Irineu de Lião

Irineu de Lião (130-202) redigiu em sua obra Adversus haeresis (Contra as heresias) violentas críticas a diversas seitas cristãs de sua época, especialmente aos gnósticos, que se opunham à hierarquização. Até a redescoberta de parte da literatura gnóstica, sua obra foi uma das principais fontes de informações sobre estas seitas. No cap. XXXIII do segundo tomo do livro, dirigiu-se à filosofia platônica:

Podemos solapar sua doutrina da transmigração de um corpo para outro corpo por este fato: as almas não lembram nada de qualquer dos eventos que ocorreram em seus estados anteriores de existência. Se tivessem sido elas originadas com esta característica, que elas devem ter experiência com todo tipo de ação, devem ter retido alguma lembrança das coisas que teriam previamente efetuado, que podem ser preencher o que ainda lhe fosse deficiente; e não por ficarem vagueando, sem interrupção, pelas mesmas buscas, despendendo seu trabalho desgraçadamente em vão.

(…)Com referência a estas objeções, Platão (…) não tentou nenhum tipo de de prova, mas simplesmente respondeu dogmaticamente que, quando as almas entram nesta vida, elas são induzidas a beber do esquecimento pelo (*) demônio que vigia sua entrada, antes que efetivamente entrem nos corpos. Escapou-lhe que ele caiu em outra e maior complicação. Se a taça do esquecimento, após ter sido ingerida, pode apagar a memória de todas as obras que foram feitas, como, ó Platão, tomaste conhecimento desta fato(…)?

(*)no sentido de “gênio”, não se necessariamente de um ser maléfico.

Reencarnação X Ressurreição

Ressurreição da Carne

Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. (I Cor 15:52)”

Luca Signorelli: A Ressurreição da Carne

    Índice

    Se a reencarnação realmente estivesse contida na Bíblia, tão importante ponto referente ao destino deveria estar escrito de maneira bem explícita. Autores espíritas, possivelmente querendo tornar sua doutrina mais palatável com a ortodoxia cristã, começaram um esforço violento para extrair supostos versículos que confirmassem a presença deste antigo ensino. O Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE), já alega arbitrariamente que a ressurreição é a reencarnação entendida pelos judeus do séc. I. Como eles não criam em novo nascimento, acreditavam que no retorno ao mesmo corpo. Segundo Kardec o certo seria crer em reencarnação, visto ser impossível reagrupar nossos átomos após o corpo se decompor. Isto é muito questionável, pois não interessa se algo é possível ou não, mas se teve algum significado para o povo do século I. Pelo menos, o próprio “mestre lionês” teve a prudência de reconhecer que o credo corrente na época pregava a ressurreição. Vejamos, então, o que realmente os judeus do século I entendiam como ressurreição e verificar se corrobora o preconizado por Kardec.

    1 – Antigas Visões Judaicas do Pós-Morte

    Túmulos judaicos

    Ao longo dos livros do Antigo Testamento, pode-se notar uma evolução uma progressiva evolução de pensamento sobre o que acontece após a morte:

    1. Aniquilação;
    2. Existência desencorpada;
    3. Não morrer.
    4. Restauração corporal.

    1.1 Aniquilação

    A primeira a ser encontrada na Bíblia e se resume a sentença de Iahweh sobre Adão (Gn 3:19): “Com o suor de teu rosto comerá teu pão até que retornes ao solo. Pois tu és pó e ao pó retornarás“. Dessa forma, a morte é o fim inexorável de nossa existência, a ser retardado o mais possível. As bênçãos que uma pessoa poderia esperar seriam uma vida longa, feliz, ter muitos filhos e ser enterrado junto aos ancestrais. A “imortalidade” existiria através da descendência e daí um grande temor de que punições recaíssem sobre ela (1). No mundo pagão, essa (des)crença se expressava em inscrições lapidares como RIP – Resquiat in Pace (Descanse em paz) ou NFFNSNC – Non fui, fui, non sum, non curo (Não existia, existi, não existo, não me importo). Como paralelo moderno, esse seria o destino imediato de todo ser humano, segundo as Testemunhas de Jeová, e o destino final da maior da humanidade não salva.

    1.2 Existência de desencorpada

    As almas não seriam imateriais, mas formadas de alguma substância sutil que sobreviveria, de certa maneira, em um lugar chamado Xeol (pronuncia-se Sheol). Ao menos nos livros que lhe fazem menção, o Xeol estava longe de ser um prolongamento desta vida, mas a contemplação de um eterno vazio, não muito diferente do Hades dos pagãos:

    Lembra-te que minha vida é um sopro, e que meus olhos não voltarão a ver a felicidade. Os olhos de quem me via não mais me verão, teus olhos pousarão sobre mim e não mais existirei. Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim que desce ao Xeol não subirá jamais.

    Jó: 7-10

    Volta-te, Iahweh! Liberta-me! Salva-me por teu amor! Pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te louvaria no Xeol?

    Salmos 6:5-6

    Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais que um leão morto. Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, por que sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo que se faz debaixo do Sol.

    Eclesiastes 9:4-6

    Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica, pois já não esperam em tua felicidade aqueles que descem à cova. Os vivos, só os vivos é que te louvam, como estou fazendo hoje.

    Isaías 38:18-19

    Não te prives da felicidade presente, não deixes escapar nada de um legítimo desejo. Não deixarás a outro os teus recursos, e o fruto de teu trabalho à decisão da sorte? Dá e recebe, faze divagar a tua alma, pois não há no Xeol quem procure algum prazer. Como uma roupa, toda carne vai envelhecendo, porque a morte é lei eterna. Como as folhas numa árvore frondosa tanto caem como brotam, assim a geração de carne e sangue: esta morre, aquela nasce.

    Eclesiástico 14:14-20

    As expectativas de longo prazo dos vivos não seriam muito diferentes do caso anterior.
    Um paralelo moderno aparece no terceiro volume da série Fronteiras do Universo (no original, His Dark Materials), do escritor Philip Pullman, em que o “Mundo dos Mortos” é apresentado como um lugar sombrio, acinzentado, onde as almas são impostas a uma espécie de tédio sem fim, ao ponto de acabarem esquecendo, com os séculos, seus próprios nomes.

