Vinde Espírito Santo! – Um Artigo sobre o Artigo Grego (Rascunho)

Pomba

Índice

O Consolador Prometido Redux

 

Retomando um trecho do Evangelho Segundo o espiritismo, tratado em outro artigo, com as seguintes palavras de Kardec:

3 – Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito da Verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. Mas vós o conhecereis, porque ele ficará convosco e estará em vós. – Mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. (João, XIV: 15 a 17 e 26)

4 – Jesus promete outro consolador: é o Espírito da Verdade, que o mundo ainda não conhece, pois que não está suficientemente maduro para compreendê-lo, e que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para fazer lembrar o que Cristo disse. Se, pois, o Espírito da Verdade deve vir mais tarde, ensinar todas as coisas, é que o Cristo não pode dizer tudo. Se ele vem fazer lembrar o que o Cristo disse, é que o seu ensino foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, no tempo assinalado, cumprir a promessa do Cristo: o Espírito da Verdade preside ao seu estabelecimento. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas, fazendo compreender o que o Cristo só disse em parábolas. O Cristo disse: “que ouçam os que têm ouvidos para ouvir”. O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porque ele fala sem figuras e alegorias. Levanta o véu propositalmente lançado sobre certos mistérios, e vem, por fim, trazer uma suprema consolação aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, ao dar uma causa justa e um objetivo útil a todas as dores.

(…)

Assim realiza o Espiritismo o que Jesus disse do consolador prometido: conhecimento das coisas, que faz o homem saber de onde vem, para onde vai e porque está na Terra, lembrança dos verdadeiros princípios da lei de Deus, e consolação pela fé e pela esperança.

O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VI.

A ideia básica acima, calcada em Jo 14:26, pode ser (e foi) utilizada por qualquer grupo que alegue ter com o consolador prometido. Três coisas eles possuem em comum:

  1. Mais de cem anos de distância da morte de Jesus (dando tempo para o “esquecer”);
  2. Ideias alienígenas (afinal, “toda as coisas” pode ser qualquer coisa);
  3. Uma boa dose de pretensão (afinal, eu que sou a terceira revelação, não os outros).

O corolário óbvio dessa postura é a rejeição da tradição cristã ortodoxa de considerar a descida do Espírito Santo em forma de “línguas de fogo” sobre apóstolos, no dia de Pentecostes (At 2), como cumprimento da profecia de João. No caso espírita, em particular, dois outros artifícios são usados:

  1. Jogos semânticos com a palavra “espírito”: consiste em equipará-la com o sentido espiritualista moderno de “alma” ou, mais tecnicamente, espírito + perispírito. Com isso, o episódio se aproxima de um manifestação mediúnica. Para se tornar uma de vez, falta a…
  2. Indeterminação do “espírito santo”: com letra minúscula, mesmo. Baseados em certa norma gramatical grega, apologistas espíritas alegam que se não houver um artigo (definido) antes de um substantivo, esse deve ser traduzido sem artigo ou com um artigo indefinido. Assim, os apóstolos teriam recebido “um espírito santo” qualquer em At 2:4 (και επλησθησαν απαντες πνευματος αγιου).

Ambas fazem parte de um não declarado programa para apresentar o cristianismo primevo como protoespiritualismo. Caso o entendimento que os judeus intertestamentários e dos primeiros cristão não coincidir com o proposto, então terá sido apenas mais um caso de anacronismo disseminado no movimento. Para tirar a prova real, será preciso mergulhar nos testemunhos do passado e, para tanto, o texto bíblico não será o bastante.

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De Onde sopra o Espírito

 

Vegeta quebrando o kiômetro

– Vegeta, qual o nível de “espírito” desse cara ?!
– Mais de 9.000

Os fãs do anime Dragon Ball Z identificarão imediatamente a cena clássica mostrada acima, com a diferença de que, no original, a palavra usada para expressar o “poder vital” que os personagens extravasavam em suas pancadarias era o termo chinês ki, cujo sentido, grosso modo, corresponde também ao prana dos hindus. Para os ouvidos ocidentais modernos, acostumados a associar tratar a palavra “espírito” como um sinônimo para “alma”, esse trocadilho, além de sem graça, pode ter soado forçado, estranho. Contudo, um antigo hebreu não o acharia tão apelativo assim, pois, deixando de lado os socos e chutes, foi aproximadamente esse o significado na última conversa entre Elias e Eliseu:

Sucedeu que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim.
2 Re 2:9

A palavra “espírito” (pneuma em grego e rouach) literalmente significa “sopro”, “vento” e não necessariamente denota a consciência individual, mas o princípio que nos anima (Gn 7:22, Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7, o que não é panteísmo), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10). Já a expressão “Espírito Santo”, no Antigo Testamento, aparece apenas em três ocasiões:

  1. Sl 50(51 Heb.):11: “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu Espírito Santo”;
  2. e no já mencionado Is 63:10: “Mas eles foram rebeldes, e contristaram o seu Espírito Santo; por isso se lhes tornou em inimigo, e ele mesmo pelejou contra eles.” e
  3. no versículo seguinte: “Todavia se lembrou dos dias da antiguidade, de Moisés, e do seu povo, dizendo: Onde está agora o que os fez subir do mar com os pastores do seu rebanho? Onde está o que pôs no meio deles o seu Espírito Santo?”

E em todas ela é apenas outra maneira de referir ao próprio Javé. A tradição dos LXX traduziu a expressão como το πνευμα το αγιον, porém as paráfrases dos Targumim ora mudaram a expressão para “espírito de profecia“, usando-a recorrentemente em outros versículos, ora usaram “espírito santo” onde o massorético traz apenas “espírito” ou nem isso:

Êxodo (pseudo-Jônatas)

  • Ex 33:16 “Pois como se saberá que encontrei misericórdia perante ti, eu e teu povo, a não ser que sua Shekinah fale conosco e maravilhas sejam realizadas por nós quando retirares o espírito de profecia das nações e falar no Espírito Santo a mim e a teu povo, de modo que nos tornamos diferentes de todos os povos que estão sobre a face da Terra?”

Salmos:

  • 22:27 “O humilde comerá e se saciará; os que buscam o Senhor cantarão louvores em Sua presença; o espírito de profecia residirá nos pensamentos de seus corações para sempre.”
  • 45:3 “Vossa beleza, ó Rei Messias, é maior que a dos filhos dos homens; o espírito de profecia foi posto nos vossos lábios, porque o Senhor vos abençoou para sempre.”
  • 46:1 “Para louvar pelos filhos de Coré (cf. Nm 16), quando seu pai lhes foi oculto por meio do espírito de profecia, mas ele se salvaram e recitaram este cântico.”
  • 49:16 “Davi disse no espírito de profecia: ‘Na verdade, Deus redimirá minha alma do julgamento de Geema, pois me ensinará sua Torá para sempre’.”
  • 51:11 “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu espírito santo de profecia.”
  • 51:14 “Traga de volta vossa Torá para mim, para exultar em sua redenção; e que o espírito de profecia me ampare.”
  • 68:34 Ao que senta em seu trono no céu dos céus; no princípio ele, por seu comando, deu através de sua voz o espírito de profecia aos profetas.

Isaías

  • 40:13 “Quem direcionou o Espírito Santo na boca de todos os profetas? Não e o Senhor? Ele faz conhecer as palavras de Sua vontade aos justos, aos servos de Seu Verbo.”
  • 42:1 “Eis meu servo, a quem trago, meu escolhido em quem se compraz, quanto a meu Verbo, porei meu Espírito Santo sobre ele; Ele revelará meu julgamento às nações.”
  • 44:3 “Assim como as águas são despejadas sobre a terra sedenta e são postas a fluir sobre a terra seca, assim darei meu Espírito Santo aos seus filhos, e minhas bênçãos aos filhos dos filhos.”
  • 59:21 “Quanto a mim, esta é minha aliança com eles, diz o Senhor, meu Espírito Santo, que esta sobre você e as palavras de minha profecia que pus em tua boca, e não deixaram tua boca, nem as de teus filhos, nem as dos filhos dos filhos, diz o Senhor, desde agora para todo os sempre.”
  • 63:10 “Mas eles foram rebeldes contra o verbo de seus profetas e blasfemaram, e Seu Verbo se tornou inimigo deles, e travou guerra contra eles.”
  • 63:11 “E teve compaixão pela glória de seu nome, por causa da lembrança de Sua bondade de outrora, dos poderosos feitos que fez pelas mãos de de Moisés por seu povo; para que os gentios não dissessem: “Onde está agora o que os fez subir do mar? Onde está O que os guiou pelo deserto, como um pastor e seu rebanho? Onde está o que fez o verbo de Seus santos profetas residir entre eles?”

Em várias passagens das tradições targúmicas, o Espírito Santo (rouach haqqodesh) é tido como Javé comunicando-se diretamente sua vontade ao homem. É um dom concedido exclusivamente à Israel, após a entrega da Torá, e, em outras tantas, é semanticamente afim de “espírito de profecia” num sentido de um poder a guiar os homens a Deus, ao louvor e à profecia. Uma e outra expressão costumam vir acompanhadas de “Shekinah” (presença divina), “Dibbera” e “Memra” (ambas comparáveis a “Verbo”, “Palavra”), ressaltando o aspecto de interação comunicativa (Cf. [McNamara, cap. XI, 1]). Às vezes, “Espírito Santo” parece personificado, mas não cabe que aqui a enxergá-lo como a terceira hipóstase da Trindade, que nunca teve lugar no judaísmo.

Não é apenas nos targumim que se encontra um incremento no uso de “Espírito Santo”. Nos manuscritos deixados pela seita essênia nas cavernas de Qumran, ele não está apenas inspirando, mas também confortando:

  • Preceito de Damasco II:12 “Ele sabia dos acontecimentos que lhes adviriam por todos os anos infinitos. E em todos, Ele criou para Si homens que tinham um nome, para que um remanescente pudesse permanecer na terra, e para que a face da terra pudesse ser preenchida com sua descendência. E Ele lhes revelou Seu Espírito Santo por intermédio de Seus consagrados, e proclamou (lhes) a verdade. Mas aqueles a quem odiava, Ele os descaminhou.”
  • Hino de Ação de Graças (1QH): VII Agradeço a Ti, ó Senhor, por me apoiares com Tua força.

    Derramaste Teu Espírito Santo sobre mim para que eu não tropece.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) IX: Tu me alimentaste com a verdade infalível;

    Tu me deliciaste com Teu Espírito Santo

    e [abriste meu coração] até o dia de hoje.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) XIII: Eu, o Mestre, conheço-Te, ó meu Deus, pelo espírito que tu me deste,

    e pelo Teu Espírito Santo eu obedeci fielmente Teu conselho maravilhoso.

    No mistério da Tua sabedoria Tu me abriste o conhecimento, e em Tua misericórdia

    [Tu me descerraste] a fonte de Teu poder.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) XIV E eu sei pelo entendimento que vem de Ti

    que em Tua bondade para com [as cinzas,

    Tu derramaste] teu Espírito Santo[sobre mim]

    para que eu chegasse mais perto de entender-Te.

  • Preceito da Comunidade (1QS) IV: Deus então purificará cada ato do homem com Sua verdade; Ele irá sutilizar a estrutura humana, desarraigando todo o espírito de falsidade dos grilhões da carne. Ele irá limpá-lo de todos os atos iníquos, com o espírito de santidade; qual água purificadora, irá derramar sobre ele o espírito da verdade (para limpá-lo) de toda a abominação e falsidade.
  • Preceito da Comunidade (1QS) IX: Quando estes se tornam membros da Comunidade de Israel de acordo com estes preceitos, deverão estabelecer o espírito de santidade em consonância com a verdade eterna. Deverão expiar a culpa pela rebelião e pelos pecados de infidelidade, para que possam obter a bondade para a Terra, sem a carne dos holocaustos e a gordura do sacrifício. E a oração oferecida da forma certa será como uma aceitável fragrância de retidão, e a conduta perfeita, como uma prazerosa oferenda de boa vontade.

Assinale-se a presença na seita essênia de um forte dualismo entre luz e trevas, limpeza e impureza, verdade e falsidade. Tais oposições não eram desconhecidas entre os primeiros cristãos, como o conceito dos “Dois Caminhos” encontrado em Barnabé e, notadamente, na Didaquê. Dos canônicos, chegou-nos uma pequena amostra disso na carta I João, quando seu autor alertou sobre os ensinos de um certo grupo de dissidentes daquela comunidade:

Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;(…) Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro.
I Jo 4:2,6

Isso não quer dizer que os autores de João, Barnabé e da Didaquê tenham sido essênios. O mais provável é que beberam água da mesma fonte: a cultura judaica intertestamentária, na qual o dualismo e conceitos de “espírito”, “santidade” e “verdade” estavam em voga [cf. Bauckham]. E embora João contenha passagens que hoje seriam tidas simplesmente como antijudaicas, como será discutido mais adiante, sua origem ainda é mais judaica que helênica. E, para tanto, não é preciso apelar para o canônico bíblico ou o esotérico de essênio, pois a literatura deuterocanônica e pseudoepígrafa dá sua cota de usos para esses termos que, curiosamente, está mais perto do que hoje chamaríamos de pentecostalismo que do espiritualismo:

  • Sb 7:21-6 “Tudo sei, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou! Nela, há um espírito inteligentes, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, imaculado, amigo do bem, agudo, incoercível, benfazejo, amigo dos homens, firme, sereno, tudo podendo, tudo abrangendo, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é um eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se introduz. Pois ela é um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua bondade.”
  • Sb 9:17 “Quem conhecerá tua vontade, se não lhe dás Sabedoria enviando dos céus teu santo espírito?”
  • Salmos de Salomão 17:37 “E ele [o rei] não enfraquecerá naqueles dias, graças a seu Deus, pois Deus o fará poderoso pelo Espírito Santo e sábio pelo conselho do entendimento, com poder e justiça.”
  • José e Azenate 19:11 “Então José estendeu suas mãos e abraçou a Azenate, e Azenate a José, e se beijaram por um longo tempo, e ambos viveram de novo no espírito de ambos. E José beijou Azenate e lhe deu o espírito da vida, então, na segunda vez, lhe deu o espírito de sabedoria, e na terceira vez beijou a suavemente e lhe deu o espírito de verdade.”
  • Livro dos Jubileus 25:12-5 “E [Rebeca] disse: “Bem dito seja o Senhor Deus, e que Seu nome santo seja bem dito para todo o sempre, que me deu Jacó como um filho puro e descendência santa; porque ele é Teu, e Tua será sua descendência continuamente e por todas as gerações para sempre. Abençoe-o, oh Senhor, e coloque em minha boca as bênçãos de justiça [verdadeira bênção], para que eu possa abençoá-lo.”E naquela hora, quando o espírito de justiça [espírito de verdade] desceu na boca dela, ela colocou ambas as mãos sobre a cabeça de Jacó e disse:”Bendito sejas tu, Senhor da justiça e Deus das eras. Que Ele te abençoe (Jacó) além de todas as gerações dos homens.
    Que Ele te de, meu filho, o caminho da justiça, e revele justiça a tua descendência. E que Ele faça de teus filhos muitos durante tua vida, e que eles surjam de acordo com os meses do ano. E que os filhos deles se tornem muitos e muito além das estrelas do céu, e que seu número seja maior que o da areia do mar.”
  • Daniel 13:45 (A História de Susana) “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel.”

A importância desses paralelos encontrados em textos religiosos já do fim da Antiguidade é eles tapam parte do fosso existente entre os canônicos do Antigo e do Novo Testamentos, a começar pelo grande incremento de aparições da expressão Espíritos Santo nos dois livros atribuídos a Lucas, em especial Atos. Nesse, após Pentecostes, Pedro faz menção à profecia de Joel ao notar que o Espírito Santo recebido não foi exclusivo dos apóstolos, nem dos judeus:

E Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto.

Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: “Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel [Jl 2:28-32]:
‘E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, Que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, Os vossos jovens terão visões, E os vossos velhos sonharão sonhos; e também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima, no céu; E sinais em baixo na terra, Sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor; e acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.'”

Atos 2:10-21

Seria a graça divina se espalhando para todas as nações a partir dos judeus, bem conforme a proposta de Lucas em suas duas obras. Três aspectos, contudo, diferem o “Espírito Santo” do nascente cristianismo de seus correspondentes judaicos: o primeiro é crença que a era messiânica, de certa forma, já começara e, segundo, o Espírito estaria fortemente vinculado à pessoa de Jesus. Por último, o ele seria uma espécie de promessa para a glória da consumação final [cf. Bruce, p. 55].
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Se é qualquer Espírito, então não é Espírito Santo Algum

 

Matemática absurda

Com um “zero infinito”, tudo é possível

Primeiramente, melhor se inteirar da opinião de dois autores espíritas, recorrentemente repassadas:

Como cada pessoa tinha e tem um Espírito Santo ou alma, no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão “Espírito Santo”, não se encontra o artigo definido grego “ho” (“o”), pois quando esse original foi escrito, os teólogos ainda não tinham instituído o Espírito Santo e a Santíssima Trindade, à qual Ele pertence. Por isso, não se dizia “o Espírito Santo”, referindo-se àquele definido e único da Santíssima Trindade, já que Ele não existia naquela época. Como vimos, só mais tarde o Espírito Santo e a Santíssima Trindade foram criados.

Destarte, quando na Bíblia, em Português, temos essa expressão Espírito Santo, o artigo Dele deve ser o indefinido “um” e não o definido “o”, para que a tradução seja fiel ao original grego: “um Espírito Santo de alguém”. Mas, infelizmente, todas as traduções foram adaptadas à nova doutrina do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e passaram a usar, erroneamente, a expressão “o Espírito Santo”, quando o certo é “um Espírito Santo”, a que a Bíblia se referia antes da instituição do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e como está no original grego.

Fui repetitivo na explicação desse assunto, propositalmente, para que as pessoas de menos instrução possam também entendê-lo bem. E procurei ser também simples e claro o mais possível na exposição do assunto. E é por isso que deixei também para explicar, somente agora, uma outra faceta desse assunto.

No Grego não há o artigo indefinido “um”. Já o artigo definido “o” (“ho”) existe, e ele aparece normalmente. E, destarte, se no texto original grego se dissesse “o Espírito Santo”, essa expressão ficaria assim: “ho Pneuma Hagion” ou “ho Hagion Pneuma” (o Espírito Santo ou o Santo Espírito”). Acontece que os textos originais gregos vêm sempre sem o artigo definido “ho”, a saber: Pneuma Hagion, pelo que nunca podemos colocar nas traduções para o Português o artigo definido “o”, mas o indefinido “um”, que não aparece em Grego porque, como dissemos, ele não existe em Grego. Mas, como no Português, ele existe, temos que colocá-lo quando aparece a expressão Espírito Santo, ficando, pois, assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”.

Para complicar ainda mais as coisas, o Latim já não tem nem o artigo definido “o” nem o indefinido “um”. Por isso, na Vulgata, só aparece a expressão Espírito Santo assim: Sanctus Spiritus ou Spiritus Sanctus, mas no Português eles existem, e, portanto, temos que colocá-los, quando for o caso.

Sintetizando essa questão, dizemos que a expressão em Grego Pneuma Hagion deve ser traduzida corretamente para o Português assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”, tradução que só estaria certa, se nos textos gregos originais bíblicos ela fosse assim: “ho Pneuma Hagion”. E a Vulgata complicou mais as coisas, pois, como foi dito, o Latim não tem nenhum tipo de artigo, nem o definido nem o indefinido. Mas em Português eles existem. E temos que ser fiéis ao original grego, cujo sentido “um Espírito Santo” e não “o Espírito Santo”.

E sobre o João Batista, temos um texto do anjo anunciador do seu nascimento: “…já desde o ventre de sua mãe, será cheio de um Espírito Santo”(Lucas 1,15). Esse Espírito Santo é o próprio espírito de João Batista. Portanto a tradução “do Espírito Santo” está errada. Aliás, como já vimos, segundo uma corrente de teólogos europeus, quando a Bíblia fala em anjo, ela se refere a espíritos iluminados de pessoas falecidas (padre François Brune, “Os Mortos nos Falam”).

E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada.

E, na verdade, quer se refira à expressão “o Espírito Santo da Trindade”, ao “um Espírito Santo de alguém” ou ao “o Espírito Santo de determinada pessoa definida, por exemplo:“o Espírito Santo de Daniel”, a expressão “Espírito Santo” representa o conjunto de todos os espíritos, estejam eles no Mundo Espiritual ou no Mundo Físico.

Mais um exemplo: “Onde está o que pôs nele o seu Espírito Santo?” (Isaias 63,11). Aqui está certo o artigo definido “o”, porque está definindo uma pessoa, isto é, Moisés. Mas, como se vê, não se trata também do Espírito Santo da Trindade.

Chaves, José Reis; A Face Oculta das Religiões, ebm, 2a. ed., 2006, cap. VII, pp. 142-4.

Parece que os exemplos foram escolhidos a dedo, até de Is 63:11 só foi citado o essencial. O resultado final é a diversificação o “espírito santo” de modo a deixar de ser um canal direto em Javé e os homens para uma multitude de intermediários ou enviados. Há outros questionamentos a se fazer, mas, antes, será apresentado outro autor:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

No movimento espírita, Pastorino está para língua grega assim como Severino Celestino da Silva está para o hebraico: são as fontes mais utilizadas para argumentos, digamos, de “autoridade” para calar qualquer debatedor. O problema é quando a destreza intelectual dos espíritas não consegue ir além do que suas fontes “clássicas” têm a oferecer e mesmo quando são indivíduos treinados – como foi o caso de Pastorino – isso não os impede de ver o que gostariam com o ferramental auferido nos bancos acadêmicos, nem os autoriza a ser a última palavra em seus campos de estudo.

Por ora, teço duas críticas:

  • Pastorino refuta J.R. Chaves: O próprio Pastorino catalogou 30 ocasiões em que pneuma hagion aparece com o artigo somente nos evangelhos, além de outras 29 para apenas pneuma (Idem, vol. V, p. 98). Assim, a principal premissa de J.R. Chaves – “no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão ‘Espírito Santo’, não se encontra o artigo definido grego” – é falsa. Justiça seja feita, ele reconheceu o erro publicamente em um artigo de sua coluna do jornal O Tempo, fazendo menção a Pastorino. Só não ficou claro se o autor folheara alguma Bíblia em grego antes disso;
  • Pastorino demonstra pouco rigor: ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto (tanto que não o computou), esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. No primeiro volume de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:
    1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado;
    2. Alexandrino: idem;
    3. Vaticano: idem;
    4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
    5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
    6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

    Sendo assim, os principais documentos por ele apontados não o corroboram. Alguém poderá alegar que os documentos foram adulterados por escribas. Tudo bem, mas será dele o ônus da prova. Se quer saber, detectou-se, sim, uma alteração no códice Sinaítico quanto a disposição entre “o Espírito Santo” e o verbo “enviará”, mas a expressão sempre esteve lá. Outros dirão que esses códices, embora antigos, ainda assim são dos século IV e V, contemporâneos, portanto, à questão ariana e aos primeiros Concílios Ecumênicos. Haveria, ao menos teoricamente, uma motivação para que fosse alterados para consolidar a doutrina da Trindade… Ok, só não se esqueça dos papiros P66 e P75, ambos datados do começo do século III, bem antes dessas disputas, e “cheios d’O Espírito Santo” em Jo 14:26.

Vamos destrinchar isso melhor?

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Artigo Grego: a Sofisticação da Simplicidade

 

Os artigos gregos do nominativo singular

O artigo integra as dez classes gramaticais que conhecemos, definindo-se como o termo que antepõe o substantivo para determiná-lo ou indeterminá-lo, indicando, também, o gênero (masculino/feminino) e o número (singular/plural).

Fonte: Brasil Escola.

De tão corriqueiro é provável que um falante do português não imagine sua comunicação diárias sem usar artigos. Muitos outros seres humanos, por outro lado, viveram muito bem sem eles – como os antigos romanos – e outros ainda vivem, como os russos e outros povos eslavos. “Ora, mas como eles conseguem evitar ambiguidade?”. Simples: o artigo é um marcador da definição ou indefinição de um substantivo, mas não é o único instrumento para se conseguir isso. Pronomes demonstrativos e possessivos também delimitam elementos, assim como pronomes indefinidos e numerais cardinais podem indeterminá-los. O latim, por exemplo, não tinha “oficialmente” artigos, mas as principais línguas neolatinas criaram os definidos a partir dos demonstrativos ille, illa e illud, e os indefinidos dos numerais unus, una e unum. Não houve, contudo, esse desenvolvimento no russo. Há, também, outro importante marcador da (in)definição de um substantivo: o contexto. Se os interlocutores já sabem a que estão se referindo ou se estão falando de forma genérica, então artigos são dispensáveis. Portanto, vamos ressaltar o primeiro ponto:

I – Artigos são úteis para a clareza da comunicação, mas não são indispensáveis a ela.

Como outros pesos-pesados da família de línguas indo-europeia não possuíam ou possuem artigos (como o sânscrito), cogita-se que o proto indo-europeu – a hipotética “mãe” dos idiomas dessa família – também não os possuía. Não obstante, diversas de suas descendentes desenvolveram artigos de forma independente, numa espécie de “evolução convergente” linguística. O antigo anglo-saxão (ca. 400 d.C), à moda de seus contemporâneos dialetos românicos usava demonstrativos como artigos definidos. De um deles veio o moderno artigo inglês the, que é invariável (i.e., sem gênero ou número). Apesar das similaridades quanto à origem e de sua simplicidade, quem já teve contato com esse idioma a um nível intermediário sabe que o artigo definido inglês esconde algumas armadilhas para os lusófonos. Por exemplo, é comum o inglês omitir o artigo quando a palavra é plural (ou um coletivo) e de sentido genérico, que o diga a American Standard Version em I Co 1:22 “Seeing that Jews ask for signs, and Greeks seek after wisdom“, ou substantivos abstratos como em Rm 6:23 “For the wages of sin is death“. Anglófonos também não usam artigo definido antes de nomes de pessoas – o que é corrente em português-, nem de pronomes possessivos (opcional para nós).

Embora a língua inglesa não seja o assunto aqui, por ela ser um pouco familiar a um potencial número de leitores, tomei-a como amostra para o segundo ponto:

II – O fato de um língua também possuir determinada classe gramatical, de forma alguma significa que ela é usada exatamente da mesma maneira que na sua.

Por sua origem, muitas vezes, de demonstrativos, nem sempre a função do artigo definido é meramente “individualizar”, pois há várias formas de isso ser feito (cf. [Wallace, pp. 216-25]). Assim, o artigo definido pode ser uma combinação de:

  • Identificador: destaca um elemento dos demais do conjunto. Ex: “Onde está a chave que te dei ontem?”
  • Anafórico: Faz referência a algo previamente dito. É possível, que quando ocorra pela primeira vez, a palavra esteja sem artigo ou com artigo indefinido para depois ser referenciada pelo artigo definido. Ex: “Às quatro horas, um sujeito alto de terno claro chegou às dependências da sede. Duas horas depois, o sujeito caminhava pelos corredores do quinto andar.”
  • Catafórico: quase o oposto do anafórico. Neste caso, o substantivo leva o artigo para indicar que alguma coisa extra sobre ele será dita. Ex: “Eis a principal meta: baixar os índices de violência.”
  • Dêitico: indica alguém ou alguma coisa próximo aos interlocutores no momento. Ex.: “A carta que está segurando”.
  • Par Excellence: expressão francesa que ressalta a identificação do substantivo articulado como o melhor de sua classe. Na Idade Média, por exemplo, Aristóteles era chamado de “O Filósofo” (Ille Philosophus) pelos eruditos.
  • Monádico: ressalta o substantivo que o segue como único de sua classe. Ex.: “o Sol”, “o salvador do mundo”.
  • De conhecimento: similar ao par excellence, mas usado com personagens não tão famosos assim, mas facilmente identificáveis aos público presente. Ex.: “Atenção turma, chegou o professor.”

Em sentido contrário, é possível, sim, que o artigo definido generalize em vez de individualizar. Isso se dá quando o substantivo associado a ele passa a representar toda uma classe de seres, como na clássica frase atribuída a Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Ainda existe uma outra capacidade do artigo definido: a personalizar substantivos abstratos. Com eles, pode-se tratar conceitos como se fosse, digamos, entes quase palpáveis. Ex. “a justiça tarda, mas não falha.”

Pode-se reparar, pelos exemplos, que muitas dessas propriedades não precisariam imperiosamente de artigos definidos. Demonstrativos poderiam agir como dêiticos, catafóricos e anafóricos. Monádicos poderiam dispensar complementos, por serem únicos, e o contexto já poderia indicar a quem ou o quê nos referimos. Plurais podem simbolizar classes inteiras, como o inglês faz opcionalmente. Portanto:

III – Compreender os usos e funções do artigo permite vislumbrar como poderiam ser dispensados.

O artigo definido grego também descende de demonstrativos e já podia ser rastreado nas obras de Homero, no VIII século a.C. (cf. [Robertson, XVI, pp. 754-5]), já tendo atingido pleno desenvolvimento, no dialeto ático, já obras de Platão. Não perdeu, contudo, um certo “quê” de demonstrativo, ainda que não fosse mais capaz de estabelecer, como esses, as relações de proximidade entre o substantivo a ele associado e os interlocutores. Sua função seria a de um “indicador” a apontar para atenção do ouvinte deveria se voltar (id., p. 756 e [Wallace, p. 208]).

IV – A principal força do artigo definido grego está em assinalar coisas, chamando atenção para elas

O leitor já deve ter reparado, nos diferentes exemplos e citações acima, em formas diferente para o artigo definido grego usado antes “Espírito Santo”. Já que a palavra não muda nem de gênero, nem de número, por que, então, existem formas discrepantes como ‘ο e το? A resposta é que, para a língua grego, será necessário fazer um pequeno adendo à definição de artigo dada no início deste tópico: o artigo não apenas indica o gênero e o número de um substantivos, mas também a função que ele desempenha na oração. Ainda que o artigo não esteja presente, no grego – assim como no latim, no sânscrito e no moderno alemão -, substantivos (e adjetivos) recebem afixos que assinalam o seu caso, i.e, sua função sintática. Estima-se que o proto indo-europeu possuía um sistema de oito casos (todos registrados no sânscrito), dos quais o grego antigo preservou cinco:

  • Nominativo: quando representa o papel de sujeito da oração ou de predicativo, em caso de verbos de ligação;
  • Acusativo: objeto direto;
  • Dativo: objeto indireto;
  • Vocativo: chamamento;
  • Genitivo: indica posse de um ente por outro.
Singular Plural Tradução
Nom. ἄνθρωπος ἄνθρωποι homem(ns)
Gen. ἀνθρώπου ἀνθρώπων de homem(ns)
Dat. ἀνθρώπῳ ἀνθρώποις a homem(ns)
Acus. ἄνθρωπον ἀνθρώπους homem(ns)
Voc. ἄνθρωπε ἄνθρωποι ó homem(ns)

Quadro de inflexões para anthropos (homem, humano), da primeira declinação.

O genitivo, auxiliado por preposições, absorveu as função original do caso ablativo de indicar a origem de um movimento ou um destacamento, ou, como no ablativo latino, fazer as vezes de uma adjunto adverbial. O dativo, também associado a preposições, assumiu o papel dos casos locativo (indicando local ou época em que uma ação de desenrola) e o instrumental (o “como” uma ação foi feita). Os grupos de palavras com um padrão flexional similar são chamados de declinações e o grego possui três, com diversos subtipos.

O artigo definido acompanha o substantivo a ele associado em gênero, número e caso, conforme o esquema a seguir:

Singular Plural
Caso \ Gênero Masculino Feminino Neutro Masculino Feminino Neutro
Nom. τό οἱ αἱ τά
Gen. τοῦ τῆς τοῦ τῶν τῶν τῶν
Dat. τῷ τῇ τῷ τοῖς ταῖς τοῖς
Acus. τόν τήν τό τούς τάς τά

Façam-se algumas observações: primeiramente, o artigo definido não é utilizado com o vocativo. Em segundo, tanto na tabela imediatamente acima como na anterior, foi utilizado um sistema de escrita desenvolvido ao longo da Idade Média. Nos tempos bíblicos não havia letras minúsculas, sinais diacríticos (vulgo “acentos”) e nem o “iota subscrito”, sendo que esses dois últimos, por praticidade, serão por vezes omitidos a partir daqui. Por último, ressalte-se que pneuma é um substantivo neutro – gênero desconhecido em nossa língua -, logo, no nominativo, pede “το” como artigo, em vez de “ὁ” (transliterado para ho), como aparece em alguns autores (espiritualistas ou não). Portanto,

V – O artigo definido grego concorda com as palavras a ele associadas, levando em conta alguns critérios inexistentes no idioma português.

Como substantivos geralmente vêm acompanhados de adjetivos, cada língua desenvolveu sua própria forma de lidar com a relação entre eles (e com os artigos associado, por extensão). Em inglês, os adjetivos são invariáveis e vêm antes do substantivo. Em português, eles concordam com o substantivo e, via de regra, vão após ele. Em grego, eles podem vir tanto antes como, porém com mudanças de significados, conforme o artigo definido se posicione entre eles. Há duas formas classificadas desse relacionamento: a posição atributiva do adjetivo e a predicativa, descritas abaixo:

Forma Exemplo Tradução
Atributiva ὁ ἁγαθὸς λόγος a boa palavra
ὁ λόγος ὁ ἁγαθὸς
Predicativa ὁ λόγος ἁγαθὸς a palavra é boa
ἁγαθὸς ὁ λόγος

Em relação às formas atributivas, é comum em gramáticas gregas ressaltar-se que a primeira coloca a ênfase no adjetivo, ao passo que a segunda passaria a ideia de um aposto como “a palavra, a boa” em oposição a outras “palavras não tão boas”. Entretanto, às vezes os redatores duas construções de forma intercambiável, como na expressão “ao terceiro dia” encontrada na segunda forma em Lc 18:33 (τη ημερα τη τριτη) e na primeira em Lc 24:7 (τη τριτη ημερα). De qualquer modo, ambas são traduzidas do mesmo modo, afinal a segunda forma não tem equivalente em português. Já as predicativas se caracterizam estruturalmente pela ausência de um artigo definido antes do adjetivo e semanticamente pela existência implícita de um verbo de ligação, que deve ser acrescentado na tradução. Se há implicações na disposição do adjetivo para “espírito santo”, é algo a se avaliar mais adiante, por ora:

VI – A disposição entre o adjetivo e o substantivo (além do artigo) em grego se dá comumente em estruturas sintáticas desconhecidas no português. As devidas adaptações são necessárias durante a tradução.

Talvez algum leitor esteja se perguntando “essas regras também valem para o artigo indefinido, não?”. A língua grega também desenvolveu o artigo indefinido a partir de numerais, como a nossa, porém isso ainda não estava claro ao século I d.C., na koiné popular do Novo Testamento. Tecnicamente, ainda não havia o artigo indefinido, portanto αγαθος λογος e λογος αγαθος podem significar tanto “uma boa palavra” (atributivo) quanto “uma palavra é boa” (predicativo), ficando a cargo do contexto a distinção do melhor sentido. Entretanto, por vezes, os autores do Novo Testamento usavam os numerais εις (“um”, ex.: Mt 8:19 και προσελθων εις γραμματευς), μια (“uma”) e εν (“um”, neutro) ou o pronome indefinido τις (“um certo”, ex.: Lc 10:25 και ιδου νομικος τις ανεστη) como artigos indefinidos, mas ainda não constituíam uma classe gramatical separada.

VII – O grego bíblico não possuía o artigo indefinido como classe gramatical plena, o que não significa que não possuísse alternativas. Doravante, ao se mencionar o “artigo grego”, subentenda-se o definido.

Então alguém deve estar pensando (ou já tem a resposta pronta) “Ah! Se há artigo, a palavra é definida. Se não há, então ela é indefinida, devendo ser traduzida sem artigo ou com o artigo indefinido português“. Se tudo fosse tão simples assim – como gostariam espiritualistas e testemunhas de Jeová – até não haveria o que discutir. Só que não. Se você realmente entendeu tudo o que está escrito acima, chegará à seguinte conclusão:

VIII – Em grego bíblico, se uma palavra é precedida de artigo, então a ideia envolvida é definida. Do contrário, ela pode ser definida ou não!

Melhor dar uma explicação pormenorizada, com exemplos da própria Escritura.
[topo]

A Presença dos Ausentes


 

Um coração feito de artigos

O grego só tem o artigo definido, que é um antigo demonstrativo, anafórico, e se usa sempre que há necessidade de definir um nome, isto é, de articular, que é função anafórica.

Na medida em que o artigo é um αρθρον, juntura, articulação, a ausência dele exprime a ausência da articulação e por isso exprime a indefinição.

Coloca-se o artigo sempre antes do nome, de quem assume o gênero,o número e o caso, porque, na verdade, ele é um adjunto adnominal.

[Murachco, p. 19]

Tudo o que a elogiada gramática grega de Murachco traz sobre o artigo cabe em uma única página, colocada no segundo volume, que é dedicado a exercícios. A parte teórica, constante no primeiro volume, sequer toca nele. A gramática de Antônio Freire, veterana entre os estudantes lusófonos, trata um pouco mais do tema, porém não muito. Caso tudo sobre o artigo grego se restringisse ao que trazem, seria necessário dar crédito às teses dos eruditos espiritualistas (e da Watch Tower).

Surpreso fiquei ao deparar com o colossal The Doctrine of the Greek Article, de Middleton, uma obra oitocentista um bocado confessional como as dos autores de critico, mas com o mérito de demonstrar quanto “pano para manga” o assunto poderia render. Gramáticos no Novo Testamento posteriores, e de ênfase mais técnica, dedicaram capítulos inteiros ao artigo (Robertson), quando não dois (Wallace). Recentemente, Ronald Peters tentou reunir tudo que já foi dito sobre o assunto num arcabouço teórico coerente. Ainda é cedo, contudo, para avaliar o impacto de sua proposta.

De fato, caso se fosse levar a ferro e fogo essa simplista regra gramatical, no melhor estilo one size fits all, efeitos estranhos surgiriam durante a tradução. Tome o exemplo do prólogo de João (Jo 1:1):

Eν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος

O que, literalmente, seria:

Em (um) princípio era o Verbo, e o Verbo estava com o Deus, e o Verbo era Deus.

Sinceramente, não deve ter sido essa a intenção do evangelista.

Quando estão lá, mas não aqui


Como dito antes, o artigo marca a definição do substantivo a ele associado, o que não significa que haja uma correspondência biunívoca com o seu equivalente da língua portuguesa. Muitas vezes, uma estrutura articular (i.e, com artigo) aparece em circunstâncias que nosso idioma dispensaria, carecendo, então, de uma explicação. Eis um apanhado que algumas situações:

  1. A segunda posição atributiva: não é difícil encontrar quem faça um bicho de sete cabeças dela, alegando que το πνευμα το αγιον deveria sempre vir como “o espírito, o santo”, mas a maioria das vezes ela pouco significa em termos teológicos, como:

    οταν ελθη εν τη δοξη του πατρος αυτου μετα των αγγελων των αγιων

    quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.

    Mc 8:38

  2. Junto a possessivos: uma estrutura desconhecida no inglês e no espanhol, frequente no português, é praticamente obrigatória no grego:

    εκτεινας την χειρα ηψατο αυτου
    estendeu (a) sua mão

    Mc 1:41

  3. Com genitivos: quando o substantivo principal é seguido por outro no genitivo, ou ambos possuem ou carecem de artigo

    ειδεν το πνευμα του θεου καταβαινον ωσει περιστεραν
    viu o Espírito de Deus descendo como pomba

    Mt 3:16

    por outro lado:

    ει δε εγω εν πνευματι θεου εκβαλλω τα δαιμονια
    Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus,

    Mateus 12:28

    Caberia “por (um) espírito de (um) deus”? Se o couber, II Co 6:7 ficaria um tanto estranho: “numa palavra duma verdade, num poder de (um) deus…”

  4. Com demonstrativos: o uso de pronomes demonstrativos na segunda posição predicativa cria um estrutura desconhecida me português e, diria, até estranha para seus falantes e os de línguas que também dispensam o artigo nesse caso (espanhol, inglês, etc.):

    και επι ταυτη τη πετρα
    e sobre esta pedra

    Mt 16:18

  5. Com indeclináveis: os tradutores gregos e latinos da Escritura tiveram um problema sério ao lidar com nomes próprio hebraicos, pois eles, via de regra, não se encaixavam em nenhuma das classes de declinação que conheciam. Uma opção era transliterá-los para algo mais familiar, já o mais famoso tradutor latino,Jerônimo, tomou uma decisão radical: não os declinava e deixava ao leitor a tarefa de identificar seu caso do contexto. Por vezes os autores do Novo Testamento não declinavam nomes próprios, mas, para facilitar a vida do leitor, deixavam um artigo marcando o caso em que a palavra se encontrava.

