de um indivíduos é determinada por fatos acerca deles, fato esses independentes do que ocorre no mundo exterior. Se você lembrou de A Interpretação dos Sonhos, não foi mera coincidência.

O problema é a experiência subjetiva, como o próprio nome diz, não pode ser avaliada acima de qualquer dúvida razoável aqui do mundo exterior. Por isso, pode-se criar todo um arcabouço teórico – perfeitamente lógico e coerente, cujas premissas não podem ser determinadas como certas ou erradas – para explicar questões sobre a inteligência, as emoções e o comportamento. Assim, constrói-se um castelo à prova de qualquer contestação. Tudo bem se ficarmos no campo da filosofia, mas se for para falarmos de validade científica, complica.

De qualquer modo, os adeptos dessas teorias precisam a linguagem para se exprimir e convencer, aí que o palavrório rebuscado entra em ação para ocultar a falta de embasamento:

Isso é profundamente enigmático, pois é, em última análise, uma relação para algo secreto e oculto. Se me permitir usar uma dessas fórmulas que me vêm a medida que escrevo minhas notas, a vida humana poderia ser definida como um cálculo em que zero fosse um irracional. Essa fórmula é apenas uma imagem, uma metáfora matemática. Quando digo “irracional”, refiro-me não a um inapreensível estado emocional, mas precisamente ao que é chamado de número imaginário. A raiz quadrada de menos um não corresponde a nada que esteja sujeito a nossa intuição, nada real – sentido matemático do termo – e ainda assim, precisa ser conservado, juntamente com sua função total. É o mesmo com o elemento oculto da referência vivente, o sujeito, na medida em que toma a função de significador, não pode ser subjetificado como tal.

Lacan, Jacques & al.; Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet, Yale French Studies, No. 55/56, Literature and Psychoanalysis. The Question of Reading: Otherwise. (1977), pp. 11-52.

Jacques-Marie Émile Lacan, um dos expoentes da psicanálise freudiana, confundiu números inteiros com irracionais e esses com os imaginários. Mesmo mantendo o raciocínio como metáfora, o uso que faz para termos matemáticos nada tem a ver com seus significados originais. De fato, os números imaginários geraram muita discussão, porém os “irracionais” têm esse nome não por ferirem a razão nem por serem a radiciação de um negativo, mas por não poderem ser expressos por uma razão entre dois inteiros e, ao contrário dos imaginários, têm exemplos abundantes na realidade cotidiana (ainda que não se dê conta). O zero, por sua vez, é um número racional. Então, o que significa o parágrafo acima? Não sei, mas não faltará quem tente explicar. Vale lembrar que rebater nem sempre significa refutar e o estilo extremamente obscuro de Lacan pode tanto ajudar quem quer defendê-lo quanto reforçar a imagem de uma falsa erudição e/ou ausência de conteúdo.

Lacan era um figurão? Sim. Yale é universidade respeitada? Muito. Então, como alguém renomado concebeu um texto aparentemente extraído de um “gerador de lero-lero” e uma universidade conceituada o deixou passar? Bem, isso muito mais comum do que imagina. Procure saber sobre o “Caso Sokal” e, se quiser pequena introdução aos filósofos “pós-modernos”, recomendo a leitura de [Navega, cap. IV]. [voltar]

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Retrato de Popper

Karl Popper (1902 – 1994)

O filósofo da ciência Karl Popper até hoje desperta discussões com seu critério de “falsificação” para distinguir a solidez um conhecimento científico da de outro que não o seja, o que pelo menos seja má Ciência. Em outras palavras, será científico um conhecimento que puder ser comprovado falso de algum modo, em vez de aquele que alega ter uma série verificações positivas. Isso foi uma inversão de valores com o paradigma indutivo exclusivo até meados do século XX e deve ter sido, em grande parte, motivada por sua vivência juvenil:

Foi no verão de 1919 que comecei a ficar mais e mais insatisfeito com essas três teorias – teoria marxista da história, a psicanálise e a psicologia individual; e comecei a sentir dúvidas quanto a suas demandas de status científico. Meu problema talvez, primeiramente, tomasse uma forma simples: “o que há de errado com o marxismo, a psicanálise e a psicologia individual? Por que elas são tão diferentes de teorias físicas, da teoria de Newton e, especialmente, da teoria da relatividade?”