    1.3 Não Morrer – Vivendo no Céu

    Três grandes figuras da mitologia judaicas se constituem exceção à regra:

    • Enoque: Brevemente citado em Gn 5:18-24 como um justo ancestral de Noé, que “andou com Deus”, viveu 365 anos e então desapareceu, “pois Deus o arrebatou”. Aparentemente, livro Gêneses foi extremamente sucinto ao falar de uma personagem que teve vida bem mais ampla no imaginário judaico e se tornou título de três livros:

      • I Enoque: Na verdade, uma compilação de cinco livros redigidos entre III e I a.C., que tratam desde a queda de um grupo de anjos conhecido como Vigilantes até a consumação dos tempos, além das jornadas de Enoque ao Xeol e aos céus.
      • II Enoque ou Livro dos Segredos de Enoque: Apesar do nome, não é continuação do anterior, tendo sido redigido no I século de nossa era e narra a viagem de Enoque aos dez céus, ao Xeol e as coisas que aprendeu sobre a origem do mundo, a queda dos anjos e destino dos justos e iníquos. Enoque volta à Terra, fala aos seus sobre o que viu, de como deveriam se portar para agradar a Deus e redige 366 livros. É arrebatado de novo e definitivamente por Deus. Alguns manuscritos possuem um adendo sobre a origem de outro imortal: Melquisedeque.
      • III Enoque: Também sem relação com seus antecessores e datado no século V de nossa era. Nele o arcanjo Metatron é apresentado como tendo sido originariamente Enoque.
    • Melquisedeque: Figura enigmática da mitologia judaica, Melquisedeque (“Meu rei é justiça”) é apresentado e Gn 14:17-20, como o rei-sacerdote da cidade de Salém, a quem o patriarca Abraão deu um décimo de um butim de guerra. E só. Fora da Bíblia, porém, Melquisedeque parece ter tido várias faces. Um dos seus reaparecimentos foi nos Manuscritos do Mar Morto, mais especificamente em 11QMelch (ou 11Q13), onde ele é retratado como um grande juiz escatológico celestial, sugerindo uma metamorfose parecida com a que viria ter Enoque/Metatron. Um dos mais elucidativos retratos de seus foi registrado em algumas versões de II Enoque. Nele, informa-se que Melquisedeque teve um nascimento de circunstâncias miraculosas e já veio ao mundo grande o bastante para ficar em pé e pregar. Essa criança foi arrebatada antes do dilúvio e, após as águas baixarem, um novo Melquisedeque apareceu, sem grandes explicações. A partir dele, viria uma sequência de sacerdotes com esse título e último deles seria um juiz escatológico. Talvez a menção ao “sacerdócio eterno de Melquisedeque” na Epístola aos Hebreus não seja mera coincidência.
    • Elias: Profeta que teria sido arrebatado por uma carruagem de fogo (II Reis 2:11). Segundo Malaquias (Ml 3,1) e (Ml 3,22-24 ou 4,4-6), retornará como precursor do Messias.

    Um problema surge ao se tratar com os “arrebatados”: o corpo humano está sujeito ao desgaste e à deterioração. Como, então, poderiam eles permanecer indefinidamente no Céu? Uma conjectura já foi dada acima, pela transformação de Enoque e Melquisedeque (o de Qumran) em seres celestiais. Há também o caso do pseudepígrafo judaico-cristão “Ascensão de Isaías” (séc. I ou II), em que é relatada uma jornada desse profeta pelas várias regiões celestiais. Essa viagem não se enquadra bem como um caso de “arrebatamento” porque se tratou de uma visão: Isaías não esteve lá em corpo físico. Mesmo nessa “visão”, ele precisou colocar uma veste a partir do sétimo Céu para poder prosseguir e ela o deixou similar aos anjos. Já no sétimo Céu, ele encontrou … Enoque, que trajava o mesmo tipo de veste! Não é impossível que seu autor tenha se inspirado em um trecho de I Enoque (62:10), onde se lê de forma poética:

    Serão [os justos] recobertos com as vestes da glória, que são as vestes da Vida do Senhor dos Espíritos. Vossas vestes não envelhecerão e vossa glória não passará na presença do Senhor dos Espíritos.

    Seja por uma mudança em sua natureza intrínseca ou por um influxo externo de poder, a transformação de um corpo mortal em outro celestial foi melhor explorada em outros exemplares da literatura intertestamentária que se encarregaram de democratizar a imortalidade de uns poucos.

    1.4 Restauração corporal

    No judaísmo posterior ao exílio, talvez por influência persa e pela constatação de que muitos justos sofrem e maus prosperam nesta vida, começam a se desenvolver ideias a respeito da ressurreição dos mortos, i.e., a reunião da alma dos falecidos com corpo a ocorrer durante a concretização das profecias apocalípticas. Seria o tempo de as injustiças serem reparadas:

    Como mulher grávida, ao aproximar-se a hora do parto, se contorce e, nas suas dores, dá gritos, assim nos encontrávamos nós na tua presença, ó Iahweh: Concebemos e tivemos as dores do parto, mas quando demos à luz, eis que era vento: não asseguramos a salvação da terra; não nasceram novos habitantes para o mundo. Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque o teu orvalho será um orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras.

    Isaías 26:17-19

    Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto aos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justificar hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade. Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

    Daniel 12:1-4

    Neste caso, o Xeol passaria a ser um estágio intermediário enquanto os mortos esperam o fim da realidade tal como conhecemos, que cederá lugar ao “Mundo Vindouro”, quando a opressão sobre os judeus terminará, o Mal será punido e os justos recompensados.

    No deuterocanônico II Macabeus, torna-se mais explícita a crença em uma restauração corporal. Era uma forma de honrar aqueles que morreram por sua fé na luta contra o domínio da dinastia helênica dos Selêucidas na Palestina.

    Passado também este à outra vida, passaram a torturar da mesma forma ao quarto, desfigurando-o. Estando ele próximo a morrer, assim falou: “É desejável passar à outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser ressuscitado por Ele. Mas para ti, ao contrário, não haverá ressurreição para a vida!”

    II Mc 7:13-4

    Depois, tendo organizado uma coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse o sacrifício pelo pecado: agiu absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso seu modo de pensar (5).

    II Mc 12:43-5

    Repare a semelhança entre II Mc 7:14 e o registro feito por Flávio Josefo (6) sobre a crença da facção dos fariseus:

    Eles também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de revivificar-se e viver novamente (…)

    Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. I

    Uma forma curiosa de ressurreição apenas para os bons. Contudo, a independência de Israel durou pouco e os romanos tomaram o lugar dos Selêucidas. Uma nova literatura apocalíptica floresceu em torno da imagem desse novo agressor.

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    2 – II Baruque: um Apocalipse Judaico por Excelência

    Quadro da destruição do Templo

    A Destruição do Templo em Jerusalém, por Francesco Hayez (1867).

    Apesar de todas as previsões da escatologia judaica quanto à vinda do Messias e advento do Reino de Deus, algo saiu errado. Em 70 d.C., uma revolta judaica foi esmagada pelas tropas do general Tito, a população de Jerusalém foi chacinada, a cidade reduzida a escombros e tesouro do Templo saqueado. Os “kittim” [grego-romanos] venceram e o processo de diáspora se acelerou. Com o mundo em que Jesus viveu se extinguindo e um judaísmo estupefato com a tragédia, os sobreviventes precisavam de uma explicação para o ocorrido.

