O Fascínio das Autoridades (17/02/24)

Índice

O Fim de um Monopólio

Eis um monopólio difícil de acabar.

Em 2008, a revista História Viva inaugurou sua série “Grandes Temas” com o fascículo “Jesus – O Homem e Seu Tempo”. A última página – Livros sobre Jesus – dedicava-se a pequenas resenhas de leituras complementares ao leitor. Uma delas é esta:
Sabedoria do Evangelho, de Carlos Torres Pastorino (Editora Sabedoria, 8 vol.). Tradução e comentário das recentes edições críticas dos antigos manuscritos. Farta documentação. Orientação espírita.

Desconheço a vida dos autores desse último artigo para checar se há alguma predileção e isso não importa porque, justiça seja feita, há outro autores de diferentes orientações. Não deixo, porém, de matutar o que pode ter levado Pastorino a ser incluído, principalmente por uma obra que é muito mais apologia do que crítica textual. Uma razão pode jazer nas restrições que os autores impuseram a própria lista: livros em português e ainda disponíveis no mercado, mesmo que em sebos.

De fato, Pastorino foi pioneiro em trazer e traduzir textos gregos de qualidade ao público brasileiro. Em 1964, quando o primeiro volume de Sabedoria… foi lançado, o Concílio do Vaticano II ainda estava em andamento, a Neovulgata demoraria uns quinze anos para ficar pronta, e a maioria das Bíblias tupiniquins ainda tinha um Novo Testamento era tributário do infame Textus Receptus, de Erasmo de Rotterdam. Se eu fosse um estudante não dogmático de teologia, o material disponibilizado por Pastorino seria uma mão na roda. Pela mesma época, vale assinalar, era fundada a Ação Missionária Evangélica (1965), como uma dissidência com perfil pentecostal de igrejas da Convenção Batista Brasileira, posteriormente renomeada para Convenção Batista Nacional (1967). No ano em que a humanidade pousou na Lua, entrava em operação a ARPANet, com seus quatro primeiros computadores conseguindo se interconectar a grandes distâncias. Dois processos embrionários que se revelariam mais transformadores do que qualquer uma das “revoluções” daqueles turbulentos anos poderia imaginar.

Avançando no tempo… Depois de atingir cerca de 1.000 computadores em 1984, a ARPANet fechou suas atividades em 1990, mas não sem antes deixar sua tecnologia como herança para a rede da US National Science Fundation, criada em 1986. No ano seguinte, esta conseguia ligar 10.000 máquinas, saltando para 100.000 em 1990 e “impressionantes” 6,5 milhões em 1995, quando já se chamava Internet. Nesse mesmo ano, uma pequena “guerra religiosa” se instalou no Brasil, cujo gatilho foi o episódio do “chute na Santa” divulgado em horário nobre pela Rede Globo de televisão em seu embate com a Igreja Universal do Reino de Deus. Alguns de seu templos chegaram a ser apedrejados por papistas mais exaltados, mas uma coisa ficou patente: embora ainda fosse um país majoritariamente católico, essa identidade já não definia mais nosso povo com precisão.

A virada do século parecia promissora para a intelligentsia espírita: o dissidente católico e futuro confrade J.R. Chaves publicava A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência (1998), e em 2000 seria a vez de Celestino Severino da Silva lançar seu Analisando as Traduções Bíblicas. Ambas compilaram muito do que já se falava há tempos “na gringa” sobre teorias conspiratórias acerca da reencarnação no cristianismo primitivo e sua suposta supressão no século VI. Foram um prato cheio na curta e intensa Era de Ouro dos fóruns virtuais que se seguiu – tanto nos espíritas quanto nos evangélicos -, porém também foi a época em que os primeiros “ex-píritas” começaram a despontar nesse meio, como Júlio Siqueira, Carlos “ApodMan” Bella e este anjo caído que vos escreve (1).

Por volta de 2004, fui apresentado a Pastorino no saudoso fórum do Portal do Espírito (acho que pelo forista Paulo Neto) e em um debate em meu primeiro portal com Vítor Moura (então, ainda na ortodoxia). Reparei logo de cara ser um terreno novo, ao qual precisava estudar melhor. Tornei-me um costumaz visitante de uma das lojas da Sociedade Bíblica do Brasil em minha cidade, em busca de lançamentos de coubessem no bolso. Aos poucos, construí meu arsenal com edições críticas Bíblia (Vulgata Jeronimiana), ou do Antigo e Novo Testamento (Septuaginta de Rahlphs e Nestle-Aland, respectivamente), minhas primeiras gramáticas gregas e hebraicas, além de uma chave gramatical do NT. Na cada vez mais pujante internet, encontrei as ferramentas do StudyLight.Org, que me permitiram cruzar dados e analisar frequência e emprego de palavras de um modo impensável até a recente época analógica de pesquisa. A Perseus Digital Library ofertava o mesmo dicionário grego usado por Pastorino, com a vantagem de inúmeros hiperlinks para seus exemplos. Conheci, também, o portal alemão (com texto em inglês) New Testament Transcripts Prototype, da Universidade de Münster, que oferta a digitalização e aparato crítico de diversos manuscritos antigos do NT. Graças e a isso, foi possível este humilde leigo descobrir que alegações deste tipo:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

não se sustentam, pois ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto – o que é outra discussão (2)-, primeiramente esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. Em segundo lugar, no volume inicial de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:

  1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado (3);
  2. Alexandrino: idem;
  3. Vaticano: idem;
  4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
  5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
  6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

Definitivamente, seria impossível checar isso nos anos 60/70 do século XX caso não se fosse membro de um departamento de teologia de uma boa Universidade.

A Internet também trouxe as livrarias virtuais – notadamente a Amazon -, onde consegui livros de crítica textual mais especializados e gramáticas mais aprofundadas para consultas específicas. Na primeira década deste século e a metade da segunda, pude contar com um câmbio mais em conta e uma quantidade menor de responsabilidades pessoais para estudar e adquirir material. Coisas que já não me são mais possíveis. Mas, se você está começando agora, não desanime. O público evangélico cresceu tanto – puxado principalmente pelas denominações pentecostais – que surgiu um mercado para atender suas demandas, e muitos dos livros que tive de importar já têm edições nacionais em português, além de mais livros de domínio público terem sido disponibilizados de lá para cá (4). Hoje, pela própria força dos números, observo que começa a surgir uma elite intelectual evangélica, que daria bem mais trabalho aos apologistas da década de 2000.

O economista Steven Levitt conta em seu livro Freakonomics o interessante “causo” ocorrido nos anos 50 do século XX e protagonizado por um sujeito chamado Stetson Kennedy, que estava determinado a desbaratar a Ku Klux Klan. Ele se infiltrou nela, aprendeu todos os (ridículos) códigos, jargões e ritos da seita, só para vendê-los a emissoras de rádio interessadas em arranjar um novo adversário para ninguém menos que o Superman de sua programação infantil. Quando toda a subcultura da KKK passou a ser alvo de chacotas – feitas até por crianças -, o comparecimento as suas (não mais) secretas reuniões desabou, simplesmente.

Então Levitt faz um paralelo entre esse episódio na luta contra o racismo nos EUA com um fenômeno econômico do começo deste século: a perda do poder de pressão dos corretores de imóveis sobre seus potenciais clientes, graças à ampla disponibilidade de informações sobre casas, apartamentos e terrenos na Internet. Entre ambos, um denominador comum: o poder calcado no controle privilegiado de algum conhecimento. E suas próprias palavras:

Embora bastante diversos, todos esses crimes têm uma característica em comum: foram pecados de informação. A maioria envolveu um especialista, ou uma gangue deles, para introduzir informações falsas ou esconder informações verdadeiras. Em todos os casos os especialistas os especialistas buscavam manter a assimetria das informações tão assimétrica quanto possível.

(. . . )

Você acertou se concluiu que muitos especialistas usam contra você as informações que detêm. Eles dependem do fato de que você não as possui. Ou que fica de tal forma confuso diante da complexidade de operá-las que acaba não sabendo o que fazer com elas. Ou que, impressionado com a competência que demonstraram, não ouse desafiá-los. Se um médico lhe recomendar uma angioplastia – embora algumas pesquisas hoje em dia indiquem que a angioplastia é pouco eficaz na prevenção de infartes -, você provavelmente não suporá que ele esteja usando sua superioridade em termos de informação para conseguir uma boa grana para si próprio ou algum colega. Mas como explicou David, cardiologista do Southwestern Medical Center da Universidade do Texas, em Dalas, ao The New York Times, um médico pode ter os mesmos incentivos econômicos que tem um vendedor de carros, um agente funerário ou um administrador de fundos de investimentos: “Você é cirurgião-cardíaco e Joe Smith, o clínico local, lhe manda pacientes. Se começar a dizer a eles que o procedimento não é necessário, em pouco tempo Joe Smith deixará de mandar-lhe pacientes.”

Cap. II, pp. 72-3

* * *

Um problema óbvio que talvez o leitor esteja pensando é como separar o joio do trigo, neste mundo permeável por fakenews prontas para satisfazer nosso viés de confirmação? Afinal, um mesmo servidor que hospeda uma página educativa de astronomia pode também armazenar um portal terraplanista. Sugiro algumas pedras de toque a seguir.

A Carteirada Intelectual

Àquela altura do seriado, era só bravata.

Certa vez, em um dos poucos debates amistosos que tive, meu antagonista defendeu o livro Reencarnação: o Elo Perdido do Cristianismo com um elogio constante na capa, feito pelo escritor Brian Weiss:

Este é um livro extremamente importante, que apresenta uma verdade profunda, um livro que deverá abrir as mentes e remover os medos.