Para clarear esse contraste, devo explicar que poucos de nós à época teríamos dito que acreditávamos na validade da teoria da gravitação de Einstein. Isso mostra que não era minha dúvida da validade dessas três outras teorias que me incomodava, mas alguma outra coisa. E nem era que eu quase considerasse que física matemática fosse mais exata que uma teoria do tipo sociológico ou psicológico. Assim, o que me preocupava nem era o problema da validade, naquele estágio pelo menos, nem o problema da exatidão e mensurabilidade. Era mais que eu sentia que essas três teorias, embora posassem de ciência, tinha, de fato, mais em comum com mitos primitivos que com ciência; que pareciam mais com astrologia que com astronomia.

Eu descobri que muitos dos meus amigos que eram admiradores de Marx, Freud e Adler ficavam impressionados pelo número de pontos em comum a essas teorias, e especialmente pelo seu seu aparente poder explanatório. Essas teorias aparentam ser capazes de explicar praticamente tudo que acontece dentro dos campos a que se referiam. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma conversão ou revelação, abrir os olhos a uma nova verdade oculta dos que não foram ainda iniciados. Uma vez, então, os olhos sejam abertos, via-se instâncias confirmatórias por toda parte: o mundo estava cheio de confirmações da teoria. O que quer que acontecesse sempre a confirmava. Assim, sua verdade parecia manifesta; e os incréus eram claramente pessoas que não queriam ver a manifesta verdade; que se recusavam a vê-la, seja porque ela era contra seu interesse de classe ou é por causa de suas repressões que ainda estavam “não analisados” e clamando por tratamento.

O mas característico elemento nessa situação parecia-me ser a incessante corrente de confirmações, de observações que “verificavam” as teorias em questão; e este ponto era constantemente enfatizado por seus adeptos. Um marxista não podia abrir um jornal sem encontrar em cada página uma evidência confirmatória para sua interpretação da história; não apenas nas notícias, mas também em sua apresentação – que revelava o viés de classe do jornal – e especialmente, é claro, o que o jornal não dizia. Um analista freudiano enfatizava que suas teorias eram constantemente verificadas por suas “observações clínicas”. Assim como Adler, eu ficava muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, reportei-lhe uma caso que não me parecia particularmente adleriano, mas que ele não encontrou nenhuma dificuldade em analisar em termos de sua teoria de inferioridade de sentimentos, apesar de nem mesmo ter visto a criança. Levemente chocado, perguntei-lhe como ele poderia estar tão seguro. “Por causa de minha experiência de um milhar [de casos]”, respondeu; após o que não adiantaria nada se eu dissesse: E com esse novo caso, suponho, sua experiência se tornou de um milhar e um.”

O que eu tinha em mente era que suas prévias observações podiam não ter sido tão sonoras como essa nova; que cada uma, em sua vez, fora interpretada à luz de “prévia experiência”, e que ao mesmo tempo contou como confirmação adicional. O que – perguntava-me – ela confirma? Nada mais que um caso que podia ser interpretado à luz de uma teoria. Mas isso significava muito pouco, refleti, já que cada caso concebível podia ser interpretado à luz da teoria de Adler ou igualmente da de Freud.

Eu posso ilustrar isso por meio de dois exemplos bem diferentes de comportamento humano: o de um homem que empurra uma criança dentro d’água com a intenção de afogá-la e o de um homem que sacrifica sua vida para salvar a criança. Cada um desses casos pode ser igualmente explicado com igual facilidade em termos freudianos e adlerianos. Segundo Freud, o primeiro sofria de repressão (digamos, de algum componente de seu complexo de Édipo), ao passo que o segundo alcançara a sublimação. Segundo Adler, o primeiro sofria de sentimentos de inferioridade (talvez produzindo a necessidade de provar para si mesmo que ousaria cometer algum crime), e da mesma forma o segundo (cuja necessidade era provar para si que ousaria resgatar a criança). Não conseguiria imaginar comportamento humano algum que não pudesse ser interpretado em termos de ambas teorias. Foi precisamente esse fato – que elas sempre se adequam, que eram sempre confirmadas – que aos olhos de seus admiradores constituiu o mais forte argumento a favor dessas teorias. Começou a me ocorrer que essa aparente força era, na verdade, a fraqueza delas.

[Popper (1957), cap. I]

Para Popper, mereceria o status científico hipótese que:

  1. Pudesse ser demonstrada falsa de alguma forma, i.e., fosse falseável;
  2. Ainda não tivesse sido falseada, i.e., tivesse resistido a todas as tentativas de falsificação.