    Uma das respostas veio em Apocalipse de Baruque (ou II Baruque), datada no final do século I e começo do II. Nele (2) são narrados diálogos de Baruque (ou Baruch, Baruc), contemporâneo da tomada de Jerusalém pelos babilônicos ocorrida em 587 a.C., a lamentar com o próprio Criador e vozes celestes a sorte de Sião, sua pátria, e indagar-lhes o porquê da calamidade. É nítida a intenção do desconhecido autor do livro de comparar destruição que presenciou com aquela ocorrida séculos antes, além de levantar o moral de seu povo ao afirmar que tudo isso já estava previsto e dias melhores viriam com a chegada do Messias (“Ungido”) aos que persistissem na Lei. Eis alguns trechos elucidativos:

    IV – Nova Jerusalém

    Falou-me então o Senhor: “Sim, esta cidade [Jerusalém] será abandonada por algum tempo, e temporariamente será castigado o seu povo; contudo, o mundo não terminará. Pensas tu por acaso que é esta a cidade da qual eu falei: ‘Trago-te inscrita nas minhas mãos’?, não, esta vossa cidade, com as suas edificações, não é a cidade futura que eu anunciei, já anteriormente preparada, desde o tempo em que decidi criar o Paraíso. Eu mostrei-a a Adão antes da queda em pecado; ela foi-lhe tirada juntamente com o Paraíso, depois que ele se rebelou contra a proibição.

    “Mostrei-a também ao meu servo Abraão, naquela noite, entre as oferendas partidas ao meio. Mostrei-a a Moisés sobre o monte Sinai, onde lhe expliquei a imagem do tabernáculo e todos os seus utensílios. Assim, ela continuará preparada na minha mente, juntamente com o Paraíso. Vai, pois, e faz o que eu te ordeno!”

    XXIX – O Messias

    Ele falou-me: “O que vai acontecer atingirá toda a terra; dessa forma, experimentá-lo-ão todos os que estiverem em vida. Mas naquele tempo eu protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste país [Sião]. Uma vez cumprido aquilo que deve acontecer nos períodos do tempo, o Messias começará a sua revelação. Também Behemoth virá dos seus domínios, e Leviatã se levantará do mar; os dois imensos monstros marinhos por mim criados no quinto dia da Criação, e que reservo para aqueles dias; eles servirão de alimento para todos os que sobreviverem.

    “Então a terra produzirá os seus frutos ao cêntuplo; numa cepa de videira haverá mil ramos, um ramo carregará mil racimos, e um racimo mil bagos, e um bago data até quarenta litros de vinho (3). Os que sofreram fome comerão regiamente, e a cada dia lhes estão reservadas novas maravilhas (4).

    “Pois de mim procederão ventos que trarão todas as manhãs o perfume de frutos saborosos, e farão gotejar ao final do dia o orvalho salvífico. Do alto cairá de novo grande quantidade de maná; dele comerão eles naqueles anos, por haverem participado do final dos tempos”.

    XXXII – Reconstrução de Sião

    “Mas preparai os vossos corações e semeai neles os frutos da Lei, para estardes protegidos no tempo em que o Todo-Poderoso haverá de abalar toda a Criação. Pois as edificações de Sião dentro de pouco tempo serão aniquiladas, mas logo em seguida reconstruídas.

    “Todavia, essa reconstrução não durará muito; após algum tempo, Sião será arrasada uma vez mais e permanecerá em destroços por um período. Depois será renovada em todo o esplendor, e, uma vez plenamente reconstruída, permanecerá para todo o sempre.

    “Não devemos perturbar-vos excessivamente com a desgraça que aconteceu, mas muito mais com aquilo que ainda há de vir. Pois, maior ainda do que ambas essas calamidades será o embate em que o Todo-Poderoso renovará a sua Criação. Agora, porém, não te preocupeis mais por alguns dias! Não vos preocupeis comigo, até que eu volte para junto de vós!”

    Após essas palavras, eu, Baruch, segui meu caminho. Mas quando o povo percebeu que eu desejava afastar-me, levantou a voz em lamentos, clamando: “Aonde vais tu? Por que, Baruch, nos abandona, como um pai que vai embora e deixa os filhos na orfandade? (…)”

    Fonte [Tricca, p. 304,316-8]

    A glória que viria após a vitória final do Bem não seria vivenciada apenas pelos que houvessem nascido um pouco antes, mas também pelos morto, que seriam restaurados. Uma inovação que II Baruque traz é que os maus também ressuscitariam para o castigo. Ele assim relata:

    “Terminado o tempo vigente do Messias, Ele voltará de novo à glória do céu. Então haverão de ressuscitar todos aqueles que outrora adormeceram na esperança. Naquele tempo acontecerá que se abrirão as câmaras onde se demoram as almas dos piedosos; elas sairão, e todas essas numerosas almas, como uma legião de um só coração, apareceram todas juntas, abertamente. As que foram as primeiras, alegrar-se-ão; as que foram as últimas, não estarão tristes.

    “Cada uma delas sabe que foi chegado o tempo, previsto como o fim de todos os tempos. As almas dos pecadores perder-se-ão em angústia, ao presenciarem tudo isso. Pois elas já sabem que o tormento as atingirá, e que a hora da sua condenação é chegada.”

    Cap. XXX. Fonte: [Tricca, p. 317]

    O mesmo livro vai além e descreve o próprio processo de ressurreição:

    Mas além disso, eu te pergunto, ó Poderoso; e pedirei graça dele que criou todas as coisas. Em qual forma irão os viventes viver em seu dia? Ou como permanecerá o esplendor que haverá depois dele? Irão eles, talvez, retomar esta presente forma e adquirirão membros acorrentados que são malignos e pelos quais males são feitos? Ou irás mudar essas coisas que têm estado no mundo, bem como o próprio mundo?

    E ele respondeu e me disse: “Ouça, Baruch, estas palavra e registre na memória de seu coração tudo o que aprenderá. Pois a terra seguramente devolverá os mortos naquele tempo; ela os recebe agora a fim de preservá-los, sem mudar nada em sua forma. Mas assim como ela os tem recebido, então ela os devolverá. E como eu os tenho enviado para ela, então ela os erguerá. Pois aí será necessário mostrar aos que vivem que os mortos estão vivendo novamente e que voltaram os que partiram. E será então quando tiverem reconhecido uns aos outros aqueles que se conhecem neste momento, então meu julgamento será forte e aquelas coisas que foram ditas antes serão cumpridas.“

    E será então após esse dia que ele indicou ter acabado é que tanto a forma daqueles que se descobriram culpados quanto a glória dos que se demonstraram justos serão mudadas. “Pois a forma dos que agora agem iniquamente será feita mais maligna que é (agora) de modo que sofram tormento. Também, como a glória dos que demonstraram serem justos em nome de minha lei, os que possuíram inteligência em sua vida e os que plantaram a raiz da sabedoria em seu coração – seu esplendor será então glorificado por transformações e a forma de sua face será convertida na luz de sua beleza de modo que possam adquirir e receber um mundo imperecível que está prometido a eles. Portanto, especialmente eles que então virão a ficar tristes, porque desprezaram minha Lei e taparam seus ouvidos a fim de que não ouvissem sabedoria e recebessem inteligência. Quando, portanto, virem que os que estão acima deles, que são agora exaltados, serão então ainda mais exaltados e glorificados que eles, então tanto estes e aqueles serão mudados, estes no esplendor dos anjos e aqueles em aspectos chocantes e formas horríveis; e arrasar-se-ão ainda mais. Pois primeiro verão e, então, partirão para o tormento. (…)” (7)

    Cap 49-51. Fonte: [Charlesworth, p. 637-8] (8)

    Desse apocalipse judaico, fica claro um paralelo com a defesa de Paulo da ressurreição mortos através de transformação de um corpo material em espiritual (I Cor 15), que será vista a seguir.
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    3 – Paulo: um Apocalipsista Cristão

    Ícone de Paulo de Tarso

    Em sua primeira carta aos coríntios, Paulo trata de diversos problemas enfrentados por uma das assembleias que fundou. No capítulo XV, ele trata particularmente de uma questão doutrinária que surgira entre eles:

    Ora, se prega que Cristo ressuscitou dos mortos como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou, se é que mortos ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens.
    (1 Co 15.14-20).