O problema é que Brian Weiss – autor de Muitas Vidas, muitos Mestres – é médico por formação, especializado em psiquiatria, e ficou famosos por seus relatos do que seriam vidas passadas de seus pacientes, acessadas por meio de regressão hipnótica. Se estivéssemos discutindo os alcances e limites da hipnose em si, tudo bem. Entanto, a proposta do livro de Prophet é uma pesquisa histórica de uma suposta crença da reencarnação entre os primeiros cristãos. Por mais famoso e competente que Weiss fosse em seu campo, sua opinião acerca do livro de Prophet não tem mais peso que a da maioria dos seus leitores. Ou seja, é a opinião de um fã, não de um historiador.

Esse é o exemplo mais pronto e acabado da falácia do “apelo à autoridade”, i.e., quando um especialista em determinado campo do conhecimento resolve dar “pitacos” fora dele. Maiores problemas surgem, porém, quando apologistas querem restringir a aplicação dessa falácia a apenas esse modelo, desconsiderando outras formas mais sutis de mal emprego da palavra de especialistas. Eis alguns:

  • Autoridade que não é autoridade nenhuma: o exemplo acima é bem ilustrativo desse tipo, i.e., uma autoridade de uma área dando pitaco em outra. Pode acontecer, também, de um generalista arrotar dados e fatos, sem o devido lastro de um real perito no tema (principalmente em matérias jornalísticas);
  • A dita autoridade é uma outsider, “ponto fora da curva” ou do estilo “lobo solitário”: o que não impede que ele realmente seja um especialista na área. Um exemplo clássico disso foi a defesa ferrenha do químico Linus Pauling – duas vezes ganhador do prêmio Nobel – de doses cavalares de vitamina C como santo remédio, capazes de prevenir de resfriados a tumores malignos.
  • O grupo ao qual se encontra a autoridade é minoritário: essa é um pouco capciosa. Qualquer ideia nova vai começar como minoritária. Agora, caso já tenha havido tempo para “o teste do tempo” e ela ainda não se tornou predominante, ou era uma tese mainstream e foi sendo abandonada, o problema deve estar na tese defendida. Um exemplo moderno é o aquecimento global antropogênico, que tinha boa oposição até o final do século XX e, agora, está se consolidando (5). Seus negacionistas o fazem mais por paixões políticas que científicas. Um erro estratégico ao se realizar debates com esse tipo de grupo é colocar um representante de cada lado, dando a ilusão de que ambos estariam em pé de igualdade. Mais útil seria ressaltar a diferença de pesos entre as produções científicas de cada lado dentro do tema;
  • A autoridade está defasada: do instante que uma tese é concebida na mente do pesquisador, ela já começa a envelhecer. Há aquelas que envelhecem bem, no sentido que o cerne de seus princípios permanece válido, e outras muito mal, i.e., têm seu princípio fundamental demolido. Por exemplo, a tese de que a Septuaginta é uma tradução ruim do texto hebraico ruiu com publicação dos Manuscritos do Mar Morto, que revelaram ser ela uma janela para versões do texto hebraico hoje perdidas.
  • O viés da autoridade: como já disse alhures, viés é como sotaque, ou seja, se alguém não tem sotaque/viés é por que o sotaque/viés dele é igual ao teu. A questão é se autoridade consegue ir além de suas próprias crenças ante da evidência dos fatos.
  • A autoridade é corporativista: um certo conselho de classe de profissionais de saúde, ao estourar uma pandemia, mantém-se impassivo quanto ao membros seus que administram coquetéis de remédios de eficácia não comprovada contra o novo patógeno. Aliás, há décadas esse conselho chancela um tipo de tratamento baseado em ultradiluições de princípios ativos para além o limite de Avogadro, e que nunca tiveram desempenho melhor que placebos em teses controlados.

Vejamos, então, como o espiritismo kardecista fez (e vem fazendo) uso e abuso das autoridades constituídas e das que ele mesmo constituiu, empurrando goela abaixo de seus adeptos.

O Status Prometido

-Eu sou o codificador da Terceira Revelação!
-Desculpe-me, “terceira o quê”?
-Terceira revelação!
-Quem te disse isso?
-O senhor mesmo, há quase 2.000 anos …
-Ha, ha, ha! Vai nessa!

A autoridade-mor à qual todos os espíritas ortodoxos recorrem tem nome e sobrenome: Hippolyte Léon Denizard Rivail ou, para os íntimos, Allan Kardec. Isso por si só já é um bocado problemático, pois o cânon kardecista não é um todo coerente, i.e., dá para usar Kardec contra Kardec (6). Fora as diferenças entre a primeira e a segunda Edição de O Livro dos Espíritos, é possível notar uma progressiva mudança ao longo dos anos 60 do século XIX:

  • Progressiva aceitação da teoria da evolução biológica;
  • Progressiva cristianização;
  • Progressiva centralização em torno de si mesmo.

Assim, ao se mencionar Kardec, há mister de avaliar em qual etapa se encontra seu pensamento. Para não dar uma de “la garantía soy yo!”, Kardec propôs se fiar no que viria a ser chamado de “Consenso Universal dos Espíritos” (ou Controle…). Em suas palavras:

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
ESE, Introdução (7).

Porém existem três sérios problemas com ele:

  1. Não é Consenso (ou controle): Dada as flagrantes contradições tanto dentro da trajetória da codificação como fora dela. Por exemplo, Kardec sempre teve como pedra no sapato a ausência do conceito de reencarnação no espiritualismo anglo-saxão, algo capaz de fazer desmoronar todo o sistema que criou(8). A catolização do espiritismo tupiniquim ao longo de século XX só fez complicar essa situação em outras direções (9);
  2. Não é Universal: Será que se a codificação tivesse sido compilada em Istambul (então ainda chamada Constantinopla) ou no Cairo não teríamos um “Corão segundo o Espiritismo“, que teria vindo como a “Quarta Revelação” a complementar os ensinamentos do Profeta? Em outras palavras, a codificação é europeia e cristã demais para ser considerada como “Universal”. Uma concordância entre culturas bem mais díspares afastaria o risco de médiuns estarem, na verdade, reproduzindo seus e conceitos e preconceitos. Por outro lado, a discordância aponta para essa direção;
  3. Nem dever ser de espíritos muitas das vezes: É difícil considerar São Luis e Erasto como sendo espíritos evoluídos quando falam coisas nada apropriadas dos negros africanos ou dos nativos americanos(10), estando mais para preconceitos bem terrenos vigentes na época. Flammarion, posteriormente, declararia que a Uranografia Geral, ditada pelo espírito de ninguém menos que Galileu Galilei, (A Gênese) como tendo sido um caso de animismo, em que colocara ideias próprias, ou melhor, do que acreditava na época (11).

Allan Kardec aparentava ter uma confiança excessiva de ser um missionário imbuído de uma missão dada pelo “Alto”:

Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da revelação divina, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje os homens estão aptos a compreendê-las. Participa da revelação científica, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas sim ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega, porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que o homem estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

A Gênese, cap. I, item 13. Grifos itálicos no original.

De fato, ele não procurou ostensivamente pelos fenômenos espirituais, sendo inicialmente um cético. Após abraçar a missão do “Espírito da Verdade”, o grosso da elaboração ficou a cargo … dele mesmo! Ou melhor, foi dele a versão do espiritismo da Sociedade Paris. Uma questão premente, antes de qualquer sistematização, era separar o “joio do trigo”, o que teria origem “divina” dos preconceitos terrenos. Nisso a força dos números revelou-se um tanto traiçoeira. Repare a força da evidência da reencarnação:

Não é aqui o lugar de explicar esses fatos; somente um estudo seguido e perseverante pode dá-los a compreender; nosso fim era somente refutar a ideia de que essa doutrina [da reencarnação] é a tradução do nosso pensamento. Temos, ainda, uma outra refutação a opor: é que não somente a nós ela foi ensinada; foi, também, ensinada em muitos outros lugares, na França e no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isso antes mesmo da publicação de O Livro dos Espíritos. Acrescentamos, ainda, que, desde que nos entregamos ao estudo do Espiritismo, obtivemos comunicações através de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos, de inteligência normal mais ou menos limitada, alguns até mesmo completamente analfabetos e, em consequência, absolutamente estranhos às matérias filosóficas; não obstante, em nenhum caso os Espíritos se desmentiram sobre essa questão. Dá-se o mesmo em todos os círculos que conhecemos, onde tal princípio é confessado. Bem sabemos que esse argumento não é irretorquível, razão por que não insistiremos mais a não ser pelo raciocínio.

RE, novembro, 1858, artigo “Pluralidade de existências corpóreas”

Ainda bem que no tema reencarnação ele não pegou médiuns de Inglaterra ou dos EUA. O número de 50 impressiona, mas é superado pelo de outro tema:

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos diferentes globos de nosso turbilhão planetário, só temos o ensino dos Espíritos; ora, para os que só admitem provas palpáveis é positivo que sua assertiva, a esse respeito, não tenha a certeza da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos, confiantes, as descrições que os viajantes nos fazem de países que jamais vimos? Se só devêssemos crer no que vemos, creríamos em pouca coisa. O que aqui dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos principais. Para nós, que temos testemunhado essas comunicações centenas de vezes, que as temos apreciado em seus mínimos detalhes, que lhes investigamos os pontos fracos e fortes, que observamos as similitudes e as contradições, nelas encontramos todos os caracteres da probabilidade; contudo, não as damos senão como inventário e a título de ensinamentos, de que cada um será livre para dar a importância que julgar conveniente.

