O Fascínio das Autoridades (27/05/23)

Índice

O Fim de um Monopólio

Eis um monopólio difícil de acabar.

Em 2008, a revista História Viva inaugurou sua série “Grandes Temas” com o fascículo “Jesus – O Homem e Seu Tempo”. A última página – Livros sobre Jesus – dedicava-se a pequenas resenhas de leituras complementares ao leitor. Uma delas é esta:
Sabedoria do Evangelho, de Carlos Torres Pastorino (Editora Sabedoria, 8 vol.). Tradução e comentário das recentes edições críticas dos antigos manuscritos. Farta documentação. Orientação espírita.

Desconheço a vida dos autores desse último artigo para checar se há alguma predileção e isso não importa porque, justiça seja feita, há outro autores de diferentes orientações. Não deixo, porém, de matutar o que pode ter levado Pastorino a ser incluído, principalmente por uma obra que é muito mais apologia do que crítica textual. Uma razão pode jazer nas restrições que os autores impuseram a própria lista: livros em português e ainda disponíveis no mercado, mesmo que em sebos.

De fato, Pastorino foi pioneiro em trazer e traduzir textos gregos de qualidade ao público brasileiro. Em 1964, quando o primeiro volume de Sabedoria… foi lançado, o Concílio do Vaticano II ainda estava em andamento, a Neovulgata demoraria uns quinze anos para ficar pronta, e a maioria das Bíblias tupiniquins ainda tinha um Novo Testamento era tributário do infame Textus Receptus, de Erasmo de Rotterdam. Se eu fosse um estudante não dogmático de teologia, o material disponibilizado por Pastorino seria uma mão na roda. Pela mesma época, vale assinalar, era fundada a Ação Missionária Evangélica (1965), como uma dissidência com perfil pentecostal de igrejas da Convenção Batista Brasileira, posteriormente renomeada para Convenção Batista Nacional (1967). No ano em que a humanidade pousou na Lua, entrava em operação a ARPANet, com seus quatro primeiros computadores conseguindo se interconectar a grandes distâncias. Dois processos embrionários que se revelariam mais transformadores do que qualquer uma das “revoluções” daqueles turbulentos anos poderia imaginar.

Avançando no tempo… Depois de atingir cerca de 1.000 computadores em 1984, a ARPANet fechou suas atividades em 1990, mas não sem antes deixar sua tecnologia como herança para a rede da US National Science Fundation, criada em 1986. No ano seguinte, esta conseguia ligar 10.000 máquinas, saltando para 100.000 em 1990 e “impressionantes” 6,5 milhões em 1995, quando já se chamava Internet. Nesse mesmo ano, uma pequena “guerra religiosa” se instalou no Brasil, cujo gatilho foi o episódio do “chute na Santa” divulgado em horário nobre pela Rede Globo de televisão em seu embate com a Igreja Universal do Reino de Deus. Alguns de seu templos chegaram a ser apedrejados por papistas mais exaltados, mas uma coisa ficou patente: embora ainda fosse um país majoritariamente católico, essa identidade já não definia mais nosso povo com precisão.

A virada do século parecia promissora para a intelligentsia espírita: o dissidente católico e futuro confrade J.R. Chaves publicava A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência (1998), e em 2000 seria a vez de Celestino Severino da Silva lançar seu Analisando as Traduções Bíblicas. Ambas compilaram muito do que já se falava há tempos “na gringa” sobre teorias conspiratórias acerca da reencarnação no cristianismo primitivo e sua suposta supressão no século VI. Foram um prato cheio na curta e intensa Era de Ouro dos fóruns virtuais que se seguiu – tanto nos espíritas quanto nos evangélicos -, porém também foi a época em que os primeiros “ex-píritas” começaram a despontar nesse meio, como Júlio Siqueira, Carlos “ApodMan” Bella e este anjo caído que vos escreve (1).