    ει δε υμεις χριστου αρα του αβρααμ σπερμα εστε

    se sois de Cristo, então sois semente de Abraão.

    Gl 3:29

    O testemunho dos manuscritos traz um caso interessante:

    πλησιον του χωριου ο εδωκεν ιακωβ [τω] ιωσηφ τω υιω αυτου
    junto da herdade que Jacó tinha dado a seu filho José.

    Jo 4:5

    O papiro P66 e os códices Vaticano e Sinaítico trazem o artigo de dativo τω antes do nome de José (Iωσηφ), porém o códice Alexandrino e a maioria dos demais manuscritos, não. Mesmo sem o artigo é possível, sim, identificar o caso em que o nome “José” se encontra pelas palavras que seguem a ele (claramente no dativo), porém a presença do artigo antes dele facilita a leitura. E não tem implicação semântica ou teológica alguma.

  6. Como um relativo em orações com função de genitivo ou preposicionadas, o artigo acaba por fazer as vezes do que seria um pronome relativo no português:

    πατερ ημων ο εν τοις ουρανοις
    Pai nosso que estás nos céus

    Mt 6:9

    Mas se preferir “Pai nosso, o nos céus”, seja feliz (paciência)!

  7. Discernindo o sujeito de seu predicativo: tanto um como outro acabam sendo assinalados pelo mesmo caso, o que pode gerar ambiguidade às vezes. Para sanar isso, o artigo era posto junto ao sujeito da oração:

    πατερα ιδιον ελεγεν τον θεον
    dizia que Deus era seu próprio Pai

    Jo 5:18

    κυριος γαρ εστιν και του σαββατου ο υιος του ανθρωπου
    Porque o Filho do homem até do sábado é Senhor

    Mt 12:8

Esta lista não exaustiva oferece uma amostra de situações em que o modo de pensar de nossa língua não corresponde exatamente ao do grego bíblico. Entretanto, a problemática principal se dá quando o substantivo não possui artigo. Poderia ele ainda assim transmitir uma ideia ou conceito definido, delimitado?

Quando não estão lá, mas podem estar aqui


Caso a regra simplista quanto ao uso (e desuso) do artigo grego fosse absoluta, então seria trivial indicar o uso dele em substantivos cuja identidade é sabidamente determinada. Contudo, não é difícil achar contraexemplos para tal pressuposto:

GÁLATAS 3:21-6

Grego Tradução (João F. de Almeida Revisada)
21. ο ουν νομος κατα των επαγγελιων του θεου μη γενοιτο ει γαρ εδοθη νομος ο δυναμενος ζωοποιησαι οντως αν εκ νομου ην η δικαιοσυνη
22. αλλα συνεκλεισεν η γραφη τα παντα υπο αμαρτιαν ινα η επαγγελια εκ πιστεως ιησου χριστου δοθη τοις πιστευουσιν
23. προ του δε ελθειν την πιστιν υπο νομον εφρουρουμεθα συγκεκλεισμενοι εις την μελλουσαν πιστιν αποκαλυφθηναι
24. ωστε ο νομος παιδαγωγος ημων γεγονεν εις χριστον ινα εκ πιστεως δικαιωθωμεν
25. ελθουσης δε της πιστεως ουκετι υπο παιδαγωγον εσμεν
26. παντες γαρ υιοι θεου εστε δια της πιστεως εν χριστω ιησου
21. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei.
22. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
23. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.
24. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados.
25. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio.
26. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus.

As palavras πιστις (“fé”) e νομος (“lei”) aparecem várias vezes em estruturas articulares e anartras (i.e., sem artigo) quase adjacentes. Conhecendo-se o tema de Gálatas é fácil identificar que se referem à fé em Jesus e à lei mosaica e apenas uma das instâncias anartras de νομος sugere indefinição (uma lei qualquer). Talvez, como já foi sugerido por gramáticos, o artigo grego “pegue” e ressalte a definição de um substantivo ao invés dar-lhe uma. Assim, ao se defrontar com um substantivo anartro, há de se perguntar não se ele é indefinido ou não, mas se a ideia que porta o é.

Basicamente, um substantivo anartro três tipos distintos de “caráter”: indefinido, qualitativo e definido. Não são estanques, mas formam um contínuo do mais genérico ao mais específico. Em algumas circunstâncias o caráter qualitativo pode estar mais perto do indefinido, em outras, do definido.

Gradações do caráter de um nome anartro

O carácter de um substantivo anartro.

  • Indefinido: o substantivo representa um elemento de uma classe sem especificar qual é. Traduz-se, em geral, com o artigo indefinido português.

    Caráter Indefinido

    O esquema do caráter indefinido.

    Por exemplo:

    ερχεται γυνη εκ της σαμαρειας αντλησαι υδωρ
    Veio uma mulher de Samaria tirar água.

    Jo 4:7

  • Qualitativo: indica a pertinência a uma determinada classe, implicando na posse das qualidades inerentes a ela, sem realçar sua individualidade. Traduz-se, em português, sem artigo ou com um artigo indicador de classe (como em “o homem é um animal racional”).

    Caráter qualitativo

    Esquema do caráter qualitativo.

    Exemplos:

    οτι ο θεος αγαπη εστιν
    Porque Deus é amor.

    I Jo 4:8

    ει εξεστιν ανδρι γυναικα απολυσαι
    se é lícito a[o] homem repudiar [sua] mulher.

    Mc 10:2

    Em I Jo 4:8, o substantivo Deus não é “um amor”, no sentido que existam outros, nem “o amor”, como se fosse um sentimento, mas se enfatiza que “amar” é uma qualidade que lhe é inerente. Já Mc 10:2 carrega mais no aspeto de pertinência a um conjunto ou classe. A Sociedade Bíblia Britânica traduz o versículo por “um homem repudiar sua mulher”, o que tem sentido análogo, pois não se faz referência a determinada pessoa não identificada (como no caso da mulher samaritana de Jo 4:7), mas a qualquer membro do gênero masculino.

  • Definido: permite que um elemento específico de uma classe seja identificado, quer seja pelo contexto ou alguma particularidade gramatical. Não há uma regra sistemática para isso, porém algumas linhas gerais podem ser traçadas:

    Caráter qualitativo

    Esquema do caráter definido.

    1. Substantivos próprios: são definidos por natureza. É comum serem anartros na primeira aparição na narrativa, mas receberem um artigo anafórico nas seguintes.

      παυλον διελθοντα τα ανωτερικα μερη ελθειν εις εφεσον
      Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso

      At 19:1

      Mais adiante

      και επιθεντος αυτοις του παυλου τας χειρας ηλθεν το πνευμα το αγιον επ αυτους
      E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo

      At 19:6

    2. regido por preposição: é comum anartros substantivos após uma preposição terem sentido definido.

      ερχομενον απ’ αγρου
      vindo do campo

      Mc 15:21 (compare com Lc 17:7 εκ του αγρου)

      διελθων δια μεσου αυτων
      passando pelo meio deles

      Lc 4:30

      εν σαρκι γαρ περιπατουντες ου κατα σαρκα στρατευομεθα
      Porque, andando na carne, não militamos segundo a carne.

      2 Cor 10:3

      οτι ουκ εγκαταλειψεις την ψυχην μου εις αδου
      Pois não deixarás a minha alma no inferno [Hades]

      At 2:27

      Vale ressaltar que um substantivo anartro preposicionado não tem necessariamente de ser definido, como em Jo 4:27

      οτι μετα γυναικος ελαλει
      que estivesse falando com uma mulher

    3. Com palavras no genitivo: Já foi mencionado anteriormente que, em construções genitivas, tanto o nome que a encabeça quanto o que está no caso genitivo virão com ou sem o artigo, um postulado conhecido desde a Antiguidade como Regra de Apolônio . Um corolário dessa regra, proposto já nos tempos recentes, afirma que, geralmente, quando as palavras dessas construções são anartras, ambas possuem o mesmo caráter semântico. Assim, haveriam majoritariamente pares definido-definido, qualitativo-qualitativo e indefinido-indefinido. Em seguida, viriam pares que elas se distanciam por um grau (ex., D-Q) e mais raramente aquelas que se distanciam por dois (D-I e I-D). Eis alguns exemplos que pares anartros D-D que obedecem ao corolário:

      και πυλαι αδου ου κατισχυσουσιν αυτης
      e as portas do Hades [inferno] não prevalecerão contra ela

      Mt 16:18

      ου δυνασθε ποτηριον κυριου πινειν και ποτηριον δαιμονιων ου δυνασθε τραπεζης κυριου μετεχειν και τραπεζης δαιμονιων
      Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.

      I Co 10:21

      και εδωκεν αυτω διαθηκην περιτομης
      E deu-lhe a aliança da circuncisão.

      At 7:8

    4. construções genitivas preposicionadas: juntam-se as forças dos dois casos anteriores:

      το δε καθισαι εκ δεξιων μου και εξ ευωνυμων μου ουκ εστιν εμον δουναι
      mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me pertence dá-lo

      Mt 20:23

      περι ελπιδος και αναστασεως νεκρων εγω κρινομαι
      no tocante à esperança e ressurreição dos mortos sou julgado.

      At 23:6

      κλητος αποστολος αφωρισμενος εις ευαγγελιον θεου
      chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus

      Rm 1:1

      και παρα καιρον ηλικιας
      mesmo além do tempo da idade

      Hb 11:11

    5. Começo de livros e seções: podem vir sem artigo, por já serem definidos o bastante:

      Ευαγγελιον κατα Μαρκον
      O Evangelho segundo Marcos

      βιβλος γενεσεως ιησου χριστου
      Livro da geração de Jesus Cristo

      Mt 1:1

      Fato curioso ocorre na abertura da Primeira Epístola de Pedro, pois não há um artigo sequer.

      I Pe 1:1,2

      Grego Tradução (João F. de Almeida Revisada)
      1. πετρος αποστολος ιησου χριστου εκλεκτοις παρεπιδημοις διασπορας ποντου γαλατιας καππαδοκιας ασιας και βιθυνιας

      2. κατα προγνωσιν θεου πατρος εν αγιασμω πνευματος εις υπακοην και ραντισμον αιματος ιησου χριστου χαρις υμιν και ειρηνη πληθυνθειη

      1. Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia;

      2. Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.

    6. palavras aos pares ou em sequências: Muitas vezes, palavras de sentido definido ou qualitativo aparecerem anartras quando mencionadas em duplas.

      και αναπαυσιν ουκ εχουσιν ημερας και νυκτος
      e não descansam nem de dia nem de noite

      Ap 4:8

      Ou “não descansam dia e noite”, mais literalmente. Um idiomático anartro também é viável em português. Outros exemplo:

      και γαρ ειπερ εισιν λεγομενοι θεοι ειτε εν ουρανω ειτε επι [της] γης
      Pois ainda que há os que se chamam deuses, quer no céu quer na terra

      (O artigo de γης – “terra” – aparece ou não dependendo da variante textual)

      1 Cor 8:5

      τω ετοιμως εχοντι κριναι ζωντας και νεκρους
      o que está pronto para julgar os vivos e os mortos

      1 Pe 4:5

      Agora, exemplos de longas listagens:

      ειτε παυλος ειτε απολλως ειτε κηφας ειτε κοσμος ειτε ζωη ειτε θανατος ειτε ενεστωτα ειτε μελλοντα
      Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro.

      1 Cor 3:22

      πανηγυρει και εκκλησια πρωτοτοκων εν ουρανοις απογεγραμμενων και κριτη θεω παντων και πνευμασιν δικαιων τετελειωμενων
      À universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados;

      Hb 12:23

      É comum em pares ou sequências de palavras de mesma classe e caso unidas pelo conectivo και (“e”), quando a primeira delas recebe artigo, as demais o dispensarem. Um exemplo clássico:

      τοις δε δειλοις και απιστοις και εβδελυγμενοις και φονευσιν και πορνοις και φαρμακοις και ειδωλολατραις και πασιν τοις ψευδεσιν το μερος αυτων εν τη λιμνη τη καιομενη πυρι και θειω
      Mas quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicários, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre

      Ap 21:8

    7. numerais ordinais: Em grego, o ordinal já era considerado definido o bastante por si só muitas vezes. Ressalte-se que, nos tempos antigos, usavam-se ordinais para expressões de tempo.

      αυτη [η] απογραφη πρωτη εγενετο ηγεμονευοντος της συριας κυρηνιου
      Este foi o primeiro recenseamento que se fez no tempo em que Quirino era governador da Síria.

      Lc 2:2 (nota: textos bizantinos trazem απογραφη (“censo”) articular.)

      ην δε ωρα τριτη και εσταυρωσαν αυτον
      Era a hora terceira, quando o crucificaram.

      Mc 15:25

      ητις εστιν εντολη πρωτη εν επαγγελια
      que é o primeiro mandamento com promessa

      Ef 6:2

    8. predicativo do sujeito: já foi dito anteriormente que o artigo grego é usado como um marcador para o sujeito de um verbo de ligação. Uma consequência é a omissão, muitas vezes, do artigo para o predicativo, que pode ter um caráter definido, qualitativo ou indefinido. Em 1931, Ernest Cadman Colwell defendeu sua tese de doutorado – “O Caráter do Grego do Evangelhos de João” – e, em sua pesquisa, descobriu uma regra para o uso do artigo que de foi publicada à parte em 1933 e ficaria conhecida posteriormente como “Regra de Colwell”:

      “Os substantivos de predicado definido que precedem o verbo geralmente carecem de artigo (…) um predicativo nominativo que preceda o verbo não pode ser traduzido como um substantivo indefinido ou ‘qualitativo’ unicamente por causa da ausência do artigo; se o contexto sugere que o predicado é definido, ele deve ser traduzido como um substantivo definido.”

      Uma posterior análise de Philip B. Harner que apenas em 20% dos casos, o predicado pré-verbal é definido e quase sempre nos demais 80% ele é qualitativo. Exemplos do primeiro caso:

      [ει] βασιλευς ισραηλ εστιν καταβατω νυν απο του σταυρου
      [Se] é o Rei de Israel, desça agora da cruz

      Mt 27:42

      ου γαρ επαισχυνομαι το ευαγγελιον δυναμις γαρ θεου εστιν εις σωτηριαν παντι τω πιστευοντι
      Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê

      Rm 1:16

      ο λογος γαρ ο του σταυρου τοις μεν απολλυμενοις μωρια εστιν τοις δε σωζομενοις ημιν δυναμις θεου εστιν
      Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.

      I Co 1:18 (no caso, um predicativo qualitativo e outro definido pré verbais num mesmo versículo)

      και αυτος ιλασμος εστιν περι των αμαρτιων ημων
      Ele é a propiciação pelos nossos pecados

      I Jo 2:2

    9. com substantivos monádicos: substantivos únicos de sua espécie em muitas ocasiões recebem um artigo que lhes ressalta a exclusividade (ex: “cordeiro de Deus” em Jo 1:29). Por outro lado, em outras o dispensam, muito bem, obrigado:

      ηλιου δε ανατειλαντος εκαυματισθη
      mas, vindo o Sol, queimou-se

      Mt 13:6

      αλλη δοξα ηλιου και αλλη δοξα σεληνης και αλλη δοξα αστερων αστηρ γαρ αστερος διαφερει εν δοξη
      Uma é a glória do Sol, e outra a glória da Lua, e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela.

      I Co 15:41

      ουρανοι ησαν εκπαλαι και γη εξ υδατος και δι υδατος συνεστωσα
      já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste.

      II Pe 3:5 (compare com Mt 5:18)

    10. monádicos preposicionados: combinação de dois dos casos anteriores:

      ο δε υπομεινας εις τελος ουτος σωθησεται
      mas aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.

      Mt 24:13 (afinal, só existe um “final”)

      εν αρχη ην ο λογος
      no princípio era o Verbo.

      Jo 1:1 (porque, “em princípio”, existe apenas um “princípio”)

      εξ ου πασα πατρια εν ουρανοις και επι γης ονομαζεται
      Do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome

      Ef 3:15 (aqui também poderia ser o caso de palavras em par)

    11. substantivos genéricos: estando na fronteira entre o qualitativo e o definido, os substantivos que representam classes não precisam necessariamente de artigo. Quando traduzidos levam um artigo definido ou até mesmo um indefinido, conforme o caso.

      κριτης τις ην (…) ανθρωπον μη εντρεπομενος
      Havia um certo juiz (…) que não respeitava o homem

      Lc 18:2

      που σοφος; που γραμματευς;
      onde está o sábio? onde o erudito?

      I Co 1:20

      η γυνη δε δοξα ανδρος εστιν
      mas a mulher é a glória do marido

      I Co 11:7 (aqui tem-se um substantivo genérico articular ao lado de outro anartro)

* * *

Por ora, esta lista não exaustiva basta para deixar claro que a simples ausência do artigo grego não implica que as traduções para o português devam ser anartras também ou com o artigo indefinido. Se alguém vier a clamar essa regra fajuta, na melhor das hipóteses será um desinformado e, na pior, agirá por má fé, tendo a própria Escritura que se apropria louva por contraprova.

[topo]

As Faces do Espírito

Os Dons do Espírito

3. (…) Os arianos, tendo mal entendido a presença encarnada do Verbo e as coisas que foram ditas em consequência disso, tomaram delas uma desculpa para sua heresia e foram condenados como inimigos de Deus e por falar coisas que são, na verdade, improdutivas e terrenas (cf Jo 3:12,31). Mas de onde foste enganado? De quem ouviste tal erro? De que modo caíste nisso: “Lemos”, dizem eles, “no profeta Amós (Am 4:13, LXX), onde Deus diz: ‘Eu sou o que faz trovão e cria espírito e declara ao homem seu Cristo, que faz aurora e escuridão, que ascende aos altos lugares da Terra. O Senhor Deus onipotente é seu nome.’ Por isso cremos nos arianos quando disseram que o Espírito Santo é uma criatura.” Assim lês a passagem em Amós. (…) Simplesmente por ouvir a palavra “espírito” supuseste que o Espírito Santos fosse chamado de criatura. (…) Mas o texto não dá indicação alguma do Espírito Santo; apenas fala de espírito. Por que, então, embora haja na Escritura uma grande diferença no uso da palavra e o texto possa ser interpretado num sentido ortodoxo, tu – quer pelo amor à disputa ou por ter sido envenenado pela presa da serpente ariana – supões que o Espírito Santo seja referenciado em Amós? Só que não pode esquecer de considerá-lo como um criatura.

4. Diz-nos, então, se há alguma passagem na divina Escritura onde o Espírito Santo é encontrado simplesmente referenciado como “espírito” sem o acréscimo de “de Deus”, ou “do Pai”, ou “meu”, ou “de Cristo” ele próprio, e “do Filho”, ou “de mim” (i.e., de Deus), ou com o artigo, de modo que é chamado não meramente de “espírito”, mas de “o Espírito”, ou o mesmíssimo termo “Espírito Santo” ou Parácleto, ou “da Verdade” (i.e., do Filho que diz: “Eu sou a Verdade”), que, justamente porque ouviu a palavra “espírito”, toma-la como se fosse o Espírito Santo? Deixe de fora, por enquanto, os caso em que pessoas que já receberam o Espírito Santo são mencionadas novamente e os lugares onde os leitores, tendo previamente sabido dele, não são ignorantes sobre quem estão ouvindo quando ele é mencionado outra vez, pela forma de repetição ou lembrete, meramente como “o Espírito”, nesses casos também é geralmente usado com o artigo. Sumarizando, a não ser que o artigo esteja presente ou o supracitado acréscimo, isso não pode se referir ao Espírito Santo.

Atanásio, Carta ao bispo Serapion. Fonte: [Shapland, epístola I.3-4, pp. 66-70]

Assim falou Atanásio, bispo de Alexandria e campeão do partido Trintário durante o auge da controvérsia ariana, numa correspondência cuja datação estimada se situa entre 356 e 361 d.C., o que seria o período seu terceiro exílio [Shapland, p. 16]. Esse talvez seja o mais antigo relato sobre a importância do artigo (e do contexto) sobre as questões da pneumatologia, i.e., a doutrina teológica do Espírito Santo. Note que Atanásio, no trecho acima, fala da distinção entre “(um) espírito”/”o Espírito”, embora também considere como a favor de seu ponto de vista construções anartras de “espírito santo” (ex. Jo 20:22 na epístola I. 6) ou articulares que autores espiritualistas já usaram em tempos recentes (Dn 13:45, ep. I.5, p.71). De qualquer maneira, o entendimento de Atanásio já está próximo ao da corrente ortodoxia cristã e seria corroborado no I Concílio de Constantinopla em 381 d.C., cerca de oito anos após sua morte. Será, portanto, necessário analisar criteriosamente a literatura cristã pré-nicena e a intertestamentária para identificar como esse entendimento surgiu e evoluiu.

No Novo Testamento, basicamente, estas são as formas em que pneuma (“espírito”) aparece:

  • Pneuma
  • To Pneuma
  • Pneuma Hagion
  • To Pneuma to Hagion
  • To Hagion Pneuma

Vejamos as circunstâncias em que cada uma aparece, especialmente em Lucas, Atos e João: os livros em que esse conceito é crucial.

Pneuma x To Pneuma


Não há nenhuma “bala de prata” para se discernir se pneuma significa um espírito qualquer ou o “Espírito de Deus” ou o “Santo”. De certo, a ausência de artigo abre espaço para a generalização (cf. Lc 24:37), mas sua presença não basta para definir de quem espírito é, caso o artigo seja anafórico ou de classe (como até Atanásio admitiu). A solução é extrair mais informações do contexto.

Por exemplo, no texto de Amós posto acima, intui-se que seu autor falava de fenômenos da natureza, devendo a melhor tradução para pneuma ser “vento”, algo talvez desprovido de qualquer divindade ou espiritualidade, aliás, na literatura greco-romana, essa palavra poderia ter significados ainda mais mundanos:

Algumas vezes ambos são removidos pelos mesmos [remédios] – por exemplo, sempre que a dor ocorre devido ao pneuma flatulento e ao espessamento da parte. Sob essas circunstâncias, o uso dos agentes que são moderadamente aquecedores é adequado; i.e., os que também chamamos de relaxante, e que simultaneamente rarefazem o que ficara denso no corpo, afinam o pneuma flatulento, e dispersam o que já ocorreu de inflamação.

Fonte: Galeno, Method of Medicine, Vol III, XIII.6, Loeb Classical Library, p.349

Quem diria pneuma associado a gases pútridos em um manual de medicina da Antiguidade…

Na verdade, como qualquer pessoa que já trabalhou em traduções (e não simplesmente transcreveu as alheias) sabe, não importa a língua, nem a palavra escolhida: não existirá nenhum equivalente completo para a dada palavra em sua língua materna. Haverá, sim, um conjunto de palavras cujo emprego se sobrepõe ao dela. Quanto mais, digamos, “concreta” ela for, menor esse conjunto e maior a sobreposição serão e o inverso se dá com as mais abstratas. Como é o caso de pneuma:

Vários significados de pneuma

Lista não exaustiva dos diversos significados de pneuma, do mais concreto ao mais abstrato, em sentido anti-horário.

Boa parte dos embates teológicos surge quando um grupo centra-se em um significado e desconsidera ou invalida a possibilidade de outros que são adotados por rivais. Quanto mais simbólica a mensagem, pior:

O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

Jo 3:6-8

Uma dúvida que se pode levantar é se esse artigo utilizado é definidor de um indivíduo ou de uma classe. O Evangelho segundo o Espiritismo (cap. IV) adotou o segundo entendimento ao considerar o conjunto de versículos acima como uma das provas de reencarnação na Bíblia, fazendo de “o espírito” um genérico para o “espírito humano”. Nas palavras do próprio Allan Kardec:

“O Espírito sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, é uma passagem que se pode entender pelo Espírito de Deus que dá a vida a quem quer, ou pela alma do homem. Nesta última acepção, a seqüência: “mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, significa que não se sabe o que foi nem o que será o Espírito. Se, pelo contrário, o Espírito, ou alma, fosse criado com o corpo, saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso, esta passagem é a consagração do principio da preexistência da alma, e por conseguinte da pluralidade das existências.

ESE IV.9

Há um pormenor que ficou de fora – “e ouves a sua voz” – o espírito não necessariamente existe exclusivamente para dar vida. A inspiração profética e de adoração também era tida como uma de suas capacidades, como visto acima, caso sua origem fosse divina. Assim, esse renascimento teria outro significado e poderia ser obtido numa mesma existência humana. Qual seria o sentido do evangelista ou, ao menos, de seus primeiros leitores? Há de se retornar a essa questão mais adiante.

Quando o contexto é menos simbólico, é mais fácil identificar a quem pneuma se refere:

Este [Apolo] era instruído no caminho do Senhor e, fervoroso de espírito [ζεων τω πνευματι], falava e ensinava diligentemente as coisas do Senhor, conhecendo somente o batismo de João.

At 18:25

Somos informados que Apolo ainda não recebera um batismo cristão (i.e., pelo Espírito Santo), o que só ocorreria em At 19:6, quando experimentou fenômenos semelhantes aos vivenciados pelos apóstolos em Pentecostes. Assim, provavelmente o fervor era do espírito dele mesmo. As traduções portuguesas, inclusive, tornam anartra uma expressão articular em grego, o que até se adequa melhor a esse entendimento.

Quanto a pneuma que vem de fora:

E logo o Espírito o impeliu para o deserto.

Mc 1:12

Essa é uma referência ao pneuma recebido por Jesus em forma de pomba dois versículos antes, também em forma articular. Pode ser Espírito Santo (como Lucas faz em Lc 3:22) ou o “Espírito de Deus”, mas com certeza não é o espírito de Jesus, uma assombração ou um coletivo.

A adição de algum complemento a pneuma – como “de Deus” ou “imundo” – pode esclarecer quanto à origem dele, por outro lado é ainda insuficiente quanto a sua individualidade. Nisso, o adjetivo hagion (“santo”), quando associado a pneuma, merece atenção especial.

Pneuma Hagion x To Pneuma to Hagion


Uma regra muito difundida entre os meios mais, digamos, confessionais alega que:

Quanto ao uso do artigo junto a Pneuma Hagion, quando se trata da individualidade pessoal do Espírito Santo como tal, é articulado; quando se focaliza a operação, os dons e manifestações, é anartro.

Que ficou conhecida com “Regra de Middleton”, em homenagem ao autor de The Doctrine of Article e o primeiro a propor essa regra (cf. pp. 125-6). Eis alguns exemplos em que ela se encaixa bem:

  • Espírito Santo como indivíduo (articular):
    • Mt 12:32 (…) mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado(…)
    • Lc 3:22 E o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba(…)
    • Jo 14:26 Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome(…)
  • Espírito Santo como manifestação ou dom (anartro):
    • Mc 1:8 Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
    • Lc 1:67 E Zacarias, seu pai, foi cheio do Espírito Santo, e profetizou, dizendo:
    • II Tm 1:14 Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós.

Como quase toda regra, essa também está também está sujeita a exceções e “senões”. Primeiramente, há várias construções articulares no Novo Testamento em que Pneuma Hagion, na verdade, leva um artigo anafórico referente a uma primeira menção anartra, como Lc 2:25 e o subsequente versículo. Em situação oposta, há casos em que Pneuma Hagion é anartro, mas a ideia que porta sugere referência a um indivíduo, como em Rm 15:13: “para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo” (εις το περισσευειν υμας εν τη ελπιδι εν δυναμει πνευματος αγιου), que pode muito bem se enquadrar no caso de uma supracitado de uma construção genitiva preposicionada.

O argumento utilizado por Middleton para essa separação foi bem simples: “embora o próprio Espírito seja apenas um, suas influências e operações podem ser muitas” (p. 126). Esse relacionamento “um para muitos” se ajusta bem àquele entendimento de Pneuma Hagion com uma espécie de poder, substância ou canal de comunicação de origem única (divina, no caso) que, por sua vez, ramifica-se por diversos humanos. Expressões anartras em grego como “cheio do Espírito Santo”, “batizar com o Espírito Santo (e com fogo)” ou “ter/estar com o Espírito Santo sobre si” remetem a essa noção. Às vezes, contudo, a dicotomia poder-substância X indivíduo fica um tanto pastosa. É o que acontece no livro de Atos, quando “dar o Espírito Santo” – por uma postura ativa de Deus – é articular (cf. At 5:32 e 15:8), por outro lado “receber o Espírito Santo” – em atitude passiva dos homens – é anartro (cf. At 8:15, 17, 19). O versículo At 5:32 chama atenção:

E nós somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem.

O Espírito Santo é dado/recebido como uma substância ou poder, mas testemunha como se um indivíduo fosse. Juntando-se esse versículo com aquele em que Pneuma Hagion aparece como passível de sofrer blasfêmia (Lc 12:10), fica difícil cogitar que a comunidade lucana tomasse Pneuma Hagion como uma alma desencarnada qualquer, uma falange de espíritos ou alma de cada membro.

To Hagion Pneuma


A articulação de Pneuma Hagion na primeira forma atributiva é uma característica marcante dos livros cuja autoria é tradicionalmente dada a Lucas, que possui a maioria de suas ocorrências. A saber:

  • mas ao que blasfemar contra o Espírito Santo não lhe será perdoado (Lc 12:10)
  • Porque na mesma hora vos ensinará o Espírito Santo o que vos convenha falar. (Lc 12:12)
  • Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós;(…) (At 1:8)
  • e recebereis o dom do Espírito Santo; (At 2:38)
  • e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com ousadia a palavra de Deus. (At 4:31)
  • andando no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo. (At 9:31)
  • maravilharam-se de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. (At 10:45)
  • E assim estes, enviados pelo Espírito Santo,(…) (At 13:4)
  • foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia (At 16:6)

Outras ocorrências

  • batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; (Mt 28:19)
  • Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,(…) (I Co 6:19)

Embora o quadro seja mais nebuloso, é possível cogitar um fundo comum a esses: esse pequeno punhado de versículos tem em comum a presença de uma relação entre Espírito Santo e os humanos. A inversão propiciada por To Hagion Pneuma realçaria o caráter de santidade do Espírito, por ser oriundo de Deus, em sua interação com os mortais, quer seja diretamente (blasfêmia, instrução, impedimento) ou concedendo-lhes dádivas (dom, virtude, consolação) ou recebendo-as deles (templo). A única exceção talvez seja At 4:31, que traz Pneuma Hagion anartro na maioria dos códices bizantinos. Uma hipótese mencionada por [Read-Heimerdinge, cap.V, p. 1666, nota] sugere um uso anafórico do artigo (Pneuma Hagion já fora citado em At 4:8), mas o redator, por questão estilística, teria preferido a primeira forma atributiva para poupar um artigo numa sentença em que já são muito usados junto a outros substantivos.

* * *

Em resumo: grosso modo, Pneuma Hagion se centra no aspecto, digamos, substancial do Espírito Santo, To Pneuma to Hagion no individual e To Hagion Pneuma no relacional. Há exceções e imprecisões, sim, que poderiam muitas vezes ser sanadas casos os antigos houvessem deixado alguma pista de como enxergavam o “espírito”.

E eles deixaram.

[topo]

Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ

PNA HAGION

Nomen Sacrum de To Pneuma to Hagion em Jo 14:26 no Códice Sinaítico.

MANUSCRITOS
Os primeiros exemplares do Novo Testamento eram copiados em papiros (espécie de papel) , material frágil e facilmente deteriorável. Mais tarde passaram a ser escritos em pergaminho (pele de carneiro) , tornando-se mais resistentes e duradouros.

Os manuscritos eram grafados em letras “capitais” ou “unciais” (ou seja, maiúsculas). Só a partir do 8º século passaram a ser escritos em “cursivo”, ou letras minúsculas.

Fonte: Pastorino, Carlos, Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. I, p 3.

COPISTAS
Os encarregados de copiar os manuscritos chamavam-se “copistas” ou “escribas”. Mas nem sempre conheciam bem a língua, sendo apenas bons desenhistas das letras. Pior ainda se tinham conhecimento da língua, porque então se arvoravam a “emendar” o texto, para conformá-lo a seus conhecimentos. Não havia sinais gráficos para separação de orações, e as próprias palavras eram copiadas de seguida, sem intervalo, para poupar o pergaminho que era muito caro. Dai os recursos empregados, como:

ABREVIATURAS
ou reunião de várias letras numa SIGLA, por exemplo: pq, para exprimir porque. Algumas abreviaturas eram perigosas, como: OC, que significa “aquele que”. Mas se houvesse um pequenino sinal no meio do O, fazendo dele um “theta”, passaria a significar “Deus”, (cfr. I Tim. 3:16).

Fonte: Idem, p. 4.

* * *

ESPÍRITO
Vamos aproveitar para esclarecer a distinção que fazemos das diversas acepções da palavra ESPÍRITO. Ora o escrevemos entre aspas e com inicial minúscula: o “espírito”, e queremos então referir-nos ao termo comum de espírito desencarnado, isto é, ao espírito da criatura que ainda está preso à personalidade, com um rótulo, ou seja, um NOME: por exemplo, o “espírito” de João, o “espírito” de Antônio, etc . Doutras vezes escrevemos a palavra com inicial maiúscula: o Espírito, e com isso significamos a individualidade, ou seja, o trio superior composto de Centelha Divina, Mente e Espírito, mas sem nome, não sujeito a tempo e espaço. Então, quando o Espírito se prende à personalidade, passa a ser o “espírito” de uma criatura humana, encarnada ou desencarnada. O Espírito é o que está em contato com o Eu Profundo, enquanto o “espírito” está em contato com o “eu” pequeno, que tem um nome. Somos forçados a fazer estas distinções para que as ideias fiquem bem claras. Além desses, temos o “Espírito” de Deus, ou o “Espírito” Santo, que é a manifestação cósmica da Divindade, também chamado o Cristo Cósmico, de que todos somos uma partícula, um reflexo; em nós, o Cristo é denominado “Cristo Interno” ou Centelha Divina, e é a manifestação divina em cada um de nós. Não se pense, entretanto, que a reunião de todas as Centelhas divinas ou “mônadas” das criaturas forme o Cristo Cósmico. Não! Ele está imanente (dentro de todos nós), mas é INFINITO e, portanto, é transcendente a todos, porque existe ALÉM de todos infinitamente. O mergulho de que falamos exprime, em primeiro lugar, o ENCONTRO do “espírito” (personalístico) com o seu próprio Espírito (individualidade), e depois disso, em segundo lugar, a absorção do Espírito no mais recôndito de seu EU profundo, ou seja, a UNIFICAÇÃO do Espírito com o Cristo Interno, com sua consequente INTEGRAÇÃO com o Cristo Cósmico.

Fonte: Idem, pp. 114-5

* * *

O Espírito Santo, do jeito que é, só foi instituído pela Igreja, oficialmente, no Concílio de Constantinopla (381). Paulo não O conheceu. E sua doutrina virou dogma justamente porque já era polêmica desde sua instituição. Ele, com os artigos definidos “ho” ou “tó” nos originais gregos bíblicos, pode significar Deus transcendente: o Santo Espírito, o santo dos santos, mas pode também ser uma referência à centelha divina ou Cristo interno, imanente, que habita em cada um de nós, a qual é classificada por Pietro Ubaldi, em “Grande Síntese”, como sendo o espírito hominal evoluído, já individualizado. E quando se trata do próprio Deus transcendente, santo Tomás de Aquino discorda de santo Agostinho, dizendo que o Espírito Santo deveria vir em primeiro lugar e não no terceiro, na ordem da Santíssima Trindade. Mas o Espírito Santo bíblico que mais aparece é geralmente o que se refere a um espírito humano desencarnado, não tendo, pois, o artigo definido no original grego nem o adjetivo “santo”, sendo, pois, a tradução correta para o português “um espírito”, como vimos acima.

– Chaves, J.R.; A confusão entre o espírito santo e os outros espíritos, em O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/03/09

Apresento duas versões de articulistas espíritas a respeito da natureza de Pneuma Hagion: ambas com um entendimento quase neognóstico do Espírito Santo (e emprestado da teosofia) que, de certa forma, espiritualiza o humano para humanizar o Espírito. Algum comentário a se fazer sobre elas? Nenhum além da identificação de seu pano de fundo filosófico. Não há como refutá-las, pois são perfeitamente coerentes com a teologia de seus crentes. Por outro lado, alguém de fora não tem a menor razão para acatá-las. Seus autores têm seus próprios critérios para decidir quando um espírito não é o Espírito e o que cada caso significa. Não trazem evidências de que seus critérios seriam os mesmos dos antigos cristãos, parecendo mais interpretações pesher, ou seja, releituras. Certo que a Trindade foi um desenvolvimento tardio, mas a sofisticada especulação que trazem não deve ter sido concebida por ou para uma massa iletrada e humilde. Pode-se ter a vontade criar um “túnel do tempo” e perguntar diretamente o que se pensava nas igrejas, digamos, do começo do século II de nossa Era, quando o evangelhos canônicos já estavam escritos. Embora isso não seja possível, algumas pistas eles deixaram para nós.

O próprio Pastorino já mencionara brevemente o uso de abreviaturas nos antigos manuscritos, até citando um caso de fraude. Como as abreviaturas eram feitas para as palavras mais frequentes, nada mais natural que as de cunho religioso fossem escolhidas e dessem origem ao que, em tempos modernos, seria designado como uma classe especial de abreviaturas: os nomina sacra (“nomes sagrados”).

Uma particularidade interessentante dos nomina sacra é que todos os manuscritos antigos possuem um conjunto mínimo deles, dando a entender que, se já não surgiram junto com os originais dos livros, começaram a ser utilizados bem cedo. Quatro nomes aparecem universalmente em todos os unciais na forma abreviada: “Senhor” (Κυριος), “Deus” (Θεος), “Jesus” (Ιησους) e “Cristo” (Χριστος). Conforme a datação dos manuscritos avança, outras palavras se juntam ao grupo, como “Pai” (Πατηρ), “Filho” (Υιος), “Cruz” (Cταυρος), “Israel” (Ισραηλ), “Céu” (Ουρανος), etc. Não havia uma regra única para as abreviaturas, mas, em geral, os copistas tomavam a primeira ou as duas primeiras letras, a última, e as sobrescreviam com um traço horizontal. Como a terminação de uma palavra variava conforme o caso em que se encontrasse, os nomina sacra também mudavam em concordância.

Uncial Nominativo Genitivo
Senhor ΚΥΡΙΟC ΚC ΚΥ
Deus ΘΕΟC ΘC ΘΥ
Jesus ΙΗCΟΥC ΙC ΙΥ
Cristo ΧΡΙCΤΟC ΧC ΧΥ
Espírito ΠΝΕΥΜΑ ΠΝΑ ΠΝC
Pai ΠΑΤΗΡ ΠΗΡ ΠΡC
Filho ΥΙΟC ΥC ΥΥ
Cruz CΤΑΥΡΟC CΤC CΤΥ
Israel ΙCΡΑΗΛ ΙΗΛ indeclinável
Céu ΟΥΡΑΝΟC ΟΥΝΟC ΟΥΝΟΥ

Lista não exaustiva de nomina sacra comuns em manuscritos do Novo Testamento. Não foram incluídas variantes como IHC para Jesus. Mais pormenores em [Comfort, cap. IV]

Como se enquadra Pneuma no histórico do emprego dos nomina sacra? Seu nomen sacrum ΠΝΑ se encontra presente nos mais antigos manuscritos que chegaram até nós contendo a palavra “espírito” denotando uma origem divina, dando a entender que seria tão antigo quanto os quatro primários e seria tranquilamente aceito como um quinto membro desse grupo se não fosse por duas anomalias [Comfort, cap. IV, pp. 231-41]:

  • O papiro P46 (c. 175-225, contém epístolas paulinas) deixa de aplicar o nomen sacrum para o espírito divino em dez circunstâncias que seriam comumente aceitas depois;
  • O Códice Vaticano, contemporâneo do igualmente famoso Sinaítico (séc. IV), não possui nomen sacrum para Pneuma.