RE, março 1858, “Júpiter e alguns outros Mundos”

Neste caso, “por centenas de vezes” comunicações foram feitas confirmando a presença de extraterrestres em nosso sistema solar. Pode ser a palavra “centenas” uma força de expressão apontando que haveria “perdido a conta”. Podemos dizer que, por volta da mesma época (ca. 1858), as pluralidades de existências corpóreas e de mundos habitados tinham uma quantidade de testemunhos mediúnicos similar. Após mais de 150 anos, o panorama é:

  • Extraterrestres: diversos exoplanetas (i.e., planetas fora de nosso sistema solar) têm sido descobertos, aumentando a chance de existir vida inteligente no Universo, além da Terra. Porém ninguém espera encontrar nada além de micróbios em nossos irmãos do sistema solar. Quem se dispuser a ler o artigo da RE de março/1858 vai descobrir que já havia descrença quanto a isso naquela época, à qual Kardec tenta contrapor com hipóteses ad hoc para salvar as aparências, como a possibilidade de uma rarefeita (e por isso indetectável) atmosfera lunar ou a presença de seres extremófilos em Saturno ou Mercúrio. A partir da segunda metade de século XX, as sondas espaciais vêm jogado baldes e mais baldes de água fria nessas pretensões. E ainda há espíritas que não largam esse osso;
  • Reencarnação: os trabalhos de Ian Stevenson foram sugestivos na existência desse fenômeno, porém estão longe de confirmar o que ela ocorra nos termos espíritas (universal e compulsória a todos o seres, iniciando a partir da concepção, sempre progressiva, karma, etc.).

Enfim, os resultados nulos no primeiro e ainda muito magros no segundo item.

Se quantidade não foi o bastante, a qualidade também deixou a desejar. A autoridade alegada da Revelação Espírita não se encontra apenas nos números, mas na autoridade ser guiada pelo “Espírito da Verdade”, o consolador prometido por Jesus em (um dos) seu(s) discurso(s) de despedida no Evangelho de João:

Consolador prometido.

3. Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. — Porém, o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. (S. João, 14:15 a 17 e 26.)

4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas. Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores.

Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V.

O problema dessa intitulação como “Consolador Prometido” é que ela se baseia em uma passagem dos evangelhos que não é tida o original de Jesus, aliás, quase nada do Evangelho de João o é. Já havia pesquisas sobre o “Jesus Histórico” pela metade do século XIX, mas não tão disseminadas e profundas como viriam a ser depois, puxadas principalmente (quem diria) por pesquisadores protestantes. Agora, se o próprio “Espírito da Verdade” é Jesus, como parte dos kardecistas anseia para aumentar seu capital simbólico, então ele foi omisso ou mentiu piamente.

Porém, o tempo passou. Nesse aspecto, os kardecistas do século XXI – rápidos em atacar a ortodoxia cristã nos quesitos de infabilidade bíblica ou confiabilidade dos manuscritos/traduções de seus textos sagrados -, adotam uma postura confessional em vez de científica. Sem contar que diversos outros grupos religiosos já se atribuíram o título de “Terceira Revelação” (12).

Foi-se o Mestre, digladiam-se os Discípulos

“Vindo à França, o Sr. Home não se dirigiu ao público; ele não gosta e nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósitos especulativos, teria corrido o país, lançando mão da propaganda em seu auxílio; teria procurado todas as ocasiões de se promover, enquanto as evita; teria estabelecido um preço às suas manifestações, contudo, nada pede a ninguém. Apesar de sua reputação, o Sr. Home não é de forma alguma o que se pode chamar de um homem do mundo; sua vida privada pertence-lhe exclusivamente. Desde que nada pede, ninguém tem o direito de indagar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por pessoas poderosas? Isso não nos diz respeito; tudo quanto podemos dizer é que, nesta sociedade de escol ele conquistou amizades reais e fez amigos devotados, ao passo que, com um prestidigitador, a gente paga, diverte-se e ponto final. Portanto, não vemos no Sr. Home mais que uma coisa: um homem dotado de uma faculdade notável.”

Revista Espírita, fevereiro de 1858, “Sr. Home”

Assim Allan Kardec se referiu ao médium inglês Daniel Dunglas Home, afamado médium de efeitos físicos inglês, principalmente por suas sessões públicas (e pagas) de levitação, também incursionando por outras modalidades como clarividência e psicofonia. À parte certas polêmicas já circundando Home, e outras a que ele ainda viria a se envolver, pode-se que Kardec o tinha como aliado da causa.

A questão é que Daniel Home era um aliado até a “página 2”: um ponto nevrálgico entre ele e Kardec, ou melhor, entre o espiritismo anglo-americano e francês era a reencarnação. Em suas palavras:

Encontro muita gente que é reencarnacionista e tive o prazer de encontrar pelo menos doze que tinham sido Maria Antonieta, seis ou sete que tinham sido Mary, Rainha da Escócia; um bando, de Luiz e outros reis; cerca de vinte Alexandre, o Grande. Mas ainda não encontrei ninguém que tivesse sido um simples John Smith. E vos peço que, se o encontrardes, guardai-o como uma Curiosidade. (13)

Daniel D. Home in “The Spiritualist, Volume 7º, página 165.”. Apud [Doyle], cap. XXI.

Mas essa não seria a principal frustração que Daniel Home causou ao movimento espírita francês. Em seu livro Lights and Shadows of Spiritualism (“Luzes e Sombras do Espiritualismo”, 1877), Home detonou a seguinte bomba: após classificar o “kardecismo” (sim, ele usa essa palavra) como uma das “ilusões do mundo” e de acusar seu fundador ter revivido “essa fase do paganismo”, Home informou ter recebido uma inusitada comunicação:

Eu posso testificar o fato de que, antes que eu soubesse, ou pudesse por qualquer possibilidade saber, de sua passagem da Terra, recebi, na presença do Conde de Dunraven, então Visconde Adare, uma mensagem, dizendo: “Arrependo-me de ter ensinado a doutrina espírita. Allan Kardec.” (“Je regrette d’avoir enseigné la doctrine spirite. Allan Kardec”). Comparando o instante desta ocorrência com o instante de seu falecimento, o intervalo entre os dois foi tão curto que totalmente exclui a ideia de que mesmo um telegrama poderia ter me chegado a respeito de sua partida da Terra. Como, além disso, seu falecimento não foi precedido por nenhuma doença, a possibilidade dessa morte nunca esteve nem por um momento presente em minha mente. Eu não poderia, ao recebê-la, dar imediatamente crédito à mensagem acima. Ela não foi, devo assinalar, recebida durante uma séance [sessão], mas repentinamente interrompeu uma conversa entre Lorde Adare e eu.

Parte III, capítulo III.

Mas calma que piora…

Em sequência a essa breve mensagem, Daniel D. Home transcreve em francês -seguida por tradução inglesa (14) – uma consideravelmente longa comunicação recebida por meio de psicofonia por Monsieur Morin, a quem Kardec “considerava um dos seus melhores médiuns

Kardec fala pela boca de Morin.

Sua confissão póstuma

“Durante os últimos anos de minha vida, procurei zelosamente manter em segundo plano todos os homens de inteligência que mereciam consideração pública, que foram investigadores da ciência do Espiritismo e poderiam ter tomado por si mesmos uma parte dos créditos que eu desejei apenas para mim.”

“Contudo, muitos deles, ocupando posições altas nas letras e na ciência, teriam ficado perfeitamente satisfeitos, ao dedicarem-se ao Espiritismo, em ter brilhado secundariamente; mas, em meu medo de ser eclipsado, preferi permanecer sozinho à frente do movimento, para ser ao mesmo tempo o cérebro pensante e o braço de ação.”

“Sim, reconheço ser minha culpa se o Espiritismo, nos dias atuais, não vem elencado em seus quadros nenhum dos campeões – príncipes da palavra ou do raciocínio; em mim, o homem [ou minha humanidade] sobrepujou o espírito.”

Sobre o futuro do Espiritismo, tal como o concebeu, e as consequências atuais

“Enquanto vivi, o Espiritismo, conforme eu o concebia, parecia-me tudo o que a humanidade poderia imaginar de maior e mais vasto; minha razão se desnorteava.”

“Agora que, livre do invólucro material, contemplo a imensidão dos diferentes mundos, pergunto-me como pude ter me vestido no manto de um semideus; considerar-me um segundo salvador da humanidade. Orgulho insensato que deploro amargamente.”

“Vejo o Espiritismo, conforme havia concebido, tão pequeno, tão restrito, tão longe, mesmo em suas partes menos imperfeitas, das perfeições que deveria atingir. “

“Considerando os resultados produzidos pela propagação das ideias espíritas, o que vejo?”

“O Espiritismo se arrastou para as profundezas do ridículo, representado por ínfimas personalidades, as quais me esforcei demais para elevar.”

“Querendo fazer o bem, motivei muita aberração que apenas gera o mal.”

“Do ponto de vista da filosofia, poucos resultados. Para alguns intelectos, quantos ignorantes!”

“Do ponto de vista religioso, que supersticiosos deixaram uma superstição para cair em outra.”

“Consequências de meu egoísmo.”

“Não tivesse rejeitados os intelectos transcendentais, o Espiritismo não seria exclusivamente representado, dentro da maioria de seus seguidores, por adeptos tirados do seio das classes trabalhadoras, as únicas a que minha eloquência e meu saber puderam ter acesso.”