Por volta de 2004, fui apresentado a Pastorino no saudoso fórum do Portal do Espírito (acho que pelo forista Paulo Neto) e em um debate em meu primeiro portal com Vítor Moura (então, ainda na ortodoxia). Reparei logo de cara ser um terreno novo, ao qual precisava estudar melhor. Tornei-me um costumaz visitante de uma das lojas da Sociedade Bíblica do Brasil em minha cidade, em busca de lançamentos de coubessem no bolso. Aos poucos, construí meu arsenal com edições críticas Bíblia (Vulgata Jeronimiana), ou do Antigo e Novo Testamento (Septuaginta de Rahlphs e Nestle-Aland, respectivamente), minhas primeiras gramáticas gregas e hebraicas, além de uma chave gramatical do NT. Na cada vez mais pujante internet, encontrei as ferramentas do StudyLight.Org, que me permitiram cruzar dados e analisar frequência e emprego de palavras de um modo impensável até a recente época analógica de pesquisa. A Perseus Digital Library ofertava o mesmo dicionário grego usado por Pastorino, com a vantagem de inúmeros hiperlinks para seus exemplos. Conheci, também, o portal alemão (com texto em inglês) New Testament Transcripts Prototype, da Universidade de Münster, que oferta a digitalização e aparato crítico de diversos manuscritos antigos do NT. Graças e a isso, foi possível este humilde leigo descobrir que alegações deste tipo:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

não se sustentam, pois ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto – o que é outra discussão (2)-, primeiramente esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. Em segundo lugar, no volume inicial de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:

  1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado (3);
  2. Alexandrino: idem;
  3. Vaticano: idem;
  4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
  5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
  6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

Definitivamente, seria impossível checar isso nos anos 60/70 do século XX caso não se fosse membro de um departamento de teologia de uma boa Universidade.

A Internet também trouxe as livrarias virtuais – notadamente a Amazon -, onde consegui livros de crítica textual mais especializados e gramáticas mais aprofundadas para consultas específicas. Na primeira década deste século e a metade da segunda, pude contar com um câmbio mais em conta e uma quantidade menor de responsabilidades pessoais para estudar e adquirir material. Coisas que já não me são mais possíveis. Mas, se você está começando agora, não desanime. O público evangélico cresceu tanto – puxado principalmente pelas denominações pentecostais – que surgiu um mercado para atender suas demandas, e muitos dos livros que tive de importar já têm edições nacionais em português, além de mais livros de domínio público terem sido disponibilizados de lá para cá (4). Hoje, pela própria força dos números, observo que começa a surgir uma elite intelectual evangélica, que daria bem mais trabalho aos apologistas da década de 2000.

O economista Steven Levitt conta em seu livro Freakonomics o interessante “causo” ocorrido nos anos 50 do século XX e protagonizado por um sujeito chamado Stetson Kennedy, que estava determinado a desbaratar a Ku Klux Klan. Ele se infiltrou nela, aprendeu todos os (ridículos) códigos, jargões e ritos da seita, só para vendê-los a emissoras de rádio interessadas em arranjar um novo adversário para ninguém menos que o Superman de sua programação infantil. Quando toda a subcultura da KKK passou a ser alvo de chacotas – feitas até por crianças -, o comparecimento as suas (não mais) secretas reuniões desabou, simplesmente.

Então Levitt faz um paralelo entre esse episódio na luta contra o racismo nos EUA com um fenômeno econômico do começo deste século: a perda do poder de pressão dos corretores de imóveis sobre seus potenciais clientes, graças à ampla disponibilidade de informações sobre casas, apartamentos e terrenos na Internet. Entre ambos, um denominador comum: o poder calcado no controle privilegiado de algum conhecimento. E suas próprias palavras:

Embora bastante diversos, todos esses crimes têm uma característica em comum: foram pecados de informação. A maioria envolveu um especialista, ou uma gangue deles, para introduzir informações falsas ou esconder informações verdadeiras. Em todos os casos os especialistas os especialistas buscavam manter a assimetria das informações tão assimétrica quanto possível.