    Ao que aparenta, alguns membros daquela igreja estavam descrentes da ressurreição dos mortos. Paulo, então, não tenta convencê-los disso, mas lembrá-los de algo que eles já aceitam: a ressurreição do próprio Jesus como exemplo dessa possibilidade.

    Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato! O que semeias não readquire vida a não ser que morra. E se o que semeias não é o corpo da futura planta que deve nascer, mais um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio.

    Nenhuma carne é igual às outras, mas uma é a carne dos homens, outra a carne dos quadrúpedes, outra a dos pássaros, outra a dos peixes. Há corpos celestes e corpos terrestres. São, porém, diversos o brilhos dos celestes e o brilho dos terrestres. Um é o brilho do Sol, outro o brilho da Lua,e outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferenças de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual.

    Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu. Qual foi o homem terrestre, tais são os homens celestes. E assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim traremos a imagem do homem celeste.

    (I Co.15:35-49)

    Tomando Jesus como modelo (o “segundo homem”), a ressurreição para Paulo não consiste numa existência etérea, quase desencorpada, mas na transformação do corpo carnal em outro melhor, celestial. A afirmação mais contundente de Paulo, porém, foi deixada bem para o fim:

    Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.

    I Cor 15:50-5

    Portanto, o apóstolo dos gentios cria que essa ressurreição seria um evento iminente, que se daria até mesmo para alguns de seus conhecidos que ainda estivessem vivos e consistiria, tal como em II Baruque ou I Enoque, não no descarte do corpo físico, mas em sua modificação. Ela seria não um evento rotineiro como a reencarnação espírita (ressurreição material, segundo eles) ou o desencarne (ressurreição espiritual), mas um episódio ímpar destinado a se concretizar apenas no fim dos tempos, do mundo tal como o conhecemos (cf. I Cor 15:20-28).

    Ou seja, a ressurreição é ponto fundamental do cristianismo e se dará num corpo análogo ao de Cristo ressuscitado. Em A Gênese, cap XV, 65, Kardec dá a ideia de que Jesus teria dois corpos: o carnal e o fluídico. O primeiro foi sepultado e o segundo foi o que teria aparecido para os apóstolos. Não era essa a crença contida contida em I Coríntios ou II Baruque. A ressurreição, segundo esses autores antigos, não deixaria restos. Em vez disso, esses restos seriam matéria-prima para algo novo
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    4 – Outras Visões da Ressurreição

    Fênix renascida.

    Vale lembrar que opiniões sobre a ressurreição expostas acima são de judeus que criam nela, como Paulo e o anônimo autor de II Baruque. A seita judaica dos saduceus (9) não acreditava nela e os essênios, aparentemente, criam numa imortalidade meramente espiritual. A literatura patrística registrou variantes da opinião paulina:

    – Clemente I (30 -100): bispo de Roma (na época não existia a denominação Papa) e possivelmente companheiro de Paulo em Filipos, comparou a ressurreição à lenda da Fênix, em sua carta aos coríntios, cap XXV – A Fênix, um emblema de nossa ressurreição:

    Vamos considerar este maravilhoso sinal [de ressurreição] que acontece nas terras orientais, isto é, na Arábia e países adjacentes. Há certo pássaro que é chamado Fênix. Este é o único de sua espécie e vive quinhentos anos. E quando o tempo de sua dissolução mostra que sua morte está próxima, constrói por si só um ninho de olíbano, mirra e outras especiarias, no qual, quando é chegada a hora, entra e morre. Mas a medida que a carne se decompõe, um certo tipo de verme é produzido, que sendo alimentado pelos fluidos do pássaros morto, produz penas. Então, quando adquire força, ergue o ninho em que estão os ossos de seu pai e, carregando-os, vai da Arábia para o Egito, para a cidade chamada Heliópolis. E, num dia de céu limpo, voando à vista de todos os homens, deposita-os sobre o altar do sol, e feito isto, apressa-se em voltar à antiga residência. Os sacerdotes, então, inspecionam o registro das datas e descobrem que ele retornou exatamente ao quingentésimo ano ser completado.

    – Justino Mártir (100-165): acreditava na ressurreição da carne, pois tinha uma visão tríplice do ser humano: corpo, alma e espírito. Em seu tratado sobre a ressurreição (*), cap. X:

    A ressurreição é uma ressurreição da carne que morreu. Visto que o espírito não morre, a alma está no corpo, e sem uma alma ele não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, perece. Visto que o corpo é a casa da alma e a alma é a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que nutrem uma fé sincera e inquestionável em Deus, serão salvos. Considerando, portanto, mesmo tais argumentos como são adequados a este mundo e descobrindo que, mesmo com tais argumentos, não é impossível que a carne seja regenerada; e vendo que, além de todas estas provas, o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que não deixamos de aturar esses céticos e perigosos argumentos e falhamos em ver que retrocedemos quando escutamos tais argumentos como se fossem: a alma é imortal, mas o corpo é mortal e incapaz de ser redivivo?

    (*) Só restam fragmentos deste tratado. Não há certeza absoluta que são de sua autoria, mas há forte possibilidade de que sejam.

    – Irineu de Lião (120? – 200?): segue a interpretação paulina de um corpo carnal incorrupto em seu “Contra as heresias”, livro V, cap VII:

    Da mesma maneira que Cristo se ergue na substância da carne e assinalou para Seus discípulos a marcas dos cravos a abertura em seu lado [Jo 20:20,25] (agora estes são símbolos da carne que ascendeu dos mortos), então “Ele também irá”, diz [I Co 6:14], “nos ressuscitar pelo seu próprio poder”. E mais uma vez diz aos romanos [Rom 8:11], “e se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também aos vossos corpos mortais”. Então o que são corpos mortais? Seriam eles almas? Não, visto que almas são incorpóreas quando postas em “comparação com corpos mortais; pois Deus soprou na face do homem o sopro da vida e o homem se tornou alma vivente”. Agora o sopro da vida é algo incorpóreo. E certamente eles não podem manter aquele mesmo sopro da vida que é mortal. (… ) Nos devemos assim concluir que isto é em referência a carne cuja morte é mencionada; que, depois da partida da alma, torna-se parada e inanimada e se decompõe gradualmente na terra de onde foi tirada. Isto, então, é o que é mortal. E é disto que ele também fala, “Ele dará vida a seus corpos mortais”. E assim em referência a isto ele diz na primeira [epístola] aos coríntios: “O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, ressuscita incorruptível.” Visto que declara,”O que semeias não readquire vida até que morra.”