Com isso, Popper invertia a postura vigente na metodologia do Indutivismo Lógico: em vez de teorias continuamente validadas (já ouviste falar de Consenso Universal dos Espíritos?), teríamos apenas hipóteses úteis que ainda não foram refutadas. Isso seria uma forma de prevenir a adoção de “teorias que nunca estão erradas”, pois elas sempre serão confirmadas, não importando o que a acontecer. Por exemplo, a noção de que vivemos em um “mundo justo” pode muito bem ser refutada por uma catástrofe. Por outro lado, admitindo-se a existência de uma entidade supra-humana capaz de controlar a natureza direta ou indiretamente, podendo, assim, punir humanos por crimes cometidos no passado (via reencarnação), presente ou, até mesmo, no futuro (via presciência), então a teoria está salva. Caso se chame essa entidade de “Deus”, então terá sido um argumento religioso e não científico, como alguns argumentarão. Mas que diferença faz, em termos práticos, para uma determinada ciência postular uma onipotência absoluta ou dar uma “onipotência especializada” ao livre mercado, à dialética materialista da História ou ao inconsciente (inclusive o quevediano)? [voltar]

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Retrato de Kuhn

Thomas Kuhn (1922 – 1996)

A abordagem de Popper se foca em dar uma definição “lógica” ao que seria ciência, mas será que o progresso científico realmente se deu na forma de falsificações sucessivas? A resposta é “não” conforme avaliou Thomas Kuhn no livro A Estrutura das Revoluções Científicas. Segundo ele, quando um conjunto de pressupostos teóricos, leis e técnicas de um campo científico (o paradigma do momento, em seu jargão) começa a não responder de modo eficiente a novas perguntas, isso não significa que ele seja imediatamente abandonado em prol de outro superior. Pelo contrário, tenta-se salvar o paradigma tradicional com a adoção de hipóteses especiais (também chamada de hipóteses ad hoc) que contornem suas dificuldades. Somente quando o volume de hipóteses especiais cresce demais e/ou se torna apelativo (como o exemplo “divino” do parágrafo anterior) é que o paradigma tradicional entre em “crise” e segue-se uma “revolução científica”, em que novos paradigmas são propostos e competem entre si até que haja um vencedor aceito pela comunidade científica e um reinício do ciclo. Um exemplo clássico desse esquema teria sido a revolução coperniciana, que jamais teria acontecido no modelo de Popper, pois teria sido prontamente falseada pela ausência da paralaxe estelar. Vale lembrar que, ao contrário do que preconizava Popper, a racionalidade pode ficar de fora na briga entre paradigmas e a opção de um grupo por este ou aquele candidato se dar por motivos subjetivos, como a insistência na cosmologia geocêntrica pela reverência a Aristóteles ou a rejeição da “hipótese sobrevivência” por motivos puramente materialistas.

Mesmo com essa mudança de abordagem, Kuhn não foi muito mais gentil que Popper quanto status científico da psicanálise (ou do marxismo), embora o fosse por razões bem distintas:

Examinando os casos mais inquietantes, por exemplo, a psicanálise e a historiografia marxista, para os quais Sir Karl [Popper] nos diz que seu critério foi inicialmente elaborado, concordo que eles não podem adequadamente ser rotulado de “ciência”. Contudo, chego a tal conclusão por um caminho mais seguro e direto que o dele. Um breve exemplo pode sugerir que dos dois critérios – testagem e solução de mistérios (*) – o último é, de uma só vez, menos equivocável e mais fundamental.

Para evitar irrelevantes controvérsias contemporâneas, tomo a astrologia no lugar da psicanálise. A astrologia é o exemplos mais frequentemente citado por Sir Karl de uma pseudociência. Diz ele [em Conjecturas e Refutações, parte II]: “Ao fazer suas interpretações e profecias suficientemente vagas, [os astrólogos] foram capazes de rechaçar qualquer coisa que pudesse ter sido uma refutação, tivessem a teoria e as profecias sido mais precisas. A fim de escapar da falsificação, destruíram a falseabilidade da teoria”. Essas generalizações captam algo do espírito do empreendimento astrológico. Contudo, levadas de forma totalmente literal, como devem ser se forem para prover um critério de demarcação, são impossíveis de se sustentar. A história da astrologia durante séculos, quando ela era intelectualmente reputada, registra muitas predições que categoricamente falharam. Nem mesmo os mais convincentes e veementes expoentes duvidaram da recorrência de tais falhas. A astrologia não pode ser banida das ciências por causa da forma em que suas predições foram dadas.