(. . . )

Você acertou se concluiu que muitos especialistas usam contra você as informações que detêm. Eles dependem do fato de que você não as possui. Ou que fica de tal forma confuso diante da complexidade de operá-las que acaba não sabendo o que fazer com elas. Ou que, impressionado com a competência que demonstraram, não ouse desafiá-los. Se um médico lhe recomendar uma angioplastia – embora algumas pesquisas hoje em dia indiquem que a angioplastia é pouco eficaz na prevenção de infartes -, você provavelmente não suporá que ele esteja usando sua superioridade em termos de informação para conseguir uma boa grana para si próprio ou algum colega. Mas como explicou David, cardiologista do Southwestern Medical Center da Universidade do Texas, em Dalas, ao The New York Times, um médico pode ter os mesmos incentivos econômicos que tem um vendedor de carros, um agente funerário ou um administrador de fundos de investimentos: “Você é cirurgião-cardíaco e Joe Smith, o clínico local, lhe manda pacientes. Se começar a dizer a eles que o procedimento não é necessário, em pouco tempo Joe Smith deixará de mandar-lhe pacientes.”

Cap. II, pp. 72-3

* * *

Um problema óbvio que talvez o leitor esteja pensando é como separar o joio do trigo, neste mundo permeável por fakenews prontas para satisfazer nosso viés de confirmação? Afinal, um mesmo servidor que hospeda uma página educativa de astronomia pode também armazenar um portal terraplanista. Sugiro algumas pedras de toque a seguir.

A Carteirada Intelectual

Àquela altura do seriado, era só bravata.

Certa vez, em um dos poucos debates amistosos que tive, meu antagonista defendeu o livro Reencarnação: o Elo Perdido do Cristianismo com um elogio constante na capa, feito pelo escritor Brian Weiss:

Este é um livro extremamente importante, que apresenta uma verdade profunda, um livro que deverá abrir as mentes e remover os medos.

O problema é que Brian Weiss – autor de Muitas Vidas, muitos Mestres – é médico por formação, especializado em psiquiatria, e ficou famosos por seus relatos do que seriam vidas passadas de seus pacientes, acessadas por meio de regressão hipnótica. Se estivéssemos discutindo os alcances e limites da hipnose em si, tudo bem. Entanto, a proposta do livro de Prophet é uma pesquisa histórica de uma suposta crença da reencarnação entre os primeiros cristãos. Por mais famoso e competente que Weiss fosse em seu campo, sua opinião acerca do livro de Prophet não tem mais peso que a da maioria dos seus leitores. Ou seja, é a opinião de um fã, não de um historiador.

Esse é o exemplo mais pronto e acabado da falácia do “apelo à autoridade”, i.e., quando um especialista em determinado campo do conhecimento resolve dar “pitacos” fora dele. Maiores problemas surgem, porém, quando apologistas querem restringir a aplicação dessa falácia a apenas esse modelo, desconsiderando outras formas mais sutis de mal emprego da palavra de especialistas. Eis alguns:

  • Autoridade que não é autoridade nenhuma: o exemplo acima é bem ilustrativo desse tipo, i.e., uma autoridade de uma área dando pitaco em outra. Pode acontecer, também, de um generalista arrotar dados e fatos, sem o devido lastro de um real perito no tema (principalmente em matérias jornalísticas);
  • A dita autoridade é uma outsider, “ponto fora da curva” ou do estilo “lobo solitário”: o que não impede que ele realmente seja um especialista na área. Um exemplo clássico disso foi a defesa ferrenha do químico Linus Pauling – duas vezes ganhador do prêmio Nobel – de doses cavalares de vitamina C como santo remédio, capazes de prevenir de resfriados a tumores malignos.
  • O grupo ao qual se encontra a autoridade é minoritário: essa é um pouco capciosa. Qualquer ideia nova vai começar como minoritária. Agora, caso já tenha havido tempo para “o teste do tempo” e ela ainda não se tornou predominante, ou era uma tese mainstream e foi sendo abandonada, o problema deve estar na tese defendida. Um exemplo moderno é o aquecimento global antropogênico, que tinha boa oposição até o final do século XX e, agora, está se consolidando (5). Seus negacionistas o fazem mais por paixões políticas que científicas. Um erro estratégico ao se realizar debates com esse tipo de grupo é colocar um representante de cada lado, dando a ilusão de que ambos estariam em pé de igualdade. Mais útil seria ressaltar a diferença de pesos entre as produções científicas de cada lado dentro do tema;
  • A autoridade está defasada: do instante que uma tese é concebida na mente do pesquisador, ela já começa a envelhecer. Há aquelas que envelhecem bem, no sentido que o cerne de seus princípios permanece válido, e outras muito mal, i.e., têm seu princípio fundamental demolido. Por exemplo, a tese de que a Septuaginta é uma tradução ruim do texto hebraico ruiu com publicação dos Manuscritos do Mar Morto, que revelaram ser ela uma janela para versões do texto hebraico hoje perdidas.
  • O viés da autoridade: como já disse alhures, viés é como sotaque, ou seja, se alguém não tem sotaque/viés é por que o sotaque/viés dele é igual ao teu. A questão é se autoridade consegue ir além de suas próprias crenças ante da evidência dos fatos.
  • A autoridade é corporativista: um certo conselho de classe de profissionais de saúde, ao estourar uma pandemia, mantém-se impassivo quanto ao membros seus que administram coquetéis de remédios de eficácia não comprovada contra o novo patógeno. Aliás, há décadas esse conselho chancela um tipo de tratamento baseado em ultradiluições de princípios ativos para além o limite de Avogadro, e que nunca tiveram desempenho melhor que placebos em teses controlados.

Vejamos, então, como o espiritismo kardecista fez (e vem fazendo) uso e abuso das autoridades constituídas e das que ele mesmo constituiu, empurrando goela abaixo de seus adeptos.

Meu Mentor é mais Forte que o Teu

-Eu sou o codificador da Terceira Revelação!
-Desculpe-me, “terceira o quê”?
-Terceira revelação!
-Quem te disse isso?
-O senhor mesmo, há quase 2.000 anos …
-Ha, ha, ha! Vai nessa!

A autoridade-mor à qual todos os espíritas ortodoxos recorrem tem nome e sobrenome: Hippolyte Léon Denizard Rivail ou, para os íntimos, Allan Kardec. Isso por si só já é um bocado problemático, pois o cânon kardecista não é um todo coerente, i.e., dá para usar Kardec contra Kardec (6). Fora as diferenças entre a primeira e a segunda Edição de O Livro dos Espíritos, é possível notar uma progressiva mudança ao longo dos anos 60 do século XIX:

  • Progressiva aceitação da teoria da evolução biológica;
  • Progressiva cristianização;
  • Progressiva centralização em torno de si mesmo.

Assim, ao se mencionar Kardec, há mister de avaliar em qual etapa se encontra seu pensamento. Para não dar uma de “la garantía soy yo!”, Kardec propôs se fiar no que viria a ser chamado de “Consenso Universal dos Espíritos” (ou Controle…). Em suas palavras:

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
ESE, Introdução (7).

Porém existem três sérios problemas com ele:

  1. Não é Consenso (ou controle): Dada as flagrantes contradições tanto dentro da trajetória da codificação como fora dela. Por exemplo, Kardec sempre teve como pedra no sapato a ausência do conceito de reencarnação no espiritualismo anglo-saxão, algo capaz de fazer desmoronar todo o sistema que criou(8). A catolização do espiritismo tupiniquim ao longo de século XX só fez complicar essa situação em outras direções (9);
  2. Não é Universal: Será que se a codificação tivesse sido compilada em Istambul (então ainda chamada Constantinopla) ou no Cairo não teríamos um “Corão segundo o Espiritismo“, que teria vindo como a “Quarta Revelação” a complementar os ensinamentos do Profeta? Em outras palavras, a codificação é europeia e cristã demais para ser considerada como “Universal”. Uma concordância entre culturas bem mais díspares afastaria o risco de médiuns estarem, na verdade, reproduzindo seus e conceitos e preconceitos. Por outro lado, a discordância aponta para essa direção;
  3. Nem dever ser de espíritos muitas das vezes: É difícil considerar São Luis e Erasto como sendo espíritos evoluídos quando falam coisas nada apropriadas dos negros africanos ou dos nativos americanos(10), estando mais para preconceitos bem terrenos vigentes na época. Flammarion, posteriormente, declararia que a Uranografia Geral, ditada pelo espírito de ninguém menos que Galileu Galilei, (A Gênese) como tendo sido um caso de animismo, em que colocara ideias próprias, ou melhor, do que acreditava na época (11).

Allan Kardec aparentava ter uma confiança excessiva de ser um missionário imbuído de uma missão dada pelo “Alto”:

Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da revelação divina, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje os homens estão aptos a compreendê-las. Participa da revelação científica, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas sim ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega, porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que o homem estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

A Gênese, cap. I, item 13. Grifos itálicos no original.

De fato, ele não procurou ostensivamente pelos fenômenos espirituais, sendo inicialmente um cético. Após abraçar a missão do “Espírito da Verdade”, o grosso da elaboração ficou a cargo … dele mesmo! Ou melhor, foi dele a versão do espiritismo da Sociedade Paris.Uma questão premente, antes de qualquer sistematização, era separar o “joio do trigo”, o que teria origem “divina” dos preconceitos terrenos. Nisso a força dos números revelou-se um tanto traiçoeira. Repare a força da evidência da reencarnação:

Não é aqui o lugar de explicar esses fatos; somente um estudo seguido e perseverante pode dá-los a compreender; nosso fim era somente refutar a ideia de que essa doutrina [da reencarnação] é a tradução do nosso pensamento. Temos, ainda, uma outra refutação a opor: é que não somente a nós ela foi ensinada; foi, também, ensinada em muitos outros lugares, na França e no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isso antes mesmo da publicação de O Livro dos Espíritos. Acrescentamos, ainda, que, desde que nos entregamos ao estudo do Espiritismo, obtivemos comunicações através de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos, de inteligência normal mais ou menos limitada, alguns até mesmo completamente analfabetos e, em consequência, absolutamente estranhos às matérias filosóficas; não obstante, em nenhum caso os Espíritos se desmentiram sobre essa questão. Dá-se o mesmo em todos os círculos que conhecemos, onde tal princípio é confessado. Bem sabemos que esse argumento não é irretorquível, razão por que não insistiremos mais a não ser pelo raciocínio.

RE, novembro, 1858, artigo “Pluralidade de existências corpóreas”

Ainda bem que no tema reencarnação ele não pegou médiuns de Inglaterra ou dos EUA. O número de 50 impressiona, mas é superado pelo de outro tema:

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos diferentes globos de nosso turbilhão planetário, só temos o ensino dos Espíritos; ora, para os que só admitem provas palpáveis é positivo que sua assertiva, a esse respeito, não tenha a certeza da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos, confiantes, as descrições que os viajantes nos fazem de países que jamais vimos? Se só devêssemos crer no que vemos, creríamos em pouca coisa. O que aqui dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos principais. Para nós, que temos testemunhado essas comunicações centenas de vezes, que as temos apreciado em seus mínimos detalhes, que lhes investigamos os pontos fracos e fortes, que observamos as similitudes e as contradições, nelas encontramos todos os caracteres da probabilidade; contudo, não as damos senão como inventário e a título de ensinamentos, de que cada um será livre para dar a importância que julgar conveniente.