    – Orígenes ( 182? – 254?): É um dos mais controversos teólogos pré-nicenos, utilizado, equivocadamente, por grupos esotéricos e espiritualistas para reforçar suas teses. No “Analisando as Traduções Bíblicas”, cap. XVI, de Severino C. da Silva, 4ª ed., Idéia; aparece a seguinte alusão a Orígenes:

    O teólogo cristão primitivo, Orígenes de Alexandria, sugere uma versão diferente. Ele defendia que haveria duas ressurreições, uma no final dos tempos e outra “do espírito, da vontade e da fé”, que poderia ocorrer durante a vida. Este conceito apresenta a ressurreição como sinônimo de Reencarnação. Orígenes também achava que o corpo da ressurreição era um corpo espiritual que não tinha nenhuma relação com o corpo mortal.

    Severino C. da Silva dá como embasamento desta opinião a obra “Reencarnação: O Elo perdido do Cristianismo“, de Elizabeth Clare Prophet; portanto não se baseou no original de Orígenes. Sugiro uma leitura na categoria Patrística para saber a verdadeira opinião de Orígenes quanto a “transmigração de almas”. Por hora, deixemos o próprio Orígenes contar suas ideias quanto à ressurreição: na obra De Principiis, livro II, cap X; ele também disserta sobre o enfoque de Paulo:

    O que então? Se é certo que devemos fazer uso de corpos, e se os corpos caídos são declarados ter de erguer-se novamente (pois apenas o que caiu antes pode ter a adequada capacidade de se reerguer), não pode ser matéria de dúvida a ninguém que eles se erguem de novo para que sejamos revestidos com eles uma segunda vez na ressurreição. Uma coisa está estreitamente relacionada com a outra. Pois se corpos são erguido outra vez, sem dúvida eles se erguem para nos revestir; e se nos é necessários ser investidos de corpos, como é certamente necessário, não devemos ser investidos com nenhum outro senão o nosso próprio.

    Mas se é verdade que eles se reerguem e que ressuscitam como corpos “espirituais”, não pode haver dúvida que eles vêm do morto, após se livrarem da corrupção e posto de lado a mortalidade; de outra forma pareceria vão e inútil a qualquer um ressuscitar dos mortos para morrer uma segunda vez. E finalmente isto deve ser mais distintamente compreendido desta forma, se cuidadosamente se considerar quais são as qualidades de um corpo animal, que, quando semeado na terra, recupera as de um corpo espiritual. Pois é de um corpo animal que o próprio poder e graça da ressurreição extraem o corpo espiritual, quando ele transmuta de uma condição indigna para uma de glória.

    Pois é… não seria um novo corpo ou apenas o perispírito, mas o mesmo corpo modificado. A questão é, como Orígenes imaginou essa transformação:

    Nós, porém, estamos convencidos de que aquilo que semeamos “não adquire vida a não ser que morra” e “não é o corpo da futura planta” que é semeado. Pois “Deus dá o corpo que quer”: semeado “corruptível, o corpo ressuscita incorruptível, semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado desprezível, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (I Cor 15:36-44). Conservamos tanto a doutrina da igreja de Cristo quanto a grandeza da promessa de Deus. Podemos provar que é uma coisa possível não por uma afirmação mas por meio do argumento. (…) Portanto, não afirmamos que o corpo putrefato voltará à sua verdadeira natureza original, assim como o grão de trigo, uma vez corrompido, não retorna ao seu estado de grão de trigo. Afirmamos que, assim como do grão de trigo surge uma espiga, há também no corpo um princípio que não está sujeito à corrupção, a partir do qual o corpo surge “incorruptível”. (…) Não recorremos à mais absurda evasiva: tudo é possível para Deus; pois sabemos entender a palavra “tudo” sem incluir nela o que não tem existência ou não é concebível. Concordamos assim que Deus nada pode fazer de vergonhoso, pois então Deus não poderia ser Deus: pois se Deus fizesse algo de vergonhoso, não seria Deus.

    Contra Celso, V.22-3

    Qual era esse “princípio não sujeito à corrupção” só é explicado bem mais adiante:

    Celso não compreendeu nossa doutrina da ressurreição, doutrina rica, difícil de expor, por exigir mais do que qualquer outra intérprete bem preparado para mostrar o quanto esta doutrina é digna de Deus e sublime: de acordo com ela, existe uma relação seminal no que a Escritura chama de tenda da alma (II Cor 5:4), na qual os justos gemem acabrunhados; e gostariam de não ser “despojados de sua veste, mas revestir a outra por cima desta” (idem). Por ter ouvido falar da ressurreição da boca de pessoas simples, incapazes de apoiá-la com qualquer razão, ridiculariza o que se afirma. Será útil acrescentar ao que ficou dito acima esta simples observação sobre a doutrina: não é, como acredita Celso, por ter compreendido mal a doutrina da metensomatose que nós falamos de ressurreição; mas é porque sabemos que a alma, que por sua própria natureza é incorpórea e invisível, precisa, quando se encontra num lugar corporal qualquer, de um corpo apropriado por sua natureza neste lugar. Ela carrega este corpo depois de ter abandonado a veste, necessária antes, mas supérflua para um segundo estado, e a seguir, após tê-lo revestido por cima com aquela veste que tinha inicialmente, porque precisa de uma veste melhor para chegar às regiões mais puras, etéreas e celestes. Ao nascer para o mundo, ela abandonou a placenta que era útil à sua formação no seio de sua mãe enquanto nela se encontrava; revestiu por baixo o que era necessário a um ser que viveria na terra.

    Contra Celso, VII.32

    Essa “relação/princípio seminal” (logos spermatikos) seria uma espécie de lei ou força que, por sua própria natureza, sobreviveria à morte e, nutrindo-se com os elementos adequados, conforme a situação em que se encontrasse, construiria um novo invólucro. O corpo atual e o futuro seriam contínuos por esse princípio, mas não em substância. Vale atentar que Orígenes usou aqui a mesma expressão de filósofos estoicos para se referir ao “princípio gerativo” responsável pela renovação do universo. Com isso, novos adversários pagãos teriam a dificuldade extra de rejeitar suas próprias ideias.

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    5 – A Questão da Gilgul

    Escultura de uma roda de carruagem

    A crença na transmigração de almas (gilgul neshamot – “roda de almas”) é mais tardia, tendo sido assimilada por certas correntes judaicas ao longo da Idade Média e posteriormente. Ainda é matéria de discussão entre os historiadores de como isso ocorreu exatamente (10).