Nem pode ser banida por causa do modo que seus praticantes explicaram o fracasso. Astrólogos assinalaram, por exemplo, que, ao contrário das predições gerais sobre, digamos, as propensões de um indivíduo ou uma calamidade natural, a previsão de um futuro individual era uma tarefa imensamente complexa, exigindo a maior habilidade e sensível ao menor erro num dado relevante. A configuração das estrelas e dos oito planetas estava constantemente mudando; as tabelas astronômicas usadas para computar a configuração ao nascimento de um indivíduo eram notoriamente imperfeitas; poucos homens sabiam o instante de seu nascimento com a precisão requisitada. Não admira que, portanto, as previsões frequentemente falhassem. Somente após a própria astrologia ter se tornado implausível é que esses argumentos vieram a se parecer com petição de princípio. Argumentos similares são regularmente usados hoje ao se explicar, por exemplo, falhas na medicina ou meteorologia. Em ocasiões de dificuldades, eles também são dispostos nas ciências exatas, campos como física, química e astronomia. Nada havia de anticientífico acerca das explicações de fracasso dos astrólogos.

Contudo, a astrologia não era uma ciência. Em vez disso, era um ofício, uma das artes práticas, com semelhança próxima à engenharia, à meteorologia e à medicina como esses campos eram praticados até a pouco mais de um século atrás. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com a psicanálise contemporânea são, creio, particularmente próximos. Em cada um desses campos, a teoria partilhada era adequada apenas para estabelecer a plausibilidade da disciplina e para providenciar uma racionalização para as diversas regras de ofício que governavam a prática. Essas regras tinham comprovado seu uso no passado, mas nenhum praticante supunha que elas eram suficientes para prevenir falhas recorrentes. Eram desejadas uma teoria mais articulada e regras mais poderosas, mas teria sido absurdo abandonar uma plausível e tremendamente necessária disciplina com uma tradição de limitado sucesso simplesmente porque essas coisas desejáveis não estavam à mão. Na ausência delas, contudo, nem o astrólogo, nem o médico podiam fazer pesquisa. Embora tivessem regras a aplicar, não tinham mistérios a resolver e, portanto, nenhuma ciência para praticar.

Compare as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a predição de um astrônomo falhou e seus cálculos foram checados, ele podia esperar ajustar a situação corretamente. Talvez os dados estivessem errados: antigas observações podiam ser reexaminadas e novas medições feitas, tarefas que forneciam uma gama de mistérios calculacionais e instrumentais. Ou talvez a teoria precisasse de ajuste, seja pela manipulação de epiciclos, ecêntricos, equantes, etc., ou por reformas mais fundamentais da técnica astronômica. Por mais de um milênio houve mistérios matemáticos e teóricos circundantes com os quais, aliados a suas contrapartes instrumentais, a tradição de pesquisa astronômica foi constituída. O astrólogo, em contraste, não tinha tais mistérios. A ocorrência de falhas podia ser explicada, mas falhas particulares não davam origem à pesquisa de mistérios, pois ninguém, ainda que habilidoso, podia fazer uso delas numa tentativa construtiva de revisar a tradição astrológica. Havia fontes de dificuldades em demasia, a maioria delas além do conhecimento, controle e responsabilidade do astrólogo. Da mesma forma, falhas individuais não eram instrutivas e não refletiam sobre a competência do prognosticador aos olhos de seus pares profissionais. Embora a astrologia e a astronomia fossem comumente praticadas pelas mesmas pessoas – inclusive Ptolomeu, Kepler e Tycho Brahe – nunca houve um equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de mistérios. E sem mistérios, capazes de, primeiramente, desafiar e, então, atestar a engenhosidade do praticante individual, a astrologia não poderia ter se tornado uma ciência, mesmo se as estrelas, de fato, controlassem o destino humano.

Em suma, embora os astrólogos fizessem predições testáveis e reconhecessem que essas predições às vezes falhavam, eles não se engajaram (e nem podiam) nos tipos de atividades que normalmente caracterizam todas as ciências reconhecidas. Sir Karl está certo ao excluir a astronomia das ciências, mas seu foco excessivo em revoluções ocasionais da ciência o impede de ver a razão mais acertada para fazer isso

[Kuhn (1970), parte I. Notas omitidas.]