RE, março 1858, “Júpiter e alguns outros Mundos”

Neste caso, “por centenas de vezes” comunicações foram feitas confirmando a presença de extraterrestres me nosso sistema solar. Pode ser a palavra “centenas” uma força de expressão apontando que haveria “perdido a conta”. Podemos dizer que, por volta da mesma época (ca. 1858), as pluralidades de existências corpóreas e de mundos habitados tinham uma quantidade de testemunhos mediúnicos similar. Após mais de 150 anos, o panorama é:

  • Extraterrestres: diversos exoplanetas (i.e., planetas fora de nosso sistema solar) têm sido descobertos, aumentando a chance de existir vida inteligente no Universo, além da Terra. Porém ninguém espera encontrar nada além de micróbios em nossos irmãos do sistema solar. Quem se dispuser a ler o artigo da RE de março/1858 vai descobrir que já havia descrença quanto a isso naquela época, à qual Kardec tenta contrapor com hipóteses ad hoc para salvar as aparências, como a possibilidade de uma rarefeita (e por isso indetectável) atmosfera lunar ou a presença de seres extremófilos em Saturno ou Mercúrio. A partir da segunda metade de século XX, as sondas espaciais vêm jogado baldes e mais baldes de água fria nessas pretensões. E ainda há espíritas que não largam esse osso;
  • Reencarnação: os trabalhos de Ian Stevenson foram sugestivos na existência desse fenômeno, porém estão longe de confirmar o que ela ocorra nos termos espíritas (universal e compulsória a todos o seres, iniciando a partir da concepção, sempre progressiva, karma, etc.).

Enfim, os resultados nulos no primeiro e ainda muito magros no segundo item.

Se quantidade não foi o bastante, a qualidade também deixou a desejar. A autoridade alegada da Revelação Espírita não se encontra apenas nos números, mas na autoridade ser guiada pelo “Espírito da Verdade”, o consolador prometido por Jesus em (um dos) seu(s) discursos de despedida no Evangelho de João:

Consolador prometido.

3. Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. — Porém, o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. (S. João, 14:15 a 17 e 26.)

4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas. Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores.

Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V.

(Em Construção)

Para saber mais

– Navega, Sergio; Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Publicações Intellwise, 1a. Ed, 2005 (pp.147-8).

– Salmon, Wesley C.; Lógica, Zahar Editores, 1963 (pp. 88 – 93).

Notas

(1) Não teria sido tão mais fácil, para os apologistas espíritas se, simplesmente, não existíssemos mais? Se Chico Xavier relatou que Emmanuel estava autorizado a desencarná-lo caso se recusasse a prosseguir psicografando livros para além da quantidade originalmente estipulada (uma atitude digna de mafioso), então nos mandar para o Umbral mais cedo seria fácil, não? Ou será que nossa missão na Terra é justamente ser “do contra”? Tenho uma opinião bem parcimoniosa sobre isso: somos uma “inevitabilidade prática”, i.e., enquanto as contradições do Espiritismo kardecista persistirem sem tratamento, cedo ou tarde algum adepto se dará conta delas, não ouvirá eco em seus questionamentos e pulará fora. Alguns fazendo estrondo. Tanto que vieram outros dissidentes ex-apologistas na esteira, como Vítor Moura – com uma ajudinha nossa – e Felipe Morel, este de forma totalmente independente.

(2) Com já disse em outras partes, há duas versões para o “discurso de despedida” de Jesus no Evangelho de João, que foram entremeadas na redação final. Em uma (Jo 13-14 e 18) a identificação do Paracleto com o Espíritos Santo ocorre (Jo 14:26) e na outra (caps. 15-17), não. Concordo que a forma apositiva como “Espírito Santo” aparece Jo 14:26 pode sugerir um enxerto, porém não encontramos um documento antigo de João em que ela não apareça. Se foi uma interpolação, ela pode ter ocorrido no próprio autógrafo do Evangelho ou na fonte dessa versão do discurso. Assim, novas descobertas no campo da paleografia do NT são necessárias para elucidar a questão. O que se pode dizer, com mais certeza, é que Jo 14:26 é uma “pedra no sapato” dos espíritas que advogam Jesus ser o Espírito da Verdade, o Paracleto prometido. O que os espíritas não se mancam é que, embora as falas do Evangelho de João sejam atribuídas a Jesus, a maioria delas não são consideradas pelos pesquisadores como originárias de seus lábios. Inclusive os longos discursos de despedida (e outros) desse evangelho que, ao contrário das parábolas e aforismos dos seus irmãos sinópticos, dificilmente seriam memorizáveis de cor pelos primeiríssimos cristãos, majoritariamente analfabetos. Pois é, muito arranca-rabo já ocorreu internamente por coisas que sequer uma “fé racionada” deveria considerar como verídicas.