    Assim relata a Jewish Enclyclopedia

    Transmigração das almas: A passagem de alma em sucessivos formas corpóreas, sejam humanas ou animais. De acordo com Pitágoras, que provavelmente aprendeu a doutrina no Egito, a mente racional, após ter se libertado dos grilhões do corpo, assume uma veículo etéreo e passa para a região dos mortos, onde permanece até ser enviada de volta a este mundo para habitar algum outro corpo, humano ou animal. Depois de passar por sucessivas purgações e quando estiver suficientemente purificada, ela é recebida entre os deuses e retorna para a fonte eterna de onde originalmente procedeu. Esta doutrina era estranha ao judaísmo até cerca do século oitavo, quando, sob influência de místicos maometanos, foi adota pelos caraítas e outras dissidências judaicas. Ela é mencionada pela primeira vez na literatura judaica por Saadia [Gaon], que protestou contra esta crença, que em seu tempo era compartilhada pelos yudghanitas(…)”

    Assim relatou Saadia Gaon:

    Embora eu deva dizer que tenho encontrado certas pessoas, que chamam a si mesmas de judias, professando a doutrina da metempsicose, que é designada por eles com a teoria da “transmigração” das almas. O que ele querem dizer com isso é que o espírito de Rúben transferiu-se a Simão e depois a Levi e, em seguida a isto, a Judá. Muitos deles iriam tão longe como ao ponto de afirmar que o espírito de um ser humano pode entrar no corpo de uma fera ou que o de uma fera no de uma ser humano e outros tipos de absurdo e estupidez”

    Saadia Gaon, Livro das crenças e opiniões, tratado VI, cap. VIII, “A alma”. Acesse aqui para uma versão completa do texto.

    A primeira aparição da doutrina da gilgul em um tratado esotérico escrito vem a ocorrer só no século XII, num trabalho intitulado Bahir. A partir daí, a reencarnação se torna popular entre a vertente mística do judaísmo, a Cabala.

    De 1.200 d.C. A 1.500, ocorreram trabalhos cabalísticos afirmando a possibilidade em alguns casos de transmigração para corpos de animais. Esta ideia entrou em declínio depois, apesar de nunca ter desaparecido totalmente (11).

    Atualmente, a reencarnação não é professada por boa parte dos judeus, e muitos desses alegam que judeus não devem adotá-la. Ela ainda permanece vigente entre cabalistas, muitos grupo judaicos hassídicos (seita fundada no século XVIII) e até mesmo entre alguns ultraortodoxos.

    Para outros, como o professor e rabino Yehuda Ribco é lícito um judeu crer em reencarnação, mas não uma questão central do judaísmo, e nem mesmo ele a defende:

    Logo, e já passando a responder: graças a Deus não sou o único que não compartilha da ideia da reencarnação (gilgul haneshamot), pois houve outros, anteriores e imensamente maiores que este humilde mestre, que se opuseram, tal qual Saadia Gaon, Bajia ibn Pakuda, Iosef ibn Tzadik, e até (segundo alguns entendidos) o príncipe dos pensadores judaicos: Rambam [Maimônides], entre outros.

    Se bem é certo, outros insignes mestres e filósofos a sustentaram (Ramban [Nachmânides] e Baal Shem Tov, por exemplo, ambos posteriores a aparição pública do Zohar), não é por isso que a ideia da reencarnação é parte das crenças judaicas centrais, nem é obrigação que se compartilhe dela.

    (…)

    Em resumo: a reencarnação é uma crença individual (ou de certos grupos), tal como a descrença na mesma o é. É uma crença de natureza restrita e que não atenta contra os princípios gerais e superiores (Torá e halacá); nem tão pouco é obrigatório compartilhá-la. Portanto, não há razão de identificá-la ao judeu e ao judaísmo, tal como, por exemplo, a crença em alienígenas.

    De fato, a conversão do escritor judeu americano Norman Mailer à crença na reencarnação chamou atenção até da imprensa:

    Como todo construtor de crenças de ocasião, Mailer não quer perder o vínculo com a religião original. Embora os cabalistas acreditem na transmigração de almas, a reencarnação não faz parte da essência da fé judaica. Não é mencionada na Bíblia, nem na literatura rabínica”

    Revista Veja, edição 1834, ano de 2003, pág. 125.

    Já a ressurreição é dogma (ou lei como preferem) a todas as correntes do judaísmo:

    A crença na ressurreição dos mortos é declarada nas orações, na teologia e na lei: no fim dos dias, a morte morrerá. A certeza da ressurreição origina-se de um fato simples da teologia restauracionista: Deus já mostrou que pode fazê-la.

    Você observa que tudo o que o Sagrado, abençoado o seja, destina-se a fazer nos dia vindouros ele já se adiantou e fez por meio dos justos nesse mundo. O Sagrado, abençoado seja, levantará os mortos, e Elias levantou os mortos.

    O fato de Deus erguer os mortos leva à última pergunta: quem ele erguerá dos mortos? E a resposta é: “Todo Israel, com poucas exceções”. Por Israel entendem-se aqueles que serão erguidos dentre os mortos; praticar o judaísmo e guardar a Torá e escolher a vida eterna, de acordo com a admoestação de Moisés em Deuteronômio 30:19: “Portanto, escolhe a vida”. Aquela definição de quem é israelita e o que é Israel – aqueles que se levantarão do túmulo, o povo destinado à vida eterna nos céus – retira o modo de vida judaico do domínio meramente étnico ou terreno.

    [Neusner, cap VII]

    A morte, todavia, não assinala o fim da vida. Nos tempos de Deus, os mortos viverão novamente. A ressurreição representa a mais completa metamorfose de uma experiência desse mundo: a morte simboliza o seu oposto, a vida eterna. Na lei judaica, a reação à antecipada transformação traduz-se numa regra especial e estrita contra a autópsia ou a desfiguração do corpo. Os mortos viverão, portanto, o corpo deve ser preservado como foi em vida, tanto quanto possível, para a ressurreição vindoura.

    Idem, cap IV

    Portanto, é errôneo afirmar que a “ressurreição era a reencarnação entendida pelo judeus da época de Cristo”, pois mesmo os grupos que professam a gilgul modernamente, lhe dão tratamento diferente da ressurreição (12). Há até questões de ordem teológica própria, como “qual corpo será o ressuscitado?” Alguns grupos alegam que apenas última encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas (13).

    Do exposto acima, conclui-se que a doutrina da reencarnação entrou tardiamente no judaísmo, só sendo posta por escrito na Idade Média e ainda hoje não é consenso.
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    6 – Distorções Espíritas

    Ciclo da reencarnação

    Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa.