“ALLAN KARDEC”

Atenção: antes que algum leitor católico ou protestante se afobe, informo que a comunicação acima é oriunda de uma alegada sessão mediúnica. Usá-la contra os kardecistas é admitir tacitamente um dos pilares de sua doutrina. Feita essa ressalva, pode-se alegar qualquer coisa sobre a autenticidade dessa mensagem. Não que ela não houvesse ocorrido, mas se seria mesmo Kardec a falar pelos lábios de Sr. Morin. E, sim, existem mensagens atribuídas a Kardec, por contemporâneos seus, que não demonstram esse giro de 180 graus…

Daniel D. Home não dá a fonte de publicação da mensagem de Morin, o que é falha grave. Já pela data de Lights and Shadows… (1877), pode-se cogitar que a lembrança do “Processo dos Espíritas” (15) ainda estava recente, e ela pode ter sido um reflexo do arranhão na imagem que o Kardecismo sofreu no episódio, caso lhe tenha sido contemporânea. O que fica de concreto é a noção de Allan Kardec poderia ser tudo, menos uma unanimidade no espiritualismo das últimas décadas do século XIX.

Daniel Dunglas Homes não seria o único, nem o principal, correligionário a entrar em sério choque com Kardecismo com o passar do tempo. Em junho de 1866, a RE publicou um artigo simpático a um certo sujeito:

Notícias bibliográficas

Os Evangelhos explicados (Pelo Sr. Roustaing)

Esta obra compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com a ajuda de comunicações ditadas pelos Espíritos. É um trabalho considerável que tem, para os espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns. As partes correspondentes às que tratamos em O Evangelho segundo o Espiritismo o são em sentido análogo. Ademais, como nos limitamos às máximas morais que, com raras exceções, são geralmente claras, estas não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; assim, jamais foram assunto para controvérsias religiosas. É por esta razão que por aí começamos, a fim de ser aceito sem contestação, esperando, quanto ao resto, que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita. (…)

Um aspecto do qual Kardec discordou publicamente de Roustaing (Gen, cap. XV, itens 64-5) foi sua reedição do docetismo, i.e., uma cristologia que alegava não ter tido Jesus de Nazaré um corpo físico propriamente dito, apenas o aparentando para, assim, interagir com o humanos. As grandes “tretas” vieram após a morte do Codificador, à medida que o rustenismo se espalhava entre os adeptos mais religiosos (e, por conseguinte, menos científicos) do espiritismo. No Brasil, poder-se-ia dizer que a controvérsia ainda não acabou, ou, pelo menos, está mal resolvida (16).

Em uma longa mensagem atribuída a Allan Kardec e recebida em fevereiro 1889, pelo médium Frederico Pereira da Silva Junior, na Sociedade Espírita Fraternidade, Rio de Janeiro. Uma série de “instruções” são feitas ao nascente movimento espírita, numa época de grande divisão do movimento em diferentes correntes. Seguem dois trechos:

(…) Por toda a parte se fez luz; revelou-se à Humanidade o Consolador prometido, recebendo os povos – de acordo com o seu preparo moral e intelectual – missões importantes, tendentes a acelerar a marcha triunfante da Boa Nova!

Todos foram chamados: a nenhum recesso da Terra deixou de apresentar-se o Consolador em nome desse Deus de misericórdia, que não quer a morte do pecador – nem o extermínio dos ingratos – e sim os deseja ver remidos dos desvarios da carne, da obcecação dos instintos.

Sendo assim, a esse pedaço de terra, a que chamais Brasil, foi dada também a Revelação da Revelação, firmando os vossos Espíritos, antes de encarnarem, compromissos de que ainda não vos desobrigastes. E perdoai que o diga: tendes mesmo retardado o cumprimento deles e de graves deveres, levados por sentimentos que não convém agora perscrutar.

Ismael, o vosso Guia, tomando a responsabilidade de vos conduzir ao grande templo do amor e da fraternidade humana, levantou a sua bandeira, tendo inscrito nela – Deus, Cristo e Caridade. Forte pela dedicação, animado pela misericórdia de Deus, que nunca falta aos trabalhadores, sua voz santa e evangélica ecoou em todos os corações, procurando atraí-los para um único agrupamento onde, unidos, teriam a força dos leões e a mansidão dos pombos; onde, unidos, pudessem afrontar todo o peso das iniquidades humanas; onde, enlaçados num único sentimento – o do amor – pudessem adorar o Pai em Espírito e Verdade; onde se levantasse a grande muralha da fé, contra a qual viessem quebrar-se todas as armas dos inimigos da Luz; onde, finalmente, se pudesse formar um grande dique à onda tempestuosa das paixões, dos crimes e dos vícios que avassalam a Humanidade inteira!

(…)

Ismael tem o seu Templo, e sobre ele a sua bandeira – Deus, Cristo e Caridade! Ismael tem a sua pequenina tenda, onde procura reunir todos os seus irmãos – todos aqueles que ouviram a sua palavra e a aceitaram por verdadeira: chama-se Fraternidade!

Pergunto-vos: Pertenceis à Fraternidade? Trabalhais para o levantamento desse Templo cujo lema é: Deus, Cristo e Caridade?

Como, e de que modo?

Meus amigos! É possível que eu seja injusto para convosco naquilo que vou dizer: o vosso trabalho, feito todo de acordo – não com a Doutrina – mas com o que interessa exclusivamente aos vossos sentimentos, não pode dar bom fruto. Esse trabalho, sem regime, sem disciplina, só pode, de acordo com a doutrina que esposastes, trazer espinhos que dilacerem vossas almas, dores pungentes aos vossos Espíritos, por isso que, desvirtuando os princípios em que ela assenta, dais entrada constante e funesta àquele que, encontrando-vos desunidos pelo egoísmo, pelo orgulho, pela vaidade, facilmente vos acabrunhará com todo o peso da sua iniquidade.

Entretanto, dar-se-ia o mesmo se estivésseis unidos? Porventura acreditais na eficiência de um grande exército dirigido por diversos generais, cada qual com o seu sistema, com o seu método de operar e com pontos de mira divergentes? Jamais! Nessas condições só encontrareis a derrota, porquanto – vede bem -, o que não podeis fazer com o Evangelho: unir-vos pelo amor do bem, fazem os vossos inimigos, unindo-se pelo amor do mal!

Eles não obedecem a diversas orientações, nem colimam objetivos diversos; tudo converge para a Doutrina Espírita – Revelação da Revelação – que não lhes convém e que precisam destruir, para o que empregam toda a sua inteligência, todo o seu amor do mal, submetendo-se a uma única direção!

A luta cresce dia a dia, pois que a vontade de Deus, iniciando as suas criaturas nos mistérios da vida de além-túmulo, cada vez mais se torna patente. Encontrando-se, porém, os vossos Espíritos em face da Doutrina, no estado precário que acabo de assinalar, pergunto: Com que elemento contam eles, os vossos Espíritos, na temerosa ação em que se vão empenhar, cheios de responsabilidade?

Em que canto da Terra já se ergue o grande tabernáculo onde ireis elevar os vossos pensamentos; em que canto da Terra construístes a grande muralha contra a qual se hão de quebrar as armas dos vossos adversários?

(…)

Alguns elementos novos e duradouros no movimento espírita brasileiro são apresentados. Primeiramente, a figura de Ismael: assim como Jesus estaria responsável pelo planeta, o anjo guia Ismael cuidaria da nação brasileira. Essa personagem voltaria a ter destaque no infame Brasil: Coração do Mundo, Pátria do Evangelho de Chico Xavier. Outro é o emprego, por duas vezes, da expressão “Revelação da Revelação”: em um deles ela é identificada com a doutrina espírita, mas um leitor sabido vai lembrar que esse é o subtítulo de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing. Naquele mesmo ano, assumiria a presidência da Federação Espírita Brasileira (FEB, fundada em 1884) o médico e político Adolfo Bezerra de Menezes, que se utilizaria as “Instruções” dadas pelo póstumo Codificador como instrumento para a distensão das animosidades correntes (17). Cabe ressaltar que o Dr. Bezerra de Menezes – o principal nome do Espiritismo brasileiro do século XIX – era abertamente rustenista (18). Mas até isso teve uma redenção. No caso, uma póstuma:

(…)

Mantenhamos o propósito de irmanar, aproximar, confraternizar e compreender, e, se possível, estabeleçamos em cada lugar, onde o nome do Espiritismo apareça por legenda de luz, um grupo de estudo, ainda que reduzido, da Obra Kardequiana, à luz do Cristo de Deus. (…)

A Doutrina Espírita possui os seus aspectos essenciais em configuração tríplice. Que ninguém seja cerceado em seus anseios de construção e produção. Quem se afeiçoe à ciência que a cultive em sua dignidade, quem se devote à filosofia que lhe engrandeça os postulados e quem se consagre à religião que lhe divinize as aspirações, mas que a base kardequiana permaneça em tudo e todos, para que não venhamos a perder o equilíbrio sobre os alicerces e que se nos levanta a organização. (…)

Allan Kardec, nos estudos, nas cogitações, nas atividades, nas obras, a fim de que a nossa fé não faça hipnose, pela qual o domínio da sombra se estabelece sobre as mentes mais fracas, acorrentando-as a séculos de ilusão e sofrimento. (…)

Seja Allan Kardec, não apenas crido ou sentido, apregoado ou manifestado, a nossa bandeira, mas suficientemente vivido, sofrido, chorado e realizado em nossas próprias vidas. Sem essa base é difícil forjar o caráter espírita-cristão que o mundo conturbado espera de nós pela unificação. (…)

É indispensável manter o Espiritismo, qual foi entregue pelos Mensageiros Divinos a Allan Kardec, sem compromissos políticos, sem profissionalismo religioso, sem personalismos deprimentes, sem pruridos de conquista a poderes terrestres transitórios. (…)

Amor de Jesus sobre todos, verdade de Kardec para todos. (…)

“Unificação” – Mensagem datada de 20 de abril de 1963, atribuída a Bezerra de Menezes pela mediunidade de Francisco Cândido Xavier. Publicada em Reformador, dezembro de 1975.