Uma conciliação proposta é que P46 teria sido redigido numa época de transição, quando as abreviaturas para Pneuma ainda estavam se desenvolvendo e o Códice Vaticano seria uma reprodução de um manuscrito ainda mais antigo que P46. Com o material disponível atualmente, isso é apenas conjectura, não estando descartada a hipótese de o copista de P46 ter se descuidado. Por ora, pode-se afirmar que, se ΠΝΑ não for um nomen sacrum primário, ao menos é quase tão antigo quanto os desse grupo.

O impacto desse registro paleográfico é deixar claro que a personalização do Espírito Santo – representando um ente específico e não uma classe – se encontra presente desde o II século de nossa Era e duzentos anos antes do I Concílio de Constantinopla. Nos tempos modernos, esse caráter é assinalado pelas iniciais maiúsculas de “Espírito Santo”, o que levou autores espiritualistas a acusarem tal grafia de ser errônea e maliciosa por induzir à crença na Trindade. Uma alegação para isso era o fato de os antigos manuscritos unciais possuírem apenas letras maiúsculas, em geral em scripta continua, tendo sido as minúsculas adotadas pelos escribas já em tempos medievais, bem depois da vitória da ortodoxia. Isso é verdade, mas não toda a verdade: embora o registro escrito fosse bem mais precário, o antigos tinham, sim, seus meios para destacar o que lhes era relevante. Os nomina sacra constituíam um deles.

Em consequência, é possível estimar nuances interpretativas que os antigos copistas em relação aos textos que transcreviam e desfazer distorções, como esta:

J.R. Chaves, A Face…, p.144 E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada.
Transcrição do papiro P4 (Fonte) Papiro P4 em Lc 1:67

O escritor ignora o fato de Pneuma Hagion ser, aqui, uma construção genitiva e ter o caráter de um “poder” ou “substância” com que Zacarias é infundido. Isso poderia possibilitar um sentido definido mesmo como uma estrutura anartra. Já o nomen sacrum para pneuma encontrado em P4 – o mais antigo manuscrito atualmente conhecido de Lucas (ca. 175 – 225 d.C.) – assinala que seu copista entendia “Espírito Santo” como um nome próprio, garantindo para ele um sentindo definido.

Não são revelados apenas vislumbres de como “Espírito” era compreendido, mas também aspectos um pouco mais profundos de exegese. Por exemplo, relembrando o diálogo entre Jesus e Nicodemus, mais especificamente este versículo:

Jo 3:6
P66
(Fonte)
Papiro P66 em Jo 3:6
P75
(Fonte)
Papiro P75 em Jo 3:6

A última oração do versículo – και το γεγεννημενον εκ του πνευματος πνευμα εστιν (“e o que é nascido do espírito é espírito”) – é interpretada de forma diferente pelos copistas. O de P66 distinguiu o Espírito divino do humano, dando a entender que “o Espírito divino gera o espírito humano”. Essa é a interpretação da maioria das traduções modernas. Já o de P75, por sua vez, tratou os dois como divinos, sugerindo que “o que é gerado pelo Espírito também é divino”. A passagem, sem dúvida, permite mais de um entendimento, não havendo razão alguma para se considerar o viés reencarnacionista como o único possível, como fazem certos apologistas espíritas. Bem antes de Niceia, as opiniões eram outras…

foto de P66

Detalhe do papiro P66 em Jo 3:6, exibindo o nomem sacrum para pneuma em apenas uma das aparições dessa palavra no versículo. Extraído de Early Bible.

Há quem possa rejeitar o testemunho dos manuscritos alegando que foram copiados por devotos da proto-ortodoxia cristã, com uma linha de pensamento mais próxima da teologia vencedora. Afinal de contas, os evangelhos canônicos foram os que esse grupo abraçou. Isso é uma meia-verdade, pois há uma exceção entre eles: João. Com sua linguagem alegórica, a apresentação de Jesus como o Verbo divino encarnado como a missão fornecer um “conhecimento” (gnose, em grego) especial (cf. Jo 8:32) necessário à salvação, esse evangelho caiu nas graças das seitas gnósticas. Inclusive, sabe-se que o primeiro comentário feito a esse evangelho foi elaborado por um escritor gnóstico valentiano chamado Heracleão (ca. 175 d.C.). Infelizmente, essa obra está perdida, mas alguns extratos dela permanecem nos textos patrísticos. Orígenes – um proto-ortodoxo querido entre os espiritualistas – o menciona em um de seus próprios comentários, como a intenção de refutá-lo, de onde retiro as seguintes passagens:

E ele [Heracleão] expõe de seu próprio modo particular o fato de que o chicote foi feito de cordas por Jesus (Jo 2:15), que não o recebeu de outrem, quando diz que o chicote é uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo [της δυναμεως και ενεργειας του αγιον πνευματος] que expulsa os iníquos. E acrescenta que o chicote, a corda, o linho e todas essas tais coisas são uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro X, parágrafo 213. Cf. PG XIV, col. 368

Mas Heracleão supõe que a água do cântaro (cf. Jo 4:28) “é a disposição capaz de receber a vida e o pensamento de poder que é do Salvador. Ela o deixa com ele”, diz, “ou seja, ela tem um vaso desse com o Salvador, com o qual recebera a água vivente, e retornou ao mundo para anunciar a vinda do Cristo aos eleitos (cf. Jo 4:29), pois a alma é trazida ao Salvador por meio do Espírito e pelo Espírito [σια γαρ του πνευματος και υπο του πνευματος προσαγεται η ψυχη τω Σοτηρι].
(…)
Heracleão também interpretou a sentença “e saíram da cidade” (cf. Jo 4:30) como o abandono de seu antigo modo de vida, que era físico. E “vieram“, diz, “ao Salvador por meio da fé“.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro XIII, parágrafos 187 e 191. Cf. PG XIV, cols. 452-3

É bom atentar que cada extrato fala de um “espírito” diferente. Como bom valentiano, Heracleão deveria considerar do Espírito Santo um “aeon” – uma emanação da divindade primordial – a fazer par com outro, Jesus Cristo, na transmissão do conhecimento (gnose) a outros aeons. Esse mensageiro duplo teria se unido à parte humana de Jesus por ocasião de seu batismo, descendo em forma de pomba. Já o segundo “espírito” seria composto de uma substância própria do pleroma (domínio divino) encontrada no mundo material e comporia a “parte superior” de uma distinta classe de mortais chamada de “pneumáticos”: os únicos aptos a receber a plenitude da salvação, cujo espírito retornaria ao pleroma após a morte. Um grupo maior – os psíquicos – possuiria uma parte chama de “alma” (psyché), composta por uma substância intermediária entre o espírito e a matéria, também presente nos pneumáticos e que fora insuflada pelo Demiurgo criador do mundo material. Seus membros constituíam a parte não gnóstica da Igreja e teriam uma salvação mais modesta caso seguissem os mandamentos cristãos, permanecem suas almas nas regiões celestes mais externas. Por fim, viriam os hílicos (de hylé, “matéria”), onde estariam os pagãos, completamente materiais e desprovidos de salvação.

Qualquer semelhança entre essa sucinta descrição da soteriologia gnóstica e as ideias de Pastorino e Ubaldi sobre o Espírito Santo não deve ser mera coincidência, mas um afluxo de uma teologia antiga via a moderna teosofia. Tudo bem que pensassem assim, só se deveria alertar os leitores que elas descendem de um sistema que julgava o Espírito Santo divino – ainda que uma divindade secundária – e, como todos os sistemas gnósticos, era fruto de desenvolvimentos posteriores.

Tanto a personificação dos nomina sacra quanto a divinização gnóstica pertencem ao século II, para identificar o papel do Espírito Santo no cristianismo primevo, será preciso recorrer às fontes mais antigas da literatura cristãs.

[topo]

No Princípio era o Espírito

Luz estelar

Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus; porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós. E vós fostes feitos nossos imitadores, e do Senhor, recebendo a palavra em muita tribulação, com gozo do Espírito Santo.

I Ts 1:4-6

Essa é a mais antiga menção ao Espírito Santo no Novo Testamento. Ué, mas não se deveria começar pelos evangelhos? Aí que está uma problemática questão no estudo no Novo Testamento. Pela lógica, a mensagem vem antes de sua pregação, mas, na realidade, a segunda foi registrada antes da primeira! Afinal, Paulo de Tarso – o mais prolífico autor da Bíblia – redigiu I Tessalonicenses por volta de 49 d.C., enquanto que Marcos tem sua mais antiga datação estimada em 60 d.C. e João já no fim do primeiro século!

Portanto, convém começar a análise do Espírito Santo cristão por Paulo, ressaltando que isso gera seu próprio punhado de problemas: Paulo nunca conheceu Jesus em vida, sua cartas distam pelo menos vinte anos da crucifixão, seu ministério começou apenas três anos após sua conversão, depois de uma temporada de três anos na Arábia e em Damasco, voltou à Jerusalém e lá foi ter com os apóstolos Pedro e Tiago por breves 15 dias (Gl 1:11-18). A visão que teve de Jesus foi muito forte, segundo ele mesmo, a ponto de converter um perseguidor em pregador. Por outro lado, nada indica que tenha sido uma experiência longa o bastante para transmissão de um tratado teológico completo. Paulo também não ficou um longo tempo com os apóstolos para se servir de seu testemunho em primeira mão. Não sabemos também o que ele fez no ínterim de três anos, mas pode-se cogitar que esse tempo seria o bastante para se inteirar das tradições de Jesus que já circulavam, como implícito em I Co 15:3-8. Assim, Paulo traz os ensinamentos de uma cristandade que já não contava com a presença física de de Jesus, mas que podia se valer da ação de um ente especial – o Espírito – em sua ausência, enquanto aguardava esperançosamente um “fim dos tempos” tido como próximo. Embora cronologicamente arranhem o Jesus histórico, as cartas paulinas pouco falam de Jesus, pois elas foram escritas na urgência de problemas que afetavam as comunidades fundadas por ele. Por não serem o foco, os ensinamentos cristãos são mencionados, mas não detalhados, estando incluído neles a natureza do Espírito. Em lugar disso, aparecem instruções quanto à relação das comunidades para com ele, que servem de janela para a pneumatologia paulina.

Os evangelhos são mais tardios que Paulo e, embora repletos de ditos “atribuídos” ao próprio Jesus, estão longe de ser biografias do Nazareno. Na verdade, cada evangelista pertenceu a uma comunidade cristã diferente, com vivências e experiências distintas em relação à “boa nova”. Cada um tinha uma imagem de Jesus a passar voltada para as expectativas de sua comunidade e em muitos pontos inconciliáveis com as demais: não é possível adequar a mensagem pró-judaica de Mateus com o quase antissemitismo de João. Da mesma forma, não há de se esperar que cada grupo mantivesse a mesma relação com o Espírito, principalmente em seu papel após a morte de Jesus. De todos os quatro, apenas Lucas foi escrito por um membro de uma comunidade paulina e esse mesmo evangelho traz uma grata peculiaridade para entendimento do que representava o Espírito Santo para esse antigos grupo de cristãos.

Paulo: O Crescer do Espírito

Conversão de Paulo

A Conversão de São Paulo a Caminho de Damasco, por Caravaggio

Ao longo de suas viagens (ca. 46 – 60 d.C.), Paulo percorreu boa parte do mundo grego-romano, em especial os territórios da Grécia e da Ásia Menor (atual Turquia), por onde fundou comunidades cristãs nos centros urbanos de maior porte. Quando sentia que já formara um grupo minimamente consolidado, partia para outra cidade. O contato era mantido por cartas, pelas quais Paulo passava instruções, explanações e exortações no intuito de solucionar as crises que surgiam. Foi essa troca de correspondência que fez de Paulo o autor mais prolífico do Novo Testamento, senão da própria Bíblia, e o material que chegou até nós pode ser apenas uma “ponta de iceberg” dado que nele mesmo se encontram referências a outras cartas que não sobreviveram. Quando colocadas numa ordem mais cronológica (ainda que com boa margem de erro), em vez da em que tradicionalmente aparecem nos códices antigos e nas edições modernas, pode-se, grosso modo, notar uma progressiva elaboração do conceito do Espírito Santo e sua relação com as igrejas.

  • I Tessalonicenses: tida por alguns autores como a mais antiga carta (ca. 50 d.C.), ela mostra o Espírito Santo como um agente fundamental para “santificação” da comunidade, i.e., sua ação manteria os fiéis no caminho reto enquanto aguardavam o retorno de Jesus e a ressurreição de seus membros já falecidos:

    Finalmente, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus, que assim como recebestes de nós, de que maneira convém andar e agradar a Deus, assim andai, para que possais progredir cada vez mais. Porque vós bem sabeis que mandamentos vos temos dado pelo Senhor Jesus. Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da fornicação; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra; não na paixão da concupiscência, como os gentios, que não conhecem a Deus. Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos. Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a santificação. Portanto, quem despreza isto não despreza ao homem, mas sim a Deus, que nos deu também o seu Espírito Santo [το πνευμα αυτου το αγιον].

    I Ts 4:1-8

    De certa forma, o papel desse Espírito Santo de “santificação” se assemelha ao da pneumatologia de Qumran, ou até mesmo o do salmo 51. Paulo ainda não expõe uma perspectiva mais elabora quer por ela não existir ou pelo ensinamento relativamente enxuto repassado aos tessalonicenses (1 Ts 4:1 – 5:11). Há diferenças, contudo: sua ação confirma a pregação apostólica (cf. I Ts 1:5) e faz profecias jorrarem em um nível desconhecido na era pré-cristã, como sugerido numa exortação final:

    Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo. Retende o bem.

    I Ts 5:19-21

    De fato, é possível interpretar esse “espírito” como sendo como sendo o ânimo da própria da comunidade e as profecias como as contidas no Antigo Testamento a respeito da vinda de Jesus (pelo menos no modo entendido pelos cristãos), mas a forma como Paulo descreveu o uso e abuso do “Espírito” em outra e muito problemática comunidade sugere que não.

  • I Coríntios: se os tessalonicenses só davam alegrias a Paulo, o mesmo já não pode ser dito em relação aos membros da igreja de Corinto: a refeição eucarística era desorganizada, com alguns chegando mais cedo, fartando-se e nada deixando aos retardatários, havia rixas internas que ameaçavam parar no tribunal; uns provocavam escândalo por não ver nada de mais em consumir a carne oferecida a ídolos pagãos, outros por sua conduta sexual; no outro extremo, certos membros competiam em exibir grau mais elevado de santidade e espiritualidade ao ponto de atrapalhar as cerimônias quando começavam a “falar em línguas”. Enfim, uma considerável dose de caos. Por que, então, ele não orientou o responsável por essa igreja a restabelecer a ordem? É que não havia ainda tal figura, ao menos com o poder equiparável ao de um padre ou pastor moderno. Paulo fundara e organizara suas igrejas como comunidades carismáticas, do grego χαρισμα (“dom”), que continuariam a ser guiadas por intermédio do Espírito:

    E a minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder; para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo (seu) Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus [ει μη το πνευμα του θεου]. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus. As quais também falamos, não com palavras que a sabedoria humana ensina, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas espirituais com as espirituais. Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.

    I Co 2:4-16

    Aqui, Paulo faz uma distinção entre o Espírito Divino e o espírito humano e, embora use a mesma palavra para ambos, a conotação é diferente: o primeiro é uma espécie de poder a conectar os homens com a vontade divina adentrando no segundo, que pode ser um sinônimo para mente (nous) ou alma (psykhe). Com eles, o apóstolo alfineta os coríntios deixando nas entrelinhas que não seriam tão espiritualizados quanto pensavam, do contrário teriam sido corretamente instruídos pelo Espírito Santo e se comportariam de outra forma.

    E tal ação do Espírito não se daria da forma individualista de que uns se gabavam ser os escolhidos, muito pelo contrário: ela englobaria todos o fiéis e ai daquele que a perturbasse:

    Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo.

    I Co 3:16-17

    Aqui, ele se dirige aos inimigos internos, os que causam dissenção entre fiéis. Um pouco mais adiante, retorna a falar em “templo” , mas num sentido individual, referindo-se aos pecados carnais cometidos por alguns dos “santos de Corinto”:

    Fugi da fornicação. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que fornica peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é (o/um) templo do Espírito Santo, que habita em vós,[ναος του εν υμιν αγιου πνευματος] proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus.

    I Co 6:18-20

    A questão do templo como um coletivo ou como uma individualidade é sanada com o entendimento dos membros da Igreja como constituintes do “Corpo de Cristo”: uma estrutura social guiada pelo Espírito Santo capaz de manter a harmonia entre os fiéis até parúsia, quando os conflitos deixariam de existir. Paulo fala en passant nessa ideia em I Co 6:15 (“Vocês não sabem que os seus corpos são membros de Cristo?“), desenvolvendo-a plenamente em no capítulo XII, quando trata da questão dos “dons do Espírito”, assunto em que alguns coríntios se julgavam mais afortunados que outros. Ele lhes lembra que todos receberam, por ocasião do batismo, diferentes dons “pelo mesmo Espírito” (12:8) [κατα το αυτο πνευμα], alguns eram mais chamativo – como o a capacidade de falar em línguas ou de curar -, outros mais discretos – como a capacidade de ajudar ou administrar -, mas todos, tal como os órgãos do corpo, tinham sua importância e o “corpo” não funcionaria direito na falta de um deles. Em vez de invejar o dom alheio, cada um deveria se esmerar naquele que recebera e … amar! Não é à toa que o Hino ao Amor sucede esse capítulo, explicitando a inutilidade dos dons se desprovidos desse sentimento.

    Pode parecer estranho a um leitor moderno, ainda mais a um espiritualista, a preocupação com o corpo. Afinal, ele já não está , de antemão, fadado a perecer e apenas o espírito (humano) importa para o outro mundo? Ao contrário da noção popular comum de hoje – que apenas a alma é salva para uma existência desencorpada – Paulo, como ex-fariseu e um dos primeiros cristão, também cria que o corpo seria resgatado e sublimado. No penúltimo capítulo de I Coríntios, é descrito seu entendimento quanto à crença na ressurreição no fim dos tempos:

    Assim também a ressurreição dentre os mortos. Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará com vigor. Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.
    Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial. E agora digo isto, irmãos: que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória.

    I Co 15:42-54

    Esse trecho é muito utilizado por apologistas como prova de inexistência da ressurreição física, no contexto bíblico, interpretando como se fosse uma menção à humanidade desencarnada. Contudo, “o diabo está nos detalhes” nesse caso. Relendo esse trecho, constata-se que em nada ele é contra a ressurreição física. Na verdade, o que ele é contra é a ressurreição carnal. Isso não significa o descarte do corpo natural, como se alega entre autores espiritualistas, mas a transformação dele em corpo espiritual. Os versículos 15:51-54, geralmente omitidos por eles, deixam nítida a crença de Paulo num fim dos tempos próximo e, portanto, alguns dos fiéis sofreriam essa transformação ainda em vida. Ademais, há um anacronismo no modo de pensar espiritualista: nos tempos bíblicos não havia o fosso entre “matéria” e “espírito” como há, hoje, nas conotações em que essas palavras são usadas. Para os antigos, “espírito” podia ser um tipo de matéria tênue, talvez quintessênciada, mas ainda material. A transformação de carne em espírito não era tão absurda para eles. A ressurreição paulina também encontra paralelos em outras obras da literatura intertestamentária como I Enoque e II Baruque, que também narram a transformação dos corpos carnais dos eleitos em novos de natureza gloriosa, por ocasião da consumação final.

    Em suma, em I Coríntios Paulo explana a superação das diferenças entre “espírito” e “corpo”, estando o Espírito a serviço do Corpo por meio da inspiração e dos dons carismáticos. Isso remete ao papel dos Espíritos divinos em Qumran, com a diferença que, agora, todos os dons provêm de apenas um.

  • II Coríntios: Na verdade, II Coríntios não é uma carta, mas uma composição de duas ou mais cartas escritas por Paulo, editadas mais tardiamente por algum membro dessa comunidade. Pelo que sugere, Paulo visitou Corinto após o envio da primeira epístola e já encontrara certa animosidade (cf. 2:5-11, 13:2), mas os problemas não acabaram por aí: pouco antes de sua partida dessa visita (ou logo após), teriam chegado à comunidade outro grupo de pregadores cristãos, a quem Paulo deprecia chamando de “superalpótolos” (των υπερλιαν αποστολων – cf. 11:5), cuja mensagem alegava que os cristãos já gozariam de glória antes do fim dos tempos, o que era justamente um dos pontos combatidos por Paulo em I Coríntios. Os capítulos de 10 a 13 seriam de uma carta combatendo os “superapóstolos”. A comunidade deve ter mudado de opinião e acatado de novo as teses de Paulo, que teria escrito uma nova carta em tom congratulatório que corresponderia, salvo alguns trechos destoantes, à boa parte da redação entre o primeiro e o nono capítulo. Assim, cronologicamente, II Coríntios começaria pelo fim.

    No geral, Paulo mantém os mesmo pontos de sua pregação apocalíptica apresentada em I Coríntio. As principais alusões ao Espírito se encontram na primeira parte (cap. 1 a 9), com alguns desenvolvimentos interessantes em relação à epístola anterior.

    Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo [αλλα πνευματι θεου ζωντος], não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.E é por Cristo que temos tal confiança em Deus. Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento [aliança/pacto], não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.
    II Cor 3:1-6

    Aqui Paulo alfineta os “superapóstolos” que apresentavam suas credenciais como sendo a pertinência a Cristo (10:7, 11:23), sua origem judaica (11:22) e, principalmente, seus feitos espirituais, que comprovariam sua autoridade (5:12-4, 11:4 e 12:11-3). Paulo de nada disso precisava, pois sua prova de autoridade seria a própria existência dos cristão de Corinto, comunidade por ele fundada com o intermédio do Espírito de Deus. Numa alusão ao recebimento do decálogo (tábuas de pedra), a “boa nova” superaria a antiga Lei por estar gravada no coração, o que desenvolve mais adiante:

    E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória,
    Como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. Porque também o que foi glorificado nesta parte não foi glorificado, por causa desta excelente glória. Porque, se o que era transitório foi para glória, muito mais é em glória o que permanece. Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório. Mas os seus sentidos foram endurecidos; porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido; e até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará. Ora, o Senhor é o Espírito [ο δε κυριος το πνευμα εστιν]; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.
    II Co 3:7-18

    De certa forma, Paulo antecipa uma ideia que viria a desenvolver em outras epístolas: a transitividade da Lei Mosaica. Em alusão ao episódio descrito em Ex 34:28-35 – quando Moisés, após passar quarenta dias na presença de Deus e entalhando as tábuas, desceu do monte Sinai com o rosto radiante -, Paulo assevera que aquela glória era passageira: embora o motivo mais aparente e imediato de Moisés cobrir o rosto seria para não ofuscar os olhos de seu povo, Paulo interpreta que seria para que ninguém visse seu esplendor esvanecer, até que o reavivasse estando outra vez na presença de Deus. Analogamente, a validade da Lei seria passageira, ao contrário da perene do evangelho. E é justamente ao enaltecer esse novo tipo de glória que Paulo dá um passo ousado: equipara o Espírito a Deus. Ele faz algo similar ao que fez um anônimo judeu helênico com a Sabedoria Divina (Sb 8:22-35) ou que o Prólogo de João faria com o Verbo, estabelecendo que algo proveniente de Deus também seria divino, de algum modo. Não é a terceira Hipóstase Trinitária ainda, mas parte do fosso a separar uma substância especial do Divino foi tapado.

  • Gálatas: Algum tempo após a saída de Paulo dessa comunidade por ele criada, lá chegaram pregadores cristãos com uma mensagem da repassada pelo fundador. Segundo eles, para ser cristão era também preciso antes ser judeu, o implicava em adotar práticas como a circuncisão masculina. Isso despertou uma reação irada de Paulo que redigiu essa carta condenando veementemente a atuação desses mestres judaizantes entre os gentios. Por outro lado, no capítulo XVII de Gênesis, Javé estabeleceu a circuncisão como símbolo da aliança eterna entre Ele e Abraão e sua descendência. Se era “eterna” não deveria continuar a valer em sua época (e até o fim dos tempos)? Ciente desse embaraço, Paulo se justificou num dos versículos mais curtos e paradoxais da Bíblia: “Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus.” (Gl 2:19). Uma possibilidade para desmembrar esse raciocínio sintético seria que “pelo entendimento correto e pleno da lei, compreende-se sua falta de necessidade hoje em dia”. Na opinião de Paulo, simplesmente adotar a Lei seria algo problemático pois:

    Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.
    Gl 3:10

    Adotar um ou outro mandamento da Lei implicaria na necessidade de praticar todos e um deslize deixaria o fiel em erro perante Deus, levando à necessidade de um reparo mediante um sacrifício no Templo. Mas daí vem outra pergunta: se a Lei era cruel assim, porque o bondoso Deus a teria dado ao homens, aos hebreus mais especificamente?

    Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro. Ora, o medianeiro não o é de um só, mas Deus é um. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
    Gl 3:19-22

    A Lei seria algo provisório, digamos, para manter o povo “na linha”. O curioso é que dá a entender que um dos motivos de sua temporalidade seria o fato de ter sido transmitida por anjos (“medianeiros”), em vez de provir diretamente de Deus. Isso não está de acordo com o relato de Êxodo, nem com a tradição judaica posterior. Se Paulo falava de uma interpretação antiga e atualmente perdida ou de uma visão pessoal, está em aberto. De concreto, existe a postura de Paulo em encarar o judaísmo como uma crisálida de onde emergiria o cristianismo, mas que deveria ser descartada após cumprir seu papel.

    A justificação perante Deus não se daria pelas obras da Lei, mas por uma fé tal qual a de Abraão. No capítulo III, Paulo remete ao episódio relatado em Gn 22, quando Javé ordena a Abraão que sacrifique seu próprio filho Isaque em holocausto. Abraão cumpriria a ordem sem hesitar não fosse uma intervenção, no último instante, de um anjo, que trouxe a nova ordem para trocar o menino por um carneiro. Por ter passado com louvor nesse “teste de fidelidade”, declarou Deus a Abrão que “em tua descendência serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22:18, cf. Gl 3:8). A fé em Jesus, com o mesmo grau de fervor que a de Abraão, livraria da maldição da Lei, pois a morte de Jesus na cruz foi o sacrifício último capaz de redimir qualquer infração (Gl 3:13, cf. Dt 21:22). Os que cressem nesse sacrifício fariam, pois, uma oferta análoga a de Abraão. Daí Paulo faz outra inovação teológica: a descendência seria determinada não mais pela consanguinidade, mas pela fé em Cristo. Os gentios e judeus que aceitassem a fé em Jesus seriam os legítimos herdeiros de Abraão, continuadores, de fato, da linhagem de Isaque (Gl 3:26-9). Por outro lado, os judeus que se ativessem à Lei seriam os continuadores de Ismael, o filho bastardo com a escrava Agar (cf. Gl 4), e seriam “lançados fora” (cf. Gn 21) porque “de modo algum o filho da escrava herdará com o filho da livre (Gl 4:30).”

    No tributo que a Nova Aliança em Jesus faz à antiga, o Espírito viria como prova de filiação adotiva, tal como Javé adotara os antigos hebreus:

    Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho [το πνευμα του υιου], que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo.

    Gl 4:5-7

    Se isolada, essa passagem pode dar a entender que não há uma identificação entre o “Espírito de seu Filho” e o “Espírito Santo”. Entretanto, no capítulo precedente:

    Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito [το πνευμα] pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito [πνευματι], acabeis agora pela carne? Será em vão que tenhais padecido tanto? Se é que isso também foi em vão. Aquele, pois, que vos dá o Espírito [το πνευμα], e que opera maravilhas entre vós, o faz pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?
    Gl 3:2-5

    Que é o mesmo espírito carismático a conceder dons aos fiéis em outras cartas. Embora Paulo nunca descreva o batismo de Jesus, é provável que conhecesse a tradição da descida do Espírito Santo em Jesus e sua aclamação como Filho de Deus nesse episódio, dado que Lucas – que lhe é teologicamente afim – a preserva. Nesse caso, os crentes receberiam uma filiação de empréstimo do referido espírito. A associação entre o Espírito Santo e o Messias não era desconhecida no judaísmo (cf. Is 42:2), mas não fora antes usada como prova de filiação.

    Outra característica marcante do Espírito em Paulo é sua capacidade de também libertar da Lei por tornar desnecessário o temor às maldições para garantir a retidão dos crentes, pois lograria o mesmo de outro modo:

    Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais também uns aos outros. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, fornicação, impureza, lascívia, Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.

    Gl 5:13-22

    Se no judaísmo espíritos divinos já eram capazes de auxiliar no cumprimento da antiga Lei (cf. Sl 51, Qumran), aos cristãos o Espírito tornava-se fundamental para o mandamento básico do amor. Daí vem a questão: um homem faz o bem porque tem fé ou tem fé porque faz o bem? No entender de Paulo, o poder do Espírito, auferido pela fé, é que reformaria o caráter. A prática do bem seria um desdobramento natural em demonstração disso. Isso não significa que Paulo desprezasse o exercício do amor fraterno (cf. I Co 13), mas o condicionava o estabelecimento de um relacionamento de fé com Deus antes de sua prática sincera.

    A primazia da fé para a salvação é recorrente em Paulo e as questões que ela suscita até hoje geram polêmicas entre católicos, protestantes e espíritas.

  • Filipenses: Carta escrita por Paulo, durante uma estadia numa prisão, à comunidade por ele fundada na cidade de Filipos (cf. Atos 16), na Macedônia. Assim como II Coríntios, Filipenses também possui questões quanto à unicidade de seu conteúdo, bem como ordenação interna. A hipótese mais simples sugere que ela seja composta de duas cartas: a primeira, em ordem cronológica começaria a partir do capítulo III e teria um tom de alerta contra outros professores de viés judaizante – como os encontrados em Gálatas – e pela paz interna da comunidade, a começar pelas crentes Evódia e Síntique (Fp 4:2); a segunda carta, compreendida nos dois capítulos iniciais, tem um tom mais amenos, com agradecimentos e incentivos.

    Relativamente curta, a carta recapitula alguns pontos do apocalipticismo paulino: embora derroca do Mal tenha começado com o sacrifício de Jesus, a vitória definitiva ainda estava por vir. Até lá, os cristão ainda estariam sujeitos à ação das malignas, sempre a tentar prejudicá-los e/ou desviá-los da fé. As próprias prisões sofridas por Paulo seriam evidências disso. Cabiam às comunidades cristãs perseverança e solidariedade ante as adversidades.

    Há apenas uma menção importante quanto ao papel do Espírito na carta:

    Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo, e me regozijarei ainda. Porque sei que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo,

    Fp 1:18,19

    Ao contrário de Gálatas, não há possibilidade, usando-se apenas o conteúdo da carta, de se relacionar o “Espírito de Jesus” com alguma outra entidade separada. Aparenta ser a certeza de uma presença simbólica de Jesus como instrumento a auxiliar no consolo e na perseverança.

    Por outro lado, Filipenses apresenta em seu texto dois hinos (ou um só em duas partes) provavelmente entoados nessa comunidade:

    Hino de Descida
    (Fp 2:6-9)
    Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
    Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
    E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
    Hino de Ascensão
    (Fp 2:9-11)
    Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
    Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,
    E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

    Uma visão cristológica sofisticada, já em vias da divinização de Jesus. Seu Espírito e o de Deus, portanto, aproximavam-se em excelência.

  • Romanos: como única carta remanescente de Paulo direcionada a uma comunidade que não fora criada por ele, Romanos possui a característica ímpar de ser onde ele desenvolve em profundidade temas de sua mensagem que apenas comenta ou relembra a seus prosélitos nas demais, afinal teve de explicar tudo do zero a quem não conhecera pessoalmente. Por esse motivo, um nome mais adequado para esta carta seria “Evangelho segundo Paulo”, pois é aqui que descreve em pormenores sua fé e a “boa nova” que tinha a repassar. Em sua apresentação, Paulo expõe um pequeno catecismo cristão, testemunho de uma tradição que antecederia a própria redação do Novo Testamento:

    Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade [κατα πνευμα αγιωσυνης], pela ressurreição dentre os mortos – Jesus Cristo nosso Senhor -, pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios, entre os quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo; a todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados para serdes santos: Graça a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

    Rm 1:1-7

    Nesse “cartão de visitas” em forma de credo condensado, Paulo usa um hebraísmo – “espírito de santidade” – em vez do simples adjetivo grego talvez por ser uma forma mais familiar aos fundadores daquela comunidade, além de reforçar sua apresentação como um cristão genuíno, não falso apóstolo a propagandear ideias alienígenas. Uma maneira de preparar terreno para expor sua própria visão a respeito da fé em Jesus: o papel central do martírio de Jesus e sua subsequente ressurreição na salvação da humanidade. Ou melhor, de todos aqueles que reconhecessem esse sacrifício e acreditassem em sua vitória sobre a morte.

    Há diferentes linhas de argumentação utilizadas por Paulo ao longo da carta. Uma das principais é o modelo judicial (cf. cap. 3 a 5): Deus seria uma espécie de legislador a regular como os humanos (judeus e gentios Rm 2:9-10) deveriam se portar. O problema é que ninguém, mas ninguém, consegue seguir suas leis, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). Como Deus também é juiz (3:9), a humanidade toda está condenada. A solução, segundo esse argumento, estaria em outra pessoa cumprir a punição por nós, aí que entra o valor do sacrifício de Jesus na cruz (3:24) como forma de cumprimento alternativo da pena, cuja aprovação divina estaria no fato de ele ter sido ressuscitado em seguida (4:24-5). Aos humanos caberia aceitar de bom grado esse sacrifício ofertado em seu lugar (3:27-8). Ao fim desse argumento, Paulo menciona o Espírito Santo como uma expressão do amor de Deus sobre a humanidade:

    Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo; pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus [η αγαπη του θεου] está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado [δια πνευματος αγιου του δοθεντος ημιν]. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor [αγαπην] para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.

    Rm 5:1-10

    A expressão pneuma hagion aparece em uma construção genitiva com a preposição δια e sua particular articulação remete ao caso em que o artigo serve, também, de pronome relativo. Nesta passagem, o Espírito Santo serve de veículo para o amor Deus chegar aos justificados pela fé. Não é a atração sensual de eros, nem a amizade de philia, mas o amor puro e desinteressado de agape mencionado em I Cor 13. Para a teologia paulina o ser humano não tem fé porque faz o bem, e sim faz o bem porque tem fé, uma fé em Jesus que o reconcilia com Deus.

    Outro argumento importante utilizado por Paulo foi o modelo participacionista. Enquanto o modelo visto acima explica a salvação por meios de termos “jurídicos”, este explica a salvação por meio de uma espécie de união com Jesus Cristo, que livra a humanidade das forças malignas. Bem que forças seriam essas?

    Como apocalipcista, Paulo acreditava num tipo de “dualismo brando”, em que haviam forças antagônicas a Deus regiam a Terra momentaneamente, até que Deus resolvesse intervir. Duas dessas formas cósmicas são de particular relevância: o Pecado e a Morte. Nisso as coisas começam a soar um tanto estranhas ao leitor moderno, para o qual “pecado” é algo ruim que alguém faz e “morte” é o cessar das funções vitais. No entanto, no primeiro século, tanto o ato quanto o fato eram produtos de entidades autônomas, que a todos controlavam. Começando pelo Pecado:

    • O pecado está no mundo (5:13);
    • O pecado governa as pessoas (5:21, 6:12);
    • As pessoas podem servir ao pecado (6:6);
    • Elas podem ser escravizadas pelo pecado (6:17);
    • Elas podem morrer ao pecar (6:11);
    • Elas podem ser libertas do pecado (6:18).

    O pecado, para Paulo, não é meramente algo que as pessoas fazem, mas sim um poder que as compele à prática do mal. Associado a ele, está outro poder maligno: a morte (6:21-3), que definitivamente afasta alguém de Deus. Ao ressuscitar, Jesus teria quebrado o jugo da morte e, por conseguinte, dos poderes com ela associados (6:9-10). Por meio do batismo, tomaríamos parte dessa vitória sobre a morte e nos reconciliaríamos com Deus (6:3-4).

    Então, qual seria o papel da Lei Judaica durante todos esses séculos? Não seria ela um instrumento para a salvação? Retomando uma ideia já apresentada em Gálatas com o auxílio, novamente, um modo de raciocínio judicial, Paulo crê a Lei era boa ao definir o que é certo ou errado, porém gerava um problema: crimes só existem se são tipificados e era isso que a Lei fazia:

    Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri.

    Rm 7:7-9

    Ou seja, a Lei conduziria à danação ao invés da salvação. Como a Lei só possuía vigência enquanto se estivesse vivo (Rm 7:1) era preciso morrer para Lei e renascer para outra coisa. Se carne, a parte do ser humano sujeita a pecado morrer em Cristo, a pessoa não estará mais sujeita aos desejos deles e a violar a Lei. Na oposição à carne, o Espírito teria um papel fundamental:

    Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E, se o Espírito [το πνευμα] daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dentre os mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita.

    Rm 8:1-11

    Principalmente ao fim dessa passagem, o “Espírito de Deus”, o “Espírito de Cristo” e “Cristo” são utilizados de forma intercambiável (o que não significa, exatamente, “identidade”). A humanidade, segundo Paulo, é salva por Cristo e em Cristo, sendo impossível não o ser caso não seja também pelo Espírito e no Espírito de Deus. Dado que “Deus” e “Jesus” receberam os primeiros nomina sacra é provável que a associação teológica entre os dois com o “Espírito” levou a criação de um nominum sacrum para ele, também. Afinal, passara a ter atributos sagrados, tidos como dignos de adoração, como o de ser o doador da vida, o agente principal da ressurreição dos mortos.

    Ambas ideias remetem a II Cor 3:1-18, quando os conceitos de “Espírito” e “Deus” se misturam e o primeiro é apresentado como “vivificador”. Nos versículos seguinte, Paulo nos apresenta mais uma ideia presente em outra carta:

    De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.

    Rm 8:12-17

    Paulo expõe uma versão embrionária da doutrina dos “Dois Caminhos” ao opor carne e espírito, morte e vida; estando o caminho correto balizado pela capacidade do Espírito de conceder um status de filiação com Deus, tal como defendera em Gl 4:5-7. É uma filiação “adotiva”, no sentido de que originalmente não seríamos filhos de Deus (apenas suas criaturas), mas auferiríamos essa condição por intermédio do Espírito, que preveniria uma vida sem a Lei da queda na iniquidade (cf. I Co 2:4-16). É bom ressaltar que, embora o a salvação tenha se iniciado com a ressurreição, de forma alguma seu processo está concluído: asperezas nesta vida ainda são esperadas antes do Fim dos Tempos, mas os “filhos de Deus” já não estariam mais sozinhos:

    Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos. E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.

    Rm 8:18-27

    Paulo faz novo uso do modo participativo ao declarar que alguma força externa à humanidade que a sujeitou “à vaidade” e outra força maior ainda a libertaria dessa escravidão. Acontece que tal processo ainda estaria inconcluso e o tempo das “primícias do Espírito” (i.e., o da ressurreição de Jesus), ainda seria de dores. Aí que entra uma impressionante inovação: o Espírito a interceder diretamente pela humanidade. No Antigo Testamento, o Rouach divino não tinha esse atributo personificado, sendo antes um instrumento que um agente autônomo. Tal tarefa cabia aos profetas, como Moisés ao afastar a iminente ira de Javé sobre os hebreus, após o episódio do bezerro de ouro (Ex 32:7-14, antropomorfismos à parte). Outros exemplos desse caso estão em Am 7:2, Jr 15:1, 18:20, etc. Já nos últimos livros da literatura bíblica, anjos começam a assumir esse papel, quer levando as orações dos fiéis a Deus (Tb 12:12), quer intercedendo eles mesmos (Zc 1:12). Agora, em Romanos, Paulo dá a responsabilidade de interceder e consolar ao Espírito, dando-lhe, assim, atributos pessoais. Isso não chega a ser exatamente uma surpresa, visto que se forças malignas – como o pecado e morte – são personificadas em Romanos, por que as benévolas não o poderiam, também? Vale assinalar que Jesus também aparece com a função de intercessor em Rm 8:34, o que poderia ser um reflexo da similitude entre os dois em 8:10-1, contudo há uma importante diferença: enquanto Jesus já “está à direita de Deus“, o outro intercessor atua na Terra. Assim, o Espírito Santo paulino se tornou uma espécie de prévia do Paracleto de João.

    Outra forma de atuação do Espírito junto ao homens se encontra na concessão dos chamados dons, que são relatados mais para a parte final da carta:

    Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria. O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem.