(*)Puzzle no original, comumente traduzido por “quebra-cabeça” nas edições brasileiras de Kuhn. Preferi o sentido mais abstrato da palavra. “Enigma” seria outra opção.

Embora centre-se na astrologia em vez da psicanálise, Kuhn deixa claro que há paralelos entre o modus operandi de uma e de outra que as impedem de se tornar genuínas ciências, independentemente da suposta regência dos astros ou (subentende-se) da validade da teoria freudiana. Vale atentar que, em uma nota ao texto acima, que Kuhn reconheceu a existência de “escolas” dentro da astrologia, a exemplo das ciências sociais e, também, da psicanálise. O problema é que os membros de cada escola preferiam atacar a teoria das outras, em lugar de refinar a da sua, por não enxergar mistérios nela por resolver. Fico a perguntar se o espiritismo, em seu estado atual, não se enquadraria mais numa “arte prática”, como os exemplos apresentados por Kuhn, do que exatamente uma ciência. Nesse caso, pesquisadores psi ou da “hipótese sobrevivência” fariam o papel dos astrônomos e os espíritas, dos astrólogos. O quanto esses grupos se sobreporiam?

Uma última opinião que gostaria de expor é a de Imre Lakatos, que reparou que muitas das críticas de Khun a Popper, embora acertadas em sua opinião, se referiam a uma versão, digamos, “ingênua” do falsificacionismo, centrada numa aplicação restrita dos dois pressupostos mencionados acima. Um pressuposto extra, um tanto difuso na obra original de Popper, fortaleceria esse critério de demarcação: uma hipótese científica deveria ser mais falseável que suas competidoras, implicando que deveria ter uma comprovação empírica maior (para, comparativamente, ter sido “menos falseada”) e uma capacidade preditiva maior (para ser mais “falseável”, caso uma previsão falhe). Esse falsificacionismo “sofisticado” contém uma abordagem para o crescimento da ciência, ficando um pouco mais próximo do historicismo de Kuhn. Além disso, embora ambas as filosofias fossem rivais, elas tinham muito em comum: se posicionavam contra o enfoque positivista (inducionista) da ciência, davam prioridade à teoria (ou paradigma) sobre a observação e insistiam que a busca por interpretação, aceitação ou rejeição dos resultados de um experimento ou observação ocorriam tendo uma teoria (ou paradigma) como pano de fundo [Chalmers, cap. IX, p.130]. Acontece que, mesmo em sua versão “sofisticada”, o falsificacionismo ainda apresenta dificuldades difíceis de contornar como, por exemplo, se uma observação não condiz com uma previsão, o que está errado: a teoria, a observação/experimento ou ambos? Por pura e simples lógica não é possível responder e caso a observação (ou experimento) esteja correta, será toda a teoria errada ou parte dela apenas?

A resposta de Lakatos foi sugerir que nem todas as partes de uma ciência estão no mesmo patamar. Algumas seriam seu “núcleo duro” (hardcore), o cerne fundamental cuja falsificação a invalidaria. Exemplos disso seriam as três leis de Newton e sua Gravitação Universal para a Mecânica clássica ou a disposição dos planetas ao redor do Sol para o modelo coperniciano. Em torno desse núcleo, haveria um “cinturão protetor” de teorias auxiliares, hipóteses complementares (ad hoc) e métodos observacionais/experimentais, que seria constantemente modificado, expandido e refinado com o tempo conforme problemas surgissem. A junção desses dois constituiria o programa de pesquisa, a alternativa de Lakatos ao paradigma de Kuhn como panorama em a atividade científica se desenvolve. O valor de um programa de pesquisas estaria no fato de ele ter realmente um “programa de pesquisa” capaz de guiar a futuras descobertas – coisa que tanto a psicanálise e o marxismo possuiriam – e na extensão em que levaria a novas predições posteriormente confirmadas. Um programa progressivo atenderia esse quesito. Por outro lado, se ele fosse constantemente surpreendido pelo novo, precisando ajustar o cinturão em razão de um crescimento empírico inesperado; isto é, se somente oferece explicações a posteriori de descobertas fortuitas ou, pior, de fatos previstos e descobertos por um programa rival, então seria considerado regressivo ou degenerante, situação em estariam os dois anteriores. A substituição de um programa regressivo por um rival progressivo seria o equivalente de Lakatos para “revolução científica”.