Que mudança e tanto, não? Várias referências elogiosas a Allan Kardec e nenhuma à Roustaing! Então, pergunto ao leitor ainda adepto: por que alguém deveria tomar como genuíno esse Dr. Bezerra de Menezes kardecista (19), mas não o Allan Kardec arrependido? Ou será melhor o Kardec de psicografado por Frederico Júnior, que age como fiador da nascente FEB? Lanço algumas não exaustivas hipóteses:

  1. O cacife do médium envolvido;
  2. A conveniência ideológica da mensagem;
  3. O respaldo autoritativo que pode ser dado; e
  4. Uma combinação das demais, por não serem excludentes.

Quando uma Autoridade questiona Outra

Qual é o espírito mais evoluído aqui?

Charles Robert Richet foi um médico fisiologista francês e ganhador do Nobel de Fisiologia e Medicina de 1913. Interessando-se por fenômenos paranormais, porém já julgando o espiritualismo contaminado pela religiosidade, propôs um novo campo de pesquisa voltado exclusivamente para os fenômenos, chamando-o de Metapsíquica. Essa seria a antecessora da Parapsicologia. Em seu livro Trinta Anos de Pesquisa Psíquica, ele dedica alguns parágrafos ao “Codificador”:

Essa teorização do espiritismo se deveu principalmente a L. H. D. Rivail (1803-1869), um médico pouco conhecido sob o nome de Rivail, mas famoso sob o pseudônimo de Allan Kardec.

A teoria espírita de Allan Kardec é bastante simples: A alma não morre; após a morte, ela se torna um espírito e procura se manifestar por meio de certos seres privilegiados (médiuns), capazes de receber orientações e impulsos dos espíritos; o espírito busca a reencarnação, ou seja, viver novamente em uma forma humana, da qual é a alma; todos os seres humanos passam por sucessivas fases transmigratórias, como Pitágoras havia ensinado anteriormente; seu “perispírito” pode, sob certas circunstâncias excepcionais, se materializar; eles conhecem o passado, o presente e o futuro. Às vezes, eles materializam e podem agir sobre a matéria; do ponto de vista moral moral, devemos nos deixar guiar pelos bons espíritos que nos conduzem Do ponto de vista moral, devemos nos deixar guiar pelos bons espíritos que nos conduzem ao certo e nos recusar a ouvir os maus espíritos que nos induzem ao erro.

A energia intelectual de Allan Kardec merece admiração incondicional. Apesar de uma credulidade exagerada, ele deposita sua fé na experiência e se baseia nela, de modo que seu trabalho não é apenas uma teoria de longo alcance, mas também uma grande coleção de fatos.

Essa teoria tem, entretanto, um lado lamentavelmente fraco. Toda a estrutura de seu sistema (que é o do espiritualismo em geral) baseia-se na hipótese surpreendente de que os médiuns, que incorporam um suposto espírito, nunca se enganam e que as escritas automáticas, a menos que sejam estimuladas por espíritos malignos, revelam verdades que devem ser aceitas.

Se, então, seguirmos a teoria de Kardec, devemos tomar pelo valor de face todas as adivinhações do subconsciente, que, com algumas exceções, mostram uma inteligência muito primitiva e pueril. Construir uma doutrina com base na palavra dos chamados espíritos é um erro muito grave. No entanto, nenhuma influência entre 1847 e 1871 foi comparável à de Allan Kardec, e ninguém causou uma impressão mais profunda na ciência metapsíquica.

Livro I, p. 28-9.

Aqui, Richet toca em duas grandes dificuldades do Espiritismo “prático”:

  1. Saber o vem do inconsciente do próprio médium e o que teria origem “externa”; e
  2. No segundo caso acima, como separar uma fonte externa benigna de outra maligna?

Um caso emblemático de opinião pessoal adentrando comunicação mediúnica de Uranografia Geral (Gênese, cap. VI), atribuída a ninguém menos que Galileu Galilei, pela mediunidade de Camille Flammarion. Além dos erros astronômicos, tempos depois o próprio Flammarion renegou essa comunicação como sendo mediúnica, atribuindo seu conteúdo ao que ele pensava na época. Aliás, muita coisa na Codificação que hoje é vista como defasada cientificamente, preconceito da época, ou moralmente dúbia pode ser explicada por isso.

Richet retorna a Allan Kardec um pouco mais à frente (livro II, cap.II, item 3), expondo casos em que o Codificador teria sido apressado demais em atribuir certos relatos de personalidades históricas à sobrevivência de suas respectivas mentes, em vez de cogitar possibilidades bem mais terrenas:

Há outros casos interessantes em que é igualmente necessário supor uma intervenção puramente humana. Hermance Dufaux, uma menina de quatorze anos, produziu A Vida de Joana D’Arc, ditada por Joana, e as Confissões de Luís XI1. Allan Kardec garante a honestidade dessa jovem em sua alegação de ter escrito esses livros por inspiração, sem sem referência a registros e documentos históricos.

Quatro hipóteses são possíveis:

  1. Fraude grosseira, obtendo os dados necessários em bibliotecas públicas ou de livros fáceis de se obter; assim como Prosper Merimee conseguiu escrever Le Theatre de Clara Gazul, sem qualquer implicação espírita. Isso parece provável, embora implique uma esperteza, habilidade e desonestidade das quais essa respeitável garota talvez fosse incapaz (?).

  2. Uma memória infalível, parcialmente subconsciente, de modo que Hermance pudesse se lembrar, no momento necessário, de tudo o que ela havia lido e ouvido. Sua inteligência subconsciente, mais capaz do que sua mente normal, classifica, condensa e verifica todos os detalhes que ela leu e ouviu, e os atribui a Joana e a Luís XI. O que não poderíamos dizer e escrever se pudéssemos recuperar todos os detalhes de todas as nossas leituras! Mesmo aos quatorze anos de idade, muita coisa pode ter sido lida!

    Hermance Dufaux, falando como Joana d’Arc, se assemelha a Helen Smith, que sinceramente se considera Maria Antonieta ou Cagliostro. Acho que essa hipótese é quase tão provável quanto a primeira, embora uma terceira possa ser considerada.

  3. Por criptestesia, Hermance, sendo sensível, conhece fatos, nomes, datas e eventos que não chegaram até ela por meio de seus sentidos normais. Em seguida, essas cognições metapsíquicas se agrupam em torno da personalidade criada pela autossugestão.

    Antes de admitir essa hipótese ousada em um caso como esse, seria necessário conhecer os limites exatos da leitura de Hermance; o que, após um intervalo de meio século, é impossível.

  4. A última hipótese é que as consciências de Luís XI e Joana não desapareceram do mundo e escrevem por meio de Hermance.

    Aqui temos uma hipótese terrivelmente incrível que não pode nem mesmo ser ser considerada a menos que a impossibilidade radical das três hipóteses anteriores tenha sido demonstrada. hipóteses anteriores tenha sido demonstrada.

Tratei completamente do caso de Hermance Dufaux porque ele se aplica igualmente a todos os casos de escrita automática que se que supostamente identificam pessoas mortas.

(1) Revue Spirite, 1858, p. 73, and La petite, May 29, 1864 (1 vol., E. Dentu, Paris, 1858).

Adotando provisoriamente a hipótese “sobrevivência da consciência”, como se daria a separação do joio do trigo, ou melhor, dos espíritos bons dos maus? Kardec tem uma resposta bem confiante para esse problema:

Os Espíritos são atraídos na razão da simpatia que lhes inspire a natureza moral do meio que os evoca. Os Espíritos superiores se comprazem nas reuniões sérias, onde predominam o amor do bem e o desejo sincero, por parte dos que as compõem, de se instruírem e melhorarem. A presença deles afasta os Espíritos inferiores que, inversamente, encontram livre acesso e podem obrar com toda a liberdade entre pessoas frívolas ou impelidas unicamente pela curiosidade e onde quer que existam maus instintos. Longe de se obterem bons conselhos, ou informações úteis, deles só se devem esperar futilidades, mentiras, gracejos de mau gosto, ou mistificações, pois que muitas vezes tomam nomes venerados, a fim de melhor induzirem ao erro.

Distinguir os bons dos maus Espíritos é extremamente fácil. Os Espíritos superiores usam constantemente de linguagem digna, nobre, repassada da mais alta moralidade, escoimada de qualquer paixão inferior; a mais pura sabedoria lhes transparece dos conselhos, que objetivam sempre o nosso melhoramento e o bem da Humanidade. A dos Espíritos inferiores, ao contrário, é inconsequente, amiúde trivial e até grosseira. Se, por vezes, dizem alguma coisa boa e verdadeira, muito mais vezes dizem falsidades e absurdos, por malícia ou ignorância. Zombam da credulidade dos homens e se divertem à custa dos que os interrogam, lisonjeando-lhes a vaidade, alimentando-lhes os desejos com falazes esperanças. Em resumo, as comunicações sérias, na mais ampla acepção do termo, só são dadas nos centros sérios, onde reine íntima comunhão de pensamentos, tendo em vista o bem.

LE, Introdução, item VI.

Realmente, é de se esperar que uma pessoa boa e de algum refinamento tenha “linguagem digna, nobre, repassada da mais alta moralidade, escoimada de qualquer paixão inferior“. O mesmo é esperado dos mais competentes estelionatários (vulgos 171). Ambos os grupos seriam capazes de dar aulas de boas maneiras.