    Rm 12:4-9

    Embora nenhuma menção explícita seja feita ao Espírito Santo aqui, sabe-se da importância que Paulo dava a ele em I Cor 12, para a concessão dos referidos dons. Por fim:

    Ora o Deus de esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo [εν δυναμει πνευματος αγιου].

    Rm 15:13

    Que seja ministro de Jesus Cristo para os gentios, ministrando o evangelho de Deus, para que seja agradável a oferta dos gentios, santificada pelo Espírito Santo [εν πνευματι αγιω].

    v. 16

    Pelo poder dos sinais e prodígios, e pela virtude do Espírito [εν δυναμει πνευματος] de Deus; de maneira que desde Jerusalém, e arredores, até ao Ilírico, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo.

    v. 19

    E rogo-vos, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo [δια του κυριου ημων ιησου χριστου] e pelo amor do Espírito [και δια της αγαπης του πνευματος], que combatais comigo nas vossas orações por mim a Deus;

    v.30

    No penúltimo capítulo da carta (e último com algum conteúdo doutrinário), o Espírito aparece como um agente do tempo corrente (o ministério dos gentios) e do que está ainda por vir (daí a “esperança”), enquanto Jesus Cristo foi o principal personagem do ministério da circuncisão (v.8). Por fim, um apelo a ambos é feito, indicando que possuem importância similar, ainda que atuem em domínios diferentes.

* * *

Com Carta aos Romanos, chegamos à síntese da mensagem de Paulo, quando a “fé de Jesus” passa a se ladeada pela “fé em Cristo”. O abandono da Lei para a salvação foi, sem dúvida, um passo decisivo na separação entre judaísmo e cristianismo, mantendo o último as profecias apocalípticas do primeior. Curiosamente, Paulo é o grande ausente no Evangelho segundo o Espiritismo. Salvo a transcrição de “O Hino à Caridade” de I Coríntios 13 (cap XV do ESE) e mais alguns versículos do capítulo seguinte dessa carta – o que não permite de forma algum um panorama geral da mensagem de Paulo – nada mais é relacionado desse apóstolo. Em vez disso, centrou-se no lema “Fora da caridade não há salvação“, que retoma a moral dos sinópticos, mas rejeita a parte profética deles e a de Paulo (o fim dos tempos, a ressurreição da carne e a parúsia) para criar a sua própria (a Terceira Revelação). A consumação desse processo se deu com Léon Denis:

Com o seu sacrifício, dizem outros teólogos, Jesus “venceu o pecado e a morte, porque a morte é o salário do pecado e uma tremenda desordem na Criação(72) .

Entretanto, morre-se depois da vinda de Jesus, como antes dele se morria. A morte, considerada por certos
cristãos como consequência do pecado e punição do ser, é, todavia, uma lei natural e uma transformação necessária ao progresso e elevação da alma. Não pode ser elemento de desordem no Universo. Julgá-la por esse modo, não é insurgir-se contra a divina sabedoria?

É assim que, partindo de um ponto de vista errôneo, os homens da Igreja chegam às mais estranhas concepções. Quando afirmam que, por sua morte, Jesus se ofereceu a Deus em holocausto, para o resgate da Humanidade, não equivale isso a dizer, na opinião dos que creem na divindade do Cristo, que se ofereceu a si mesmo? E do que terá ele resgatado os homens? Não é das penas do inferno, pois que todos os dias nos repetem que os indivíduos que morrem em estado de pecado mortal são condenados às penas eternas.

A palavra pecado não exprime, em si mesma, senão uma ideia confusa. A violação da lei acarreta a cada ser um amesquinhamento moral, uma reação da consciência, que é uma causa de sofrimento íntimo e uma diminuição das percepções animais. Assim, o ser pune-se a si mesmo. Deus não intervém, porque Deus é infinito; nenhum ser seria capaz de lhe produzir o menor mal.

Se o sacrifício de Jesus resgatou os homens do pecado, porque, então, ainda os batizam? Essa redenção, em todo caso, não se pode estender senão unicamente aos cristãos, aos que têm conhecido e aceitado a doutrina do Nazareno. Teria ela, pois, excluído da sua esfera de ação a maior parte da Humanidade? Existem ainda hoje na Terra milhares, milhões de homens que vivem fora das igrejas cristãs, na ignorância das suas leis, privados desse ensino, sem cuja observância, dizem, “não há salvação”. Que pensar de opiniões tão opostas aos verdadeiros princípios de amor e justiça que regem os mundos?

Não, a missão do Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da Humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria capaz de resgatar ninguém. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da ignorância e do mal. Nada de exterior a nós poderia fazê-lo.
É o que os Espíritos, aos milhares, afirmam em todos os pontos do mundo. Das esferas de luz, onde tudo é serenidade e paz, desceu o Cristo às nossas obscuras e tormentosas regiões, para mostrar-nos o caminho que conduz a Deus: tal o seu sacrifício. A efusão de amor em que envolve os homens, sua identificação com eles, nas alegrias como nos sofrimentos, constituem a redenção que nos oferece e que somos livres de aceitar. Outros, antes dele, haviam induzido os povos ao caminho do bem e da verdade. Nenhum o fizera com a singular doçura, com a ternura penetrante que caracteriza o ensino de Jesus. Nenhum soube, como ele, ensinar a amar as virtudes modestas e escondidas. Nisso reside o poder, a grandeza moral do Evangelho, o elemento vital do Cristianismo, que sucumbe ao peso dos estranhos
dogmas de que o cumularam.

(72) De Pressensé, “Jesus Cristo, seu tempo, sua vida, sua obra”, pág. 654. Encontra-se essa opinião em muitos autores católicos.

Denis, Leon; Cristianismo e espiritismo, cap. VII

Não faço juízo juízo de valor quanto às palavras do “apóstolo do Espiritismo”, apenas constato, por sua rejeição explícita do cerne da mensagem paulina, que seu ministério foi um divisor de águas, marcando a separação definitiva entre o Espiritismo e a ortodoxia cristã.

Excetuando Filemom – que nada traz sobre o assunto – aqui se encerra a análise do papel do Espírito Santo nas cartas tidas por unanimidade como de autoria de Paulo. Nelas podemos constatar a passagem de uma “baixa pneumatologia” – com o Espírito Santo mais como uma ferramenta do poder divino – para uma “média/alta”, quando ele assume características pessoais e uma importância próxima a de Jesus. As peças seguintes da literatura cristã primitiva a serem redigidas, trariam o enfoque tanto de seus seguidores, como de seus rivais.

[topo]

A Disparidade Sinóptica

Vitral com os evangelistas dos sinópticos

Pela hipótese da origem quádrupla dos sinópticos, Marcos forneceu o fio narrativo para Mateus e Lucas. Estes, independentemente, acrescentaram ditos da Fonte Q e algum material próprio de cada um. Assim, o cerne do entendimento dos sinópticos quanto ao papel do Espírito Santo parte de Marcos e termina na forma como Luca e Mateus – a cada um a sua maneira – alteraram a visão inicial.

  • Marcos: o poder do Espírito: a primeira menção ao Espírito Santo ocorre logo na abertura deste evangelho, durante a pregação de João Batista:

    E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.

    Mc 1:7,8

    À primeira vista, esse texto viria a ser copiado nos outros dois sinópticos, conforme a hipótese da origem quádrupla, contudo podemos estar diante de um caso de múltipla atestação de Marcos e Q. Repare a diferença:

    (…) ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo (Mc 1:8)

    (…) ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mt 3:11/Lc 3:16)

    É possível que os redatores de Lucas e Mateus tenham se deparado com a seguinte leitura em Q: “ele vos batizará com fogo” e daí feito independentemente uma harmonização com Marcos gerando um versículo híbrido em seus respectivos evangelhos (cf. [Tatum, cap. XIII, pp. 128-31]).

(Em construção)
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Onde o Espírito fez a Curva

Árvore curvada

Será analisado, agora, um artigo de José Reis Chaves publica no jornal O Tempo (MG, 24/03/14). O tema é recorrente em sua coluna semanal e os equívocos neles contidos se repetem em outros artigos (cf.colunas de 10/11/14 e 14/12/15). Nada contra a pessoa desse autor, apenas um alerta aos incautos que um tema tão complexo não pode ser tratado de forma tão superficial. Eis o artigo:

Ainda falando do Espírito Santo verdadeiro conforme a Bíblia

Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!

E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).

E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.

Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo. E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica). Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano. Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo. Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28). O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo. Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.

Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”. E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo. Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.

Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.

E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples.

Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!
Com Celina Sobral e este colunista, o “Presença Espírita na Bíblia”, na TV Mundo Maior, por parabólica e internet, nas quintas-feiras, às 20h, e outros horários (grade da programação). Perguntas e sugestões: presenca@tvmundo maior.com.br.

Agora, algumas observações

Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!

Jesus não foi divinizado em Niceia, porque ela já havia sido divinizado muito antes! Pelo menos desde o Evangelho de João, com seu Verbo encarnado e o “Eu sou” (Jo 8:58), Jesus já era divino de alguma forma. O que Niceia discutiu era de que jeito era a divindade de Jesus. Mesmo a facção derrotada nesse concílio – os arianos – davam a Jesus status similar ao Pai e, embora não fosse coeterno com Ele, sua origem antecedia a criação. De maneira alguma o Cristo ariano se enquadraria na ideia de “espírito altamente evoluído” do kardecismo.

E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).

Tanto o Verbo enunciado no prólogo de João, quanto a Sabedoria cantada por Salomão provinham de Deus, partilhando, assim, de sua divindade de algum modo. O mesmo se deu com o Espírito Santo, o que o diferenciava dos demais espíritos. Ao longo de três século houve um processo de personificação e, depois, de equiparação entre ele, o Pai e Jesus. Vale, então, a mesma observação feita antes: os concílios não inventaram a Trindade, apenas deram chancela oficial a ideias que já existiam antes no cristianismo ortodoxo.

E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.

Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo.

Lendo os versículos no contexto (versão católica):

Mas revoltaram-se, ofenderam seu santo espírito, desde então tornou-se inimigo deles, e lhes fez guerra. Então se lembraram dos dias de outrora, de Moisés, seu servo.
Onde está aquele que tirou dos céus o pastor de seu rebanho? Onde está aquele que pôs nele seu santo espírito?
Aquele que à direita de Moisés atuou com o seu braço glorioso, e dividiu as águas diante dos seus para assegurar-se um renome eterno;
Is 63:10-12

“Aquele”, no caso, se refere ao próprio Deus, cujo o espírito santo foi ofendido pelos ímpios, o mesmo espírito que, anteriormente, fora posto em Moisés. Aqui não há o benefício da ambiguidade que aparece no exemplo seguinte:

E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica).

Vejamos o que diz esse versículo: “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel”. “História de Susana” é encontrada apenas na Septuaginta, e a alusão ao “espírito santo de Daniel”, mais especificamente na versão de Teodócio. A história descreve a chantagem sofrida pela jovem e casada Susana feita por dois anciãos que a viram se banhar no jardim. Como se recusou a ceder, foi por eles falsamente acusada de adultério e condenada à morte. No último instante, Deus agiu sobre Daniel, fazendo-o intervir para que os anciãos fossem interrogados em separado, foi quando se contradisseram nos pormenores. Após esse resumo, fica questão: o que foi despertado em Daniel foi o espírito santo dele mesmo ou o que estava nele (proveniente de Deus)? As duas leituras são possíveis. Ambrósio, bispo de Milão e contemporâneo de Jerônimo e Agostinho, optou pelo segunda alternativa:

Também Daniel, a menos que tivesse recebido o Espírito de Deus, nunca teria sido capaz de descobrir aquele adultério luxurioso, aquela mentira fraudulenta. Pois quando Susana, atingida pela conspiração dos anciãos, viu que a mente do povo estava conduzida pela consideração aos idosos, e destituída de toda ajuda, sozinha entre os homens, consciente de sua castidade ela orou a Deus para julgar; está escrito:”O Senhor ouviu a voz dela, quando era conduzida para a morte, e o o Senhor despertou o espírito santo de um jovem, cujo nome era Daniel”. E então, conforme a graça do Espírito Santo recebido por ele, descobriu a inconsistente evidência dos pérfidos, pois não foi por outra coisa senão a agência do poder divino que sua voz faria com que eles, cujos sentimentos íntimos eram ocultos, fossem conhecidos.

Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, livro III, cap. VI

Que não se desconsidere essa possibilidade, também. Prosseguindo

Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano.

É uma afirmação praticamente tautológica: com ou sem artigo definido, “Espírito Santo” sempre será um espírito qualquer, pois seria um circunlóquio para os seguidores de Deus e do Bem. Tal entendimento não contempla os casos em que a expressão parece designar uma pessoa (uma personificação do espírito divino) que não é nenhum dos presentes ou uma substância (o espírito divino sem personificação). O caráter substancial parece estar ausente da lógica do autor porque ele passa o entendimento equivocado que deve sempre haver um artigo (definido ou não), esquecendo a possibilidade de “Espírito Santo” ser anartro tanto em grego como em português.

O pior são os exemplos dados:

Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo.

Então, vejamos o original:

η ουκ οιδατε οτι το σωμα υμων ναος του εν υμιν αγιου πνευματος εστιν

O expressão “Espírito Santo” aparece articular na primeira forma atributiva, com o artigo concordando em gênero, número e caso. O que pode causar certa estranheza ao leitor de língua portuguesa é que entre os dois aparece εν υμιν (“em vós”), mas se deve lembrar que o grego, como língua sintética, não precisa seguir uma ordem fixa para os termos de uma oração.

Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28).

Em At 20:28, “Espírito Santo” aparece articular e, sem ser um uso anafórico do artigo, representa uma personificação. Logo, não é uma substância ou poder, nem um espírito genérico. Contudo, a leitura desse único versículo isoladamente pode dar a sensação de identidade entre Jesus e o Espírito Santo, porém isso não passa de observar a árvore e ignorar a floresta

E agora, eis que, ligado eu pelo espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que lá me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] de cidade em cidade me revela, dizendo que me esperam prisões e tribulações. Mas de nada faço questão, nem tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.
(…)
Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.
At 20:22-4,28

Pela história de Atos, Saulo – um fariseu perseguidor de cristãos – teve uma visão de Jesus durante seu trajeto para Damasco, e a partir daí mudou seu nome para Paulo, um incansável missionário cristão. Nesse mesmo livro, são várias as manifestações do Espírito Santo, seja com os cristãos que conheceram Jesus em vida (At 2:4-8) ou com prosélitos posteriores (At 19:1-7) e nenhuma delas é equiparada a uma manifestação de Jesus (que também apareceu a Ananias). Pelo contrário, o autor de Atos também deixa claro que Jesus e o Espírito Santo são distintos:

E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo [πνευματος αγιου].
At 9:17

Estando “Espírito Santo” com a forma anartra, pois é tratado como um espécie de substância ou poder a ser infundido. No caso de At 20:28, o Espírito Santo foi investido aos anciãos supervisores (bispos) da Igreja de Éfeso, parte de uma comunidade mais ampla e auferida pelo sacrifício do sangue de Jesus. Ou teria sido pelo de Deus? De fato, há mais de uma ambiguidade nesse versículo.

O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo.

Essa é uma alusão à fala de Jesus em seu (primeiro) discurso de despedida (Jo 14:26). Como há até hoje uma grande dúvida no movimento se Jesus é ou não o Espírito de Verdade, isso pode ter reforçado a confusão feita em At 20:28.

Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.

Meia-Verdade. Desde o século I, pelo menos, já havia a noção de o Espírito Santo possuir origem divina e partilhar de sua divindade, de algum modo. A plena equiparação do Espírito Santo ao Pai (e ao Filho) é que foi mais tardia. Houve falsificações trinitárias, sim, como o Parêntese Joanino, mas essa ideia de um Espírito Santo divino já existia antes de Niceia.

Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”.

Não sei quais os “originais” em questão que foram lidos. Existem edições críticas do Novo Testamento disponíveis ao público como o Nestle-Aland Novum Testamentum Graece e outras mais simples. Nenhuma delas sustenta “um espírito santo” para At 20:28 ou I Cor 6:19. Se o original é o Sabedoria do Evangelho de Pastorino, então fez-se uma leitura muito sui generis desse tradutor espírita, pois ele, como vimos, enumera onde “o Espírito Santo” aparece nos evangelhos.

E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo.

Essa besteira, em particular, vem desde os tempos de Léon Denis, repassada por gerações de espíritas. Eis sua versão original:

Essa palavra pneuma, traduziu-a S. Jerônimo como spiritus, reconhecendo, com os evangelistas, que há bons e maus Espíritos. A ideia de divinizar o Espírito não surgiu senão no século II. Foi somente depois da Vulgata que a palavra sanctus foi constantemente ligada à palavra spiritus, não conseguindo essa junção, na maioria dos casos, senão tornar o sentido mais obscuro e mesmo, às vezes, ininteligível. Os tradutores franceses dos livros canônicos foram ainda mais longe a esse respeito e contribuíram para desnaturar o sentido primitivo. Eis aqui um exemplo, entre outros muitos: lê-se em Lucas (cap. XI, texto grego)

10 – “Aquele que pede, recebe; o que procura acha; ao que bate se abrirá.” – 13. “Portanto, se bem que sejais maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, com muito mais forte razão vosso Pai enviará do céu “um bom espírito” àqueles que lho pedirem.”

As traduções francesas trazem o Espírito Santo. É um contra-senso. Na Vulgata, tradução latina do grego, está escrito Spiritum bonum, palavra por palavra, espírito bom. A Vulgata não fala absolutamente do Espírito Santo. O primitivo texto grego ainda é mais frisante, e nem douto modo poderia ser, pois que o Espírito Santo, como terceira pessoa da Trindade, não foi imaginado senão no fim do século II.

Léon Denis, Cristianismo e Espiritismo, Notas Complementares, nota n. 6

Agora, os fatos: Jerônimo sistematicamente usa Spiritus Sanctus ao longo de sua Vulgata. Em um versículo, ele utiliza Spiritus Bonus (Lc 11:13). Na maioria dos códices e papiros gregos – p75, Alexandrino, Sinaítico, Beza, etc. -, encontra-se a leitura “Espírito Santo”. Em alguns – P45 e códice Regius (L), por exemplo -, lê-se αγαθον (“bom”) nesse versículo e deve ter vindo daí a tradução de Jerônimo. Uma tradução francesa feita dos manuscritos gregos corretos nesse versículo explicaria a discrepância apontada pelo “apóstolo do espiritismo”. Até o infame Textus Receptus de Erasmo acerta nessa leitura.

Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.

Como visto logo acima, não há fundamento algum para essa teoria conspiratória da troca de “bom” por “santo”. É surpreendente que ela tenha durado tanto, quando ela poderia ser facilmente rechaçada por uma simples leitura da Vulgata, principalmente por aqueles que foram seminaristas. Quanto ao uso de maiúsculas, eles são apenas uma transposição para a grafia moderna dos antigos Nomina Sacra, que são anteriores aos Concílios.

Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.

Também consta na Escritura que um dos dons do Espírito Santo é o de discernir espíritos (cf. I Cor 12:10)! É perfeitamente possível, portanto, a existência de vários espíritos e apenas um deles ser o “Espírito Santo”, afinal “espírito” pode ter conotações diferentes para cada caso. Em vez de ficar no achismo de teologias modernas, vejamos o que documentos antigos falavam sobre o tema em pormenores:

“Agora escute”, disse ele, “sobre a fé. Existem dois mensageiros com o homem, o da justiça e o da maldade”.

“Então”, disse eu, “como posso reconhecer seus trabalhos, sendo que os dois anjos vivem comigo?”

“Escute”, disse ele, “e os entenda. O mensageiro da justiça é sensível, modesto, gentil e tranquilo. Quando este entrar em teu coração, ele imediatamente fala contigo sobre a justiça, a pureza, a santidade, sobre o contentamento, sobre cada ato justo e sobre cada virtude gloriosa. quando tudo isso entrar em teu coração, saberás que o mensageiro da justiça está contigo. Estes, então, são os trabalhos do anjo da justiça. Portanto, confie nele e em seus trabalhos. Agora observe os trabalhos do anjo da maldade. Primeiro de tudo, ele é irritado, maligno e frenético, e seus trabalhos são o mal, despedaçando os servidores de Deus. assim, quando este entrar em teu coração, o reconheça pelos seus trabalhos.”

“Mas Senhor”, disse eu, “eu não sei como reconhecê-lo”.

“Escute”, respondeu, “quando alguma explosão de algum nervosismo temperamental tomar posse de ti, reconheça que ele se encontra em ti. Então vêm o desejo do trabalho excessivo, bebidas e comidas extravagantes, muita bebedeira, e vários tipos de luxúrias desnecessárias, o desejo de mulheres, a ganância, a arrogâncias e a pretensiosidade, o que quer que lembre ou se assimile a estas coisas. Assim, quando estas coisas entrarem em teu coração, saberás que o anjo da maldade estará contigo. Reconhecendo, portanto, seus trabalhos, evite-o e não confie nele em nenhuma circunstância, pois seus trabalhos são malignos e prejudiciais aos servidores de Deus. Agora tens, então, o funcionamento dos dois mensageiros; entenda-os e confie no anjo da justiça. mas mantenha-se longe do anjo da iniquidade, porque seu ensinamento é o mal em todas perspectivas. Pois mesmo se houver uma pessoa de fé, e um pensamento deste anjo penetrar em seu coração, é inevitável que aquele homem ou mulher cometerá algum pecado. Todavia, temos uma pessoa extremamente pecadora, homem ou mulher, será necessário que este faça algo bom. Vês assim que é bom seguir o anjo da justiça e evitar o anjo da maldade. Este mandamento explica coisas sobre a fé para que possas confiar nos trabalhos do mensageiro da justiça, e para que, fazendo estes trabalhos, possas viver para Deus. Mas acredite que os trabalhos do mensageiro do mal são perigosos, para que não os fazendo, possas viver para Deus.”

Hermas, Carta do Pastor, VI Mandamento

A Carta (ou Evangelho) do Pastor foi escrita por volta de meados do II século e traz em seus primeiros capítulos a questão dos “Dois Caminhos” (cf. Mt 7:13,14 e Lc 12:23-5), um tema recorrente em obras do período, como a Didaqué e Epístola de Barnabé. No caso, explana como a influência angélica ou demoníaca poderia desviar os cristãos da retidão. Vale lembrar que essa obra trata o Espírito Santo como algo distinto desses dois tipos de seres espirituais, afinal ele era pré-existente e gerara “toda a criação” ([Hermas, Quinta Parábola]). A identificação dessas influências era crucial para o autor de I João, pois, conforme o conteúdo da epístola dá a entender, sua comunidade enfrentava um cisma, com alguns de seus membros a abandonando após adotarem uma espécie visão docetista quanto à natureza de Jesus.

E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples

Vejamos o que realmente o livro de Números tem a dizer :

E disse o Senhor a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, que sabes serem anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da congregação, e ali estejam contigo. Então eu descerei e ali falarei contigo, e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que tu não a leves sozinho.

(…)

E saiu Moisés, e falou as palavras do Senhor ao povo, e ajuntou setenta homens dos anciãos do povo e os pôs ao redor da tenda.
Então o Senhor desceu na nuvem, e lhe falou; e, tirando do espírito, que estava sobre ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; e aconteceu que, quando o espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas depois nunca mais.

Porém no arraial ficaram dois homens; o nome de um era Eldade, e do outro Medade; e repousou sobre eles o espírito (porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizavam no arraial.
Então correu um moço e anunciou a Moisés e disse: Eldade e Medade profetizam no arraial.
E Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus jovens escolhidos, respondeu e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-lho.
Porém, Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!

Nm 11:16-7, 24-9

Assim está escrito: “e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles”. Isso está muito mais próximo da ideia de espírito como uma “forma de poder” que foi, no episódio descrito, partilhada, do que consciências do além incorporando em mortais. Chamar Eldade, Medade ou os demais anciãos de “médiuns”, no sentido moderno da palavra, é focar-se na semelhanças do efeito produzido com o das incorporações mediúnicas e esquecer-se das diferenças entre as causas. A passagem de Efésios vai pelo mesmo caminho.

Por fim:

Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!

Que se reforme urgentemente a Intelligentsia espírita, pois a que está aí tem uma terrível tendência para olhar o passado com os olhos do (seu) presente e, assim, enxergar aquilo que quer ver. Que ao menos um dia ela abra algum exemplar da Septuaginta ou da Vulgata para conferir se as informações bombásticas que repassam se elevam ao menos um pouco acima do quilate de um boato.

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O Julgamento Final

O Juízo Final

Marten de Vos: O Juízo Final

Embora o assunto deste não tenha exatamente a ver com o Espírito Santo, gostaria de comentá-lo por envolver o uso do artigo grego. Trata-se de um recorrente versículo utilizado pelos cristãos tradicionais contra os argumentos em prol da reencarnação na Bíblia:

E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo. Assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam.

Hb 9:27-8

De tão batida, essa passagem já ganhou várias análises e tentativas de refutação por parte de apologistas. Eis uma tanto abrangente em seus comentários:

Esta passagem é a mais citada pelos opositores como prova de que a Reencarnação não existe.

No entanto, esta afirmativa de modo algum nega ou invalida o princípio da Reencarnação, pois realmente o nosso corpo (este que o nosso espírito anima agora) só morre uma vez. O corpo muda a cada Reencarnação, o espírito, no entanto, permanece o mesmo em vários corpos, que morrem a cada nova existência, até atingirem a perfeição.

Ressaltamos, ainda, que Paulo não disse que o “homem deve viver uma só vez”. Ele não poderia se opor ao nascer de novo já decretado por Cristo no seu diálogo com Nicodemos em João Capítulo 3. E também não se oporia ao Apocalipse, capítulo 2:11 e 20:6 (Veja capítulo XVII), onde Ele fala na “segunda morte”, o que nos obriga, automaticamente, a concluir sobre a necessidade de um “segundo nascimento”. Lembre ainda que Paulo diz que depois da morte vem “um julgamento” e não “o julgamento”, que seria único e para todos de uma vez. Conclui-se que Paulo fala de um julgamento após cada morte.

Na verdade, neste planeta quem só encarnou uma vez e necessitou morrer também uma só vez foi o Cristo que já não possuía débitos e tinha sua evolução espiritual totalmente atingida e é a quem Paulo se refere, realmente, nesta passagem. Nós, no entanto, devido aos nossos débitos e defeitos, necessitamos reencarnar e passar pela morte física muitas vezes. O Cristo neste planeta só encarnou uma vez e consequentemente só morreu uma vez.

Observe, ainda, no texto, Paulo afirmando que, depois da morte, vem um julgamento, estando de pleno acordo com o princípio da Reencarnação, como nos mostra a Doutrina Espírita. Após a desencarnação, vem o balanço do emprego que fizemos de nossa existência na última encarnação. Após este julgamento, vem a necessidade ou não de volta à vida material.

Veja no Evangelho de João 5:28-30, onde Jesus nos informa que há realmente um julgamento, após a morte, e que indica a necessidade de escolha de uma nova etapa.

Há ainda os que afirmam ser a morte física uma consequência do pecado, (I Cor. 15:56) o que acaba sendo uma incoerência, pois o Cristo não tinha pecado e no entanto morreu fisicamente.

É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.

Na verdade, a condição de morrer uma só vez é aplicada muito bem ao Cristo que não tinha erros e faltas a expiar, pois era um espírito com plenitude evolutiva. Quanto a nós, pobres criaturas em busca de um reencontro com Deus, temos, na verdade, que morrer e renascer muitas vezes.

Severino Celestino da Silva, Analisando as Traduções Bíblicas, 4ªed., cap. XXIII, pp. 315-6 (grifos no original).

Bem, primeiramente, vamos destrinchar o que é o livro Hebreus do Novo Testamento, qual sua mensagem, para daí entender qual era visão teológica de seu autor quanto a morte, em vez de ficar lhe imputando opiniões de outros livros bíblicos ou, pior, de religiões modernas. Embora seja comumente chamado de “Carta” ou “Epístola aos Hebreus”, ele carece da estrutura de uma carta a dar instruções sobre questões que aflijam a comunidade ou tecer agradecimentos. Em linhas gerais, ele começa como um tratado, evolui para uma sermão e só mais perto o fim se assemelha a uma carta. A autoria, é bom que se saiba, é desconhecida. A tradição cristã a atribui a Paulo, mas isso é posto em dúvida desde a Antiguidade e hoje há consenso de que ele não a escreveu. Assim, Hebreus é uma peça ímpar dentro no Novo Testamento, não cabendo a priori relacioná-la com as cartas de Paulo ou supostos livros que ele tenha lido.

O público para o qual Hebreus se destina se constituía de cristãos a sofrer algum tipo de perseguição (Hb 10:34-6) e, em razão disso, alguns estavam tentados a se converter (ou voltar) ao judaísmo, que gozava de proteção legal. Assim, seu anônimo autor admoesta seu público a permanecer firme na fé, pois o cristianismo seria o ápice de todas as realizações e promessas do judaísmo. Ameaças à parte, é feita uma série de comparações para justificar tal superioridade:

  • Cristo é superior aos profetas (Hb 1:1-3);

  • Cristo é superior aos anjos (Hb 1:4-11, 2:5-18);

  • Cristo é superior a Moisés (Hb 3:1-6);

  • Cristo é superior a Josué (Hb 4:1-11);

  • Cristo é superior ao sacerdócio judaico (Hb 4:14-5:10; 7:1-29);

  • Cristo é ministro de uma Aliança superior (Hb 8:1-13);

  • Cristo é ministro em um Tabernáculo superior (Hb 9:1-28);

  • Cristo constitui por si mesmo um sacrifício superior (Hb 10:1-18).

A passagem em questão se situa bem na fronteira entre os dois últimos itens. O tabernáculo em que Jesus ministrou era superior por estar no céu, em vez de sua contraparte terrena, feita por homens. Além disso, o sacrifício não foi feito com coisas terrenas, como o sangue de animais, mas com algo celestial: o próprio Jesus Cristo. A consequência dessa superioridade era que o sacrifício de Jesus foi único e redentor de uma vez por todas, ao passo que os dos sacerdotes precisam ser repetidos periodicamente. Nesse contraste entre ministérios é que a unicidade do sacrifício de Jesus foi comparada à da morte de cada indivíduo.

O questionamento principal do apologista é que, a rigor, o texto grego de Hb 9:27 não consta o artigo – μετα δε τουτο κρισις -, que seria literalmente traduzido por “e, após isto, (um) juízo”. Como já explanado, a presença do artigo estabelece a definição; em sua ausência, o substantivo pode ser definido ou não, e só contexto pode sanar a dúvida. Versões inglesas, como a American Standard Version, mantêm a palavra judgment anartra, indicando um caráter qualitativo para seus tradutores. Em português isso soaria um tanto estranho, pendido algum tipo de artigo. Qual empregar em “juízo” (κρισις) dependerá de como o autor de hebreus o quantificava. Uma pista foi dada alguns capítulos antes:

Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno [κριματος αιωνιου].

Hb 6:1,2

Embora aqui se use uma palavra diferente (κριμα), em ambos os versículos vale a tradução “julgamento”, “juízo” ou “condenação”. O chamativo, aqui, é o adjetivo que a acompanha – αιωνιος – que pode significar “eterno”, “para sempre”, “sem fim” ou “duradouro por uma era [αιων]”. O único significado que talvez permitisse um novo julgamento seria o último, ainda que numa era distinta. Vejamos, então, qual uso o anônimo autor de Hebreus lhe deu em outros versículos:

E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna [αιωνιου] salvação para todos os que lhe obedecem; (5:9)

Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna [αιωνιαν] redenção. (9:12)

E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna [αιωνιου]. (9:15)

Ora, o Deus de paz, que pelo sangue da aliança eterna [αιωνιου] tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, (13:20)

Dada a determinação do autor em mostrar a superioridade do cristianismo, fica difícil conceber a oferta de uma salvação/herança/aliança limitada no tempo; portanto, “eterno” é a melhor tradução para αιωνιος e, por conseguinte, ele também cria na danação eterna. O juízo seria único.

Outro apologista espírita, ao contrário de seu confradre, percebeu que as coisas não eram tão simples assim, em razão da vinculação o sacrifício de Jesus com a morte única:

A outra parte do homem morto é a do seu espírito imortal, que apenas se separa do seu corpo que morre, e vai para o mundo espiritual, onde descansa da vida do corpo terrena, enquanto que aguarda a volta a um novo corpo, formando, assim, um novo homem que está predestinado a, um dia, morrer novamente, mas como sempre, somente uma vez só. Depois da morte de cada homem, seu espírito passa por um julgamento para que vá colhendo temporariamente o que semeou. Mas esse julgamento não é definitivo, pois, no fim dos tempos, os espíritos terão o juízo final de suas faltas, nas várias reencarnações, com a simbólica separação do joio do trigo.

“E como todo homem está destinado a morrer uma só vez, depois do que haverá o julgamento, assim também Cristo se ofereceu uma só vez para tirar os pecados de muitos homens. Ele aparecerá uma segunda vez, sem relação alguma com o pecado aos que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hebreus 9: 27). O que o autor, muito ligado às ideias de sacrifícios do Velho Testamento, quer acentuar é que a única morte de Jesus na cruz, como a de todo homem, que é também uma só, foi tão importante como sacrifício de morte, que não há mais necessidade de outros sacrifícios de morte de mais nenhum outro ser para resgatar pecados como pensavam os judeus. O texto, como se vê, não tem mesmo nenhuma relação com a reencarnação, mas tão somente com a eficácia da morte única de Jesus para o resgate dos pecados.

J.R. Chaves; Hebreus 9:27 é um abuso de interpretação contra a reencarnação, Jornal O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/09/2013.

A memória do Segundo Templo e seus sacrifícios ainda estava fresca, portanto não há o que estranhar quanto aos paralelos. Deve-se concordar, contudo, que o texto bíblico não traga uma relação direta com a reencarnação, nem aparente que isso passasse pela cabeça de seu autor. Até porque não haveria tempo para reencarnar:

Se assim fosse, Cristo precisaria sofrer muitas vezes, desde o começo do mundo. Mas agora ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos [συντελεια των αιωνων], para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo.

Hb 9:26

Bem no versículo anterior ao famigerado hb 9:27, nosso desconhecido autor demonstra que acreditava viver já no fim dos tempos. A reencarnação não fazia parte de sua soteriologia. A constatação disso me obriga a revisar o apelo feito por Celestino:

É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.

Não dá para fazer uma análise pessoal, a menos que se queira produzir uma interpretação pesher, exatamente o que os dois apologistas fizeram. Caso se agisse de modo menos apologético e mais científico, pesquisariam a estrutura literária de Hebreus, quem era o público do autor, qual mensagem queria passar, de quais temas tratou, etc. Enfim, trariam de volta um pouco da pessoa do final do primeiro século da Era Comum, imersa numa expectativa apocalipsista, em vez de alguém que lhes é a própria imagem e semelhança.

Bem, se você está lendo isto aqui, então o mundo – tal como o conhecemos – não acabou ainda, e a ortodoxia cristã teve de lidar com o pós-morte até lá. Nesse aspecto, o cânon que se formou nos séculos II e III não está coerente. Cada seita produz a harmonização necessária para sua doutrina, que vai desde a desde o gozo ou sofrimento logo após a morte ou, conforme outras, uma hibernação até o Dia do Juízo, e até mesmo a aniquilação (“retorno ao pó”) enquanto não é chegada a hora da ressurreição. Tudo depende de um maior ou menor dualismo entre corpo e alma, embora em todas o veredicto já esteja dado após a morte. Apologistas espíritas lidam com tais discrepâncias para desconsiderar os que se valem de Hb 9:27. Por sua vez, a comunidade da Epístola ao Hebreus desconhecia esse cânon, tampouco tinha necessidade de harmonizações: para ela o tempo era curto.

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Notas


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Para Saber Mais



– Bauckham, Richard; The Qumran Community and the Gospel of John, em The Dead Sea Scrolls: The Dead Sea Scrolls Fifty Years After Their Discovery, ed. Lawrence H. Schiffman, Emanuel Tov and James C. VanderKam, Israel Exploration Society, Jerusalem 2000, p.105-115.

– Bruce, F. F; Holy Spirit in the Qumran Texts, Annual of Leeds University Oriental Society 6 (1966/68): 49-55.

– Comfort, Philip; Encountering the Manuscripts, Broadman & Holdman Publishers, 2005.

– McNamara, Martin; Targum and Testament Revisited, William B. Eerdmans Publishing Company, 2a. ediçfão, 2010.

– Murachco, Henrique;Língua Grega, II Volumes, Vozes, 2a. ed, 2002.

– Jewish Encyclopedia, Holy Espirit, acessado em 10/07/2014

– Porter, Stanley E.; Idioms of the Greek New Testament, Bloomsbury T&T Clark; 2a. ed., 1992

– Read-Heimerdinger, Jenny; The Bezan Text of Acts: A Contribution of Discourse Analysis to Textual Criticism, T & T Clark, 2002.

– Robertson, A.T.; A Grammar of the Greek New Testament – In the Light of Historical Research, Broadman Press, 1934.

– Shapland, C.R.B; As Cartas de Santo Atanásio acerca do Espírito Santo, The Epworth Press, 1951.

– Tatum, W. Barnes; John the Baptist and Jesus – A Report of the Jesus Seminar, Polebridge Press, 1992

– Wallace, Daniel B.; Greek Grammar beyond the Basics, Zondervan, 4a. edição, 1995.

Uma Resposta a José Reis Chaves

Índice

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O Artigo em Questão

A Bíblia e o Espiritismo

José Reis Chaves, escritor espírita e ex-seminarista, lançou em 2009 o livro O Espiritismo e a Bíblia (Espaço Literarium Editora), uma compilação de artigos que escreve às segundas-feiras no jornal O Tempo, de Belo Horizonte – MG. Logo no início, há um artigo a respeito do trabalho deste portal:

Precisaríamos do espaço de um volumoso livro para abordar o site http://br.geocities.com/falhasespiritismo/index_int_2.html Mas fá-lo-emos assim mesmo. Ele cita Flávio Josefo, Procópio, são Clemente de Alexandria, Orígenes, são Gregório de Nissa, são Jerônimo, Kardec, Léon Denis, Elizabeth C. Prophet, N. Langley, H. Kersten, dom Estêvão Bitencourt, S. Celestino, este colunista e outros.

E já que os espíritas gostam de estudar, vale a pena ver o site, apesar das falhas. São simplistas algumas de suas questões, que se apoiam em teses também simplistas. Kardec disse que se houver divergência entre um ensino espírita e a ciência, que se seguisse a ciência. De fato, o espiritismo não se considera infalível. Aliás, nem Jesus sabia tudo! Céptico, o site critica os Evangelhos. E desfaz-se do inconsciente coletivo de Jung, dos campos morfogenéticos, do adamantino Pastorino e do renomado cientista Ian Stevenson, diretor do Dtº de Psiquiatria da U. de Virgínia, o qual pesquisa o fenômeno da reencarnação, há mais de 50 anos e em mais de 40 países, autor duma obra de 2.300 páginas (2 volumes) sobre a reencarnação, e admirado por todo o mundo científico.

São de autoria de Procópio (morto em 562) “Histórias das Guerras de Justiniano” e “História Secreta”. Ele registra, de modo diferente, o episódio de 500 prostitutas, que, segundo vários autores, foram assassinadas a mando da imperatriz Teodora, esposa de Justiniano, que era mesmo sanguinário, pois mandou matar cerca de um milhão de pessoas adeptas da reencarnação no Oriente Médio, após a condenação dela pelo Concílio de Constantinopla, em 553 (Paul Brunton, “Ideias em Perspectivas”, pág. 118, Ed. Pensamento).

Não teria Procópio contado essa história de modo diferente, justamente porque era amigo do casal imperial? E porque o site desconhece outras fontes que registram essa história das prostitutas assassinadas, ele tenta depreciar o meu livro “A Reencarnação na Bíblia e na Ciência”, EBM Ed., SP, e outras obras que falam do assunto. E é insustentável a sua tese de que só se conhece um autor, lendo suas obras, pois Jesus, Sócrates e outros grandes vultos da História não escreveram nada. Aliás, o próprio site se contradiz nisso, ao defender ideias de certos autores tiradas de obras de outros autores.

Realmente, as críticas desse site não persuadem ninguém!