(3) Uma coisa que este portal também oferece são as diversas camadas de “correções” feitas por mãos posteriores. Isso ocorreu com o Códice Sinaítico nesta passagem. Mas calma: em todas as camadas, το πνευμα το αγιον pode ser encontrado.

(4) Poderia citar os dois dicionários (um grego/francês e outro sânscrito/inglês) utilizados por Carlos Torres Pastorino e mencionados no artigo anterior. Menciono, também, o magistral Documenta Catholica Omnia, que tanto usei em minhas análises sobre Orígenes.

(5) A Revista Veja, editora Abril, lançou em 9 de outubro de 1991 a edição 1.203, intitulada “O Planeta Resiste – A ciência derruba o mito da catástrofe ecológica inevitável”. Um show de ecoceticismo e um dos maiores desserviços feitos pelo jornalismo brasileiro à Ciência. Excetuando o buraco na camada de ozônio – que foi considerado um problema real – o resto foi um vexame atrás do outro. A extinção das espécies seria um “mal reparável”, pois a evolução se encarregaria de criar nova. Ok, pena que isso leva milhões de anos. Aquecimento global? Teria mais a ver com as explosões solares que pela ação humana. Aliás, a natureza seria muito mais poluidora que nós.
Justiça seja feita, outras edições mais responsáveis vieram depois – como a nº 1.696- “A Vingança Da Natureza” -, porém muito estrago já havia sido feito.

(6) A briga entre os adeptos da identificação do Espírito da Verdade como Jesus e os que combatem essa tese que o diga.

(7) Cf. “Controle Universal dos Espíritos”, RE, abril 1861

Em Profissão de fé espírita americana (RE, abril de 1869), Kardec faz um paralelo entre os artigos da profissão de dos espíritas norte-americanos e pontos que ele já havia levantado em seus próprios trabalhos. Até aí, tudo bem. O problema maior surge na seguinte observação que faz, mais perto do final do artigo:

Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas em mundos mais ou menos avançados; a única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências sobre a Terra até que o Espírito tenha adquirido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporte este globo, depois do que ele o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. De acordo sobre a ideia principal eles não diferem, pois, senão sobre um dos modos de aplicação. É que isso pode ser lá uma causa de antagonismo entre pessoas que perseguem um grande objetivo humanitário?

Em instante algum da profissão de fé americana isso pode ser inferido. O Codificador viu o que queria ver em prol de um suposto “consenso” entre amplos os lados do Atlântico.

(9)Em ESE, capítulo XXII, Allan Kardec tratou da questão do divórcio. Transcrevo integralmente suas palavras:

O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, está separado. Não é contrário à Lei de Deus, pois que apenas reforma o que os homens hão feito e só é aplicável nos casos em que não se levou em conta a Lei divina. Se fosse contrário a essa lei, a própria Igreja seria obrigada a considerar prevaricadores aqueles de seus chefes que, por autoridade própria e em nome da religião, hão imposto o divórcio em mais de uma ocasião. E dupla seria aí a prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses materiais, e não a satisfação da lei de amor.

Nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do casamento. Não disse Ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés, não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia tornar-se necessária. Acrescenta, porém: “no princípio, não foi assim”, isto é, na origem da Humanidade, quando os homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho e viviam segundo a Lei de Deus, as uniões, derivando da simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.

Vai mais longe: especifica o caso em que pode dar-se o repúdio, o de adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade que Ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas cumpre se tenham em vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.