* * *

As críticas de Richet não devem ter descido bem à intelectualidade espírita, tanto que uma “vingança” veio na forma de cooptação: em “Crônicas de Além-Túmulo”, de autoria de Chico Xavier e, supostamente, ditado por Humberto de Campos (outro adversário “cooptado”), há um capítulo chamado “A Passagem de Richet”, em que se lê:

(…)

No leito de morte, Richet tem as pálpebras cerradas e o corpo na posição derradeira, em caminho da sepultura. Seu Espírito inquieto de investigador não dormiu o grande sono.

Há ali, cercando-lhe os despojos, uma multidão de fantasmas.

Gabriel Delanne estende-lhe os braços de amigo. Denis e Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidades eminentes da França antiga, velhos colaboradores da “Revista dos Dois Mundos”, cooperadores devotados dos “Anais das Ciências Psíquicas” ali estão para abraçarem o mestre, no limiar do seu túmulo.

Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eram desconhecidas. Parece-lhe haver retrocedido às materializações da Vila Carmen; mas, ao seu lado, repousam os seus despojos, cheios de detalhes anatômicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dos verdadeiros vivos. Suas percepções estão intensificadas, sua personalidade é a mesma e, no momento em que volve a atenção para a atitude carinhosa dos que o rodeiam, ouve uma voz suave e profunda, falando do Infinito:

— “Richet — exclama o Senhor no tribunal da sua misericórdia —, por que não afirmaste a Imortalidade, e por que desconheceste o meu nome no seu apostolado de missionário da ciência e do labor? Abri todas as portas de ouro, que te poderia reservar sobre o mundo. Perquiriste todos os livros. Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, à base das dúvidas dissolventes. Oitenta e cinco anos se passaram, esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fé desabrochasse em teu coração… Todavia, decifraste, com o teu esforço abençoado, muitos enigmas dolorosos da ciência do mundo e todos os teus dias representaram uma sede grandiosa de conhecimentos… Mas, eis, meu filho, onde a tua razão positiva é inferior à revelação divina da fé. Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante dela desapareceram os teus compêndios, ricos de experimentações no campo das filosofias e das ciências. E agora, premiando os teus labores, eu te concedo os tesouros da fé que te faltou na dolorosa estrada do mundo!”

Sobre o peito do abnegado apóstolo desce do Céu um punhal de luz opalina como um venábulo maravilhoso de luar indescritível.

Richet sente o coração tocado de luminosidade infinita e misericordiosa, que as ciências nunca lhe haviam dado. Seus olhos são duas fontes abundantes de lágrimas de reconhecimento ao Senhor. Seus lábios, como se voltassem a ser os lábios de um menino, recitam o “Pai Nosso que estais no Céu…”

Formas luminosas e aéreas arrebatam-no, pela estrada de éter da Eternidade e, entre prantos de gratidão e de alegria, o apóstolo da ciência caminhou da grande esperança para a certeza divina da Imortalidade.

21 de janeiro de 1936.

Foi uma notícia bem fresca, pois Richet falecera no dia 4 dezembro anterior, menos que dois meses. Contudo, acho que será preciso um pouco mais para os kardecistas conseguirem fazer com Charles Richet o mesmo que o Cristianismo fez com João Batista: nesse mesmo capítulo é dito que “povoaram-lhe as noites de severas meditações, com as imagens maravilhosas das vossas verdades, porém apenas conseguiram que ele escrevesse o ‘Tratado de Metapsíquica’ e um estudo proveitoso a favor da concórdia humana, que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 1913”. Richet ganhou o Nobel em Fisiologia, por estudos em anafalaxia. Algo um tanto distante da “concórdia humana”. Alguns diriam se tratar apenas “de um lapso”, ao que retruco: “de quem seria, então?” Do “espírito” Humberto de Campos, já livre das restrições da carne e, portanto, com acesso a mais recursos que nós; ou do médium, que deixou indícios de ter plagiado o Humberto de Campos encarnado nessa mesma obra? Seria mais digno assumir que não foi dessa vez.

Pelo Raciocínio Crítico … até a Segunda página!

1 Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. 2 Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. 3 As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que formaram de Deus.

4 O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. 5 Entendendo com todos os ramos da economia social [sociedade], aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria; 6 deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. 7 Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto; se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.

A Gênese, cap. I, item 55.

A ironia de tais palavras não é se encontrarem no capítulo de abertura do livro da Codificação que mais sofreu com a passagem do tempo, e sim por serem uma arapuca: o que aconteceria se a dita Ciência – a carteirada intelectual mor – ou os fatos começarem a contradizer pontos centrais da doutrina? Por exemplo se…

  • Não houver karma retributivo;
  • Houver fetos sem nenhum espírito vinculado a ele até quase o final da gestação;
  • Não houver nenhuma civilização extraterrena em nosso sistema solar após “centenas” de comunicações afirmarem que elas existem (seres ainda no paleolítico entram na cota dos marcianos);
  • A população da Nigéria ultrapassar a do Brasil (spoiler: já passou), quando a raça negra deveria desaparecer por ter sido “feita para uma latitude diferente da vossa” (“O negro Pai César”, R.E., junho, 1859);

O ônus de estimular o raciocínio crítico em seus alunos, discípulos, pupilos, leitores, fiéis, etc., é que cedo ou tarde você será o alvo de alguma crítica, caso realmente faça um bom trabalho. E aí, estará pronto para elas? Eu poderia dizer “isso machuca o ego, mas faz parte. Aceita, que dói menos“. Outra linha de ação é encastelar-se na torre de marfim e, de lá, bombardear os dissidentes. Quando o guru da seita renomado pesquisador/filósofo/erudito falece, a doutrina cristaliza em um cânon fechado e imutável, defendido com unhas e dentes por herdeiros que dedicam suas vidas a repetirem uns aos outros que não receberam um carregamento de “ouro dos tolos”.

Façamos uma comparação da trajetória do kardecismo com a de uma companheira sua no berçário: a teoria da evolução, de Charles Darwin e Alfred Wallace

Publicada originalmente em artigo conjunto desses autores em 1858, suas ideias só ganharam o grande público com a publicação, no ano seguinte, do livro “A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, ou Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida“, ou simplesmente “A Origem das Espécies”, de autoria do primeiro. Tal como o espiritismo kardecismo, suas ideias não surgiram do vácuo ou de algum momento “Eureka!“, pois, assim como existiram espiritualismos prévios e alguns contemporâneos, houve precursores no evolucionismo como o francês Jean-Baptiste de Lamarck ou Erasmo Darwin, avô paterno do “Charles”. O grande diferencial foi que Darwin não só conseguiu encontrar um mecanismo para explicar as modificações e diversificações das espécies (a seleção natural), mas também encontrar evidências de que isso ocorrera (mais com o testemunho anatômico, fisiológico e geográfico das espécies vivas, pois o registro fóssil conhecido era parco) e explanar o processo de forma sistemática e didática para o grande público.

Tal qual os espiritismos vitorianos, o evolucionismo de Darwin/Wallace foi alvo do ataque de grupos religiosos cristãos institucionalizados, afinal cada um os ameaçava a seu próprio modo. Enquanto os primeiros também eram alvos de cientistas materialistas, o segundo sofreu um ataque inusitado e forte de um importante cientista: William Thomson, mais tardiamente conhecido como Lorde Kelvin. Sim, o mesmo que nomeia a mais usada escala absoluta de temperatura (20).

Em 1863, supondo que a Terra um dia fizera parte do Sol e teria tido originalmente sua temperatura, Thomson estimou a idade do planeta em cerca de 100 milhões de anos a partir da taxa de aumento de temperatura conforme se aprofunda no subsolo (gradiente geotérmico), o que permitiu avaliar a velocidade com que a superfície do planeta teria perdido calor. Essa idade foi posteriormente revista para algo entre 20 e 400 milhões. Era muito pouco tempo para, após formado o planeta, a vida surgir e se diversificar nas inúmeras formas conhecidas. E a briga não foi só com biólogos: os geólogos da época também alegaram ser pouco tempo para as diversas formações de relevo encontradas se formarem. Thomson, um físico, usou essa avaliação para justificar sua descrença pessoal nas ideais de evolucionistas.

Darwin não abandonou sua teoria, mas teve de adaptá-la para acelerar a dinâmica da seleção natural. Assim, na sexta e última edição em vida de A Origem das Espécies, Darwin lançou mão de princípios lamarquianos (como a lei do “uso e desuso”) para justificar a formação de novos tipos em pouco tempo, sobre os quais, numa etapa posterior, aturaria a seleção natural. Nessa contenda, os evolucionistas contaram novamente com a defesa de Thomas Henry Huxley (o bulldog de Darwin) e outros, que apontaram incertezas quanto às constantes físicas por Thomson em seus cálculos: estaria a medida do gradiente geotérmico correta, ou não teria sida da temperatura inicial da Terra um tanto baixa? Nenhum dos críticos, porém, atacou os cálculos em si.

De certa forma, pode-se dizer Thomson esteve em vantagem no debate até o começo do século XX. Seus pilares eram:

  1. As formações geológicas na superfície do planeta se originavam do calor subterrâneo;
  2. A Terra não possuía uma fonte de energia própria;
  3. Em escala macro, ela teria uma constituição simples e uniforme.

Apenas o primeiro se revelou verdadeiro. Na virada do século XIX para o XX, foi descoberto o fenômeno da radioatividade, com a decomposição do núcleo de átomos instáveis em outros de peso atômico menor, com liberação de energia. Em 1906, o agora Lorde Kelvin assistiu a uma palestra do descobridor do núcleo atômico Ernest Rutherford em que ele expôs (com muita cautela) que a decomposição de elementos radioativos poderia levar a revisão dos cálculos da Idade da Terra. Lorde Kelvin não criou caso na ocasião e faleceria no ano seguinte ainda crente que essa nova fonte de calor não afetaria a ordem de grandeza de suas estimativas.