Será feita uma análise passo a passo dessas declarações.
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Sobre o Portal

Precisaríamos do espaço de um volumoso livro para abordar o site http://br.geocities.com/falhasespiritismo/index_int_2.html Mas fá-lo-emos assim mesmo. Ele cita Flávio Josefo, Procópio, são Clemente de Alexandria, Orígenes, são Gregório de Nissa, são Jerônimo, Kardec, Léon Denis, Elizabeth C. Prophet, N. Langley, H. Kersten, dom Estêvão Bitencourt, S. Celestino, este colunista e outros.

Pois então abordem todo o portal em uma obra ampla ou parceladamente, o que pode ser feito até via internet. Mesmo tendo se limitado a um único assunto – o suposto assassinato de 500 prostitutas a mando de uma imperatriz bizantina como estopim para a supressão do reencarnação na Igreja – continua sendo imprudente comentá-lo no espaço exíguo de uma coluna semanal. O resultado saiu mais como um espécie de desabafo do que uma dissecação do tema, o que seria de se esperar de uma verdadeira refutação. Listar os autores citados no portal pode até impressionar seus leitores com a tarefa hercúlea a que está se propondo, embora seja algo um tanto nebuloso, pois não diz exatamente a intenção com que os cito: aprovar, discordar, usar como testemunha histórica, como referência, discordar de interpretações de terceiros, etc. Um último comentário a esse parágrafo, em forma de sugestão, seria a utilidade em colocar o nome deste portal junto ao endereço virtual, pois esse pode mudar (e já mudou), ao passo que a “marca” do portal permanece. [topo]

Espiritismo e Ciência

E já que os espíritas gostam de estudar, vale a pena ver o site, apesar das falhas. São simplistas algumas de suas questões, que se apoiam em teses também simplistas. Kardec disse que se houver divergência entre um ensino espírita e a ciência, que se seguisse a ciência. De fato, o espiritismo não se considera infalível. Aliás, nem Jesus sabia tudo!

Concordo que certas partes de meu portal são sofríveis. Sério! Ele se desenvolveu de forma desigual. Nas partes bem incrementadas, como a da reencarnação bíblica, o texto cresceu muitas vezes por “sedimentação”. Apesar de me agradar o conteúdo, a forma não estava boa e por isso o estou reescrevendo. Agora, justiça me seja feita: por ocasião da publicação do artigo original (27/08/2007) já havia material suficiente no portal para ao menos fazer os espíritas suspeitarem que havia algo errado na história repassada em seus centros e, posteriormente, fiz um estudo exaustivo sobre a questão que, quando comparado com a literatura espiritualista disponível, nem apelando pode ser chamado de “simplista”.

Quanto ao dito de Kardec, já o conheço e considero utópico. Nem a ciência “tradicional” avança desse jeito, descartando teorias a cada novo fato contrário. Muito pelo contrário, sempre são levantadas hipóteses ad hoc para conciliar dados discrepantes com um arcabouço teórico já bem estabelecido. Muitas vezes isso é bem sucedido ou o é por algum tempo. Quando a quantidade de anomalias se avoluma ou as hipóteses auxiliares começam a ficar fracas, impassíveis de qualquer verificação, podemos estar diante uma iminente mudança nos paradigmas científicos. Enfim, a ciência é resistente à mudança e é bom que seja assim, do contrário ela seria um caos (1). Com o espiritismo, não é diferente e, mesmo quando a ciência o contradiz, é capaz de lançar uma “carta na manga”. Vide as supostas civilizações marcianas que seriam invisíveis aos nossos olhos e aos instrumentos de nossas sondas. Isto não deixa de ser uma hipótese auxiliar. Das mais fracas.

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O Peso da Autoridade

Céptico, o site critica os Evangelhos. E desfaz-se do inconsciente coletivo de Jung, dos campos morfogenéticos, do adamantino Pastorino e do renomado cientista Ian Stevenson, diretor do Dtº de Psiquiatria da U. de Virgínia, o qual pesquisa o fenômeno da reencarnação, há mais de 50 anos e em mais de 40 países, autor duma obra de 2.300 páginas (2 volumes) sobre a reencarnação, e admirado por todo o mundo científico.

A primeira e curta frase pode dar a impressão de que desdenho de um conjunto de livros que lhe é prezado, então retruco: critico os evangelhos de que jeito? Digo que são um amontoado de disparates ou material que contém coisas boas para os dia de hoje, mas que deve ser analisado tendo em mente seus primeiros leitores – os judeus do primeiro século? Lógico que eu, jogando no time dos céticos, não darei a eles a mesma análise tua ou a dos cristãos “tradicionais”, a quem tanto critica. Digamos que eu seja adepto da tese de Jesus como Profeta Apocalíptico, defendida também por outro descrente e “céptico” chamado Bart D. Ehrman (2). Ele foi, por sinal, considerado “o maior biblista do mundo” em sua coluna de 24/03/2008.

Também não estou muito interessado na reencarnação como fato, atendo-me mais ao revisionismo histórico perpetrado por alguns espiritualistas para conceber um cristianismo antigo “à própria imagem e semelhança“. Muitos repassam essa moeda falsa de total boa fé, mas ainda assim erram por um excesso de confiança não condizente com a “fé racionada”. Um pouco de ceticismo lhes faria bem e foi a isso que me propus.

Quanto ao Dr. Ian Stevenson, nem de longe me atrevi a questionar seu gabarito acadêmico e, principalmente, sua disposição em fazer “trabalho de campo” e sua postura crítica. Só não entendo por que espíritas extraem de seu trabalho mais do que pode oferecer e fazem vista grossa para as discrepâncias. A grande pergunta que ele tentou responder foi se “há reencarnação”, porém ele achava um passo grande demais querer dizer “como ela é” ou afirmar que sua ocorrência fosse universal. Também vale lembrar que muitos dos casos de “recordação espontânea” com que trabalhou foram considerados fracos por ele mesmo, sendo divulgada ao grande público justamente uma seleção dos mais fortes.

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Procópio: Esse Desconhecido (Parte I)

São de autoria de Procópio (morto em 562) “Histórias das Guerras de Justiniano” e “História Secreta”. Ele registra, de modo diferente, o episódio de 500 prostitutas, que, segundo vários autores, foram assassinadas a mando da imperatriz Teodora, esposa de Justiniano (…)

Faltou uma importante obra de Procópio no trecho acima: Das Construções, um registro dos principais feitos arquitetônicos do reinado de Justiniano. Além da afamada Catedral de Santa Sofia, Procópio relata a construção do convento Metanoia (Arrependimento):

(…)Havia uma multidão de mulheres em Bizâncio que realizava em bordéis uma atividade de libertinagem, não por escolha própria, mas sob a força da luxúria. Visto que isto era mantido por cafetões, e as mulheres de tais casas eram obrigadas a toda e qualquer hora a praticar obscenidade e copular de imediato com desconhecidos à medida que apareciam, elas se submetiam aos seus abraços. Já que houvera um numeroso corpo de alcoviteiros na cidade desde os tempos antigos, conduzindo seu tráfico em licenciosidade nos bordéis e vendendo a juventude alheia no mercado público, reduzindo pessoas virtuosas à escravidão. Mas o imperador Justiniano e a Imperatriz Teodora, que sempre compartilhavam uma comum piedade em tudo que faziam, arquitetaram o seguinte plano. Limparam o estado de poluição dos bordéis, banindo o próprio nome dos cafetões e libertaram de uma licenciosidade adequada apenas a escravas as mulheres que estavam lutando com imensa pobreza, provendo-as com sustendo independente e liberando virtude. Isso ele conseguiram da seguinte forma. Próximo à margem do estreito que está à direita dos que navegam em direção ao mar chamado Euxino, eles transformaram o que fora anteriormente um palácio em um imponente mosteiro projetado para servir de refúgio a mulheres que se arrependessem de suas vidas anteriores, de forma que lá, através da ocupação que suas mentes teriam com Deus e com a religião, poderiam ser capazes de limpar os pecados de suas vidas no prostíbulo. Portanto, denominaram o domicílio de tais mulheres de ‘Arrependimento’, em adequação com seu propósito. E estes soberanos dotaram este convento com ampla soma em dinheiro e adicionaram várias construções, a maioria notável por sua beleza e suntuosidade, para servirem de consolo às mulheres, a fim de que nunca se sintam compelidas a se afastar da prática da virtude de uma forma ou de outra.(..)

Procópio, Das Construções (De Aedificiis), livro I, cap. IX.

Na verdade, existem dois relatos feitos por Procópio para o episódio. Como Das Construções é propaganda estatal, essa é versão idílica dos fatos. O outro se encontra em História Secreta:

Teodora também devotou considerável atenção ao castigo de mulheres flagradas em pecado carnal. Ela apanhou quinhentas prostitutas no Fórum, que lá auferiam uma vida miserável se vendendo por três óboles (3), e as enviou para a margem oposta [do Bósforo], onde foram trancadas no mosteiro chamado Arrependimento, para forçá-las a reformar seu estilo de vida. Algumas delas, porém, atiravam-se à noite dos parapeitos e assim se livravam de uma salvação indesejada.

Procópio, A História Secreta, (Anekdota), cap XVII, “Como Teodora salvou quinhentas prostitutas de uma vida de pecado.”

Essa versão mostra que aquela obra social não era tão perfeita assim, com um certo número de internas que não queriam estar lá e chegando ao ponto de tentar uma fuga suicida. Existe um outro cronista de época que também relata a relação entre Teodora e as prostitutas.

Naquela época, a piedosa Teodora acrescentou o seguinte a suas outras boas ações. Certos conhecidos cafetões percorriam cada distrito em busca que homens pobres que tivessem filhas e dando-lhes, dizia-se, sua palavra e alguns nomismata, levavam as garotas como se fosse um contrato; transformavam-nas em prostitutas públicas, vestindo-as como sua desventurada sorte exigia e recebendo delas, e miserável preço de seus corpos, forçavam-nas a ingressar na prostituição. Ela ordenou que todos os cafetões deveriam ser presos com urgência. Quando foram apresentados junto com as garotas, ordenou que cada um deles declarasse sob juramento o quanto haviam pagado aos pais das garotas. Disseram que deram a cada um cinco nomismata. Quando todos deram a informação sob juramento, a piedosa imperatriz devolveu o dinheiro e libertou as garotas do jugo de sua desgraçada escravidão, ordenando que a partir daí não houvesse cafetões. Presenteou as garotas com um conjunto de roupas e dispensou-as com um nomismata para cada.

João Malala; Crônicas, Livro XVIII, seção 24

Uma possível conciliação entre esses dois episódios(4) seria a hipótese de tentativa de acabar com a prostituição “por bem” ter fracassado: a relativamente pequena indenização paga não bastou para que recomeçassem a vida, muito menos para se livrarem do estigma. Já o dinheiro mais polpudo dados aos cafetões prestou para realimentar o tráfico de seres humanos. Teodora, então, teria resolvido agir “na marra”, isolando as prostitutas e endurecendo o cerco à caftinagem. Alguém poderia alegar “oh, mas as garotas estavam querendo fugir, algo de horrível devia estar acontecendo lá dentro!” Não necessariamente: a vida daquele internato forçado simplesmente poderia ser espartana demais para algumas que preferissem as incertezas do meretrício à perda da liberdade. Guardada as devidas proporções, uma atitude análoga aos pacientes que fogem das clínicas de reabilitação modernas, após uma internação compulsória. Há, pelo menos, três fatos de depõem contra a tese de que Teodora criou um matadouro:

  1. Metanoia era obra de propaganda estatal e ficaria estranho realizar vultosos investimentos em instalações luxuosas no que seria um mero campo de concentração.
  2. Esse convento transcendeu Teodora em pelo menos cinco séculos (5). Ele foi feito para durar e não para “um serviço sujo de dois déspotas”. Seu princípio não seria essencialmente diferente de conventos similares surgidos no ocidente posteriormente, como os patrocinados pela corte papal de Avignon (6). Um exemplo próximo a nós desse tipo de instituição seriam os “Asilos Madalena” presentes na Irlanda até os anos 90 do século passado e que foram causticamente retratados no filme “Em Nome de Deus” (The Magdalene Sisters, 2002, lançado em 2004 no Brasil).
  3. O Código de Justiniano – o maior legado jurídico de seu reinado – é simpático às vítimas da prostituição, mas contra a caftinagem (Novella XIV, artigo primeiro)

Ainda que isso não tenha convencido a ti ou a algum leitor, continua a questão sobre qual a relação desse episódio com a condenação o II Concílio de Constantinopla, que supostamente baniu a reencarnação do cristianismo. Procópio nem de longe os relaciona e podem muito bem ser independentes. Será que algum outro historiador o fez?

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Um Milhão de Mortos(?)

Uma piadinha para aliviar a tensão:

Em uma fábrica, o Presidente envia uma mensagem clara e precisa para seu Gerente:

De: Diretor Presidente
Para: Gerente

“Na próxima sexta-feira, aproximadamente às 17 horas, o Cometa Halley estará nesta área. Trata-se de um evento que ocorre somente a cada 78 anos. Assim, por favor, reúnam os funcionários no pátio da fábrica, todos usando capacetes de segurança, quando explicarei o fenômeno a eles. Se estiver chovendo, não poderemos ver o raro espetáculo a olho nu, sendo assim, todos deverão se dirigir ao refeitório onde será exibido um filme documentário sobre o Cometa Halley”.

De: Gerente
Para: Supervisor

“Por ordem do Diretor Presidente, na sexta-feira, às 17 horas, o Cometa Halley vai aparecer sobre a fábrica, se chover, por favor, reúna os funcionários, todos com capacete de segurança e os encaminhe ao refeitório, onde o raro fenômeno terá lugar, o que acontece a cada 78 anos a olho nu”.

De: Supervisor
Para: Chefe de Produção

“A convite de nosso querido Diretor, o Cientista Halley, 78 anos, vai aparecer nu no refeitório da fábrica, usando capacete, pois vai ser apresentado um filme sobre o problema da chuva na segurança. O Diretor levará a demonstração para o pátio da fábrica”.

De: Chefe da Produção
Para: Mestre

“Na sexta-feira, às 17 horas, o Diretor pela primeira vez em 78 anos, vai aparecer no refeitório da fábrica, para filmar o Halley nu, o cientista famoso e sua equipe. Todo mundo deve estar lá, e de capacete, pois será apresentado um show sobre a segurança na chuva. O Diretor levará a banda para o pátio da fábrica”.

De: Mestre
Para: Funcionários

Todo mundo nu, sem exceção, deve estar com segurança no pátio da fábrica, na próxima sexta-feira, às 17 horas, pois o mandachuva (Diretor), e o Sr. Halley, guitarrista famoso, estarão lá para mostrar o raro filme “Dançando na Chuva”. Caso comece a chover mesmo é para ir para o refeitório de capacete na mesma hora. O show será lá, o que ocorre a cada 78 anos.

Aviso para Todos
Na sexta-feira, o chefe da diretoria vai fazer 78 anos e liberou geral para a festa, às 17 horas, no refeitório. Vai estar lá, pago pelo mandachuva, Bill Halley e seus Cometas. Todo mundo deve estar nu e de capacete, porque a banda é muito louca e o rock vai rolar solto até no pátio, mesmo com chuva”.

Talvez alguém esteja se perguntando por que resolvida resgatar essa piada antiga do limbo. É que não pude deixar de lembrar dela quando analisei melhor isto aqui:

[Justiniano],que era mesmo sanguinário, pois mandou matar cerca de um milhão de pessoas adeptas da reencarnação no Oriente Médio, após a condenação dela pelo Concílio de Constantinopla, em 553 (Paul Brunton, “Ideias em Perspectivas”, pág. 118, Ed. Pensamento).

O passo lógico foi verificar em in loco a referência repassada:

O vigor com que o imperador Justiniano proscreveu e destruiu livros e documentos heréticos deixou poucos registros que permitissem às gerações subsequentes saber o que outros cristãos haviam ensinado e acreditado a respeito da doutrina da reencarnação. Só no Oriente Próximo, Justiniano mandou matar mais de um milhão de hereges.

[Brunton, p. 118]

Não há menção alguma no referido livro de algo que vincule essa matança especificamente ao II Concílio de Constantinopla, não passando, provavelmente, de uma livre associação feita por ti. Os que estudaram algo a respeito do reinado de Justiniano sabem que ele se caracterizou por profunda intolerância religiosa, tendo dedicado grande esforço na supressão dos remanescentes pagãos, no extermínios dos maniqueus e repressão aos dissidentes e aos judeus. Isso foi uma política imperial (7) iniciada bem antes do Concílio, fossem os hereges reencarnacionistas (como os maniqueus) ou não. Quanto a Paulo Brunton, convém mencionar que ele não foi especialista em história bizantina, mas um jornalista inglês que, após uma estadia na Índia, tornou-se uma espécie de “guru ocidental”. A obra Ideias em Perspectiva não é exatamente algo que se possa chamar de livro, mas um apanhado póstumo de anotações feito por admiradores e discípulos em seus cadernos. Sendo assim, não há nenhuma bibliografia ou referência nela. Entretanto, foi viável encontrar uma possível origem do “fato” relatado:

Os drusos (8) são os únicos representantes modernos dos assassinos exterminados. Como eles, são ismaelitas, seu declarado fundador é Hakim, um califa fatímida do Cairo (9), que se considerava a nova encarnação da Mente de Deus. Sua noção de que o local atual de seu sempre ausente Grão Mestre é a Europa corresponde com bastante curiosidade à teoria de Von Hammer sobre o relacionamento que existiu entre os Templários e o real progenitor dos drusos. Esses mesmos drusos talvez também representem os “politeístas e Samaritanos” que floresceram tão vigorosamente no Líbano até tão tardiamente quanto os tempos de Justiniano, a cuja perseguição Procópio atribui o extermínio de um milhão de habitantes somente daquele distrito. De seu atual credo, preservado com segredo inviolado, jamais algo autêntico veio à luz; a crendice popular entre seus vizinhos faz deles adoradores de um ídolo em forma de bezerro e, para celebrar suas reuniões noturnas, [fazem] orgias como aquelas atribuídas aos ofitas (10) em Roma, aos templários (11) nos tempos medievais e aos maçons (continentais) (12) nos modernos.

King, Charles William, The Gnostics and their Remains , parte V, p. 413

Ou seja, por vias tortas, retorna-se ao famigerado Procópio! Agora, pelas mãos de C.W. King, um joalheiro da Inglaterra vitoriana que procurou em The Gnostics and their Remains (“Os Gnósticos e seus Vestígios”) reunir tudo que havia sobrado de informações sobre o antigo gnosticismo. A obra se encontra ultrapassada hoje, pois, além não ter podido contar com o material da biblioteca de Nag Hammad (descoberto em 1945), King se vale de teses hoje um tanto duvidosas ou imprecisas. A origem mais provável do relato de King atribuído a Procópio deve ter sido o capítulo XI de História Secreta, onde uma mais detalhada descrição é feita sobre uma luta ocorrida numa região próxima ao atual Líbano – a revolta samaritana de 529 d.C.:

E quando uma lei similar [obrigando conversão à ortodoxia] foi imediatamente emitida, afetando também os samaritanos, uma confusão indiscriminada varreu a Palestina. Então, todos os residentes de minha própria Cesareia e de todas as outras cidades, considerando-a como uma tolice para submeter a qualquer sofrimento em defesa de um dogma sem sentido, adotaram a denominação de cristãos no lugar da que então seguiam e, por meio desse disfarce conseguiram se safar do perigo oriundo da lei. E todos entre eles que eram pessoas de alguma prudência e racionalidade não demonstraram nenhuma relutância em aderir lealmente a essa fé, mas a maioria, sentindo ressentimento que, não por sua própria escolha, mas sob coação da lei, tiveram de abandonar a crença de seus pais, instantaneamente foram favoráveis aos maniqueus e politeístas, como eram chamados. E todos os agricultores, tendo se reunido em grande número, decidiram se rebelar contra o imperador, lançando como seu imperador um certo bandoleiro de nome Juliano, filho de Savaro. E travando combate com os soldados, suportaram por algum tempo, mas finalmente foram derrotados na batalha e pereceram junto com seu líder. E diz-se que cem mil pereceram nessa luta e a terra, que era a melhor no mundo, tornou-se, em consequência, destituída de agricultores. E para os donos de terra que era cristãos, isso deixou consequências muito sérias. Pois lhes foi incumbida, como um tipo de coerção, pagar para sempre ao imperador, ainda que não estivesse auferindo nenhuma renda da terra, a imensa taxa anual, já que não se mostrou nenhuma piedade na administração dessa atividade.

Assim, o total de cem mil mortos (dez miríades, no original) pode ter sido corrompido para um milhão ao passar para o livro de King (13). Caso se continuasse um encadeamento, Brunton colocou todos os mortos como reencarnacionistas e, depois, outros espiritualistas intuíram que deveriam ser origenistas. Óbvio que isso é uma especulação de como a informação teria se deteriorado. É plausível e o melhor que pôde ser feito com o material fornecido, pois o simples fato de que nenhum autor de King a Chaves ser capaz de dizer de onde a informação saiu torna impossível a eliminação de qualquer dúvida.

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Procópio: Esse Desconhecido (Parte II)

Não teria Procópio contado essa história de modo diferente, justamente porque era amigo do casal imperial?

Depende de qual Procópio vocês está falando. Ele é reconhecido como o autor das três obras supracitadas, mas ele mudava seu estilo conforme cada. Das Construções foi feita por encomenda e, aí sim, bajula o casal imperial. Em Guerras, tenta manter um certo distanciamento, mas não deixar de alfinetar as obsessões de Justiniano em reconquistar o ocidente e se envolver em questões teológicas, ao passo que a segurança das províncias orientais era negligenciada. Foi em A História Secreta que Procópio realmente extravasou seus ressentimentos contra o casal de monarcas. Para ele:

  1. Justiniano era um demônio: Isso não era uma figura de linguagem, nem queria dizer que ele vendeu sua alma por meio de um pacto. Ele seria, mesmo, um demônio sob uma casca humana. Vários “causos” são contados no capítulo XII: a mãe de dele foi fecundada por um demônio, viram-no andando pelo palácio sem a cabeça, seu rosto poderia se transformar numa massa disforme de carne, um monge do deserto se recusou a adentrar o salão do trono porque vira o Rei dos Demônios sentado sobre o mesmo. A imperatriz – ainda em seus dias de palco – recebia a visita de demônios em seu quarto, que expulsavam os amantes da ocasião para ficar com ela. Em um sonho ela soube que dividiria o leito com o Rei dos Demônios. Até os hábitos frugais de alimentação de Justiniano e sua pouca necessidade de sono eram indicativos de uma natureza satânica!
  2. Seria obra dos governantes tudo o que fosse fatídico: Uma consequência direta do item acima. Nas próprias palavras de Procópio (cap. XII): “Pois foi por meio de terremotos, pestilências e enchentes das águas dos rio que veio posteriormente a ruína, como presentemente demonstrarei. Não por meios humanos, mas por algum outro tipo de poder eles alcançaram seus terríveis desígnios”. E, realmente, Procópio coloca na conta de Justiniano (cap. XVIII) os mortos do terremoto de Antioquia.
  3. A imperatriz seria a mais pervertida das criaturas: a falta de “virtude” da jovem Teodora teria se refletido em sua crueldade quando no poder. Não bastava para ele ressaltar a sua origem de uma profissão socialmente desprestigiada. Era preciso deixar clara que ela foi a maior de todas as prostitutas de seu tempo. Para isso vale, como relatado acima, dizer que ela se deitava com demônios, descrever suas performances no palco (cap. IX) e assombrar o leitor com a incrível disposição sexual de Teodora, capaz de dar conta de dez marmanjos mais a criadagem deles, totalizando cerca de quarenta indivíduos em pleno vigor numa noite só(id.)! É difícil dizer se o que movia Procópio era uma espécie de machismo contra mulheres que gozavam de influência nos círculos do governo (como Teodora e a esposa de Belisário, Antonina) ou um ódio de classe. Ele não se conformava por Justiniano ter desposado uma cortesã quando poderia ter escolhido a mais nobre e educada de todas as donzelas do império (cap. X). A nova imperatriz seria apenas uma alpinista social, que fazia questão de mostrar seu novo status humilhando homens da elite com um cada vez mais estrito cerimonial da corte (cap. XV).

Mencionados tantos “atributos” assim, fica difícil chamar o autor de História Secreta de “amigo”. O que mais impressiona é que, com toda sua virulência, Procópio não disse taxativamente que estaria havendo um massacre dentro dos muros de Metanoia, nem vinculou sua inauguração ao II Concílio de Constantinopla. Afinal, de onde veio essa ideia? Nenhum espiritualista até agora soube responder.
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“Vaidade de Vaidades! Tudo é Vaidade…”

E porque o site desconhece outras fontes que registram essa história das prostitutas assassinadas, ele tenta depreciar o meu livro “A Reencarnação na Bíblia e na Ciência”, EBM Ed., SP, (…)

O que eu desconheço são fontes primárias que atestem tal assassinato. Já rastreei Procópio, Evágrio Escolástico, João Lídio, João Malalas e outros. Não encontrei absolutamente nada. Se nenhuma pessoa da Idade Média fez o favor de registrar esse episódio e vinculá-lo ao II Concílio de Constantinopla, surge a hipótese de tudo não passar de um boato criado por espiritualistas modernos. Quanto à desmoralização, eu jamais faria uma análise crítica por tão pouco. Somente comparei inúmeras citações feitas com os textos que lhes eram atribuídas. Muita coisa não bateu. Sinceramente, Chaves, acho que levou a coisa demais para o pessoal ou entendeu tudo errado. Consegui te chamar a atenção, mas o resto está sendo mais complicado. O exemplar que possuo de seu livro traz na capa “sétima oitava ed. Revisada”. Simplesmente, talvez tenha de fazer outra revisão. Caso não tenha problemas com o inglês, poderá ler boa parte de minha bibliografia e avaliar se há realmente pontos nebulosos ou não. Terá acesso a muitas coisas em primeira mão e será capaz de se aperfeiçoar largamente. Pode me ver como um mero detrator a mais (intuo que, para a maioria, eu faça o papel de vilão) ou encarar isto como uma oportunidade. Oportunidade de ir bem a fundo em cada pesquisa, avaliar todos os ângulos, montar panoramas, buscar o contraditório. Não fará apenas cópia desse ou daquele autor, mas superará muitos deles. Fará pesquisa historiográfica de qualidade.

Pode adotar em uma atitude defensiva e se encastelar em bibliografia que julga “segura”. É um direito seu. Entretanto duvido que em todo o portal não haja algo que lhe acrescente “substância”. Se baixar um pouco a guarda, talvez aprenda coisas com este antagonista que jamais aprenderia em um meio que só te congratula. E quem sabe, eu também aprenda algo…

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Ninguém sabe, Ninguém viu

Capa do Livro The Lives of the Monks of Palestine

Uma fonte primária, para quem se interessar.

(…) e outras obras que falam do assunto.

Quais são elas, por favor? Como só com absurda boa vontade seria possível relacionar o texto de Brunton com o assunto, então você ainda não trouxe nenhuma. Já que está usando o plural (“obras”), presumo que conheça ao menos outra fonte. De preferência uma feita por um historiador, que me permita rastrear a origem do relato. Agora, se você só me trouxer obras de espiritualistas que apenas citam (se citarem) outros espiritualistas, então nada mudará. De conhecimento meu, sei de Holger Kersten (14), mas você aparentemente não o utiliza e, mesmo que o tivesse usado, de pouco valor seria por ele não dar referência alguma para autoria do relato. Conheço, também, Cajazeiras (15) e Severino Celestino da Silva (16), mas eles não contam por serem dependentes de você nesse episódio. Esse último, por sinal, tem em sua bibliografia G. Alberigo (17), que traz em seu trabalho uma versão bem mais embasada dos fatos:

Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as ideias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

[Alberigo, pp. 130-1]

O gatilho para a segunda crise origenista foi um conflito local entre monges ortodoxos e origenistas na Palestina do século VI, que foi relativamente bem registrado por cronistas da época como Liberato de Cartago, Facundo de Hermiano e, principalmente, Cirilo de Citópolis. Teodora mal entra na história e, quando aparece, intercede por Ascida (origenista) ou leva um pito do monge Saba (ortodoxo). Ainda que nossas fontes careçam de uma versão origenista dos fatos, fica ao menos patente que a ortodoxia do século VI (aliás, desde o século IV) estava longe de morrer de amores pelos voos mais altos da mente de Orígenes.

Voltando ao artigo:

E é insustentável a sua tese de que só se conhece um autor, lendo suas obras, (…)

Então, por que centros espíritas sempre recomendam o Pentateuco a todos os que querem aprender a doutrina? Uma obra do Frei Boaventura Kloppenbourg seria recomendável aos iniciantes em espiritismo? Você pode até entender algo de um autor por vias indiretas, contanto que você se garanta de não estar aprendendo por um intermediário “duvidoso”. Do contrário, pode estar brincando de “telefone sem fio” como na piada do “cometa Halley” sem o saber. Na primeira vez que li Gibbon, notei que havia algo de diferente no relato dele de Teodora com o que era repetido no meio espírita. Declínio e Queda do Império Romano é um clássico. Não está imune a imprecisões, equívocos na metodologia e a uma inevitável defasagem, mas Gibbon ganhou fama, entre outras coisas, pela esmerada busca por fontes primárias que fazia. A partir das notas de rodapé presentes em versões on-line, cheguei às duas obras de Procópio que cito. Gibbon tem todo o caminho das pedras disponível a seus leitores. Repetir seus passos é simples caso se tenha as mesmas fontes primárias disponíveis. Já as obras espiritualistas apresentadas, ninguém sabe, ninguém viu …

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Em Nome dos Grandes

(…) pois Jesus, Sócrates e outros grandes vultos da História não escreveram nada.

Imagino que sua intenção era se apoiar “em ombros de gigantes”, mas lamento informar que fincou seus alicerces na areia. Não poderia ter escolhido exemplos piores que esses para usar em defesa da qualidade de fontes indiretas.

Comecemos por Sócrates. Chegaram até nós três grandes fontes a respeito dessa personagem histórica:

  1. Platão: Discípulo mais famoso de Sócrates, fez do mestre o personagem principal na maioria de seus diálogos filosóficos. Escreveu também Apologia, em que relata os argumentos usados por ele em seu julgamento;

  2. Xenofonte: Também discípulo e autor de Ditos e Feitos Memoriáveis de Sócrates. Não teve, contudo, a mesma envergadura intelectual que Platão;

  3. Aristófanes: Teatrólogo cuja comédia As Nuvens retrata Sócrates como um charlatão a enganar desde escravos a homens da elite e, de quebra, corrompe um jovem tornando-o um tremendo sofista.

Temos as opiniões de discípulos e a de um oponente. As primeiras, provavelmente, exageram nos elogios, ao passo que a última pode ter carregado demais nas críticas. Como As Nuvens foi lançada uns trinta anos antes do julgamento de Sócrates, há quem cogite ela retratar um filósofo ainda imaturo, um “Sócrates pré-socrático”, além de lembrar que Aristófanes criou uma caricatura em sua peça, distinta do filósofo real. Por outro lado, ele não poderia distorcer Sócrates a ponto de deixá-lo irreconhecível para o público e, tirando os apelos, o estilo elucubrativo ridicularizado na peça tem ecos em diálogos platônicos. Talvez haja, de fato, um fundo de verdade em As Nuvens no modo como o filósofo era visto por não socráticos ou, pelo menos, pelo “povão”. Dos perfis legados pelos discípulos, outros problemas emergem. O filósofo de Platão é muito mais intelectualizado que o de Xenofonte. Não que seja inviável ver na obra desse último o estilo de ensinar em perguntas para induzir o instruendo ao conhecimento por conta própria (maiêutica), muito pelo contrário, mas falta-lhe a elaboração de sistemas filosóficos mais sofisticados. De certa forma, sempre haverá a suspeita de que Platão colocou na boca de seu mestre ideias que, na verdade, seriam suas (19).

E no caso de Jesus Cristo a situação piora, pois nem sequer temos um registro de contemporâneos dele. A aparente similaridade entre os evangelhos sinópticos é ilusória, pois Lucas e Mateus são, muito provavelmente, dependentes do fio narrativo de Marcos. Quando lidos em paralelo, as discrepâncias aparecem, não apenas em pormenores narrativos, mas até mesmo na teologia. Por exemplo: as bem-aventuranças em Mateus buscam mais aplacar o sofrimento moral, ao passo que Lucas enfoca mais a questão social. Como se isso já não bastasse para criar certo desconforto aos cristãos ortodoxos, eles resolveram adotar João, que traz um perfil com diferenças ainda mais gritantes:

Sinópticos João
  • Começa com João Batista ou histórias da natividade e infância.
  • Jesus é batizado por João.
  • Jesus fala em parábolas e aforismos.
  • Jesus é um sábio.
  • Jesus é um exorcista.
  • O Reino de Deus é o tema de seus ensinos.
  • Jesus fala pouco de si mesmo.
  • Jesus toma partido dos pobres e oprimidos.
  • O Ministério público de Jesus dura um ano.
  • O incidente do Templo é tardio.
  • Jesus toma a Última Ceia com seus discípulos
  • Viés apocalíptico forte ou mediano.
  • Baixa cristologia (Jesus humano).
  • Começa com a criação. Nenhum registro sobre nascimento ou infância.
  • O batismo de Jesus é pressuposto.
  • Jesus fala em longos e elaborados discursos.
  • Jesus é um místico.
  • Jesus não faz exorcismos.
  • O próprio Jesus é o tema de seus ensinamentos.
  • Jesus reflete extensamente sobre si e sua missão
  • Jesus tem pouco a dizer sobre os pobres e oprimidos.
  • O ministério público dura dois anos.
  • O incidente do Templo ocorre cedo.
  • Lavagem dos pés e “Discurso de Despedida” no lugar da Última Ceia.
  • Ausência de escatologia.
  • Baixa e alta cristologia (Jesus divino).

E posso complicar ainda mais: basta lembrar que há um “Jesus folclórico” permeando vários textos apócrifos, com direito a emoções, digamos, “humanas demais” e atitudes que lembram mais um feiticeiro que um messias. Ah! Não esqueçamos do exotérico Cristo dos evangelhos gnósticos, claro.

Não creio que todas essas visões de Jesus Cristo (ou Sócrates) sejam ao mesmo tempo verdadeiras, como naquela historinha dos três cegos tateando um elefante (18). As personagens dessa história poderiam pesquisar o animal mais demoradamente, dar-se conta que tomavam partes dele como o todo, trocar ideias e daí imaginar o animal completo. Mas esses hipotéticos “pesquisadores do elefante” tinham duas vantagens em relação aos historiadores do Jesus e do Sócrates históricos: possuíam seu objeto de análise completo à disposição e, em princípio, ninguém havia enxertado algum pedaço alienígena ao animal. Assim, o desafio que os historiadores enfrentam é muito mais difícil e, justamente por isso, instigante.

Se isso não te convenceu, então vou me valer de outra figura famosa: Paulo de Tarso. Ao contrário desses dois exemplos, chegaram até nós cartas que são tidas como de autoria genuína dele e um relato em segunda mão de seu trabalho missionário contido em boa parte de Atos dos Apóstolos. Acontece que nem tudo é harmonioso entre essas partes. Compare:

Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça,

Revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não consultei a carne nem o sangue,

Nem tornei a Jerusalém, a ter com os que já antes de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia, e voltei outra vez a Damasco.

Gálatas 1:15-17

Com isto:

E, quando Saulo chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo.

Atos 9:26

Afinal, após a experiência com a visão de Jesus, o gatilho para a transformação de Saulo em Paulo, o futuro apóstolo foi (levado) direto para Damasco ou passou um tempo na Arábia antes (20)? Se acha isso um pormenor sem significância, há outras questões bem cruciais em jogo, por exemplo, será que o “Concílio de Jerusalém” (At 15 e, talvez, Gl 2) conseguiu convencer a todos os judeus cristão que os seus irmãos gentios estavam dispensados da Lei Mosaica? Se assim o fosse, qual o porquê das Epístolas Pseudoclementinas com sua crítica velada a Paulo e defesa da primazia de Pedro? Lucas tenta passar em Atos que qualquer disenção entre os primeiros cristãos era resolvida por algum consenso entre as lideranças. Talvez a concórdia não fosse tão plena assim (21). É possível que haja tanta diferença entre o “Paulo histórico” e o “Paulo segundo Lucas” quanto entre o “Jesus histórico” e o “Salvador do Mundo” contido em seu evangelho.

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“E Tu Também!”

Aliás, o próprio site se contradiz nisso, ao defender ideias de certos autores tiradas de obras de outros autores.

Simplesmente porque é impossível, para mim, ter todas as fontes primária que gostaria. E olhe que muito de minha biografia envolve livros caros, raros, importados e há muito não impressos. Muita coisa coisa até já está gratuita na Internet, mas é preciso que já esteja em domínio público e alguma alma caridosa a tenha digitalizado. No caso o II Concílio de Constantinopla, creio que já rastreei os cronistas de época mais importantes, cujos nomes já estão supracitados.

Quanto a consultar outros autores, sim, deve-se fazê-lo mesmo que se tenha a fonte primária, para que se inteire do que outros já pensaram sobre o tema, cruze informações e, então, crie um juízo próprio. A questão é quem você consulta: historiadores profissionais e/ou renomados ou leigos, no caso “leigos espiritualistas”. É impressionante que historiadores que escreveram longas páginas sobre a querela arianista e, mais tarde, sobre o movimento monofisita passem quase que de raspão na Segunda Crise Origenista. Ela sem dúvida tem importância no estudo do origenismo, mas será que teve tanta relevância na política imperial? Na história do cristianismo? Provavelmente, não:

A condenação do origenismo em 553 não teve o eco de alcance mundial que a disputa dos Três Capítulos criaria. A disputa foi bem sucedidamente decidida em particular com os monges afetados antes e, dentro desse grupo, especialmente os monges da Palestina. Mesmo lá, ele afetou predominantemente, conforme os princípios do evagrianismo ascético, apenas uma classe, na verdade um exótico grupo de monges, que após uma dura praktike estavam treinados para a theoria e, após essa preparação, confessavam a extrema cristologia evagrianista. Contudo, é adequado notar a explosiva natureza dessa posição. Foi apenas no século sexto que ela teve efeito, como os cânones de 553 e, posteriormente, nossas exposições sobre o patriarcado de Jerusalém mostrarão.

[Grillmeier, parte III, cap. III, p. 408]

Se quer ter ideia do que esses monges palestinos elucubravam, busque saber sobre O Livro de Hierotheos, outra fonte primária – dessa vez dos origenistas. Duvido, contudo, que você ou qualquer outro espírita compre o pacote inteiro.

Como só encontro material espiritualista falando de tal “catástrofe histórica”, fico com a impressão que boa parte do movimento padece de uma “síndrome de paraíso perdido”: a ideia de que o cristianismo antes do século VI era uma espécie de protoespiritualismo. Não vejo fundamento algum para tal crença. Os primeiríssimos cristãos foram apocalipsistas – uma característica ausente nos espiritualistas modernos -, os traços gerais da ortodoxia nicena já estavam delineados no século III, Orígenes nunca foi consenso e o reencarnacionismo dele era incompatível com o seu (22). A Segunda Crise Origenista (sabiam que houve outra?) foi, de certa forma, fim de feira.

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Uma Incoerência ao Final

Realmente, as críticas desse site não persuadem ninguém!

Se não convencem a ninguém, então por que dedicar um artigo a elas? E mais: por que selecionar esse artigo para uma coletânea e, ainda por cima, encabeçando-a? Estranho. De certa forma, mereceram alguma atenção justamente por significarem algo. O que foi é que não está claro. Talvez tenha sido grande o incômodo que ser lhe apontadas fraquezas argumentativas que antes julgasse exclusivas da ortodoxia cristã que tanto critica. Porém também sei que quando os critica não os quer mal, mas que evoluam para o que julga ser mais condizente com a mensagem cristã. Da mesma forma, não gostaria que levasse para o lado pessoal, mas como um apelo e convite para que qualidade da argumentação espiritualista melhore.

Tenho ciência que boa parte de seus confrades jamais admitirá que o movimento foi vítima de um hoax, seja por convicção, para não ferir o orgulho ou credulidade em teorias conspiratórias. Por incrível que pareça, a simples tentativa de desmentir boatos pode acabar por reforçá-los, embora ainda tenha eu alguns fios de esperança a que me agarro, como a considerável mudança de opinião de um conhecido seu e também profícuo articulista.