    Todas as versões acima quanto ao processo de ressurreição possuem um traço comum: de algum modo, o novo corpo espiritual é produzido a partir do antigo corpo material. Para os proto-ortodoxos, o mundo material era inerentemente bom como seu Criador, embora corrompido pelas forças do Mal. Mas no fim dos tempos, ele também seria redimido. Para os gnóstico, a situação era bem distinta: o mundo material fora criado por uma divindade inferior e maligna, escapar dele seria a atitude correta. O espiritismo, por sua vez, não julga o mundo material como algo ruim, embora ele tenha limites de melhoria (as leis naturais) e seja apenas um estágio transitório na jornada evolutiva de um espírito. Assim, não é incomum encontrar autores espíritas que tentam expor a ressurreição antiga como uma espécie de desencarne: o simples descarte do corpo físico e permanência do corpo perispiritual subjacente.
    Para obter esses efeito, lança-se mão dos seguintes artifícios:

    • A boa e velha misquotation: Escolher um pequeno fragmento a dedo para que ele, destacado do conjunto, aparente corroborar essa tese. Por exemplo, pegue I Coríntios 15:50: “Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade“. Agora, prolongue a citação até o versículo 55 e veja as implicações;

    • Desconsiderar a escatologia: A ressurreição em corpo espiritual ocorreria apenas no fim dos tempos, com a vinda do Messias (II Baruque) ou, para os cristãos, sua segunda vinda (cf. I Cor 15:20-28), ao contrários dos exemplos relatados evangelhos, cujos ressuscitados certamente morreriam outra vez, nem que fosse de velhice. O que aconteceria entre a morte nesta era e a consumação final é ambíguo nas escrituras, podendo-se buscar ao bel-prazer passagens sobre aniquilação, um Xeol de simples espera ou castigos e recompensas logo após a morte. De qualquer forma, a ressurreição não é um simples retorno ao mundo espiritual após o “desencarne”, mas o estágio final da existência humana (ao menos para os “salvos”) com data para ocorrer e de forma coletiva;

    • Fazer jogo com os evangelhos: O modelo de ressurreição apresentado acima é, entre os cristãos, essencialmente sinóptico e paulino. O cristianismo joanino, por sua vez, quase nada possui de escatologia. Para os primeiros, o Reino de Deus é uma mudança temporal e cataclísmica, ao passo a comunidade joanina o via como uma mudança espacial (ou dimensional, se preferir): “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18:36). Evangelho de João dá tanto valor ao espiritual, que até mesmo uma parte da comunidade em que ele surgiu (cf. Segunda Epístola de João) passou a negar que Jesus tivesse um corpo físico real, apenas aparentando um (i.e., inventaram o docetismo (14). Já no século II, o Evangelho de João seria, inclusive, admirado por gnósticos, que viram nele similaridades com sua doutrina (15). Óbvio que a proto-ortodoxia, ao adotar João como canônico, não o interpretava assim, procurando harmonizá-lo com os sinópticos. O discurso espírita, então, consiste em desfazer essa harmonização, ao enfatizar os itens convenientes da mensagem de João (16);

    • Usar a consultoria de judeus ortodoxos: Que, por coincidência, também creiam na gilgul neshamot. Nada contra um filho de Abraão expressar seu entendimento sobre o pós-morte. A questão é saber o quanto a opinião de um judeu moderno seria representativa no judaísmo do primeiro século. Mal comparando, seria como se fiar num católico para afirmar que o culto aos santos era corrente entre os primeiros cristãos. Note que não estou afirmando que seja errado cultuar santos ou acreditar na gilgul, a questão é que tais crenças são inovações que surgiram, em suas respectivas religiões, bem depois dos tempos de Jesus. Há muitas coisas, sem dúvida, em que os judeus ortodoxos foram conservadores, mas é irrealista supor que tenham permanecido estáticos por 2.000 anos e possam ser usados como “pedra de toque”, sem nenhuma ressalva, para estudar o judaísmo intertestamentário.

    ***

    Caso se queira realmente validar a crença da reencarnação na Bíblia, é necessário comprovar que o contexto em que ela foi produzido era reencarnacionista. As seguintes abordagens podem ser feitas:

    1. Obras que relatem certo ensino explicitamente: Foi, por exemplo, o caso da ressurreição em “II Baruque” ou nas cartas paulinas. Por outro, não seria viável considerar a reencarnação como presente no “nascer de novo” do diálogo entre Jesus e Nicodemos (Jo 3), pois o discurso é tão alegórico, que dá margem a múltiplas interpretações;

    2. Comentários religiosos: Os comentários rabínicos do midrash e as obras da patrística são silentes quanto ao assunto. Mesmo o sistema concebido por Orígenes, no século III, não era compatível com a proposta espírita para reencarnação. Gnósticos, sim, criam na reencarnação, só que, outra vez, “à moda deles”;

    3. Relatos de não religiosos: Flávio Josefo, pelo visto, revelou-se um tiro n’água.

    Assim, ao escolher frases a dedo, desconsiderar a evolução histórica do pós-morte judaica e tratar o cânon bíblico como monolítico, você pode até se dar bem contra religiosos presos à inerrância e autossuficiência bíblica, mas dificilmente poderá ser considerado um pesquisador.
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    Notas:

    (1) Cf. Gn 9:24-25, Dt 23:2, Dt 28:18, 2 Sm 12:13-14, 2 Sm 21:6, 1 Rs 2:33, 1 Rs 11:11-12, 1 Rs 21:29, 2 Rs 5:27, Is 14:21, Jr 16:10-11, Jr 29:21, Jr 32:18, Sl 109:14. Algumas passagens preveem o fim das punições hereditárias em um tempo futuro, como Jr 31:29-30, e algumas a negam desde já: Dt 24:16 e Ez 18:20.

    (2) Informo que II Baruque NÃO é continuação do deuterocanônico de mesmo nome, constante nas Bíblias católicas.

    (3) Obviamente, a unidade de medida “litro” não existia na época. Em versões inglesas do livro, encontra-se “a cor of wine”. Essa unidade de capacidade (cor) corresponderia a aproximadamente 400 litros (391 mais precisamente). Talvez um erro de digitação tenha transformado 400 em 40 e tradutor assim transcrito por extenso.

    (4) Compare essa fartura dos tempos pós-apocalípticos com aquela descrita mais acima no Livro de I Enoque, 10:9 -11:2. Um traço comum à literatura apocalíptica é a superabundância do Mundo Vindouro”.

    (5) Repare que os livros de Macabeus fazem menção explícita a orações pelos mortos. Isto pode ser um dos motivos que levaram os líderes da Reforma protestante a adotar a Bíblia hebraica como Antigo Testamento e assim eliminar de seu cânon um livro que iria contra a sua teologia, embora ele tivesse grande valor como documento histórico por narrar um genuíno episódio.

    (6) Se Flávio Josefo aponta os fariseus como defensores da reencarnação, como defendem alguns, favor explicar porque os maus, que mais precisariam de uma nova chance, não a teriam. Também explicar porque reencarnar num mundo de sofrimento seria alguma espécie de “recompensa”, se havia opções melhores…

    (7) No Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV

    A reencarnação fazia parte dos dogmas judaicos sob o nome de ressurreição. Somente os saduceus, que pensavam que tudo acabava com a morte, não acreditavam nela. As ideias dos judeus sobre esse assunto, e sobre muitos outros, não estavam claramente definidas, pois apenas tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o corpo. Acreditavam que um homem que viveu podia reviver, sem entender entretanto de que modo isso podia acontecer. Designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama mais apropriadamente de reencarnação. De fato, a ressurreição supõe o retorno à vida do corpo que está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, porque os elementos desse corpo estão, desde há muito tempo, desintegrados na Natureza. A reencarnação é o retorno da alma ou Espírito à vida corporal, mas em um outro corpo, formado novamente para ele, e que não tem nada em comum com o que se desintegrou. A palavra ressurreição podia assim se aplicar a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, conforme se acreditava, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, porque João tinha sido visto desde criança e sabia-se quem eram seu pai e sua mãe. João, portanto, podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado.