Mas a história não acaba aí: quem disse que o interior da Terra seria uniforme? John Perry, ironicamente um ex-colaborador de Kelvin (21), cogitou uma década antes da descoberta da radioatividade, a hipótese de que correntes de convecção de material fundido uniformizariam a temperatura entre as camadas mais externa e internas da Terra. Procedendo novos cálculos, estimou a idade do planeta para algo entre 2 e 3 bilhões de anos. Infelizmente, os artigos de Perry não reverberaram, e somente em 1967 a descoberta da tectônica de placas revigorou essa ideia e chancelou a “deriva continental” proposta por Alfred Wegner em 1913 (22).

Por fim, a taxa de decaimento dos isótopos radioativos (vulgo, meia-vida) passou a ser utilizada para avaliar a idade de fósseis e rochas. Para cada tipo de material, o isótopo de um elemento específico é analisado, estando a idade o planeta, hoje, estimada em cerca de 4,5 bilhões. Biólogos e geólogos riram por último(23).

Não é incomum que as pesquisas em um campo da ciência ponham em xeque os paradigmas de outras e sofram resistência dessas. Por exemplo, a briga Natureza x Criação (Nature x Nurture, em inglês), que joga a Biologia em colisão com as ciências sociais, está em aberto até hoje, e parece que longe de acabar. O padrão histórico que se vê, como bem apontou o historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn, é que uma teoria em dificuldades sempre procura salvar a si mesma por meio de hipóteses complementares (ad hoc) para contornar a dificuldade. Essa versão ingênua de “falsificacionismo” proposta por Kardec para a constante atualização do Espiritismo simplesmente não existe na prática e foi assim que o Espiritismo brasileiro tem se portado (24).

Outra diferença de postura entre esses dois campos do conhecimento “quase gêmeos” foi o enfrentamento à controvérsias científicas.

(Em Construção)

Vai que…

(Em Construção)

Para saber mais

– Abreu, Canuto; Bezerra de Menezes – Subsídios para a História do Espiritismo no Brasil desde o ano de 1895, versão digital de agosto de 2017, pelo Portal Luz Espírita.

– Darwin, Charles; A Origem das Espécies, Martin Claret, 2004.

– Desmond, Adrian & Moore, James; Darwin – A vida de um evolucionista atormentado, Geração Editorial, 3ª ed, 2000.

– Doyle, Arthur Conan; A História do Espiritismo, Pensamento, 1978.

– England, Philip C. et al.; Kelvin, Perry and the Age of the Earth, American Scientist, Vol. 95, nr. 4, p. 342, jul/ago 2007, acessado em 10 fev 2024.

– Hellman, Hal; Grandes Debates da Ciência, Unesp, 1999.

– Home, Daniel Dunglas; Lights and Shadows of Spiritualism, Elibron Classics, 2005 (fac-símile da edição de 1877).

– Navega, Sergio; Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Publicações Intellwise, 1a. Ed, 2005 (pp.147-8).

– Richet, Charles; Thirty Years of Psychical Research – A Treatise on Metapsychics, tradução inglesa de Stanley de Brath, The MacMillan Company, 1923.

– Salmon, Wesley C.; Lógica, Zahar Editores, 1963 (pp. 88 – 93).

– Santos, José Luiz dos; Espiritismo – Uma Religião Brasileira, Moderna, 2a Ed., 1997.

Notas

(1) Não teria sido tão mais fácil, para os apologistas espíritas se, simplesmente, não existíssemos mais? Se Chico Xavier relatou que Emmanuel estava autorizado a desencarná-lo caso se recusasse a prosseguir psicografando livros para além da quantidade originalmente estipulada (uma atitude digna de mafioso), então nos mandar para o Umbral mais cedo seria fácil, não? Ou será que nossa missão na Terra é justamente ser “do contra”? Tenho uma opinião bem parcimoniosa sobre isso: somos uma “inevitabilidade prática”, i.e., enquanto as contradições do Espiritismo kardecista persistirem sem tratamento, cedo ou tarde algum adepto se dará conta delas, não ouvirá eco em seus questionamentos e pulará fora. Alguns fazendo estrondo. Tanto que vieram outros dissidentes ex-apologistas na esteira, como Vítor Moura – com uma ajudinha nossa – e Felipe Morel, este de forma totalmente independente.

(2) Com já disse em outras partes, há duas versões para o “discurso de despedida” de Jesus no Evangelho de João, que foram entremeadas na redação final. Em uma (Jo 13-14 e 18) a identificação do Paracleto com o Espíritos Santo ocorre (Jo 14:26) e na outra (caps. 15-17), não. Concordo que a forma apositiva como “Espírito Santo” aparece Jo 14:26 pode sugerir um enxerto, porém não encontramos um documento antigo de João em que ela não apareça. Se foi uma interpolação, ela pode ter ocorrido no próprio autógrafo do Evangelho ou na fonte dessa versão do discurso. Assim, novas descobertas no campo da paleografia do NT são necessárias para elucidar a questão. O que se pode dizer, com mais certeza, é que Jo 14:26 é uma “pedra no sapato” dos espíritas que advogam Jesus ser o Espírito da Verdade, o Paracleto prometido. O que os espíritas não se mancam é que, embora as falas do Evangelho de João sejam atribuídas a Jesus, a maioria delas não são consideradas pelos pesquisadores como originárias de seus lábios. Inclusive os longos discursos de despedida (e outros) desse evangelho que, ao contrário das parábolas e aforismos dos seus irmãos sinópticos, dificilmente seriam memorizáveis de cor pelos primeiríssimos cristãos, majoritariamente analfabetos. Pois é, muito arranca-rabo já ocorreu internamente por coisas que sequer uma “fé racionada” deveria considerar como verídicas.

(3) Uma coisa que este portal também oferece são as diversas camadas de “correções” feitas por mãos posteriores. Isso ocorreu com o Códice Sinaítico nesta passagem. Mas calma: em todas as camadas, το πνευμα το αγιον pode ser encontrado.

(4) Poderia citar os dois dicionários (um grego/francês e outro sânscrito/inglês) utilizados por Carlos Torres Pastorino e mencionados no artigo anterior. Menciono, também, o magistral Documenta Catholica Omnia, que tanto usei em minhas análises sobre Orígenes.

(5) A Revista Veja, editora Abril, lançou em 9 de outubro de 1991 a edição 1.203, intitulada “O Planeta Resiste – A ciência derruba o mito da catástrofe ecológica inevitável”. Um show de ecoceticismo e um dos maiores desserviços feitos pelo jornalismo brasileiro à Ciência. Excetuando o buraco na camada de ozônio – que foi considerado um problema real – o resto foi um vexame atrás do outro. A extinção das espécies seria um “mal reparável”, pois a evolução se encarregaria de criar nova. Ok, pena que isso leva milhões de anos. Aquecimento global? Teria mais a ver com as explosões solares que pela ação humana. Aliás, a natureza seria muito mais poluidora que nós.
Justiça seja feita, outras edições mais responsáveis vieram depois – como a nº 1.696- “A Vingança Da Natureza” -, porém muito estrago já havia sido feito.

(6) A briga entre os adeptos da identificação do Espírito da Verdade como Jesus e os que combatem essa tese que o diga.

(7) Cf. “Controle Universal dos Espíritos”, RE, abril 1861

Em Profissão de fé espírita americana (RE, abril de 1869), Kardec faz um paralelo entre os artigos da profissão de dos espíritas norte-americanos e pontos que ele já havia levantado em seus próprios trabalhos. Até aí, tudo bem. O problema maior surge na seguinte observação que faz, mais perto do final do artigo:

Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas em mundos mais ou menos avançados; a única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências sobre a Terra até que o Espírito tenha adquirido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporte este globo, depois do que ele o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. De acordo sobre a ideia principal eles não diferem, pois, senão sobre um dos modos de aplicação. É que isso pode ser lá uma causa de antagonismo entre pessoas que perseguem um grande objetivo humanitário?

Em instante algum da profissão de fé americana isso pode ser inferido. O Codificador viu o que queria ver em prol de um suposto “consenso” entre amplos os lados do Atlântico.

(9)Em ESE, capítulo XXII, Allan Kardec tratou da questão do divórcio. Transcrevo integralmente suas palavras:

O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, está separado. Não é contrário à Lei de Deus, pois que apenas reforma o que os homens hão feito e só é aplicável nos casos em que não se levou em conta a Lei divina. Se fosse contrário a essa lei, a própria Igreja seria obrigada a considerar prevaricadores aqueles de seus chefes que, por autoridade própria e em nome da religião, hão imposto o divórcio em mais de uma ocasião. E dupla seria aí a prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses materiais, e não a satisfação da lei de amor.

Nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do casamento. Não disse Ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés, não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia tornar-se necessária. Acrescenta, porém: “no princípio, não foi assim”, isto é, na origem da Humanidade, quando os homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho e viviam segundo a Lei de Deus, as uniões, derivando da simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.

Vai mais longe: especifica o caso em que pode dar-se o repúdio, o de adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade que Ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas cumpre se tenham em vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.

Palavras razoáveis, não? Por outro lado, um padre e muitos pastores hodiernos sentiriam calafrios com essa leitura. Com certeza foi um episódios em que Kardec se mostrou à frente do tempo. Contudo, entretanto, todavia, no século XX, no “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, desenvolveu-se a ideia de que os cônjuges de casamentos estão em resgate de outras vidas … e um divórcio apenas atrasa a “quitação das dívidas”, levando a novo matrimônio na vida seguinte. O escritor espírita Richard Simonetti, em Atravessando a Rua, conto 39 (“Compromisso não cumprido”), narra uma desventura de Dona Flausina que – apesar de ter sido exemplar mãe, profissional e trabalhadora da seara espírita – não conseguira se acertar com seu problemático marido em vida, tendo apenas o “suportado” em vez de se “harmonizar” com ele realmente. Afinal, muitos desajustes dele na última vida seriam reflexo de influências dela em anteriores.