Após ter feito esta pequena propaganda de um livro seu, gostaria de fazer outra, só que agora do livro
Reincarnation in Christianity, escrito por seu confrade teósofo Geddes MacGregor. Não que eu morra de amores pelo livro ou o considere isento de pontos duvidosos, mas seu entendimento sobre o começo do cristianismo como credo profético e apocalítico, sobre as crises origenistas e de como se poderia conceber a atual ortodoxia aceitando a reencarnação é muito mais produtivo do que o que tenho visto por aí. Ele tenta conceber uma delicada adaptação entre o conceito de salvação e o de reencarnação, de futura aceitação um tanto incerta, mas que respeita a História do Cristianismo, em vez de sugerir que ela é uma fraude.

Um outro Olhar

Tudo de bom e que possamos um dia nos falar em termos mais amenos.

Notas

(1) Sugestões de leitura:

  • What Is This Thing Called Science?, de A.F. Chalmer, Hackett Publishing Company; 3ª ed. (1999)
  • A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn, editado em português pela Perspectiva

(2) Sugestões de leitura para o autor Ehrman sobre o Jesus apocalipsista: [Ehrman (1999)] e [Ehrman (2004)]. Sobre a descrença de Ehrman, ver O Problema com Deus, 2008, Agir.

(3)Fração da moeda grega dracma. Lembra da parábola “Óbolo da viúva”.

(4) [Cesaretti, cap. XIII, p. 228-230]

(5) Cf. Janin, Raymond; Constantinople Byzantine. Développement urbain et répertoire topographique. 2ª ed., Paris, 1964, p. 151

(6) Cf. [Rollo-Koster].

(7) Cf. Código de Justiniano 1.5.12.

(8) Seita muçulmana, presente em partes da Síria e do Líbano, que acredita num sistema reencarnacionista sem karma: ao longo dos tempos cada alma é submetida a inúmeras experiências diferentes, não havendo relação de “causa e efeito” entre elas. Na consumação final, é feito um balanço das ações feitas em sua existência total, o que decidirá se o destino dela será o paraíso ou o inferno.

(9) A principal diferença entre as duas maiores correntes do islamismo – sunitas e xiitas – é sobre como deveria ser a liderança da comunidade após a morte do profeta Maomé. Os primeiros defendiam a escolha de líderes entre os membros da comunidade, ao passo que os últimos defendem que sucessão sempre pertença aos descendentes da união entre Ali e a filha de Maomé chamada Fátima. Perseguidos desde o princípio pela maioria sunita, o movimento xiita ganhou um perfil radical e uma de suas mais extremadas facções era a dos ismaelitas, crentes na figura do imã, um infalível e inspirado descendente de Ali e Fátima, por intermédio de Ismael, a ser obedecido sem objeção. No século X, o poder no Egito foi tomado por uma dinastia que alegava esse parentesco e estabeleceu o califado fatímida (de Fátima) do Cairo, para rivalizar com o califado sunita de Bagdá.

No tempo das cruzadas, o império fatímida entrou em declínio e foi finalmente tomado por lideranças sunitas oriundas da Síria. Pela mesma época, um grupo de ismaelitas da Pérsia, sob o comando de Hasan Ibn al-Sabbah, estabeleceu-se nas montanhas da Síria e do Líbano, onde montou um complexo de fortalezas que serviu de base para suas campanhas de conversão e ataques aos sunitas, visando restaurar o reinado fatímida. Seu principal método era o terrorismo político: membros da seita se infiltravam entre a população próxima ao alvo e, quando sua comitiva passava, tentavam matá-lo e também todos os que estivessem ao redor. O nome de “assassino” (do árabe hashshashîn), atribuído a um fiel da seita, vem de seu hábito de tomar haxixe (hashish) para praticar um atentado em estado alterado e, assim, mais imune ao medo. A seita foi extinta no século XIII, com a ascensão de uma casta de guerreiros-escravos que tomou o poder do Egito à Síria – os mamelucos – e também destruiu os últimos redutos cruzados.

Uma curiosidade: a palavra “assassino” chegou ao ocidente por via italiana e, até hoje, no idioma inglês (assassin) se refere a quem atenta contra a vida de pessoas importantes.

(10)Seita gnóstica que atribuía à serpente (do grego ophis) a missão de ter revelado o conhecimento para Adão e Eva, coisa que o demiurgo queria ocultar.

(11)Antiga ordem monástico-militar da Igreja Católica. Sua principal missão era guardar os lugares santos nas terras cruzadas e zelar pelo bem-estar dos peregrinos. Também foram usados como exército regular no combate a tropas muçulmanas. Por desenvolver sofisticada rede de abastecimento para suas tropas no Levante, a Ordem dos Cavaleiros Templários despertou a cobiça do rei francês Felipe IV e, principalmente após a perda de prestígio com o fim do ciclo das cruzadas, foi alvo de uma campanha difamatória promovida por ele, envolvendo acusações de sodomia, feitiçaria e prática secreta do islamismo. A ordem foi extinta, seu líderes queimados e seus bens confiscados. Em tempos modernos, desenvolveu- se toda uma mística em torno do destino dos templários, com direito a teorias especulativas alegando a existência de remanescentes, responsáveis por guardar o Santo Graal ou o tesouro de Salomão.

Por outro lado, sua ordem irmã – os Hospitalários – sobreviveu à Idade Média, em parte por ter uma base segura em na ilha de Rodes e, depois, em Malta, onde poderiam se refugiar. Além disso, a própria sorte dos templários os convenceu da importância de manterem um corpo de advogados profissionais para defender seus interesses, coisa com que seus rústicos irmãos não puderam contar. Com o tempo, o Hospital perdeu seu caráter militar e essa transição suave fez com ela praticamente não tivesse mítica alguma junto ao grande público leigo.

(12) “Continentais” no sentido de “pertencentes à Europa continental”, para diferenciar da maçonaria do arquipélago britânico.

(13) Não está claro se esse número (cem mil mortos) se refere somente aos rebeldes ou também aos não combatentes mortos por ambos os lados. Malala, no livro XVIII de sua Crônica, falha em vinte mil mortos em combate e número igual vendidos como escravos, crianças entre esses. Há, também, uma quantidade indeterminada de refugiados nas montanhas que foram mortos posteriormente. São mencionadas chacinas de cristãos pelos samaritanos, tanto por Malala quanto por Cirilo de Citópolis (A Vida de Saba, cap.LXX), mas seu total de vítimas também é desconhecido.

(14) Cf. Jesus Viveu na Índia, Ed. Best Seller, 7ª ed., cap. VI – “Considerações Finais”.

Bart Ehrman chega a fazer um breve comentário a respeito das teses do “Jesus Indiano” em [Ehrman (2003), cap. IV, p. 68]:

Outras falsificações têm sido perpetradas nos tempos modernos, de relevância direta para nosso corrente estudo de apócrifos cristãos antigos. Pode-se pensar que, em nossos dias e época, ninguém seria tão ardiloso para assegurar quaisquer relatos de primeira mão de Jesus como autênticos. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Estranhos evangelhos aparecem regularmente, se você souber onde procurá-los. Muitas vezes esses registram incidentes dos “anos perdidos” de Jesus, por exemplo, relatos de Cristo ainda criança ou jovem anteriores a seu ministério público, um gênero que retrocede até o segundo século. Esses relatos
algumas vezes descrevem viagens de Jesus à Índia para aprender a sabedoria dos brâmanes (como de outra forma ele seria tão sábio?) ou seus feitos no deserto, juntando-se com monges judaicos para aprender o caminho da santidade.

Esse parágrafo deixa transparecer que a tese não é levada muito a sério nos meios acadêmicos.

(15) Elementos de Teologia Espírita, EME.

(16) Analisando as Traduções Bíblicas

(17) História dos Concílios Ecumênicos, Paulus, 1995.

(18) Em determinada aldeia, chega um caravana transportando diversos animais tidos como exóticos para seus isolados habitantes. Três residentes cegos, que nunca haviam travado contato com um elefante, põem-se a tateá-lo. O que apalpava a orelha diz: “este animal se parece com um tapete”. O que apalpava a perna declara: “este animal se parece com uma coluna”. O terceiro, abrindo os braços sobre a lateral, é categórico: “Nada disso, este animal se parece é com uma parede.”

(19) Para um discussão pormenorizada a respeito do Sócrates histórico, cf. [Pensadores, vol. LIII, cap. II, pp. 33-5].

(20) E há quem tente harmonizar isso.

(21) Cf. [Ehrman (2003), cap. V, pp. 95 – 103; cap. IX, pp. 181-5]

(22) A concepção da reencarnação para Orígenes, como elaborada em sua obra De Principiis era “inter eras”. Teria havido várias eras antes desta em que vivemos e haveria outras após. A Bíblia falaria explicitamente de apenas três: a paradisíaca no começo de Gênesis, a atual e uma futura em Apocalipse, deixando as demais nas entrelinhas. Cada uma teria seu própria criação envolvendo uma região celeste, um firmamento, uma Terra e uma região infernal, que seriam habitadas respectivamente por anjos, corpos celestes (portadores de alma, segundo Orígenes), humanos e demônios. Originalmente, todas as almas teriam sido criadas perfeitas e puras, mas pelo mau uso do livre-arbítrio, se afastaram da graça e Deus criou essas quatro regiões para que pudessem se regenerar e distribuiu as almas conforme o grau de queda que tiveram. O destino de cada alma numa era futura estava condicionado às suas atitudes na anterior, podendo até mesmo haver quedas para níveis mais baixo. Ao final de cada era, ocorreria uma ressurreição e um julgamento final, seguido por um estado purgatório (fogo moral) a fim de preparar a alma para a próxima era. O diferencial da nossa seria a encarnação do Verbo coeterno do Pai, que se associou à única alma que não caíra para constituir a natureza humano-divina de Jesus Cristo. Seu sacrifício na cruz teve o poder de catalizar a retorno das almas à beatitude original. Por fim, o último inimigo – a Morte – se tornaria submisso a Deus por meio de Jesus. É bom ressaltar que Orígenes era contra a ideia de múltiplas vidas dentro de uma mesma era, como deixou claro em outras obras.

Se atentarmos que Bíblia identifica claramente a existência de pelo menos três eras (a primeira antes da queda de Adão, a atual e o pós-apocalipse) e que, de certa forma, a ressurreição cristã também é um tipo de reencarnação, então o origenismo guarda mais similaridades com a ortodoxia cristã do que com o kardecismo.

[topo]

Para Saber Mais:

– Alberigo, Giuseppe; História dos Concílios Ecumênicos, Ed. Paulus, 1995.

– Cesaretti, Paolo; Theodora – Empress of Byzantium, tradução inglesa de Rosanna M. Giammanco Frongia, Vendome Press, 2001.

– Ehrman, Bart D.; Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium, Oxford University Press, 1999.

_______________; Lost Christianities, Oxford University Press, 2003

_______________; The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings , Oxford Press, 2004

– Grillmeier, Aloys & Hainthaler, Theresia; Christ in Christian Tradition, tradução inglesa Pauline Allen e John Caste, vol. II, parte II, Mowbray/ Westminster John Knox Press, 1995.

Os Pensadores, vol. LIII – Biografias I, Abril Cultural, 1972

– Rollo-Koster, Joëlle; From Prostitutes to Brides of Christ: The Avignonese Repenties in the Late Middle Ages, publicado em Journal of Medieval and Early Modern Studies – Volume 32, nº 1, Inverno 2002, pp. 109-144.

[topo]

A Reencarnação na Bíblia e na Ciência

A História como o Espiritualismo gostaria que fosse. Gostaria.

Autor: José Reis Chaves, ebm editora, 7ª ed.

Fiquei na dúvida se classificaria este livro como de “Ciência e Religião” ou de “História”. Optei por esta última porque vou apenas me deter ao capítulo VI e VIII da obra, que têm um cunho mais histórico. Bem, aqui vai uma relação de “problemas” encontrados:

São Justino, mártir, autor de Apologia da Religião Cristã, também faz parte da lista de santos reencarnacionistas e sábios do cristianismo primitivo. Segundo ele, “a alma habita corpos sucessivos, perdendo a memória das vidas passadas” (16)

Cap VI. p.203

e em nota de rodapé:

(16)A Reencarnação e a Lei do Carma, pág. 46, William Walker Atkinson, Editora Pensamento, São Paulo, SP.

É uma citação de citação e quem buscar a obra de Atkinson não encontrará referência alguma. Puxa-se o fio para descobrir que não há nada na outra ponta. Por meio de citações análogas feitas por outros espiritualistas, chega-se ao livro Diálogos com Trifão, cap. IV. Quando se lê esse texto, constata-se que Justino ainda era pagão e foi convencido de estar errado por seu interlocutor. Se o leitor ainda acha que ele continuou reencarnacionista ainda cristão, tudo bem. Mas lembre-se: o ônus da prova passa a ser teu, i.e., diga a todos onde ele escreveu isso!

Ademais, São Clemente de Alexandria era liga à corrente gnóstica cristã, e os gnósticos eram contrários à entrega espontânea ao martírio por parte de muitos cristãos da época dele. E, assim, sempre que lhes fosse possível, eles protegiam sua vida contra as perseguições dos inimigos do cristianismo (…)
Fócio, um patriarca de Constantinopla no século IX, era político ambicioso e sem escrúpulos, como diz a História, e responsável pelo Cisma dos Gregos, em 863, foi, no entanto, escritor de talento.

Sempre houve uma certa rivalidade entre os sábios de Constantinopla e os de Alexandria, sendo que os desta cidade sempre levavam vantagem sobre os daquela. E essa rivalidade atingiu os próprios patriarcas das duas cidades.

Não se sabe muito bem por que, pois Fócio viveu cerca de seiscentos anos depois de São Clemente de Alexandria, mas o fato é que Fócio escreveu um trabalho em que desprestigiava muito o célebre sábio de Alexandria, de cuja universidade São Clemente foi reitor. Teria Fócio escrito esse livro por causa da citada rivalidade intelectual que havia entre os sábios de Constantinopla e Alexandria?

O certo é que o Papa Benedito (Bento) XIV, em meados de século XVIII, após ter lido a referida obra do patriarca de Constantinopla, Fócio, decidiu-se pela cassação do título de santo de São Clemente, cujo nome foi tirado do calendário de santos da Igreja.

Se Fócio, como vimos, era um político ambicioso e de poucos escrúpulos, além de ter sido responsável pelo Cisma Grego (863) já mencionado, é estranho que o Papa Benedito (Bento) XIV tenha se deixado influenciar pela citada obra de Fócio. Por isso, nos arriscamos a dizer que o fato dessa cassação do título de santo de São Clemente de Alexandria, por parte de Benedito (Bento) XIV, poderia ter sido, na verdade, a crença de São Clemente na reencarnação, fato esse que passou a se destacar muito, justamente na época de Benedito (Bento) XIV.

cap. VI, pp. 200-1.

Em primeiro lugar, situemos qual obra de Fócio deve ser pesquisada: Biblioteca (Myriobiblon). Ao contrário do que se alega, não foi escrita no intuito de denegrir Clemente de Alexandria por ele ser de uma escola teológica rival, que, por sinal, àquela época já estava sob domínio muçulmano e fora das maquinações da corte bizantina. Biblioteca é, na verdade, um grande conjunto de resenhas de mais de 200 livros de diversos teólogos lidos e comentados por Fócio. No bojo dessa “biblioteca”, Fócio comenta três obras de Clemente de Alexandria e o que talvez seja de interesse dos autores reencarnacionistas seja a entrada 109 acerca da obra Esboços. A questão é que esse livro está perdido atualmente e não dá para saber até que ponto a resenha dele é justa ou não. As outras duas (Miscelâneas e Tutor) receberam comentários bem mais simpáticos. Em Miscelâneas, por sinal, fica claro que o conceito dele de gnose é bem diferente das seitas gnósticas, às quais ele combate no livro.

Orígenes é conhecido como um dos maiores sábios cristãos de todos os tempos. Foi praticamente o criador de nossa teologia cristã. E, como apenas 17 anos, foi reitor da Universidade de Alexandria, em substituição a São Clemente de Alexandria. E diga-se, de passagem, que Alexandria foi o maior centro intelectual do mundo, na época de Orígenes, século 3º.

cap. VI, p. 203.

Eusébio de Cesaréia – o principal biógrafo de Orígenes -, em seu “História Eclesiástica”, Livro VI, cap. III, item 3, informa que Orígenes dirigiu a Escola Catequética da cidade. Um cargo importante para a comunidade cristã, de fato, mas irrelevante para o mundo pagão a sua volta.

São Jerônimo (…) também aceitava a reencarnação. Aliás talvez seja por isso que a Igreja pouco fale de São Jerônimo.

Ele afirma que a transmigração das almas foi ensinada durante um longo tempo na Igreja. (9)

Muito do que escreveu São Jerônimo escreveu está em forma de cartas. Em suas Cartas a Avitus, imperador romano, Jerônimo fala sobre a reencarnação (transmigração das almas) (10).

E eis o que escreveu São Jerônimo: “A transmigração das almas é ensinada secretamente a poucos, desde os mais remotos tempos, como uma verdade não divulgável”.(11)

Cap. VI, p. 210-211

As notas de rodapé são:

(9) Evangelho Esotérico de São João, pág. 68, Paulo le Cour, São Paulo, 1993.

(10) Vidas Passadas – Vidas Futuras, pág. 237, Dr. Bruce Goldberg, Editorial Nórdica Ltda. Rio de Janeiro, 1993.

(11) O Mistério do Eterno Retorno, pág. 123, Jean Prieur, Editora Best Seller, São Paulo, SP.

Não existiu nenhum imperador romano de nome Ávitus durante o tempo de vida de Jerônimo. Apenas trinta anos após sua morte houve um que governou por cerca de um ano. Pouco se sabe a respeito do destinatário dessa carta. Ademais, ela não tem referência elogiosa alguma para a reencarnação, muito pelo contrário: é a carta em que Jerônimo expõe uma sinopse de sua tradução de De Principiis e o critica o tempo todo.

São Gregório de Nissa era reencarnacionista e fazia parte dos teólogos cabalistas que afirmavam que o maior argumento a favor da reencarnação era a justiça de Deus.(14)

Um texto dele: ”Há necessidade de natureza para a alma imortal ser curada e purificada, e se ela não o for na sua vida terrestre, a cura se dará através de vidas futuras e subsequentes.”(15)

Cap VI; p. 212

notas de rodapé:

(14) A Reencarnação e a Lei do Carma, pág 47, William Walker Atkinson, São Paulo, SP.

(15) Reencarnação, pág. 153, John Van Auken, Editora Record, Rio de Janeiro, RJ, 1989; e O Mistério do Eterno Retorno, pág. 123, Jean Prieur, Editora Best Seller, São Paulo, SP.

Bem, estamos diante de mais uma “citação de citação” patrística sem referência exata da fonte. Diz-se o nome do autor, mas nada sobre a obra de onde ela saiu. Chaves até acerta ao afirmar (um pouco antes) que Gregório de Nissa não cria na “eternidade do inferno” e, junto a Orígenes, foi um dos poucos universalistas da patrística. Entretanto, como fica patente em suas obras Sobre a alma e a Ressurreição e Sobre a Construção do Homem (cap. XXVIII), Gregório de Nissa acreditava que a alma se formava junto com o corpo (traducianismo).

Santo Agostinho morreu em 430, ou seja, 123 anos antes de V Concílio Ecumênico de Constantinopla II (553), o qual, supostamente, teria condenado a reencarnação.

Cap. VI, p.209-10

Agostinho de Hipona, mais de 123 antes de 553, já condenava o origenismo com seu sistema inter eras (Dos Processos de Pelágio, cap. IX e X.) e as ideias universalista ao estilo de Gregório de Nissa (Cidade de Deus, XXI, 17), afinal fora contemporâneo à primeira crise origenista. Podes até achar cruéis as palavras de Agostinho – também acho – mas era o que ele realmente pensava. Apesar de sugerir certo tipo de preexistência em Confissões, recusava-se a fazer qualquer afirmação categórica quanto a origem da alma (Da Alma e Sua Origem, Livro I, cap. III) adota a vida única em estado mortal. Uma combinação sui generis. Ironicamente, um autor usado por Chaves – William Walker Atkinson, em A Reencarnação e a Lei do Carma, p. 47; uma página após falar de Justino – já falava da oposição de Agostinho ao origenismo.

A Igreja teve alguns concílios tumultuados. Mas parece que o V Concílio de Constantinopla II (553) bateu o recorde em matéria de desordem e mesmo de desrespeito aos bispos e ao próprio Papa Virgílio, papa da época.

O imperador Justiniano tem seus méritos, inclusive o de ter construído, em 552, a famosa Igreja de Santa Sofia, obra-prima da arte bizantina, hoje uma mesquita muçulmana.

Era um teólogo que queria saber mais que teologia do que o papa. Sua mulher, a imperatriz Teodora, foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra, que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarnacionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição, sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes.

Como a doutrina da reencarnação pressupõe a da preexistência do espírito, Justiniano e Teodora partiram, primeiro, para desestruturar a da preexistência, com o que estariam, automaticamente, desestruturando a da reencarnação.

Cap. VIII, p. 231-2

Não há evidência histórica alguma quanto a essas alegações e nem referência que se preze é fornecida. Seria um boato espalhado? O único cronista da época (Procópio: Dos Edifícios, Livro I, cap. IX, e História Secreta, cap. XVII) que comenta sobre Teodora e as 500 prostitutas, não assevera nenhuma chacina e não relaciona isso com o V Concílio. Os cronistas que efetivamente falaram do V Concílio ou do sínodo de 543 (Cirilo de Citópolis: Vida de Saba; Liberato de Cartago: Breviarium…, cap. XXIII e XXIV; Evágrio Escolástico: História Eclesiástica, Livro IV, cap. XXXVIII) mostram que o estopim para a sua convocação partiu de baixo para cima, mais especificamente através da solicitação de monges ortodoxos da Palestina. Nenhum dá importância à Teodora no desenrolar dos acontecimentos e, inclusive, Liberato (cap. XXIV) a expõe como favorecedora de um origenista. Ademais, não há explanação alguma quanto à Primeira Crise Origenista ocorrida 150 anos antes e que praticamente definiu os dogmas da ortodoxia quanto à origem e o destino da alma.

* * *

Bem, o panorama é esse: em pouco espaço de texto, uma quantidade alta de erros históricos. Livros com erros são coisas da vida e compra quem quiser. As edições mais antigas do mesmo livro tinham o título A Reencarnação Segundo a Bíblia e Ciência e, conforme entrevista dada pelo autor, ele teria sido usado para trabalho na PUC-RS. De posse das informações acima, será que ainda seria usado?

O problema desses capítulos é que não se fez uma verdadeira pesquisa a respeito do cristianismo primitivo, em especial, da ortodoxia. Caso estivéssemos falando de seitas gnósticas, seria menos complicado para ele, pois muitas eram realmente reencarnacionistas, apesar de não crerem que estar encarnado fosse algo bom… Onde o livro “peca” é em atribuir à própria ortodoxia um pensamento reencarnacionista moderno. Uma simples leitura das obras da patrística desfaria muito dos equívocos aqui mostrados, mas o que se vê é um apanhado de informações de segunda mão, muitas duvidosas. Não que fazer “citações de citações” seja algo proibitivo, até porque muitas vezes o original pode não estar tão acessível assim, porém até para isso há convenções a que convém seguir. Primeiramente, a referência deve encadear até que se chegue à fonte primária. Quanto mais distante estiver a citação presente da ponta da cadeia, pior; já que aumentam as chances de ter ocorrido alguma prática de misquotation ou cherry picking. Outro pormenor importante é saber de quem você está pegando a informação. É um trabalho acadêmico ou algo de caráter mais jornalístico, voltado à divulgação e ao lucro? As fontes dos capítulos em questão encontram-se majoritariamente neste segundo e bem mais fraco grupo ou, no caso de Teodora, não há uma referência sequer. Isso viola o princípio da verificabilidade: uma fonte bem indicada para que outros possam lê-la e, se for o caso, refutá-la. Até a mal afamada Wikipedia procura seguir isso. E, em terceiro, é preciso ter em mente que fontes primárias são sempre filtradas pelas secundárias. O ideal é sempre ler as primárias e, então, partir para uma gama de secundárias para se inteirar do que os pesquisadores antes de ti já pensaram, porque eles descartaram ou relativizaram esse ou aquele testemunho, e só daí tecer o seu juízo. Afinal você também será uma fonte secundária para outros e deve se embasar em argumentos e evidências de melhor qualidade, e não meramente pinçar esse ou aquele autor que lhe aprouver. Quando isso não é plenamente possível, prefira os autores que fornecem generosos extratos dos originais em que se basearam e os discutem, também mostrando opiniões contrárias as sustentadas, ainda que para mostrar que estão erradas logo depois. As chances de má fé são menores, mas não impossíveis.

No caso da patrística, boa parte dos originais já está disponível ao público. Temos as séries Nicene and Ante-Nice Fathers – já de domínio público – em vários portais como o Sacred Texts ou a Christian Classics Ethereal Libary (em inglês), várias obras de autores cristãos primitivos em Documenta Catholica Omnia (vários idiomas, principalmente grego e latim), e finalmente o Google Books nos oferta digitalizações da Patrologia Graeca e da Patrologia Latina, de Migne. Estas duas últimas são, sem dúvida, as coletâneas mais completas de obras da Patrística atualmente em domínio público. Como a Patrologia Graeca é bilíngue, o conhecimento de latim é suficiente para ambas. Se você é monoglota, existe a coleção Patrística, da editora Paulus. Só que ela não é tão exaustiva como as anteriores e juntar todos os seus volumes pode doer no bolso, além de existir certo preconceito no meio espiritualista contra editoras católicas. Mas cá entre nós: se tens alguma pretensão em ser estudioso (em qualquer coisa), vais ter que aprender alguma língua estrangeira. Viva, morta ou moribunda. Portanto, não há desculpa para deixar de ler os originais neste assunto.

Avaliação: Sem nota. Não avaliei o livro inteiro porque o resto não me atrai tanto, então me abstenho. Mas a porção analisada merece séria revisão.

Recomendado para: quem ainda quer arriscar quanto ao que é dito sobre reencarnação na ciência nesse livro, por sua própria conta e risco. Mas, sinceramente, sugiro que se leia o portal Existem Espíritos. É gratuito, tem vasto estoque de artigos quanto ao estado da arte e, o melhor de tudo, não subordina as pesquisas científicas às crenças religiosas espiritualistas (use a codificação UTF-8 em seu navegador). Para quem souber inglês e desejar saber mais sobre a compatibilidade entre cristianismo e reencarnação, recomendo Reincarnation in Christianity, de Geddes MacGregor. Não que eu assine embaixo de tudo que ele diz, mas ele respeita muito mais a história do cristianismo que a maioria dos autores espiritualistas.

A Preposição da Discórdia

Preposição hebraica `al

Índice

Apresentação


Uma das principais controvérsias trazidas por Severino Celestino da Silva em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas (cap. VIII) é com relação à tradução correta de Êxodo 20:5, que em hebraico (transliterado) é:


lo'-thishtachveh lâhem velo' thâ`âbhdhêm kiy 'ânokhiy Adonay'eloheykha 'êl qannâ' poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym `al-shillêshiymve`al-ribbê`iym lesone'ây

Que pode ser traduzido como:

Não te prosternarás diante delas e não as servirás. Sim, eu mesmo, Iahveh, teu Deus, sou um Deus ciumento(*), sanciono o erro dos pais sobre os filhos, sobre a terceira e sobre a quarta geração dos que me odeiam.

(*) ciumento – sem tradução precisa em nossa língua. Outros tem como “zeloso”, ou “de paixão ardente”

Vale transcrever alguns comentários a respeito de certas palavras, expostos em “Analisando …”, de Severino Celestino da Silva:

`al – sobre, em
`avon – erro, falta
'abhoth – pais
bâniym – os filhos
shillêshiymve – terceira geração, netos
ribbê`iym – quarta geração, bisnetos.

Toda a querela gira em torno da preposição `al (עלַ). Espiritualistas criticam a tradução do trecho final do versículo como: “erro dos pais sobre os filhos ATÉ a terceira e quarta geração”. Defendem que o sentido correto, pelo vocabulário exposto acima, seria: “erro dos pais sobre os filhos, NA terceira e na quarta geração”. Em Analisando …, considera-se apenas a preposição `ad como passível de ser traduzida por “até” e é aí que está o problema. A preposição `al admite, diferentemente do alegado, mais do que os dois sentidos apresentados (em, sobre).

fac-símile do dicionário de Rifka Berezin

Reprodução do verbete `al de um dos dicionários de hebraico constantes na bibliografia de Analisando… (Berezin, p. 501). A palavra em hebraico seguinte informa que se trata de uma preposição.

Para os que, porventura, não conseguirem visualizar a imagem acima, o Dicionário Hebraico-Português, de Rifka Berezin, – que consta na bibliografia de Analisando … – em seu verbete para `al (pág. 501) traz os seguinte significados:

sobre, em cima; perto, junto; até, por, para

A própria “orientação geral para o uso do dicionário”, contida na introdução, informa: “vocábulos homógrafos pertencentes à mesma categoria gramatical foram geralmente apresentados num único verbete, e, as respectivas traduções separadas por ponto-e-vírgula”. A quem se interessar por uma mais aprofundada análise ou desconfiar de obras novas, deixo abaixo parte da entrada do verbete `al constante no clássico Léxico Hebraico-Caldeu do hebraísta alemão Wilhelm Gesenius (clique para ampliar).

Preposição el, segundo o dicionário de Gesenius

Preposições 'el (esq.) e `al conforme o léxico de Wilhelm Gesenius. Repare que a primeira pode ser utilizada para demarcar um término e a segunda tem acepções que se aproximam daquelas da primeira.

Em caso de dificuldade com a língua inglesa, sugiro a breve discussão acerca dos múltiplos significados de `al contida em [Ross, lição 53.3].

Significados de `al, conforme Ross. Significados de `al, conforme Ross (continuação).

Vejamos, agora, alguns exemplos bíblicos de como isso funcionava pelos lábios dos antigos (e originais) falantes do idioma:

Gn 18:8 Tomou também coalhada e leite e o novilho que mandara preparar e pôs tudo diante deles; e permaneceu de pé junto a eles debaixo da árvore; e eles comeram. (vayyiqqach chem'âh vechâlâbhubhen-habbâqâr 'asher `âsâh vayyittên liphnêyhem vehu'-`omêdh`alêyhem tachath hâ`êts vayyo'khêlu)

Ex 18:23 Se isto fizeres, e Deus to mandar, poderás então subsistir; assim também todo este povo em paz irá ao seu lugar. ('im 'eth-haddâbhâr hazzeh ta`asehvetsivvekha 'elohiym veyâkhâltâ `amodh vegham kol-hâ`âm hazzeh `al-meqomo yâbho' bheshâlom)

Js 2:8 Antes que os espiões se deitassem, foi ela ter com eles [até eles] no eirado. (vehêmmâh therem yishkâbhun vehiy' `âlethâh `alêyhem `al-haggâgh)

I Sm 1:10 levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente (vehiy' mârath nâpheshvattithpallêl `al-Adonay ubhâkhoh thibhkeh)

Jr 18:11 Ora, pois, fala agora aos homens de Judá e aos moradores de Jerusalém(…) (ve`attâh'emâr-nâ' 'el-'iysh-yehudhâh ve`al-yoshebhêy yerushâlaim (…))

Jr 23:35 Antes, direis, cada um ao seu companheiro e cada um ao seu irmão: Que respondeu o SENHOR? Que falou o SENHOR? ( koh tho'mru 'iysh `al-rê`êhu ve'iysh'el-'âchiyv meh-`ânâh Adonay umah-dibber Adonay )

Portanto, não se tratou de nenhuma fraude premeditada, como se sugere (1). Existe, na verdade, mais de uma preposição com a mesma grafia (ou mais de um uso para a mesma preposição)! Note que nos dois últimos exemplos `al e outra preposição ('el) são usadas lado a lado com o mesmo sentido. A explicação a seguir pode esclarecer como `al se tornou “eclética” a partir de uma mudança fonética na evolução do hebraico bíblico, que pode ter dado origem à homografia:

Algumas consoantes hebraicas representam sons não conhecidos no português, como é o caso do 'alep ('), oclusão glotal surda, e do `ayin (`), fricativo glotal sonoro, e algumas cinco sibilantes conhecidas no hebreu. Nos Manuscritos do Mar Morto e até na tradição massorética é frequente a confusão destas guturais (p.ex.: `l, sobre e 'l , até). As variantes dialetais e as modificações linguísticas de uma a outra época originaram numerosas confusões. Exemplo típico é o da diferente pronúncia de xibbolet na montanha de Efraim ou sibbolet na Transjordânia, que deu origem ao famoso episódio relatado em Jz 12:5-6

-Barrera, Julio Trebolle – A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Vozes, 2ª ed., parte I, cap. I p. 69

Note que Barrera não dá vogais a estas preposições – `al e 'el (אֶל), pois o registro de vogais no texto hebraico se deu ao longo da Idade Média, sendo possível uma proximidade maior da pronúncia destas palavras num período anterior. Tal como nos exemplos já citados desta confusão no massorético (Jr 18:11 e Jr 23:35). Só para a ciência dos leitores, esse J. T Barrera aqui utilizado consta na bibliografia de Analisando as Traduções Bíblicas. O porquê de suas informações não terem sido levadas em consideração permanece obscuro.

[topo]

Qumran: Antigas Trocas Preposicionais

Na antiga biblioteca da comunidade essênia de Qumran foi encontrada uma multitude de manuscritos de liturgia comunal, comentários, literatura apocalíptica e a mais antiga coletânea de texto hebraicos da Bíblia, antecedendo em cerca de um milênio os melhores manuscritos massoréticos. Essa descoberta (1947) revelou uma pluralidade de textos no período intertestamentário que já era suspeitada antes de sua descoberta. Nessa antiga comunidade do Mar Morto, tradições textuais distintas coexistiam lado a lado, evidenciando uma época em que padronização do Texto Massorético (TM) – o texto padrão do judaísmo desde a Idade Média – ainda não havia se imposto.

Por isso os manuscritos de Qumran (ou Manuscritos do Mar Morto), mais especificamente 4QSama, trazem informações esclarecedoras sobre até que que ponto ia a flexibilidade do hebraico antigo. Em 2 Sm 3:27, tem-se:

Texto massorético (TM)

(…) hasha`ar ledabbêr 'itto basheliy vayyakkêhushâm hachomesh vayyâmâth bedham `asâh-'êl 'âchiyv

4QSama

(…)[h]asha`ar ledabbêr 'itto basheliy [vayyakkêhush]âm `ad hachomesh [vayyâ]mâ(v)th [bedham] `asâh-'êl 'âchiyv

Notas:

1)Os colchetes são lacunas no manuscrito reconstituídas. Os parênteses, uma diferença ortográfica.

2)4QSama, na verdade, não é vocalizado. Foram copiadas as vogais do massorético, para fins de comparação.

Em Discoveries in the Judean Desert, vol XVII, pág. 114, há a seguinte explicação quanto a estes trocas preposicionais:

Vários textos gregos leem εις (para, a) ou επι (sobre) onde 4QSama tem (`ad) e o TM, uma lacuna. A sintaxe requer uma preposição nesta posição. Em qualquer outra parte do TM [de 1 e 2 Sm], a preposição empregada é 'el, como na frase (yo'âbh … 'el-hachomesh) (*), que é encontrado em 2 Sm 2:23, 4:6 e 20:10. O texto de 4QSama não possui 2 Sm 2:23 e 4:6, mas em 20:10 se lê (yo'âbh vayyakkêhu bhâh `al-hachomesh) com a preposição `al. Consequentemente, três preposições são usadas pelos textos hebreus nesta expressão. Contudo, 'el e `al adquiriram a mesma pronúncia neste período e eles são frequentemente confundidos em 4QSama .

(*)Joabe … no abdômen (ao pé da letra: na quinta [costela]).

Outra troca entre 'el e `al ocorre apenas dois versículos abaixo, no início de (2 Sm 3:29) “Caia [este sangue] sobre a cabeça de Joabe e sobre/para/a toda a casa de seu pai(…)”:

TM:

yâchulu `al-ro'shyo'âbh ve'el kol-bêyth (…)

4QSama

[y]âchulu `al-[r]o'shyo'âbh ve`al k[ol-]bêyth (…)

Bem, agora o leitor pode estar se perguntando o que tem a ver estas variantes textuais com a crítica de Severino Celestino da Silva quanto à tradução de Ex 20:5? Uma crucial falha de seu trabalho: o apego quase dogmático à primazia do Texto Massorético (TM) sobre as demais versões. Não que o TM seja ruim, muito pelo contrário: é o ponto de partida dos estudantes da bíblia hebraica, foi mantido com grande estabilidade ao longo de 1.800 anos por esmeradas técnicas de cópia e verificação e possui grandes corroborações nos textos qumrânicos. Mas ele não é o que se possa chamar de uma “edição crítica”: foi pego “ao todo” e não por meio de uma seleção dos manuscritos de melhor qualidade. Ele possui uma parcela de erros que foi transmitida de forma inalterada ao longo de séculos pelos sábios massoretas. Antes da estabilização do texto consonântico, nos primeiros séculos da era cristã, houve uma flutuação e evolução textual dos livros da bíblia. Os manuscritos do Mar Morto refletem essa pluralidade original e traduções feitas nesse período e antes (como a Septuaginta) podem resultar em textos discordantes do TM, sem que isto signifique má tradução, apenas uma matéria-prima distinta. Só para chamar atenção, tanto Qumran e a LXX trazem uma versão do livro de Jeremias que é 13% menor que a da versão hebraica moderna. Nem a Vulgata foi uma tradução deste três, pois Jerônimo pegou a maior parte do AT em recensões hebraicas mais recentes do texto grego.

A crítica textual do AT foi extremamente dificultada pelo hábito entre as comunidades judias de destruir ou enterrar seus livros religiosos velhos quando novas edições vinham em substituição. Por causa disto, faltam originais da antiguidade de grande porte. Dessa maneira, o TM tornou-se dominante simplesmente porque se impôs como único texto autoritativo nos meios acadêmicos. As teses de Severino Celestino da Silva de autoridade massorética seriam aceitáveis até década de 60 do século XX; mas após a descoberta, restauração e publicação dos manuscritos do Mar Morto elas não se sustentam mais. Como se comenta na introdução aos livros de Samuel em The Dead Sea Scrolls Bible:

Estes manuscritos [4QSama, 4QSamb] também têm ajudado a realinhar as assertivas dos acadêmicos quanto ao valor da antiga tradução da Septuaginta. Tradicionalmente, quando a Septuaginta diferia do Texto Massorético (que vinha sendo considerado o original hebraico), ela era rotineiramente considerada como sendo uma tradução livre (ou mesmo uma paráfrase ou puro erro). O texto hebraico de Samuel encontrado em Qumran, contudo, concorda frequentemente com a Septuaginta quando difere do Massorético. Isto demonstra que a Septuaginta foi traduzida de uma forma textual hebraica similar a dos manuscritos qumrânicos. O problema no trato com a Septuaginta, assim como muitos outros documentos históricos, estivera nas visões e critérios dos acadêmicos, não com os dados. É claro que a Septuaginta – tal como o Texto Massorético, os manuscritos do Mar Morto e qualquer outra tradição antiga de manuscritos – tem sua parcela de erros. Mas a importante lição aqui é que a Septuaginta não é uma tradução livre ou falsa, mas sim, no geral, uma tradução fidedigna de sua fonte hebraica.

Logo, ao insinuar a má-fé dos tradutores de outras religiões para (Ex 20:5) ele está sendo, no mínimo, apressado e equivocado. Vale a pena uma lida na crítica a sua postura perante outras versões de texto relatada em Traduções bíblicas: escolha uma!.

Fragmento de 2 Samuel

Fragmento de 4QSama contendo parte do o capítulo 3 de II Sm, versículos 23 a 30. Em (1) e (2) estão assinaladas duas trocas preposicionais em relação ao texto massorético, ambas discutidas acima. São Fragmentos do passado a elucidar equívocos perpetrados pelo presente. Esta figura foi elaborada de [ Cross et al.], sendo feita do emparelhamento lado a lado do esquemático da página 112 à foto do manuscrito na prancha XV, ao fim do livro.