Palavras razoáveis, não? Por outro lado, um padre e muitos pastores hodiernos sentiriam calafrios com essa leitura. Com certeza foi um episódios em que Kardec se mostrou à frente do tempo. Contudo, entretanto, todavia, no século XX, no “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, desenvolveu-se a ideia de que os cônjuges de casamentos estão em resgate de outras vidas … e um divórcio apenas atrasa a “quitação das dívidas”, levando a novo matrimônio na vida seguinte. O escritor espírita Richard Simonetti, em Atravessando a Rua, conto 39 (“Compromisso não cumprido”), narra uma desventura de Dona Flausina que – apesar de ter sido exemplar mãe, profissional e trabalhadora da seara espírita – não conseguira se acertar com seu problemático marido em vida, tendo apenas o “suportado” em vez de se “harmonizar” com ele realmente. Afinal, muitos desajustes dele na última vida seriam reflexo de influências dela em anteriores.

Na conclusão do autor:

No entanto, aqueles que atravessam o casamento a “ranger de dentes”, como se submetidos a intolerável prisão, forçosamente reencontrarão o cônjuge em novas experiências matrimoniais, presos um ao outro por algemas de ressentimentos, mágoa, avessão…

Somente quando formados por flores de amizade os elos do casamento, desfrutarão os cônjuges a liberdade de decidir se seguirão juntos nos caminhos do porvir.

Espero que exista uma terceira opção para vítimas de feminicídio…

Enquanto as outras duas grandes religiões abraamicas têm o divórcio aceito e codificado (ainda que com viés machista), o cristianismo e seus derivados (o espiritismo “chiquista” entre entre eles) o têm entalado na garganta. É como se o antigo “que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19:6-9) não admitisse a exegese “o que Deus realmente uniu, ninguém é capaz de separar“. Em meus tempos de mocidade espírita, quando estudamos “Atravessando a Rua” em nossa programação de férias, discutimos e achamos válido o divórcio em caso de violência doméstica. Hoje, com bem mais vivência, constato que, se uma relação já se deteriorou a esse ponto, pode ser tarde demais para um término indolor.

A ideia de que todo o casamento é a continuação de uma relação passada (seja harmoniosa ou cármica) esbarra em um problema: como conheceremos (e nos uniremos) gente nova?. Se, porventura, um “relacionamento inédito” se tornar “turbulento”, não seria mais razoável o divórcio enquanto os cônjuges ainda possuem um mínimo de respeito um pelo outro?

Ademais, em outro livro – “Encontros e Desencontros”, cap. XXVIII, “Aprendendo com os Próprios Erros” -, Simonetti narra a aflição de um pai, já no mundo espiritual, ao saber que sua filha casou às pressas com um homem que não estava no “planejamento” original em razão de uma gravidez inesperada. Como, então, nós do lado de cá saberemos se uma união vigente foi planejada ou não? Por que uma comunicação mediúnica assim o disse? Por temer o famoso “vai quê”?

(10) Vide RE, agosto de 1864, artigo Destruição dos aborígenes do México para as falas dúbias de Erasto e a edição de junho de 1859, artigo O Negro Pai César é feita a evocação de um recém-falecido ex-escravo norte-americano (i.e., desencarnou já como liberto), traficado do continente africano aos quinze anos. Conforme a segue a inquirição prossegue, somos informados que ele fora branco em encarnações prévias, deixara de ser negro ao desencarnar, e tinha um “autopreconceito” com sua última encarnação:

8. Considerais a brancura como uma superioridade?
Resp. – Sim, visto ter sido desprezado como negro.

9. [A São Luís.] – A raça negra é de fato uma raça inferior?
Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa.

Racismos à parte, essa previsão está simplesmente errada, pois, no instante em que redijo e mais de 160 anos após a resposta acima, a África subsaariana está em franca expansão demográfica. Sem contar os membros da “diáspora negra” pelo mundo.

(11) Ver Forças Psíquicas Misteriosas, cap. II.

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