    Tal argumento de Kardec é muito questionável. Mesmo os grupos judaicos que desenvolveram em tempos medievais o conceito reencarnacionista gilgul ainda creem em ressurreição no fim dos tempos. Algumas facções alegam que apenas última encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas [cf. Blau]. O fato de a ressurreição ser inviável do ponto de vista científico é irrelevante do ponto de vista de um historiador. Se os judeus do período intertestamentário advogavam uma ressurreição física, então qualquer estudo que se faça sobre eles deve respeitar isso, do contrário correrá o risco de distorcer o passado para que se adeque a ideias e vieses do presente. Por último, havia relatos que deixavam bem claro que tal ressurreição estava longe de ser reencarnação nos moldes espíritas ou um processo exclusivamente espiritual. O livro de II Baruque dá um exemplo disso, apresentando uma ressurreição física seguida por uma espécie de transfiguração.

    (8) O livro Apócrifos – Os Proscritos da Bíblia, vol. III, de Maria H. O. Tricca possui uma gigantesca lacuna em II Baruque, que vai do capítulo XL ao LXXXIX. Não creio que tenha sido só o meu exemplar, pois a numeração das páginas não dá saltos. Ao que me parece, não há ruptura no texto, apenas na numeração dos capítulos. Os capítulos XLIX – LI corresponderiam aos XCIX – CI dessa edição. Como consequência, o livro está incompleto. Ignoro se isso foi corrigido em edições posteriores e, por via das dúvidas, traduzi a referida passagem do texto inglês de Charlesworth.

    (9) Os saduceus, de acordo com o Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, item 3

    Seita judia que se formou por volta de 248 a.C.; assim nomeada devido a Sadoc, seu fundador. Os saduceus não acreditavam nem na imortalidade da alma, nem na ressurreição, nem nos bons e maus anjos. Entretanto, acreditavam em Deus, mas não esperavam nada após a morte, somente o serviam em vista de recompensas temporais que, segundo a crença que tinham, era ao que se limitava sua Providência. A satisfação dos sentidos era para eles o objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, os saduceus se prendiam ao texto da antiga lei, não admitindo nem a tradição, nem nenhuma interpretação; colocavam as boas obras e a execução pura e simples da lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como podemos ver, os materialistas, os deístas e os sensualistas daquela época. Essa seita era pouco numerosa, mas contava com personagens importantes, e se tornou um partido político constantemente oposto aos fariseus.

    Não deixa de ser um tanto ilógico associar uma seita que cria em Deus e o temia com materialistas. O fato de crerem que esta vida era a única que poderiam almejar não os torna automaticamente sensualistas. Se as punições também eram deste mundo, era preciso seguir condutas éticas para evitá-las, e isso também pode ser encontrado na Antiga Lei. Seria um pouco de preconceito por não crerem em vida após a morte?

    (10) Vide [Raphael, cap. VIII, pp. 314-20] para uma análise histórica mais aprofundada.

    (11) De [Asheri, cap. XLI, pp. 251-2]:

    REENCARNAÇÃO: Em hebraico, a reencarnação é chamada de gilgul neshamot, e um grande número de judeus ortodoxos sustenta que em certas circunstâncias, nunca definidas de maneira muito clara, a alma de um judeu pode retornar à vida no corpo de outra pessoa ou até no de um animal ou de um planta. Não é necessariamente como castigo que o gilgul ocorre, mas com frequência alguma boa ação que a alma foi incapaz de realizar enquanto estava na Terra é completada na reencarnação dessa alma em outro corpo.

    Ver também [Raphael, cap. VIII, pp. 318-9].

    (12) Fazendo coro com Neusner:

    O MESSIAS E A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS. De todas as crenças, esta é a mais amplamente aceita, sendo considerada por muitos ortodoxos como absoluto artigo de fé. Em resumo, diz-se que algum dia aparecerá um judeu que anunciará o fim do mundo, tal como o conhecemos, e a criação do Reino de Deus, no qual, finalmente, o leão se deitará ao lado do cordeiro. Esse judeu, e ele será uma pessoa, não uma encarnação de Deus (como se tal coisa fosse possível), é chamado de Mashiach, ou Messias. Quando ele chegar, haverá uma ressurreição dos mortos, chamada em hebraico de T’chiat Ha-metim, e todos os judeus ressurrectos reunir-se-ão em Israel, para lá viver eternamente. O Messias será um descendente da Casa de Davi e seu anúncio será feito por Elias, o Profeta (Eliahu Anavi).

    Nada muito diferente das crenças apocalípticas circulantes pela Judeia do século I.

    (13) Cf. [Blau]

    (14) Qualquer semelhança com Roustaing não é mera coincidência.

    (15) Em João, Jesus é um ser divino (O Verbo) enviado à terra como figura redentora (“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida“, Jo 14:6) para que por meio dele tenhamos o conhecimento necessário para nos libertarmos (“Conhecereis a verdade e a Verdade vos libertará“, Jo 8:32). Essas similaridades fizeram de João um prato cheio para os gnósticos e o primeiro comentário a esse evangelho foi feito por um gnóstico: Heracleão.

    (16) Quando o assunto é a Trindade, a tática é oposta: enfatizar os sinópticos e menosprezar João.
    [topo]

    Para saber mais

    – Asheri, Michael; O Judaísmo Vivo – As tradições e as leis dos judeus praticantes, Imago, 1995.

    Bíblia de Jerusalém, Sociedade Bíblica Internacional e Editora Paulus, 1995.

    – Blau, Yitzchak; Body And Soul:Teh.iyyat ha-Metim and Gilgulim in Medieval and Modern Philosophy, publicado em The Torah u-Madda Journal (10/2001).

    – Charlesworth, James H.; Old Testament Pseudoepigrapha, vol. I, Doubleday, 1983.

    – Ehrman, Bart D.; Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium, Oxford University Press, 2001.

    – Neusner, Jacob; Introdução ao Judaísmo, Imago, 2004.

    – Raphael, Simcha Paul; Jewish View of the Afterlife, Aronson, 2004.

    – Reddish, Mitchell G., Apocalytiptic Literature: A Reader [Literatura Apocalíptica: um Manual de Leitura], Hendrickson Publishers, Inc., 1995.

    – Schweitzer, Albert; The Quest of the Historical Jesus [A Busca do Jesus Histórico], Acessado em 10/09/2009 no portal Early Christian Writings.

    – Tricca, Maria Helena de Oliveira (compiladora); Apócrifos – Os proscritos da Bíblia, tradução do alemão de Ivo Martinazzo, vol. I e III, Ed. Mercuryo, 2003.

    Para acessar

    Jewish Eschatology, acessado em 05/10/2013.

    Rabbi scheinerman – After life, acessado em 05/10/2013.

    Ser judio – Vida y Muerte, acessado em 05/10/2013.

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