O interessante, também, é que nem sempre o TM joga a favor de interpretações reencarnacionistas. O rolo 4QDeutn possui um versículo de Deuteronômio (Dt 5:9) muito semelhante a Ex 20:5. Lá, Qumran está de acordo com textos samaritanos e a LXX, estando qual ao de Êxodo. Por sua vez, o TM traz:


lo'-thishtachveh lâhem velo' thâ`âbhdhêm kiy 'ânokhiy Adonay'eloheykha 'êl qannâ' poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym ve`al-shillêshiymve`al-ribbê`iym lesone'ây

“(…)o erro dos pais nos filhos e até/na terceira e quarta geração(…)”. Surge a conjunção coordenada (ve), que pode significar “e” (o significado mais comum), “mas”, “ora”, “pois”. Como não há uma ideia adversativa, nem uma mudança de tema, fica “e” de melhor tradução. Muitas vezes este “e” não aparece, suponho, por algum emparelhamento do tradutor com (Ex 20:5) ou porque os que optam em traduzir `al por “até” considerem a conjunção redundante. O que importa é que fica que o castigo não seria dado apenas “na terceira e quarta geração”, quando os faltantes já estivessem reencarnados, mas também já na própria geração deles e de seus filhos.
[topo]

André Chouraqui: Esclarecendo Dúvidas

Outra citação controversa aparece em Êxodo 34:7.


notsêr chesedh lâ'alâphiym nosê' `âvon vâphesha` vechathâ'âhvenaqqêh lo' yenaqqeh poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym ve`al-benêybhâniym `al-shillêshiym ve`al-ribbê`iym

André Chouraqui – hebraísta e tradutor francês usado por Severino Celestino da Silva como referência – traduziu por:

detentor do bem-querer para os milhares, carregador do agravo, da carência, da falta, ele não inocenta, não inocenta, mas sanciona o agravo dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos, sobre os terceiros e sobre os quartos.

Mantendo uma tradução uniforme para `al. A Septuaginta, aqui, usa a preposição επι (sobre) também repetidamente e citando explicitamente as quatro gerações em sequência. Severino Celestino da Silva verteu por “dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobre as terceiras e quartas gerações”, ora considerando `al como “sobre”, ora como “em”. Uma diferença sutil, mas que dá uma variação de sentido mais ampla em português: pode passar uma ideia de salto entre gerações. Será que foi essa a intenção? Por sua vez, a Bíblia de Jerusalém, impressão de 1995, manteve a tradução por “até”, destoando tanto do texto hebraico como da Septuaginta. Por outro lado, ela concorda com a Vulgata:

qui custodis misericordiam in milia qui aufers iniquitatem et scelera atque peccata nullusque apud te per se innocens est qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem.

Ué, mas não aparece a preposição in antes de “terceira e quarta”? Não foi ela que deu origem a portuguesa “em”? Sim, ela deu origem a nossa preposição “em”. Para ser mais preciso, ela deu origem a nossas duas preposições “em”: uma reconhecida pela gramática normativa (por exemplo, “estive em Paris”) e outra rejeitada por ela (“fui em Paris”). Essa é uma herança do fato de ter havido duas diferentes formas de emprego da preposição latina, uma delas que podia ser vertida por “até” em português. Isso será tratado mais adiante. Por ora, a ignorância desse fato em “Analisando…” propiciou falas um tanto comprometedoras:

Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

É interessante notar que as traduções da Bíblia de Jerusalém, de João Ferreira de Almeida, da Bíblia do Centro Bíblico Católico, Editora Ave Maria e da Bíblia Tradução Ecumênica, todas em português, apresentem-se, esses textos, com a colocação da preposição ATÉ, antes das palavras terceira e quarta geração

[Cap VIII, p. 135]

Isso é, na melhor hipótese, quase atestado de falta de domínio da língua latina. Mas o pior que é o autor às vezes aparenta não ler sua própria bibliografia:

A excelente tradução de André Chouraqui também apresenta o texto correto sem o uso do ATÉ, além de não apresentar nenhum preconceito religioso.

Idem.

Pois então vale assinalar que Chouraqui traduziu Ex 20:5 usando a famigerada ATÉ, que, como será visto, foi a preposição utilizada na LXX. Ambos esses fatos foram aparentemente desconsiderados em Analisando… pelo autor. O mais interessante vem em livros-traduções como A Torá Viva, do Rabino Aryeh Kaplan, Ed. Maayanot, que também traduz por ATÉ em Ex 20:5. Será que um judeu citado por em Analisando … (2) acabou tendo preconceito religioso contra a própria crença? É bom que se explique isto…

Chouraqui, por sua vez, sem querer ou ser explícito deu uma explicação para sua tradução “flexível” dois versículos acima de Ex 20:5.

Ex. 20:3 – não haverá para ti outros Elohîms contra minhas faces.

3. outros Elohîms contra minhas faces: Notemos que a palavra face, “panîms” , é sempre empregada no plural. Encontramos aqui grande variedade de traduções: “Além de mim, em detrimento a mim, contra mim”. A preposição hebraica tem um emprego tão vasto que praticamente qualquer tradução pode encontrar um apoio nos textos bíblicos. Mesmo a de Rashi, “desde o tempo em que existo”, pode se justificar a partir de Números 3, 4. (…)

Chouraqui não diz qual preposição é explicitamente, mas isso é fácil de saber:

Ex 20:3 – lo' yihyeh-lekha 'elohiym 'achêriym`al-pânâya

Olha aí senhores a boa e velha `al dando mostras de sua versatilidade. Coisa que o mestre reconhecia, mas um de seus discípulos parece que não. Um outro trecho do Velho Testamento muito ilustrativo das múltiplas traduções viáveis para ela é Sl 48:15:

  • É ele quem nos conduz sobre (contra) a morte. (Bíblia de Jerusalém, ed. 1995, nota de rodapé “a”)

  • Ele será nosso guia até a morte. (tradução de João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

  • Ele mesmo nos conduz para além da morte. (Louvores I, André Chouraqui, ed. Imago)

Interessante ver como Chouraqui comenta sua tradução: “para além da morte: IHWH é o verdadeiro vencedor da morte. Ele nos dá a força para escapar à sua fatalidade.” Por outro lado, a tradução de João Ferreira de Almeida não está errada, apenas adota interpretação teológica que Iahweh nos acompanharia até o fim da vida. Como o Sheol do judaísmo pré-exílio não pode ser considerado um verdadeiro “pós morte”, pode ser que a intenção do salmista tenha sido realmente esta. Nisso comento do que considero outra grande falha na obra de Severino Celestino da Silva:

O interessante, nisto tudo, é que são encontradas muitas diferenças de tradução entre elas [as traduções bíblicas]. E por quê? O texto que as originou não foi o mesmo? Por que falta unanimidade em suas traduções? E a única resposta é esta: a questão pessoal de cada corrente religiosa coloca em sua tradução.

Analisando as Traduções Bíblicas, Introdução, 4ª ed.

Primeiramente, a origem das diversas traduções não é a mesma, como explanado mais acima. Nem mesmo o massorético pode ser chamado de “original”. Segundo, mesmo que ainda tivéssemos o autógrafo de cada livro bíblico disponível e nos livrássemos da má-fé de certos grupos católicos e protestantes – coisa que critica com razão já na introdução de seu livro – ainda haveria um problema sério: certos versículos permitem mais de uma leitura! Muitas vezes uma tradução não é algo fixo, isento de interpretação, por causa de flexibilidades semântica e gramaticais. Por exemplo, a LXX é usada em estudos comparativos entre os credos da Judeia e o judaísmo helenístico da diáspora. Outro equívoco de Severino Celestino Severino da Silva é querer dar sentidos únicos para palavras (como nefesh dos salmos 19 e 23) ou um uso rígido da preposições (como a hebraica `al ou a latina in.), uma rigidez gramatical que os antigos falantes dos idiomas originais desconheciam. Quer um exemplo próximo de nós (e similar a outro já citado)? “Fulano foi à cidade/ Fulano foi na cidade”. As gramáticas normativas “clássicas” dão apenas a primeira frase como correta, apesar de a segunda construção ser a mais comum no Brasil.

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O Testemunho Versional

Visto que as traduções primitivas do Antigo Testamento podem preservantes variantes textuais dele agora perdidas, vejamos o que elas têm a dizer. Mas antes, alguns pormenores técnicos

Outras formas de pensar

Como boa Ciência Natural, a Linguística subdivide seu objeto de estudo em diversas categorias, conforme a similaridade de características. Uma delas é a seguinte (3):

  • Línguas analíticas (ou isolantes): as palavras são invariáveis e seu valor sintático está diretamente relacionado à posição que ocupam numa oração. Um exemplo famoso de uma língua que tem o predomínio dessa característica é o inglês moderno, quase sem desinências e com uma separação difusa entre substantivos, adjetivos e verbos. Outros exemplos de língua que se aproximam desse ideal são o chinês, o vietnamita e samoano;
  • Sintéticas (também chamadas flexivas ou fusionantes): as palavras mudam por meio de afixos (flexões), conforme o papel que representam na oração. O lituano é um exemplar moderno desse grupo;
  • Aglutinantes: as palavras são compostas pela justaposição de diversas unidades menores, cada uma representando um aspecto gramatical em particular. Exemplos: turco e finlandês;
  • Polissintéticas (ou incorporantes): as palavras são geralmente muito longas e complexas, contendo uma mistura de aspectos aglutinantes e flexionantes, como no esquimó e em línguas aborígenes da Austrália.

O grupo das sintéticas, particularmente, merece um pouco de atenção aqui, pois o latim e grego se enquadram nele. Ambas, assim como todas as línguas da família Indo-europeia, descendem de suposta língua falada há cerca de 6.000 anos chamada protoindo-europeu, cuja gramática foi estimada pela comparação entre os seus descendentes mais antigos a terem registro escrito (sânscrito, avesta, eslavônico e, claro, latim e grego). Crê-se que ele possuía um sistema de flexões com oito “casos” distintos de funções sintáticas que uma palavra poderia assumir, a saber:

  • nominativo: é o agente de uma alguma ação. Em gramatiquês seria o sujeito da oração ou o predicativo do sujeito;
  • acusativo: é o paciente de alguma ação. Representa, comumente, o que seria o objeto direto da oração;
  • dativo: representa a quem uma ação se direciona, equivalendo ao objeto indireto;
  • genitivo: indica o possuidor de alguma coisa (4);
  • vocativo: indica o chamamento (5);
  • locativo: designa o lugar em que a ação ocorre;
  • instrumental: indica o meio pelo qual uma ação é realizada;
  • ablativo: indica a origem de alguma ação de movimento.

Estas são as chamadas flexões nominais, que os gramáticos costumam agrupar em classes com afixos similares, conhecidas como declinações. Ao lado delas, estão as flexões verbais, que assinalam o tempo verbal e a pessoa utilizada (primeira, segunda, terceira. Singular/plural).

Nem todas as relações entre as palavras de uma oração conseguem ser abarcadas por esse sistema de casos, aí entra o papel das preposições: pequenas palavras a especificar ou modificar o significado original de algum dos casos. É intuitivo que quanto mais rico for o sistema flexional, mais dispensáveis são as preposições no correr da comunicação. Outra característica das línguas flexionantes é a menor importância da posição das palavras para o entendimento correto do significado. Por exemplo, seja a frase simples:

A água rega a terra.

Se ela for reescrita para:

A terra rega a água.

O significado muda totalmente (6), se é que ainda faz sentido. Porém se estivesse escrita em latim:

Aqua rigat terram.

Ela poderia muito bem ser alterada para:

Terram rigat aqua.

Aqua terram rigat.

Rigat terram aqua.

e tudo bem! O sentindo não se alteraria, pois a terminação (7) em a para aqua indica que ela está no nominativo, sendo o sujeito da oração, ao passo que terra está no acusativo – terminação em am – sendo o objeto do verbo não importa em que posição esteja.

Em maior ou menor grau, o sistema flexional se deteriorou nos descendentes do proto-indo-europeu. O sânscrito é a língua documentada em que ele aparece em todo seu ecletismo. No grego clássico, os casos já haviam se reduzido a cinco; no latim, a seis, e quase desapareceram as flexões nominais em suas filhas e boa parte das verbais (8). Mais radical ainda foi o que aconteceu com o inglês, hoje um idioma analítico e quase sem flexão alguma, mas que em tempos medievais possuíra um sistema rico.

Feitas essas explanações, vejamos como o sistema flexional, em especial o do latim, afeta o entendimento de Ex 20:5 e 34:7.

A versão dos primeiros cristãos

Tudo bem, os primeiríssimos cristãos falavam aramaico, não o grego, mas desde que Paulo pregou aos gentios, culminando com a hegemonia do cristianismo helênico, ela se tornou seu Antigo Testamento e foi nela que se baseou quase toda a patrística.

Septuaginta - Edição crítica de Rahlfs

Septuaginta da Deutsche Bibelgesellschaft, de Stuttgart, Alemanha. Severino Celestino da Silva tem uma. Eu também.

A língua grega nos tempos bíblicos possuía um sistema de cinco casos (inflexões): nominativo, genitivo, dativo, acusativo e vocativo. Em sua evolução do proto-indoeuropeu, o dativo absorveu, com o auxílio de preposições, as funções de locativo e instrumental; o genitivo assumiu o ablativo. Cientes dessas particularidades, vejamos que o texto grego legado faz das preposições em Ex 20:5 e correlatos.

A Edição crítica da Septuaginta (LXX) feita por Alfred Rahlfs (9) adota os seguintes textos:

Ex 20:5

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα εως τριτης και τεταρτης γενεας τοις μισουσιν με
“(…) pecado dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam.”

Nm 14:18

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα εως τριτης και τεταρτης
“(…) pecado dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração.”

Dt 5:9

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα επι τριτην και τεταρτην γενεαν τοις μισουσιν με
“(…) pecado dos pais sobre os filhos sobre a terceira e quarta geração dos que me odeiam.”

Ex 20:6

και ποιων ελεος εις χιλιαδας τοις αγαπωσιν με και τοις φυλασσουσιν τα προσταγματα μου
“e faço misericórdia por milhares dos que me amam e os que guardam meus mandamentos.”

Ex 34:7

(…) ανομιας πατερων επι τεκνα και επι τεκνα τεκνων επι τριτην και τεταρτην γενεαν

“(…) pecados dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos sobre a terceira e quarta geração.”

Aqui somos apresentados a três preposições gregas importantes para o entendimento da questão:

  • 'εως: funciona como preposição ou conjunção com o sentido básico de “até (que)”, regendo o caso genitivo. Exemplos:
    • Gn 3:19 εως του αποστρεψαι σε εις την γην

      até que volte à terra.”

    • Gn 50:23 και ειδεν Ιωσηφ Εφραιμ παιδια εως τριτης γενεας

      “e José viu os filhos de Efraim até a terceira geração”

    • Ex 12:24 και φυλαξεσθε το ρημα τουτο νομιμον σεαυτωι και τοις υιοις σου εως αιωνος

      “e observarás isso como um mandamento para ti e teus filhos até a era [das eras].”

    • Lv 22:6 ψυχη ητις αν αψηται αυτων ακαθαρτος εσται εως εσπερας

      “a pessoa que tocar qualquer um deles estará impura até a tarde”

  • επι: pode assumir a forma επ diante de uma palavra que comece por vogal não aspirada ou εφ diante de aspirada. Possui o significado básico de “sobre”, com contato físico, mas pode assumir extrapolações desse sentido nos três casos que rege:
    • dativo:
      1. repouso em algum local, fazendo as vezes de um locativo.
        • Gn 21:33 και εφυτευσεν Αβρααμ αρουραν επι τωι φρεατι του ορκου”e Abraão plantou um arvoredo no poço do juramento [Bersebá].”
      2. um período específico no tempo:
        • Dt 4:30 και ευρησουσιν σε παντες οι λογοι ουτοι επ' εσχατωι των ημερων

          “E todas essas coisas virão sobre ti nos últimos dias.”

      3. a fundamentação (base) usada para um ato:
        • Ex 20:7 ου λημψηι το ονομα κυριου του θεου σου επι ματαιωι

          “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”

    • genitivo: em geral, compartilha os usos do dativo (10) . Exemplos:
      • Gn: 10:8 Χους δε εγεννησεν τον Νεβρωδ ουτος ηρξατο ειναι γιγας επι της γης

        “E Cuxe gerou a Nebrode: ele começou a ser um gigante sobre a terra.”

      • Ex 29:13 και λημψηι παν το στεαρ το επι της κοιλιας

        “e retirarás toda a gordura sobre o ventre”

    • acusativo: aqui há alguma ideia de dinamismo envolvida e a preposição assinala o local de repouso final:
      1. “sobre” com verbos de indiquem movimento, assinalando onde se desenrola ou termina:
        • Lv 4:7 και επιθησει ο ιερευς απο του αιματος του μοσχου επι τα κερατα του θυσιαστηριου του θυμιαματος της συνθεσεως του εναντιον κυριου

          “e o sacerdote colocará o sangue do novilho sobre os chifres [cantos] do altar do incenso, perante o Senhor”

      2. “em direção a” (rumar sobre algo):
        • Gn 18:6 και εσπευσεν Αβρααμ επι την σκηνην προς Σαρραν

          “E Abraão correu para a tenda atrás de Sara”

        • Ex 20:26 ουκ αναβησηι εν αναβαθμισιν επι το θυσιαστηριον μου

          “não subirás por degraus ao meu altar”

      3. “contra” (sobre um alvo):
        • Ex 15:24 και διεγογγυζεν ο λαος επι Μωυσην λεγοντες τι πιομεθα

          “E o povo murmurou contra Moisés, dizendo: ‘que vamos beber?'”

      4. “por” indicando extensão espacial ou temporal:
        • Ex 10:14 και ανηγαγεν αυτην επι πασαν γην Αιγυπτου

          “e os levou por toda a terra do Egito.”

        • Jz 14:14 και ουκ ηδυνασθησαν απαγγειλαι το προβλημα επι τρεις ημερας

          “e não puderam decifrar o enigma por três dias”

    O versículo Gn 22:19 dá um interessante contraste entre esses dois usos de επι:

    απεστραφη δε Αβρααμ προς τους παιδας αυτου και ανασταντες επορευθησαν αμα επι το φρεαρ του ορκου και κατωι κησεν Αβρααμ επι τωι φρεατι του ορκου

    “E Abraão voltou aos seus servos, e se levantaram e foram juntos para o Poço do Juramento [Bersebá]; e Abraão residiu no Poço do Juramento.”

  • εις: preposição que rege exclusivamente o acusativo e passa as ideias básicas de “na direção de“, “para dentro de“, derivando daí outros significados:
    • “para”:
      • Gn 19:17 εις το ορος σωιζου

        “Fuja para o monte”

    • “a/até”:
      • Lv 4:16 και εισοισει ο ιερευς ο χριστος απο του αιματος του μοσχου εις την σκηνην του αρτυριου

        “e o sacerdote ungido trará o sangue do novilho ao tabernáculo do testemunho.”

    • “por/através (espacial)”
      • Ex 13:18 και εκυκλωσεν ο θεος τον λαον οδον την εις την ερημον εις την ερυθραν θαλασσαν

        “e Deus fez o povo dar a volta pelo o deserto até o Mar Vermelho”

    • “por/até” (temporal): o próprio versículo Ex 20:6 visto acima. Nesse, a preposição εἰς é um equivalente bem próximo para a hebraica le, possibilitando a tradução que Severino Celestino da Silva gostaria: “por milhares”

Em Ex 20:5 temos 'εως precedendo as “terceira e quarta gerações”, επι em Dt.5:9 e novamente 'εως em Nm 14:18. Como o Pentateuco foi traduzido “todo para o grego num período curto de tempo, no século III a.C.(11), fica sugerido que as trocas preposicionais já ocorriam desde aquela época. Infelizmente, as passagens do êxodo e suas similares estão perdidas em Qumran. Por outro lado, há uma uma informação importante que os exemplos acima – em especial Gn 22:19 e Lv 4:16 – nos dão: existia uma certa sobreposição semântica entre εἰς e επι de acusativo. Isso dever ter repercutido nas versões latinas.

Epi, segundo o dicionario Grego-português de Isidro Pereira

Verbete para επι no Dicionário Grego-Português e Português-Grego de Isidro Pereira, constante na bibligrafia de Analisando…

Tal fato está acessível no próprio dicionário grego/português contido na bibliografia de Analisando… (cf. [Pereira, p. 207]), que traz a multiplicidade de sentidos para επι, conforme o caso regido.

Na Língua de Jesus

Edição dos Targumim Nefiti e Pseudo-Jonatas

O volume dois da coleção The Aramaic Bible (The Liturgical Press) contém o livro de Êxodo dos targumim Nefiti e Pseudo-Jonatas. Esse eu não sei se ele tem.

Com o Cativeiro de Babilônia (590 – 538 a.C.) , os israelitas remanescentes foram expostos ao, ou melhor, imersos no idioma do conquistador: o aramaico, que era um parente próximo do hebraico na família das línguas semíticas. Mesmo com a queda do Império Babilônico ante os persas e o retorno de parcela do povo a Israel, ele continuou a ser a língua oficial da parte ocidental do novo império. Com seu uso constante no contato com outros povos, quer na diplomacia ou no comércio, e com os que permaneceram na Babilônia fez o aramaico suplantar o hebraico como língua materna dos judeus, deixando ao segundo apenas o uso litúrgico. O livro de Neemias (v. 13:24) dá um registro dessa mudança linguística ao relatar que metade dos filhos de casamentos mistos “não sabia mais o hebraico”. Acredita-se que ao tempo de Jesus, esse processo já estivesse quase completo na Palestina romana. As poucas falas de Jesus registradas no vernáculo local estão em aramaico.

Um passo natural seria traduzir as Escrituras para o novo idioma, daí surgiram os targumin (“traduções”), que não são apenas versões para o aramaico, mas deixam-se, também, infiltrar com alguma interpretação. Seriam uma espécie de intermediário entre o literal e os comentários midrashim.

Os targumim, portanto, não apenas ajudam a entender as mudanças textuais, mas também como era sua interpretação. O Targum “Pseudo-Jônatas” (12), escrito na Palestina, assim trata Ex 20:5:

Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento e vingador, punindo com vingança, gravando a culpa dos pai iníquos sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração dos que me odeiam.

“Filhos rebeldes”. Esse targum deixa transparecer a necessidade de os filhos também se desviarem para merecerem a culpa. Isso é bem mais explícito no Targum Onkelos, cuja tradição situa sua origem na diáspora babilônica (13):

(..)aflijo os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, até a terceira e quarta geração dos que Me odeiam; quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais; mas faço o bem a milhares de gerações dos que Me amam e guardam Meus mandamento

Vejamos, então, o que dizem nos outros versículos afins (14):

Ex 34:7

Onkelos
Visitando os pecados dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos dos rebeldes, sobre a terceira e quarta geração

Pseudo-Jonatas
Visitando os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, sobre a terceira e sobre a quarta geração.

Nm 14:18

Onkelos

visitando os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração

Pseudo-Jonatas
mas visitará os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração

Dt 5:9

Onkelos
visitando os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, até a terceira geração e sobre a quarta dos que Me odeiam, quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais.

Pseudo-Jonatas
relembrando os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira geração e a quarta dos que Me odeiam, quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais

Em todos os versículos acima, a preposição usada antes de “terceira geração” foi `al, que também existe em aramaico com a mesma versatilidade. Ela foi traduzida como “sobre” ou “até” conforme a existência ou não de um salto de gerações. Repare que, em Êxodo e Deuteronômio, ocorre uma “suavização” das punições hereditárias, ao só prosseguirem quando os filhos fossem “rebeldes” e persistissem nos erros dos antepassados. Estimando a origem dos targumim, essa interpretação pode remontar ao fim da Antiguidade (15).

* * *

Posteriormente, os cristãos do Levante também criaram sua versão em aramaico das Escrituras. A Peshitta (“Simples” ou “Comum”) foi escrita no dialeto siríaco, que era o aramaico literário da região da cidade de Edessa, ao Sul da atual Turquia. Seu texto para o Antigo Testamento é bem próximo ao Massorético e Ex 20:5 está como `al, mas Dt 5:9 oferece uma outra variante que também pode ser vertida para “até”: le (“a/para/por” são sentidos mais imediatos). Uma outra surpresa guardada na Peshitta é Nm 14:18: aqui o texto é mais longo e idêntico a Ex 34:7.

Para o vulgo, sem ser vulgar

Edição da Vulgata da Deutsch Biblegesellschft

Vulgata da Deutsche Bibelgesellschaft, de Stuttgart, Alemanha. Severino Celestino da Silva tem uma. Eu também.

Uma preposição, dois usos
Traduções latinas podem sugerir o oposto, à primeira vista: in terciam et quartam gerationem. A preposição latina “in” deu origem ao nosso “em”, só que ela tinha um uso mais sofisticado em nossa língua-mãe.

No latim, os casos locativo e instrumental foram absorvidos pelo ablativo, que ganhou funções de adjunto adverbial. O acusativo, além do tradicional objeto direto, também passou a assumir funções adverbiais sinalizando o ponto final de um movimento ou do tempo como duração (16). Ainda assim, o latim se valia de preposições para especificar que tipo de adjunto era. Nesse idioma, a maioria das preposições regia justamente esses dois casos, sendo que o grosso delas se associava a apenas um deles. Entretanto, um pequeno grupo – super, subter, sub e in – regia ambos e com profundas mudanças de significado. Centremo-nos na preposição in.

Se ela fosse utilizada no caso ablativo, equivalia ao “em” e era usado com verbos de permanência, movimento circunscrito ou períodos limitados de tempo; se no caso acusativo, podia também ser “a”, “até” (onde há noção de tempo), “contra”, “para”, “em” (estes dois com verbos de movimento, em geral).
Eis alguns exemplos do uso dessa preposição:

Ablativo:

Sum in urbe (“estou na cidade”)
Ambulare in agris (“passear nos campos”)

Acusativo:

Eo in urbem (“vou para a cidade”)
In urbem ingressus est (“entrou na cidade”)
Incedere in hostes (“avançar contra os inimigos”)
Amor in patriam (“amor à pátria”, cf. Cic. Flac. 1.2)
Dormiet in lucem (“dormirá até o amanhecer”, cf. Hor. Ep. 1.18)
In multam noctem (“até alta noite”)

Fontes:

-Almeida, Napoleão Mendes de; Gramática Latina, Ed. Saraiva, 26ª ed., lições 35 e 101

-Encliclopedia Labor, El Linguaje e las Matemáticas, Vol. VI, Gramática latina, pag. 176, Editorial Labor, 1958

Esta última expressão se encontra, por exemplo, no texto Somnium Scipionis (“O Sonho de Cipião”), de Cícero: Sermonem in multam noctem proxidimus: “estendemos a conversa até alta noite”. É(um exemplo típico em que o verbo não é de movimento e in faz parte de um advérbio. O humanista Erasmo de Rotterdam, em seu Colloquia Familiaria, traz ao fim de uma fala do personagem Berthulphus, na “conversa” dedicada às estalagens: atque illic desidendum est volenti nolenti usque ad multam noctem. “E lá deves ficar sentado, ainda que a contragosto, direto até alta noite”. Estes dois exemplos mostram um caso de intercambialidade entre in e outra preposição – ad – tradicionalmente tida como (a/até). Na verdade, pode haver uma sutil diferença nos usos de in e ad. Isto fica patente em texto em que as duas preposições são postas em oposição, como na Epístola Moral nº 73 de Sêneca: “Deus ad homines venit, immo quod est propius, in homines venit: nulla sine deo mens bona est.” Em tradução livre: “Deus vai até os homens, aliás, mais precisamente, adentra os homens: não há mente sã sem Deus”. Ambas indicam a direção que se segue, mas ad dá ideia de aproximação e in remete à noção de um percurso até o interior. Por isso a in de acusativo em vez de ad no versículo Ex 20:5 – para garantir a inclusão da terceira e quarta geração no cômputo.

E mais, o uso de nossa preposição em no sentido de “direção” deve ter sido um de seus usos originais e uma reminiscência da latina in de acusativo. Dizem-nos isso os clássicos portugueses:

Os cabelos na barba e os que decem
Da cabeça nos ombros. (Luís de Camões, Lusíadas, canto VI, 17)

Ou será melhor “da cabeça até os ombros/ aos ombros”? A língua evoluiu e o uso de em no sentido de direção regrediu e até quase sumir no português europeu, mas permanece ainda vivo na vertente falada no Brasil em frases como: “Vou no cinema esta noite”. Para saber desse assunto sugiro: [Coutinho], item 643, p. 339

Verbete in do dicionário latim-português de António G. Ferreira – o mesmo adotado em Analisando … – exibindo múltiplos significados, conforme o caso regido pela preposição.

A Vulgata

Do século III ao IV, desenvolveu-se no ocidente romano um conjunto de traduções que ficaria conhecido como Vetus Latina (Antiga Latina): textos vertidos para o latim principalmente da Septuaginta e do texto grego do tipo “ocidental” para o Novo Testamento. Dentro dessa tradição, havia duas subdivisões chamadas Vetus Itala e Vetus Africana (ou Afra), nomeadas conforme o local em seus textos mais circulavam. Na verdade, porém, talvez fosse mais correto dizer que havia tantas subversões quantos eram os manuscritos disponíveis, dado o fato de muitos dos letrados romanos também serem capazes de ler o grego e se julgarem aptos para corrigir, por conta própria, o texto latino baseados nas cópias gregas que dispunham (17).

Esse estado de confusão de textos, levou o papa Dâmaso a solicitar ao erudito Jerônimo de Aquileia, por volta de 382 d.C., uma revisão profunda do texto latino, ao menos dos evangelhos, cujo trabalho se baseou em texto alexandrinos do Novo Testamento. De 385 até o fim da vida (420 d.C.), Jerônimo residiu em Cesareia da Palestina, onde teve acesso a importante biblioteca cristã local, que continha a famosa Hexapla de Orígenes. Jerônimo chegou a fazer uma primeira versão latina dos salmos (baseada na Vetus), atualmente perdida. A partir de 392 d.C., Após revisar o livro de Gênesis, Jerônimo se dedicou a traduzir o restante do Antigo Testamento baseando-se no que chamava de veritas hebraica, uma “verdade” que não incluía apenas o texto protomassorético de então, mas também as traduções gregas feitas por judeus como Símaco, Áquila e Teodocião. Esse trabalho foi concluído por volta de 405 de nossa Era.

O termo Vulgata já existia existia à época de Jerônimo, como uma abreviação de versio vulgata – “versão para divulgação (ao povo)” -, mas era atribuído geralmente à LXX e à Vetus Latina. Assim, por exemplo, falou Agostinho de Hipona:

Fiunt itaque anni a diluvio usque ad Abraham mille septuaginta et duo secundum vulgatam editionem, hoc est interpretum Septuaginta.

Portanto foram mil e setenta e dois anos desde o dilúvio até Abraão, segundo a edição vulgata, isto é, a dos setenta intérpretes.

Cidade de Deus, livro XVI, cap. VIII.

Foi na Idade Média, a partir da época carolíngea, que ele passou a se referir também ao trabalho de Jerônimo e apenas no Concílio de Trento (1545–1563) é que esse tornou a versão autoritativa da Igreja Católica [Barrera, II, cap. VI, p.422]. Durante a Antiguidade tardia e a Idade Média, seu trabalho não possuía sanção oficial e teve de competir com edições da Vetus Latina, cuja popularidade a ajudou a resistir, chegando até mesmo a contaminar alguns textos de sua rival em certas cópia desta. A qualidade e regularidade do texto de Jerônimo, porém, fez, aos poucos, com que seu trabalho de tradução e revisão se impusesse.

É preciso, também, separar a Vulgata da “tradução jeronimiana”. A primeira recolhe os textos traduzidos da veritas hebraica (inclusive a tradução Iuxta Hebraeos dos Salmos), os livros de Tobias e Judite, a revisão dos evangelhos e sua tradução do texto hexaplar dos salmos (Iuxta Septuaginta). Os demais livros deuterocanônicos, assim como o restante do Novo Testamento, são revisões da Vetus Latina.

A “língua” de Jerônimo
Aquilo que os estudantes estudam é o chamado latim clássico que, digamos, teve suas práticas registradas na literatura do primeiro século antes de Cristo ao primeiro da Era Comum. Sua versão oral – o sermus urbanus – era a língua das classes aristocráticas, que podiam pagar uma educação esmerada para seus filhos com mestres do idioma. Como toda e boa “norma culta”, ela não deixava de ser uma construção artificial, que rejeitava variantes existentes. Essas continuaram vivas e ativas na fala do povo pouco letrado e foram às mais diversas partes do império pelas legiões que o defendiam, pelos colonos que o romanizavam e pelos comerciantes que o interligavam. O sermus vulgaris não era uma corrupção da língua culta, mas um filho legítimo do latim dos princípios da república, cujos falares ficaram de fora da “era de ouro” da literatura latina. Sem controle e numa época de analfabetismo generalizado, continuou a mudar e se ramificar, mas permaneceu vivo, transmutado nas diversas línguas neolatinas.

Latim - esquemático de sua evolução

Esquemático da evolução do latim. Fonte: [Ilari, cap. IV, p. 64] (18)

O “latim vulgar”, para a infelicidade dos romanistas, é de difícil delimitação, pois os que dominavam a escrita, muitas vezes procuravam imitar a forma clássica. Contudo, algumas obras sem pretensões estilísticas sofriam às vezes uma “invasão” de expressões populares. Que o diga a Vetus Latina:

Versículo Vetus Latina Vulgata Comentário
Gn 1:4 Et vidit Deus lucem quia bona est. Et vidit Deus lucem quod esset bona. A norma clássica pede o subjuntivo com orações subordinadas do discurso indireto.
Gn 11:3 Et dixit homo proximo suo Dixitque alter ad proximum suum Uso de homo (homem) como partícula indefinida (19).
Nm 14:13 eduxisti populum hunc deinter illos (20) de quorum medio eduxisti populum istum Uso de preposição composta de + inter.
Sl 132:18 Super ipsum autem floriet sanctificatio mea Super ipsum autem florebit sanctificatio mea Confusão entre conjugações. Redução do total de conjugações de quatro para três em línguas neolatinas
Lc 6:2 quidam autem de Farisaeis
dicebant ei (Codex Bezae)
Quidam autem pharisæorum, dicebant illis Diferenças ortográficas (ph/f), uso do de + ablativo no lugar do genitivo (21).
Jo 14:26 Paraclitus autem ille Spiritus Sanctus Paraclitus autem Spiritus Sanctus Uso de pronomes demonstrativos como artigo definido.
I Tm 2:15 Salva autem fiet per filiorum creationem Salvabitur autem per filiorum creationem Estrutura analítica para a voz passiva em lugar da sintética.

E como se enquadraria a Vulgata de Jerônimo, ou melhor, a tradução/revisão jeronimiana no esquema de seu mundo? Ao contrário da Vetus, que foi, de certa forma, um trabalho coletivo, temos a pena de um só autor, que nos leva indagar que decisões teria tomado como filosofia de tradução. Parte da resposta pode ser encontrada na própria Vulgata, num conjunto peculiar de características (22):

  1. Cópia da sintaxe hebraica (hebraísmos) (23);
  2. Retenção da ordem hebraica de palavras em um oração (viável em uma língua sintética);
  3. Introdução de palavras hebraicas e aramaicas (amen, mamona – Lc 16:13);
  4. Cópia da sintaxe grega (helenismos);
  5. Inclusão de algumas formas “errôneas” (orais?) de latim.

Como bem já assinalaram, a Vulgata “tem uma estrutura morfológica irrepreensível do ponto de vista do latim literário” (24), suas divergências com ele vêm da sintaxe, até como uma forma de conciliar todas essas características. Por exemplo:

  • Muitos nomes próprios hebraicos não são flexionados, como Golias, Davi, Saul. Quando o são, frequentemente vêm na forma grega;
  • Em latim clássico, relatos indiretos (após verbos de fala, pensamento, descoberta, etc.) eram expressos em construções da forma acusativo + verbo infinitivo, ao passo o latim vulgar preferia usar as conjunções quod/quia/quoniam, como em Gn 39:3 na Vulgata
    … noverat Dominum esse cum eo …compare com a Vetus:Vidit autem dominus eius quod esset Dominus cum eo …Jerônimo, por outro lado, também usa várias vezes conjunções em relatos. É possível que optasse por elas para uma tradução mais direta do grego, cujo discurso indireto é comumente introduzido pela partícula ὅτι mais um verbo finito, numa particular convergência entre um vulgarismo e um helenismo;
  • O latim clássico não possuía artigos, sendo a definição dada pelo contexto, por possessivos ou demonstrativos. No latim vulgar, tornou-se crescente o uso de demonstrativos diversos como artigos definidos. Em outra convergência entre vulgarismo e helenismo, Jerônimo emula muitas vezes o artigo grego com os demonstrativos ille e hic (ex. Jo 9:30 respondit ille hommo). O grego koiné de então carecia de artigo indefinido, mas sua versão popular adotou muitas vezes a palavra τις (“algum”), que Jerônimo emulou com outro empréstimo popular: o numeral unus (“um”). Cf. Lc 9:8: οτι προφητης τις των αρχαιων ανεστη /quia propheta unus de antiquis surrexit.
  • Jerônimo opta por construções que não eram desconhecidas nas obras clássicas, mas que ficaram mais frequentes na língua vulgar, como o comparativo analítico com magis (cf. Sb 8:20) ou plus (cf. Eclo 23:28) (25);
  • Utilizava a construção preposição + ablativo, em circunstâncias que o clássico usaria apenas o ablativo simples, pois o hebraico, de poucas flexões, usava-as. Por exemplo, o ablativo de meio ou instrumento em I Sm (I Regnum) 17:47: non in gladio nec in hasta (“não pela espada, nem pela lança”). Isso também ia ao encontro da linguagem oral, pois, àquela altura, os casos já se confundiam nela (26);
  • Comumente usava ad + acusativo como objeto indireto em vez do dativo (27).

Com essas características mistas de inovação, conservadorismo e empréstimos; a Vulgata constituiu uma linguagem sui generis, distinta de tudo que veio antes em língua latina, mas nem tanto do que viria depois (28). Sua adoção como texto bíblico pela renascença carolíngia dos séculos VIII e IX consagrou muitos de seus falares e expressões. Tornou-se referência do que hoje se chama latim medieval: o herdeiro do clássico tardio – que lhe legou a base – com alguns desvios de morfologia, uma sintaxe sujeita influências externas (29) e um vocabulário em constante expansão. Linguisticamente, não teve vida à parte, pois nunca foi a língua materna de ninguém, mas o idioma franco da intelectualidade cristã e pós-romana.

A Vulgata e as Preposições Gregas

Se alguém tentasse fazer uma “Gramática do Latim Medieval”, fracassaria sumariamente. Em seu milênio de existência, abarcou um grande de literatos dispersos geograficamente, recebendo influências das diversas e às vezes até elevando à sofisticação e purismo do clássico. O que muitos livros intitulados com algo do tema fazem é dar uma introdução com a apresentação de fenômenos linguísticos comuns do período e daí partir para a análise de textos. Todos partem do princípio de que o leitor já sabe algo a respeito das normas clássicas, pois as comparações são feitas em cima delas. Se você achou o apanhado acima entediante, saiba que ele foi bem simplório.

Assim, se alguém quiser alguma assertiva a respeito do latim da Vulgata, não há outro jeito senão debruçar-se sobre ela (30). Ao contrário da Septuaginta ou do Massorético, ela tem a vantagem de ter passado pelo crivo de uma única pessoa que, mesmo onde apenas revisou, aparou arestas.

A questão é saber se Jerônimo fazia um uso consistente dos casos para permitir uma análise com as normas clássicas. Para fins de análise, vamos nos limitar ao Novo Testamento, por termos acesso pleno ao tipo de texto do qual ele foi traduzido (alexandrino).

De fato, Jerônimo às vezes traduzia por in + ablativo passagens que em grego usavam a preposição εις (a, para, por), principalmente no que se referia ao batismo:

Mt 28:19

in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti
εις το ονομα του πατρος και του υιου και του αγιου πνευματος
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”

No caso, uma destinação tornou-se um instrumental. Tal leitura concorda com a Vetus Latina e, provavelmente, por ser uma fórmula litúrgica trintária “consagrada pelo uso”, Jerônimo não a revisou. Ver At 19:3 como outro caso de “ablativo de meio” aplicado ao batismo.

At 2:27

Quoniam non derelinques animam meam in inferno
οτι ουκ εγκαταλειψεις την ψυχην μου εις αδην.
“Pois não deixarás minha alma ao/no inferno

No caso, uma destinação por ablativo-locativo. Também concorda com a Vetus, porém há manuscritos com a leitura in infernum (“ao inferno”) (31).