Atendo-se apenas à abordagem de Lakatos, o espiritismo seria um programa regressivo, estando as pesquisa em psi e sobrevivência como rivais progressivos, embora menos pretensiosos.

Poderia continuar esta discussão passando pelo anarquismo epistemológico de Paul Feyeranbend, pela defesa do retorno ao indutivismo pelos advogado pelos bayesianos, pelo neoexperimentalismo, etc., o que fugiria muito do escopo aqui. A quem quiser se aprofundar nas correntes filosóficas da ciência, sugiro como leitura o nono capítulo de [Ferreira] e, principalmente, [Chalmers]. De qualquer forma, duvide sempre de qualquer debatedor alegando que se der cara ele ganha e coroa, você perde. [voltar]

(18) Curiosamente, há quem diga que Freud nunca curou ninguém! Bem, isso é com Freud, não com os que vieram depois. [voltar]

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Cartaz de Mumford (1999)

Na cidadezinha de Mumford, o analista Mickey Mumford (sim, são homônimos) tem feito grande sucesso com seu consultório. Tanto ao ponto de outros profissionais da região começarem a querer saber mais a respeito da origem do Dr. Mumford…

Bem, esse é o argumento da comédia romântica Mumford (1999). Está longe de ser um filmaço, mas é uma boa pedida para distrair a mente (e cutucar seu amigo analista). Dica: ainda no começo da história, quando Mumford chega em casa depois do expediente, ele liga a TV e a fica escutando enquanto cuida de outros afazeres domésticos. Repare no programa que está passando. Ele será crucial para a trama mais adiante, no melhor estilo arma de Tchecov. [voltar]

(20) Seria uma espécie de “filosofia natural” especializada na mente humana. Justiça seja feita, uma proposta chave de Freud – o inconsciente – é tido como real para a moderna neurociência, ainda que ela não lide da mesma foram com ele. [voltar]

(21) Talvez você até seja mesmo, mas esta brincadeira é apenas um lembrete para não levar a sério quem usa no meio de um raciocínio a própria conclusão a que deveria chegar (no caso, a teoria psicanalítica) e não digo que todos os farão isso. Agora, a tentação pode ser grande ao se lidar de conhecimento introspectivo. [voltar]

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Para saber mais

– Aaboe, Asger; Episodes from the Early History of Astronomy, Spinger, 2001.

– Chalmers, Alan F.; What is this thing called Science?, Hackett Publish Company, 3a. edição, 1999.

– Davis, Mike; Late Victorian Holocausts, Verso, 2001.

Enciclopédia da Sexualidade para o Casal Moderno, 2 vols., Editora Três, 1995.

– Ferreira, Juliana M.H.; Estudando o Invisível – William Crookes e a Nova Força, Educ/FAPESP, 2004.

– Gould, Stephen Jay; Pilares do Tempo – Ciência e Religião na Plenitude da Vida, Rocco, 2002.

– Johnson, Paul; História dos Judeus, Imago, 2ª ed., 1995.

– Kuhn, Thomas; Logic of Discovery or Psychology of Research?, editado por Imre Lakatos & Alan Musgrave em Criticism and the growth of knowledge, Cambridge University Press, 1970.

– Kuhn, Thomas; Estrutura das Revoluções Científicas, Coleção Debates, Perspectiva, 8a. ed., 2003.

– Lentin, Jean-Pierre ; Penso, logo me engano, Ática, 1997.

– Narloch, Leandro; Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo, Leya, 2013.

– Navega, Sergio, Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Intellwise, 2005

– Popper, Karl; Science: Conjectures and Refutations, 1957.

– Popper, Karl; A Lógica da Investigação Científica, Coleção Os Pensadores, vol. XLIV, Abril Cultural, 1975.

– Sagan, Carl; O Mundo Assombrado pelos Demônios, Companhia das Letras, 2002.

– Smith, Adam; A Riqueza das Nações, coleção Os Economistas, Nova Cultural, 1996.

– Wheen, Francis; Como a Picaretagem conquistou o Mundo, Record, 2007.

– White, Matthew; O Grande Livro das Coisas Horríveis, Rocco, 2013.

– Woods, Thomas E.; How the Catholic Church built the Western Civilization, Regnery Publishing, 2005.

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