Na conclusão do autor:

No entanto, aqueles que atravessam o casamento a “ranger de dentes”, como se submetidos a intolerável prisão, forçosamente reencontrarão o cônjuge em novas experiências matrimoniais, presos um ao outro por algemas de ressentimentos, mágoa, aversão…

Somente quando formados por flores de amizade os elos do casamento, desfrutarão os cônjuges a liberdade de decidir se seguirão juntos nos caminhos do porvir.

Espero que exista uma terceira opção para vítimas de feminicídio…

Enquanto as outras duas grandes religiões abraâmicas têm o divórcio aceito e codificado (ainda que com viés machista), o cristianismo e seus derivados (o espiritismo “chiquista” entre entre eles) o têm entalado na garganta. É como se o antigo “que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19:6-9) não admitisse a exegese “o que Deus realmente uniu, ninguém é capaz de separar“. Em meus tempos de mocidade espírita, quando estudamos “Atravessando a Rua” em nossa programação de férias, discutimos e achamos válido o divórcio em caso de violência doméstica. Hoje, com bem mais vivência, constato que, se uma relação já se deteriorou a esse ponto, pode ser tarde demais para um término indolor.

A ideia de que todo o casamento é a continuação de uma relação passada (seja harmoniosa ou cármica) esbarra em um problema: como conheceremos (e nos uniremos) gente nova?. Se, porventura, um “relacionamento inédito” se tornar “turbulento”, não seria mais razoável o divórcio enquanto os cônjuges ainda possuem um mínimo de respeito um pelo outro?

Ademais, em outro livro – “Encontros e Desencontros”, cap. XXVIII, “Aprendendo com os Próprios Erros” -, Simonetti narra a aflição de um pai, já no mundo espiritual, ao saber que sua filha casou às pressas com um homem que não estava no “planejamento” original em razão de uma gravidez inesperada. Como, então, nós do lado de cá saberemos se uma união vigente foi planejada ou não? Por que uma comunicação mediúnica assim o disse? Por temer o famoso “vai quê”?

(10) Vide RE, agosto de 1864, artigo Destruição dos aborígenes do México para as falas dúbias de Erasto e a edição de junho de 1859, artigo O Negro Pai César é feita a evocação de um recém-falecido ex-escravo norte-americano (i.e., desencarnou já como liberto), traficado do continente africano aos quinze anos. Conforme a segue a inquirição prossegue, somos informados que ele fora branco em encarnações prévias, deixara de ser negro ao desencarnar, e tinha um “autopreconceito” com sua última encarnação:

8. Considerais a brancura como uma superioridade?
Resp. – Sim, visto ter sido desprezado como negro.

9. [A São Luís.] – A raça negra é de fato uma raça inferior?
Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa.

Racismos à parte, essa previsão está simplesmente errada, pois, no instante em que redijo e mais de 160 anos após a resposta acima, a África subsaariana está em franca expansão demográfica. Sem contar os membros da “diáspora negra” pelo mundo.

(11) Ver Forças Psíquicas Misteriosas, cap. II.

(12) Lembrei de um “causo” dos tempos do fórum “Religião é Veneno”, quanto um forista ateu comentou:

Sou plenamente a favor do ensino do criacionismo nas escolas (suspense) contanto que seja nas aulas de ‘ensino religioso’ não-confessional e sejam expostos os diversos criacionismos das mais diversas culturas do mundo.
Esfregar a existência de diversas outras Terceiras Revelações – como o Islamismo, por exemplo – na cara do Movimento Espírita pode ter um efeito parecido a essa proposta para quebrar o “narcisismo teológico” em que ele está submerso.

(13) Justiça seja feita, há diversas regressões hipnóticas de pessoas como cidadãos comuns e humildes. O curiosíssimo é o que Doyle cita antes dessa opinião de Daniel Home:

Alexander Aksakof, num artigo muito interessante [5. The Spiritual Magazine, 1876, página 57.] dá os nomes dos médiuns do grupo de Allan Kardec, com uma descrição deles. E também indica que a ideia da reencarnação era fortemente aprovada na França naquele tempo, como se pode ver do trabalho de M. Pezzani — “A Pluralidade das Existências”, bem como de outros. Escreve Aksakof:

“É claro que a propagação desta doutrina por Kardec foi matéria de forte predileção.
De início a reencarnação não foi apresentada como objeto de estudo, mas como um dogma. Para o sustentar, recorreu com frequência a escritos de médiuns, que, como bem sabemos, facilmente se submetem à influência de ideias preconcebidas. E o Espiritismo as produziu em profusão. Enquanto que através de médiuns de efeitos físicos não só as comunicações são mais objetivas, mas sempre contrárias à doutrina da reencarnação. Kardec seguiu o rumo de sempre desprezar esse tipo de mediunidade, tomando como pretexto a sua inferioridade moral. Assim, o método experimental é, de modo geral, desconhecido no Espiritismo.
Durante vinte anos ele não fez o menor progresso intrínseco e ficou em completa ignorância do Espiritismo anglo-americano. Os poucos médiuns franceses de fenômenos físicos que desenvolveram seus dons a despeito de Kardec, jamais foram mencionados na ‘Revue’; ficaram quase que desconhecidos dos Espíritas e apenas porque os seus guias não sustentavam a doutrina da reencarnação.”

Acrescenta Aksakof que as suas observações não afetam a questão da reencarnação no abstrato, mas apenas no que respeita à sua propagação sob os auspícios do Espiritismo.

(14) Julgo a versão inglesa da “comunicação de Kardec” um tanto parafrástica, i.e., toma uma certa liberdade ao verter as palavras de uma língua para outra, embora mantenha o sentido original.

(15) O “Processo dos Espíritas” foi o julgamento, em 1875, da acusação de fraude envolvendo fotografias de espíritos materializados, publicadas na Revista Espírita no ano anterior. Os réus foram Pierre-Gaëtan Leymaire (então editor da RE), o médium de materialização Alfred Henri Firman e o fotógrafo (e também médium) Édouard Buguet. Leymaire e Buguet foram condenados a um ano de prisão e multa de 500 francos. Buguet, no começo do julgamento, chegou a escrever ao Ministro da Justiça, inocentando Leymaire e defendendo que 2/3 das fotos seriam verdadeiras.

(16) Em [Santos, cap. VII, pp 60-4] é relatado que o Pacto Áureo, costurado por Lins de Vasconcelos na década de 1940, selou uma espécie de trégua entre kardecistas e rustenistas, aceitando-se uma base comum (a obra kardecista) e guardando-se silêncio sobre Roustaing. Ou seja, os primeiros não falam mal do mentor dos segundos, enquanto estes não impõe o seu aos primeiros. Em 2019, A Federação Espírita Brasileira removeu de seu estatuto a sugestão de leitura da obra de Roustaing como “subsidiária”. Enquanto alguns celebraram com “antes tarde do que nunca”, outros acham que a desavença ainda dá bastante pano para manga.

(17) Cf. [Abreu, pp. 36-7]. Esta obra tem, em seu apêndice, a transcrição completa das “Instruções”.

(18) Cf. [Santos, cap. III, pp. 20-1]: “Bezerra de Menezes (…) não se preocupava com o lado científico do espiritismo, considerando desnecessários seus experimentos. Sintonizado com as tendências mais religiosas do movimento, era adepto da obra de Roustaing.

(19) “Kardequisar é a legenda de agora”: leio muito essa frase ser atribuída a Bezerra de Menezes por meio da mediunidade de Chico Xavier, porém nenhuma coordenada precisa de onde ela saiu foi oferecida. Ainda que apócrifa, ela sintetiza bem a mensagem “Unificação” de Reformador, dezembro de 1975.

(20)Cf. [Hellman] para pormenores.

(21)Cf. [England].

(22) Para saber mais sobre deriva continental e tectônica de placas, leia o artigo sobre Atlântida: Extraterrestres Reencarnados na Terra.

(23)A meia-vida de um isótopo é o tempo necessário para que a quantidade atual de átomos seus em determinada amostra se reduza à metade, havendo cada átomo da outra pare “decaído” para um isótopo mais estável pela emissão de uma partícula alfa (um núcleo de hélio) ou beta (um elétron). Há isótopos com meia-vida medida em frações de segundos, ao passo que outros demoram bilhões de anos. Um isótopo radioativo “bem conhecido” é o carbono-14, cuja meia-vida é de 5.700 anos, sendo muito utilizado na arqueologia e um pouco na paleontologia para datações até 60 mil anos.

Gráfico de decaimento para um isótopo cuja meia-vida é de 12 segundos (fonte: Brasil Escola)

Duas falácias são recorrentes entre os meios criacionistas:

  1. Tratam o decaimento radioativo como uma progressão linear em vez de geométrica, esgotando erroneamente o alcance de sua datação já no segundo ciclo; e
  2. Acham que só se utiliza o carbono-14 para esse fim, desconsiderando todo o repertório de isótopos disponível para paleontólogos e geólogos.

Para a medição das mais antigas rochas da Terra, por exemplo, utiliza-se o urânio-238, cuja meia-vida de 4,5 bilhões de anos.

(24) Para mais pormenores a respeito das discussões filosóficas sobre a demarcação do que é ou não Ciência e das dificuldades do falsificacionismo, ler as notas 16 e 17 de O Critério de Salomão.