Hb 9:24

Em alguns manuscritos da Vulgata (como o Codex Amiatinus), lê-se

Non enim in manufactis sanctis Iesus introi[v]it exemplaria verorum sed in ipsum caelum

ου γαρ εις χειροποιητα εισηλθεν αγια χριστος αντιτυπα των αληθινων αλλ εις αυτον τον ουρανον
“Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, imagem do verdadeiro, porém no mesmo céu

Essa leitura concorda com a Vetus Latina no primeiro in, mas discorda dela no segundo, em conformidade com o grego. As edições Sixto-Clementina e a Neovulgata (o atual texto oficial litúrgico do Vaticano) trazem in manufacta santa.

Por outro lado, quando in + acusativo é utilizada, consistentemente se denota um movimento para/em direção ou mesmo contra alguma coisa, dependendo do contexto.

Mt 2:13

accipe puerum et matrem eius et fuge in Aegyptum
παραλαβε το παιδιον και την μητερα αυτου και φευγε εις αιγυπτον
“tome a criança e sua mãe e fuja para o Egito

Lc 6:20

Et ipse elevatis oculis in discipulos
και αυτος επαρας τους οφθαλμους αυτου εις τους μαθητας
“e erguendo seus olhos em direção aos discípulos

Ef 1:5

praedestinavit nos in adoptionem
προορισας ημας εις υιοθεσιαν
“nos predestinou para a adoção

At 8:26

viam quae descendit ab Hierusalem in Gazam
την οδον την καταβαινουσαν απο ιερουσαλημ εις γαζαν
“o caminho que desce de Jerusalém a Gaza

Lc 12:10

Et omnis qui dicit verbum in Filium hominis remittetur illi ei autem qui in Spiritum Sanctum blasphemaverit non remittetur.
και πας ος ερει εις τον υιον του ανθρωπου αφεθησεται αυτω τω δε εις το αγιον πνευμα βλασφημησαντι ουκ αφεθησεται
“E todo o que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas quem tiver blasfemado contra o Espírito Santo não será perdoado.”

Também no sentido temporal

Fl 1:10

ut probetis potiora ut sitis sincere et sine offensa in diem Christi
εις το δοκιμαζειν υμας τα διαφεροντα ινα ητε ειλικρινεις και απροσκοποι εις ημεραν χριστου και απροσκοποι εις ημεραν χριστου
“para que proveis as melhores coisas para que sejais sinceros e sem ofensa até o dia de Cristo.”

I Te 4:15

quia nos qui vivimus qui residui sumus in adventum Domini non praeveniemus eos qui dormierunt.
οτι ημεις οι ζωντες οι περιλειπομενοι εις την παρουσιαν του κυριου ου μη φθασωμεν τους κοιμηθεντας
que nós, os que ficarmos vivos até/para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormiram.

II Tm 1:2

et certus sum quia potens est depositum meum servare in illum diem.
και πεπεισμαι οτι δυνατος εστιν την παραθηκην μου φυλαξαι εις εκεινην την ημεραν
e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia.

Ap 9:15

et soluti sunt quattuor angeli qui parati erant in horam et diem et mensem et annum
και ελυθησαν οι τεσσαρες αγγελοι οι ητοιμασμενοι εις την ωραν και ημεραν και μηνα και ενιαυτον

“E foram soltos os quatro anjos, que foram preparados para a hora, e dia, e mês, e ano

* * *

A preposição grega εως (até) é traduzida de forma bem variada. Quando seguida por oração, costuma ser vertida por donec ou dum + subjuntivo

Mt 2:13

et esto ibi usque dum dicam tibi
και ισθι εκει εως αν ειπω σοι
“e fica lá até que eu te diga

Mt 5:18

Amen quippe dico vobis donec transeat caelum et terra
αμην γαρ λεγω υμιν εως αν παρελθη ο ουρανος και η γη
“Pois em verdade vos digo: até passarem o céu e a terra …”

Precedendo substantivos ou orações substantivadas, é comumente traduzida pelos compostos usque in (32) ou usque ad (33), seguidos por acusativo. A palavra usque funciona como advérbio de modo, que passa a ideia de contínuo, sem interrupção, e o objeto da preposição lhe serve de limite.

Mt 2:15

et erat ibi usque ad obitum Herodis
και ην εκει εως της τελευτης ηρωδου
“e ali esteve até a morte de Herodes

Mt 27:64

iube ergo custodiri sepulchrum usque in diem tertium
κελευσον ουν ασφαλισθηναι τον ταφον εως της τριτης ημερας
“mande que o sepulcro seja guardado até o terceiro dia

Lc 23:44 – aqui há uma oposição entre os tipos de in

et tenebrae factae sunt in universa terra [abl.] usque in nonam horam [ac.]
και σκοτος εγενετο εφ ολην την γην εως ωρας ενατης
“e houve trevas sobre toda a terra até a nona hora

I Co 16:8

permanecebo autem Ephesi usque ad pentecosten
επιμενω δε εν εφεσω εως της πεντηκοστης
“permanecerei, porém, em Éfeso até o Pentecostes

* * *

A preposição επι de dativo (34), por sua vez, é constantemente traduzida por in + ablativo:

Mt 1:11

Iosias autem genuit Iechoniam et frates eijus in transmigratione Babylonis.
ιωσιας δε εγεννησεν τον ιεχονιαν και τους αδελφους αυτου επι της μετοικεσιας βαβυλωνος
“e Josias gerou Jeconias e seus irmãos durante a deportação da Babilônia

Mt 14:8

da mihi inquit hic in disco caput Iohannis Baptistae
δος μοι φησιν ωδε επι πινακι την κεφαλην ιωαννου του βαπτιστου
“‘dá-me’, disse, ‘aqui sobre um prato a cabeça de João Batista'”

Mc 6:55

et percurrentes universam regionem illam coeperunt in grabattis eos qui se male habebant
περιεδραμον ολην την χωραν εκεινην και ηρξαντο επι τοις κραβαττοις τους κακως
“Percorrendo toda aquela região, começaram a levar, em leitos, os que tinham algum mal”

A preposição super também é usada para se referir a locais e suas proximidades, com ablativo ou acusativo.

Jo 5:2

est autem Hierosolymis super Probatica piscina…
εστιν δε εν τοις ιεροσολυμοις επι τη προβατικη κολυμβηθρα…
“Ora, existe em Jerusalém, junto à Probática [portão dos ovinos], um tanque… “

Contudo, se a noção de movimento está envolvida, uma preposição de acusativo acaba sendo usada, por similaridade de ideias.

At 3:11

concurrit omnis populus ad eos ad porticum qui appellatur Salomonis stupentes.
πας ο λαος προς αυτους επι τη στοα τη καλουμενη σολομωντος εκθαμβοι
“todo o povo correu até eles ao chamado Pórtico de Salomão maravilhado”

Com o acusativo, επι costuma ser vertida para outra preposição latina de acusativo:
Mt 14:28 (35)

Respondens autem Petrus dixit Domine si tu es iube me venire ad te super aquas
ο πετρος ειπεν αυτω κυριε ει συ ει κελευσον με ελθειν προς σε επι τα υδατα
Ao responder, Pedro disse: Senhor, se és tu, manda-me ir até ti sobre as águas

Mc 16:2

et valde mane una sabbatorum viniunt ad monumentum orto iam sole
και λιαν πρωι μια των σαββατων ερχονται επι το μνημειον ανατειλαντος του ηλιου
“E bem cedo, no primeiro dia da semana (36), foram ao sepulcro com o sol já levantado.”

Jo 13:25

itaque cum recubuisset ille supra pectus Iesu
αναπεσων εκεινος ουτως επι το στηθος του ιησου
“e então reclinando-se ele sobre o peito de Jesus”

At 8:26

ad Philippum dicens surge et vade contra meridianum ad viam (…)
φιλιππον λεγων αναστηθι και πορευου κατα μεσημβριαν επι την οδον (…)
“a Filipe e disse: levanta-te e vai para o sul, rumo ao caminho” (…)

II Cor 1:23

ego autem testem Deum invoco in animam meam
εγω δε μαρτυρα τον θεον επικαλουμαι επι την εμην ψυχην
“mas invoco Deus o testemunho de Deus por minha alma“.

Como a επι de genitivo, em geral, também denota repouso, usa-se uma preposição de ablativo

Mt 9:2

et ecce offerebant ei paralyticam iacentem in lecto
και ιδου προσεφερον αυτω παραλυτικον επι κλινης βεβλημενον
“Eis que lhe apresentaram um paralítico jazendo num leito

At 5:30

quem vos interemistis suspendentes in ligno
ον υμεις διεχειρισασθε κρεμασαντες επι ξυλου
“que vós matastes, suspendendo-o num madeiro

Por outro lado, επι de genitivo às vezes pode remeter ao deslocamento para algum lugar, levando a uma tradução latina com acusativo:
Jo 6:21

et statim fuit navis ad terram quam ibant
και ευθεως εγενετο το πλοιον επι της γης εις ην υπηγον
“e prontamente a embarcação foi para a terra que eles iam”

At 10:11

et descendens vas quoddam velut linteum magnun quattour initiis submitti [de caelo] in terram
και καταβαινον σκευος τι ως οθονην μεγαλην τεσσαρσιν αρχαις καθιεμενον επι της γης
“e descendo um certo tipo de vaso, feito um grande lençol preso pelas quatro pontas, [do céu] à terra

* * *

Em suma, a preposição επι, devido a sua variedade de usos, pode ser vertida por várias preposições diferentes em latim. Em linhas gerais:

  • Se há repouso ou circunscrição:; in (ablativo) ou supra (acusativo) ou super (acusativo ou ablativo);
  • Se algum direcionamento rumo ou por algo: ad (acusativo), in (acusativo), supra (acusativo) ou super (acusativo).

Cientes desses pormenores, voltemos à análise das versões latinas de Êxodo 20:5 e 34:7.

A Prova dos Noves

Jerônimo de Aquileia e Agostinho de Hipona

“Desculpe senhor apologista espírita, mas temos uma opinião diferente da sua.”

Diversos autores espíritas alegam que versão latina de Ex 20:5 (e correlatos) foi traduzida erroneamente:

  • Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igrejas Reformadas, cap III, pp. 43-4;
  • Chaves, José Reis;A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, Ebm, 7ª ed., cap III, p. 105;
  • Silva, Severino Celestino da; Analisando as Traduções Bíblicas, cap VIII, 4ª ed.

Nenhum deles, contudo, faz alusão aos dois usos que a preposição latina in possui, muito menos aos múltiplos sentidos que a preposição hebraica `al pode assumir, às trocas preposicionais ocorridas nos textos hebraicos – inclusive o massorético -, ou às variantes de leitura gregas. Convenhamos que apenas o último deles se aventura pelos três idiomas nessa questão.
Vejamos, então, o que texto latino de Êxodo diz:

  • 20:5- non adorabis ea neque coles ego sum Dominus Deus tuus fortis zelotes visitans iniquitatem patrum in filiis in tertiam et quartam generationem eorum qui oderunt me
    (não as adorarás, nem as servirás: eu sou o Senhor teu Deus, forte, ciumento que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam
  • 20:6 – et faciens misericordiam in milia his qui diligunt me et custodiunt praecepta mea
    (e faz misericórdia por/até mil [gerações] daqueles que me amam e guardam meus mandamentos)
  • 34:7 – qui custodis misericordiam in milia qui aufers iniquitatem et scelera atque peccata nullusque apud te per se innocens est qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem
    (que guarda misericórdia por/até mil [gerações]: que retira a iniquidade, e a transgressão, além do pecado, e ninguém é inocente por si mesmo perante ti, que retribui a iniquidade dos pais sobre os filhos e netos até a terceira e quarta descendência)

Se fôssemos usar a lógica desses autores, deveríamos traduzir a parte comum entre Ex 20:5 e 34:7 por “iniquidade dos pais nos filhos (…), na terceira e na quarta geração”. O problema é que somente filiis está no ablativo, sendo apenas o in que o antecede traduzido por em. A segunda aparição desta preposição latina rege o acusativo (tertiam, e não tertia, com o último “a” longo), numa situação temporal, cabendo-lhe muito bem uma tradução por “até”.

Nenhum deles analisa a versão latina de Ex 20:6 ou o versículo completo de 34:7 e, caso o fizessem, teriam de admitir outros significados para in. Veja como Severino Celestino da Silva traduz Ex 20:6 do hebraico:

mas que também ajo, com benevolência ou misericórdia por milhares (infinitas) de gerações, sobre os que me amam e guardam os meus mandamentos.

Tanto a hebraica le, a grega εις e a latina in + acusativo (afinal está escrito milia, e não milibus) podem resultar no “por” que ele propõe. Daí para “até” é um passo.

Tanto as traduções bíblicas de Chouraqui e Jerusalém utilizam a tradução por “até” para Ex 20:5. Se isto ainda parece um tanto misterioso, veja, caro leitor, como foi escrita a passagem análoga Nm 14:18

(…) qui visitas peccata patrum in filios in tertiam et quartam generationem.

Por que teria Jerônimo mudado o ablativo filiis para o acusativo filios, aqui? Para a tese das equivalências preposicionais no hebraico, isto é fácil de explicar. Os que pregam a adoção de regras gramaticais rígidas no hebraico e latim – com significados restritos para `al e in – podem ter um pouco mais de dificuldade…

Mesmo assim, há quem apele alegando que Jerônimo tomou ablativo por acusativo, por redigir em linguagem vulgar, numa espécie de confusão de casos. Possível? Sim. Provável? Não, por certas razões:

  • Há bem menos vulgarismos na Vulgata do que em sua irmã mais velha – a Vetus Latina – ainda mais nos livros que Jerônimo retraduziu, como Êxodo. Lembrando que o termo Vulgata só foi bem mais tardiamente aplicado ao conjunto de traduções e revisões de Jerônimo;
  • Teria de se explicar uma considerável irregularidade no uso dos casos, pois teria usado corretamente o ablativo em in filiis, erroneamente o acusativo em in tertiam … e, logo em seguida, corretamente o acusativo em in milia;
  • A troca de casos pode muito bem ter ocorrido em in filiis, dando a entender que Jerônimo, na verdade, queria dizer “contra os filhos”, como Nm 14:18 sugere. Ou será necessária uma boa explicação de por que a confusão entre ablativo e acusativo só ocorreria no sentido desejado;
  • É válido afirmar que não se deve analisar exclusivamente a Vulgata por gramáticas normativas (o que concordo), porém o apologista espírita que assim proceder também deve admitir que se possa fazer o mesmo para o hebraico. É no mínimo incoerente exigir significados fixos para preposições hebraicas – baseando-se em normas um tanto artificiais para os leitores originais da Torá – e, ao mesmo tempo, exigir um ecletismo linguístico para o uso dos casos com a in latina.

Há ainda uma última cartada que merece um tratamento à parte: alegar que Jerônimo quis mencionar um salto de gerações, mas não se expressou conforme a norma clássica. Aí se está tentando adivinhar o que se passava na mente alheia sem uma fundamentação que não seja a própria conveniência. Um procedimento mais abalizado seria buscar mais fundamentos nos próprios escritos dele, onde estariam explanadas. Uma dica parece estar na própria Vulgata, mais especificamente no livro de Tobias, que traduziu de uma versão aramaica (37):

Et dixit benedicat te Dominus Deus Israhel quia filius es viri optimi et iusti et timentis Deum et elemosynas facientis. Et dicatur benedictio super uxorem tuam et super parentes vestros et videatis filios vestros et filios filiorum vestrorum usque in tertiam et quartam generationem et sit semen vestrum benedictum a Deo Israhel qui regnat in saecula saeculorum

E disse: o Senhor Deus de Israel te abençoa porque és o filho de um homem muito bom, e justo, e temente a Deus, e que pratica as boas obras. E que a benção venha sobre tua esposa e vossos pais e que vejas teus filhos e os filhos dos vossos filhos até a terceira e quarta geração, e que vossa semente seja abençoada pelo Deus de Israel, que reina pelas eras das eras.

Tb 9:9-11

Certo que isso foi uma “bênção hereditária”, não uma maldição, mas a estrutura da fórmula é similar e Tobias conheceria sua própria descendência até a quarta geração. Não há razão para achar que Jerônimo se equivocou no usou dos casos, ou você acha que Tobias morreria para renascer como o próprio tetraneto e admirar-se no espelho, lembrando de quem foi?

Jerônimo não apenas era um tradutor, mas também um comentarista bíblico. Em seu Comentário sobre Ezequiel, escrito entre os anos de 410 e 414 (após a Vulgata, portanto), lemos:

Monet autem divina Scriptura illud quod in Exodo dictum est: Ego sum Dominus Deus tuus. Deus aemulator, qui reddo peccata patrum super filios, usque ad tertiam et quartam generationem his qui oderunt me, et facio misericordiam in millia his qui diligunt me, et custodiunt praecepta mea. Et iterum: Descendit Dominus in nube et astitit iuxta Moysen, et invocavit Moyses nomen Domini, et transiit Dominus ante faciem eius, et invocavit eum, dicens: Domine Deus miserator et misericors, patiens et multae misericordiae, et verax, et iustitiam servans, et misericordiam in millia, auferens iniquitates, et iniustitias, et peccata: et non emundabit iniquitates patrum super filios et super filios filiorum, in tertiam et quartam generationem, sic accipi debere, quasi proverbium, et parabolam, ut aliud in verbis sonet, aliud in sensu teneat; quod in parabola quoque duarum aquilarum supra diximus.

Livro 6, cap. XVIII, parágrafo 2.

Que, em tradução livre, significa:

Alerta-se, no entanto, que quando a divina Escritura em Êxodo diz: “Eu sou o Senhor teu Deus. Um Deus ciumento, que retribui o pecado dos pais sobre os filhos, até a terceira e quarta geração do que me odeiam, e faço misericórdia a milhares dos que amam e guardam meus mandamentos“. E outra vez: “O Senhor desceu da nuvem e se pôs junto a Moisés, e Moisés invocou o nome do Senhor, e o Senhor passou diante de sua face, e ele o invocou, dizendo: ‘Senhor Deus de misericórdia e misericordioso, paciente e rico em misericórdia, e fiel, e guardando justiça e misericórdia por milhares, retirando iniquidades, e injustiças, e pecados: e não purificará as iniquidades dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos até a terceira e quarta geração’“, assim deve ser tomada como se fosse um provérbio e parábola, a fim de que em palavras soe uma coisa, outra coisa tenha em sentido; o que também dissemos acima na parábola das duas águias [cf Ez 17].

O segundo e o terceiro destaques são os mesmíssimo versículos de Êxodo 20:5 e 34:7 redigidos de forma alternativa, talvez refletindo uma leitura da LXX e da Vetus, respectivamente (38). Qualquer língua que possua um conjunto rico de preposições (simples e compostas) consegue exprimir a mesma ideia de várias maneiras, vide o exemplo do português moderno com a grande intercambialidade entre “a”/”para” ou “sobre”/”em cima de”. No caso em questão, o in de ablativo foi substituído por super e a in de acusativo por usque ad, que é traduzida sem equívoco por “até”. Com essa pequena variante, Jerônimo exprimiu com clareza o que pensava do assunto e não era o que os reencarnacionistas bíblicos gostariam.

E por isso o Senhor no septuagésimo sétimo salmo diz [ou 78º, v. 2]: “Abrirei minha boca em parábola: proferirei enigmas do princípio dos tempos“. Dessa forma expõe no Evangelho a parábola do semeador, e a do joio, e a do grão de mostarda [Mateus 13] – que embora seja a menor de todas as sementes, dela brota grande árvore – para mostrar uma coisa em palavras, mas tendo outra em sentido.

E nós, até o presente dia, valorizávamos os dois testemunhos de Êxodo, que anteriormente [Is 29] não consideramos como parábola, mas que explicavam um simples juízo. E ainda que não nos atrevêssemos a dizer qualquer coisa, nem o vaso de barro falar contra o oleiro, “por que razão me fizeste desta forma ou de outra” (cf. Rm 9:21), entretanto sofríamos um escândalo oculto, na medida que fosse vista a injustiça de Deus: um pecava e outro pagava pelos pecados.

Se de fato Ele retribui os pecados dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração [peccata patrum super filios in tertiam et quartam generationem] é tido por injusto, do mesmo modo é visto que um peque e outro seja punido. Mas é depois disso que vem: o escândalo da ameaça ou ensinamento é liberado pelos “que me odeiam“. Logo, não são por essa razão punidos na terceira e na quarta geração [in tertia et quarta generatione (ablativo)] – porque os pais deles pecaram – já que é preferível os pais, que foram pecadores, deverem ser punidos; mas porque despontaram como imitadores dos pais, e odiaram Deus por mal hereditário e também pela impiedade que cresce em ramos a partir da raiz.

Nesse ponto estão acostumados os heréticos, que não aceitam o antigo Instrumento, a dizer contra o Criador: “Quão bom e justo o Deus da Lei e dos Profetas, que se abstém e silencia para os pecados dos pais, retribui aos que não pecaram, muito pelo contrário: quanta crueldade nele há de modo que estende sua ira até a terceira e quarta geração!“[usque ad tertiam et quartam]. A eles responderemos que nessa parte a clemência do Deus Criador é demonstrada.

Logo, não é truculência ou severidade que a ira permaneça até a terceira e quarta geração [usque ad tertiam et quartam], mas um sinal de misericórdia que a pena do pecado seja adiada. De fato, quando diz “Senhor Deus de misericórdia e misericordioso, paciente e rico em misericórdia” e dispõe “retribuindo o pecado dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos“, aí indica, o que de tanta misericórdia é, para que não se puna de imediato, mas que se postergue o juízo do condenado.

Mas se a punição dos pecadores é postergada para até a terceira e quarta geração [in tertiam et in quartam generationem], o que, com santidade e justiça, faz Ele de mais distinto? O seguinte: E distribui justiça e misericórdia por muitos milhares aos que guardam seus mandamentos e praticam os ensinamentos dEle. Está escrito em Provérbios: “Como uva amarga é danosa aos dentes e a fumaça aos olhos: assim é a iniquidade aos que fazem uso dela” [Pr 10:26, LXX]. Disso é evidente: não é são os dentes alheios que doem e estragam, mas os dos que tenham comido uvas amargas.

No entanto, é nesse lugar que está este entendimento, como se alguém quisesse dizer:o pais comeram uvas amargas e os destes dos filhos estragaram. Isso é ridículo e não tem nexo: desse jeito é iníquo e injusto que os pais pequem e filhos e netos sejam castigados. Há os que pelo fato de que em Êxodo está escrito: “Retribui a iniquidades dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração” [super filios in tertiam et quartam generationem, Ex 20:5], desta maneira explanam, a fim de redirecionarem o juízo para a alma humana, dizendo que conosco o pai é uma leve picada dos sentidos e um incentivo aos vícios; o filho, uma vez que o pense, concebe o pecado; por ocasião dos netos, se se houver pensado e concebido, perpetrar-se-á, pela obra; no entanto, por ocasião do bisneto, que é a quarta geração, já não se terá feito apenas o que é mal e iníquo, mas também pela glória de suas iniquidades, conforme está escrito: “O ímpio, quando vai às profundezas do Mal, despreza” [Pr 18:3, LXX]. Deus, então, de forma alguma pune as primeiras e segundas pontadas de pensamento, que os gregos chamam de προπαθεια (39), sem as quais nenhum homem pode estar, mas se alguém decidir fazer o cogitado, ou ele mesmo que o fizer, não há de querer ser corrigido pela penitência.

Por isso está escrito: “Ninguém está sem o pecado do homem. Ainda mais se nenhum dia de sua vida terá sido. No entanto, contados são os anos de sua vida” [cf. Jó 14:4-5, LXX/Vetus]. E em outro lugar: “Quem há de vangloriar que tem um coração puro” [Pr. 20:9, Vetus]. E ainda: “também os astros não são limpos em sua presença: e até contra anjos seus algo destruidor preparou.” [Jó 25:5, versão de Jerônimo]. Mas se, por sua vez, a sublime natureza não carece do pecado, o que se deve dizer sobre os homens, que envoltos pela frágil carne, devem se valer do apóstolo: “Miserável homem sou! quem me livrará do corpo desta morte?” [Rm 7:24]. E isso, mesmo quando tivermos feito tudo, devemos dizer: “Servos inúteis somos, o que devíamos fazer, fizemos.” [Lc 17]. E também: “A não ser que o senhor tenha construído a casa, em vão trabalharam os que a constroem, a não ser que o senhor tenha guardado a cidade, por nada vigia o que a guarda.“[Sl 126:1,2]. Por outro lado, para a avaliação dessa condição – que de modo algum é punido por Deus o primeiro impulso de pensamento, muito menos o pequeno instinto da mente, mas somente se o que mente conceber, pela obra se consumar -, é isso se deve mostrar de Gênesis: Cam pecou, ridicularizando a nudez do pai, e o juízo não foi para ele próprio que riu, mas para seu filho Canaã: “Maldito seja Canaã! Serás um servo de seus irmãos!“[cf. Gn 9]. Será realmente justiça que pai peque e a sentença seja proferida ao filho? E também porque o Apóstolo [I Tm 2:15], expõe algo em contrário: a mulher é salva se seus filhos permanecerem na fé, na santidade e na pudicícia, vê-se que o juízo não tem justiça, de modo que se os filhos e netos forem bons, os pais são salvos (40).

Quantos pais são santos e têm filhos maus e, do contrário, quantos pais pecadores geram filhos justos? Portanto, conforme esse entendimento, deve-se aceitar a totalidade do que dissemos acima: que os pecados dos pais asssim como os dos descendentes são punidos nos ramos, não na raiz. Por enquanto, desse provérbio ou parábola diz-se o suficiente: que a Lei e os Profetas, i.e., Êxodo e Ezequiel, mais precisamente o próprio Deus que fala em um e no outro, de forma alguma estão em discrepância nos sentidos, ou melhor, um corrige o que o outro expressa mal.

No entanto, se alguém puder elaborar um entendimento alternativo ou melhor, que retire o escândalo da contradição mútua entre os testemunhos, ele é dos que deve ser submetido a juízo.

Idem

Em sua ampla e documentada correspondência, Jerônimo, em pelo menos duas ocasiões, expôs o raciocínio acima, ainda que não com o mesmo desenvolvimento:

Em vez disso, massacre as seduções ao vício, enquanto elas ainda são apenas pensamentos; e esmague as crias da filha de Babilônia contra as pedras, onde a serpente não pode deixar rastro algum. Seja cauteloso e faça um voto ao Senhor: “não deixeis que tenham não domínio sobre mim: então me colocarei ereto e serei inocente da grande transgressão.” Pois em outra parte, também a Escritura testifica: “Afligirei a iniquidade dos pais contra os filhos até a terceira e quarta geração [Peccata patrum reddam in filios in tertiam et in quartam generationem](Nm 14:18).” Ou seja, Deus não nos punirá de imediato por nossos pensamentos e resoluções, mas enviará retribuição sobre sua prole, isto é, sobre as más ações e hábitos do pecado que se originam deles. Como diz Ele, pela boca de Amós: “Por três transgressões de certa cidade e por quatro, não retirarei o castigo (Am 1:3 ou 2:4).”

Carta CXXX, a Demétrias.

Mas se, mesmo assim, ele se mostra indisposto a se arrepender, e se, depois que sofreu naufrágio, recusa-se a agarrar a única prancha que pode salvá-lo, sou finalmente obrigado a dizer: “Assim diz o Senhor: ‘Por três transgressões e por quatro, não devo eu me afastar dele?’“. Por esse “afastamento”, Deus justifica uma punição Deus, na medida em que o pecador é deixado aos seus próprios planos. É assim que retribui os pecados dos pais até a terceira e quarta geração; [peccata patrum in terriam et quartam generationem restituit] (Ex 20: 5), não punindo imediatamente os que pecam, mas perdoando suas primeiras ofensas e condenando as últimas. Pois, se de outra forma, Deus atuasse prontamente como um vingador de crimes, muitos outros [santos] da Igreja e, certamente, o apóstolo Paulo, não teriam existido.

Carta CXLVII, a Sabiniano.

Um contemporâneo de Jerônimo, cuja língua materna também era o latim e posteriormente, segundo os espíritas, teve participação ativa na codificação kardecista como um dos guias espirituais, tinha uma linha de raciocío com alguns pontos em comum com ele e uma curiosa numerologia:

Os pais não devem morrer pelos pecados dos filhos, nem os filhos morrer pelos pecados dos pais; cada um morrerá pelo seu próprio pecado“. Essa afirmação não é apenas os Profetas (Ez 18:18-20), mas também da Lei, que diz que cada um deverá ser apartado por causa de sua própria culpa, não a de seu pai ou de seu filho. Que significa, então, o que é dito em outra passagem: “Deus retribui os pecados dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração (Ex 20:5 – in tertiam et quartam progeniem)”? Talvez se refira às crianças ainda não nascida, em razão do pecado original, que a humanidade contraiu por hereditariedade de Adão; ao passo que a outra frase, faz distinção em relação à criança já nascida de modo que cada uma morra por causa de seu pecado? Visto que nada contraiu do pai, pois já havia nascido quando ele pecou. Mas aqui também se diz: “aos que me odeiam” (id.), está claro que esta condição pode ser mudada se as crianças não imitarem as ações de seus pais. Certamente por um tempo é retribuído o [pecado] de Adão, pois todos morrem por causa disso, mas não o será para sempre com aqueles que foram regenerados espiritualmente pela graça e perseveraram nela até o fim. Contudo, há mérito em perguntar, se são retribuídos os pecados dos pais sobre os filhos aos que odeiam a Deus até a terceira e quarta geração, por que razão nada é dito sobre a primeira e segunda, ou também não se prossegue a outras gerações que permaneçam a imitar a impiedade e má conduta de seus pais? Talvez por meio deste número, pois é entendido como sendo o setenário, pretenda-se denotar a totalidade: e por essa razão não colocou exatamente o setenário, dizendo “até a sétima geração” ( in septimam generationem), e ainda assim será todo compreendido, pois essa forma melhor ressalta a causa pela qual este numero tem sua perfeição? Na verdade, por isso ele é considerado perfeito, uma vez que consiste destes dois números, o três, que é evidentemente o primeiro inteiro ímpar, e o quatro, que é o primeiro inteiro par. A partir disso acredito que se origina a fala do Profeta, continuamente repetida: “Por três e por quatro transgressões não retirarei [o castigo]” (Am 1:3, 6, 9, 11, 13), com a qual ele queria mostrar toda transgressão em vez de apenas três ou quatro.

Agostinho de Hipona, Questões sobre o Heptateuco, livro V.

Palavra de quem falava em latim com doutos e iletrados.

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Fazendo as Contas

Três mais um igual a ...

Uma das alegações dadas por apologistas espíritas fanáticos parece até razoável:

Por que “até a terceira e quarta geração“, quando bastaria dizer até a quarta geração“, com a terceira geração já incluída? Portanto “na terceira e na quarta geração” parece ser mais lógico.

Se a questão fosse só matemática, dar-se-ia plena razão a esse raciocínio analítico. Acontece que, ao se lidar com a Bíblia, não se deve pensar como um cartesiano ocidental moderno, mas como um simbolista hebreu antigo. A chave está na associação que Jerônimo e Agostinho identificaram logo acima:

Assim diz o Senhor: [`al-sheloshâh / επι ο τρεις] Por três transgressões de Damasco, [ve`al-'arbâ / και επι ο τεσσαρες] e por quatro, não retirarei o castigo, porque trilharam a Gileade com trilhos de ferro.

Am 1:3

Esse é o chamado padrão “três mais um“, em que algo se repete quatro vezes, porém a última marca um ponto de virada. Como:

  • A fábula da Oliveira, contada por Jotão em (Jz 9:7-15);
  • As quatro tentações de Dalila sobre Sansão (Jz 16:4-21), quando cede o segredo de sua força na última;
  • No terceiro capítulo de I Samuel, o jovem Samuel é chamado três vezes por Deus e não entende o que acontecia. Após um aconselhamento de seu pai, Eli, na quarta vez ele recebe a mensagem de Deus;
  • Às vésperas de sua ascensão (II Re 2), Elias é enviado por Deus a três lugares (Gigal, Betel e Jordão) e diz para Eliseu não o seguir, porém este insiste e ambos vão. Ao quarto lugar (Céu), apenas Elias vai;
  • A fórmula “por três transgressões … e por quatro” recorrente em Amós (1:3, 6, 9, 11, 13; 2:1, 4, 6);
  • A fórmula “três coisas … e quatro” recorrente em Provérbios 30 (18,9; 20-3 e 29-31);
  • Os “quatro reinos” de Daniel (cap 2 e 7), em que o fim do último marca o advento do Filho do Homem.

Assim, a “quarta geração” marca o fim das punições hereditárias em Ex 20:5 e afins. Note que no versículo seguinte está a ordem de grandeza das benesses, sem um limite claro.

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Apelando para a Piedade


Uma das grandes discussões entre espiritualistas e cristãos ortodoxos é questão da “inerrância bíblica”. Para os últimos, embora a Bíblia tenha sido escrita por homens, isso ocorreu sob a inspiração de Deus, logo ela seria perfeita, isenta de contradições ou ensinos duvidosos. O espiritualistas, até por uma questão de estratégia ou “boa vizinhança”, não deixam (o mais das vezes) de prestar sua reverência à Bíblia. Por exemplo:

Repetimos que jamais nos passaria pela ideia o intuito de amesquinhar o papel da Bíblia como regra de fé da Cristandade, e nem seriam pigmeus como nós que ousariam tão inexequível tarefa. Sabemos e proclamamos que ela é o fanal de todos os povos cristãos, e que os preciosos ensinamentos morais nela contidos brilharam e continuarão a brilhar por muitos e muitos séculos concorrendo para dissipar as trevas da ignorância dos homens sempre que eles estiverem à altura de os assimilar.

Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igrejas Reformadas, cap. III, p. 41

Contudo

Aquilo que unicamente contestamos é a tese da “inerrância”, a ideia de que ela encerra toda a Verdade e de que tudo quanto contém é a Verdade e de que tudo quanto contém é a palavra saída dos lábios do próprio Deus. O que afirmamos é que a Bíblia foi escrita por homens e por isso mesmo está referta de falhas resultantes da imperfeição humana. Pretender que ali esteja a Verdade como um bloco monolítico, é semear confusão na mente de homens que já aprenderam, ou pelo menos, deviam ter aprendido a raciocinar.

Como cético, concordo em boa parte desse raciocínio, porém, como não espírita, vejo que essa mesma postura coloca em xeque boa parte do que se fala em reencarnação para o versículo Ex 20:5 e, de certa forma, para todo o Antigo Testamento. Do contrário, teremos de assumir que todas as passagens passíveis de interpretação reencarnacionista são inspirada e as que não, humanas. Arbitrariedade pura e simples.

Em diversas passagens divinamente inspiradas se diz que “os filhos não pagarão pelos pecados dos pais” (Deut. 24:16, Jer. 31:29-30), Eseq. 18:20), o que é uma noção de elementar justiça, imanente à consciência de qualquer pessoa de bom senso. Em nenhum ordenamento jurídico do mundo se prescreve que a pena passará da pessoa do criminoso. Mas então, por que os nossos primeiros pais tiveram o seu pecado transmitido, por estranha hereditariedade, a todos os seus descendentes? (Rom. 5:10)

Id. p. 43

Vejamos mais de perto Jr 31:29,30:

Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes terá seus dentes embotados.

Só que esta passagem é de tempo futuro, quando a casa de Israel e Judá fossem restauradas. Só um pouco depois, com tempo no presente:

Tu fazes misericórdia a milhares, mas punes a falta dos pais, em plena medida, em seus filhos. Deus grande e forte, cujo nome é Iahweh dos Exércitos.

Jr 32-18

Há algo errado aí… Por ora, continuemos com Jayme Andrade:

Note-se também que há passagens em franca contradição com as acima citadas, e são aquelas onde Deus diz que “visitará a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração” (Ex 34:7; Num 14:18; Deut. 5:9), mas nestas é fácil observar que a tradução foi ajeitada para acomodar o sentido às ideias vigentes, pois no texto original de São Jerônimo, ou seja, a “Vulgata Latina”, em vez de “até a 3a. e 4a. geração”, lê-se “na 3a. e 4a. geração”, como menciona PAULO FINOTTI em seu livro “Ressurreição” [Editora Edigraf, 1972, pg. 45]. Aí tem lógica, pois é evidente que na terceira e quarta geração o espírito pode já ter voltado para resgatar suas faltas.

Id. pp. 43-4

Além de discordar da tradução que esse e outros autores dão para para os versículos em questão, pelos motivos expostos anteriormente, creio que todos incorrem na falácia conhecida como cherry picking (“coleta de cereja”), que consiste, basicamente, em escolher o que que é favorável e desconsiderar o que contradiz. Façamos um inventário do que o Antigo Testamento diz sobre castigos hereditários:

Com punições hereditárias Sem punições hereditárias
Gn 9:24-25 – Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem (Cam). E disse: “Maltido seja Canaã (filho de Cam)! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos!”

Dt 23:2 – (..)Nenhum bastardo entrará na assembléia de Iahweh; e seus descendentes não poderão entrar na assembléia de Iahweh até a décima geração

Dt 28:18 – Maldito será o fruto do teu ventre(…)

2 Sm 12:13-14 – Então Natã disse a Davi: “Por sua parte, Iahweh perdoa a tua falta: não morrerás. Mas, por teres ultrajado a Iahweh com teu procedimento, o filho que tiveste morrerá.

2 Sm 21:6 – Que nos sejam entregues sete dos seus filhos, e nós os desmembraremos perante Iahweh em Gabaon, na montanha de Iahweh.

1 Rs 2:33 – Recaia, pois, o sangue deles sobre a cabeça de Joab e sua descendência para sempre, mas que Davi e a sua descendência, sua casa e seu trono gozem para sempre de paz da parte de Iahweh.

1 Rs 11:11-12 – Então Iahweh disse a Salomão:” Já que procedeste assim e não guardaste minha aliança e as prescrições que te dei, vou tirar-te teu reino e dá-lo a um de teus servos. Todavia, não o farei durante tua vida, por consideração para com teu pai Davi; é da mão de teu filho que o arrebatarei.

1 Rs 21:29 – Viste como Acab se humilhou diante de mim? Por ter se humilhado diante de mim, não mandarei durante sua vida; é nos dias de seu filho que enviarei a desgraça sobre sua casa.

2 Rs 5:27 – Mas a lepra de Naamã se apegará a ti a à tua posteridade para sempre.(…)

Jó 8:8-9 – Pois, eu te peço, pergunta agora às gerações passadas; e prepara-te para a inquirição de seus pais. Porque nós somos de ontem, e nada sabemos; porquanto nossos dias sobre a terra são como a sombra.

Is 14:21 – Por causa da maldade dos pais promovei a matança dos filhos.

Jr 16:10-11 – (…)Por que anunciou Iahweh, contra nós, toda essa grande desgraça? (…)Porque vossos pais me abandonaram, disse Iahweh(…)

Jr 29:21 – por isso assim disse Iahweh: Eis que vou castigar Semeias Naalam e à sua descendência.

Jr 32:18 – Tu fazes misericórdia a milhares, mas punes a falta dos pais, em plena medida, em seus filhos. (..)

Sl 109 (108):14 -Que Iahweh se lembre da culpa de seus pais, e o pecado de sua mãe nunca seja apagado!

Sl 136 (137):8-9 – Ah! filha de Babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir o pago que tu nos pagaste a nós. Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras.

Dt 24:16 – Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos no lugar dos pais. Cada um será executado por seu próprio crime.

Jr 31:29-30 – Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram.

Ez 18:20 – Sim, a pessoa que peca é a que morre! O filho não sofre o castigo da iniqüidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniqüidade do filho: a justiça do justo será imputada a ele, exatamente como a impiedade do ímpio será imputada a ele.

Jó 34:11 – Ele retribui ao homem segundo suas obras, e dá a cada um conforme o seu proceder

Sl 28 (27):4 – Dá-lhes, Iahweh, conforme suas obras, segundo a malícia de seus atos.

Is 3:11 – Mas ai do ímpio, do homem mau! Porque será tratado de acordo com suas obras.

Lm 3:64 – Retribui-lhes, Iahweh, segundo a obra de suas mãos

Não esquecendo, claro, de notáveis passagens do Novo Testamento, como a já citada Carta aos Romanos (Rm 5:10), a “maldição do sangue” (Mt 27:25) e o famosíssimo episódio do “cego de nascença” (Jo 9:1-2). Curioso nesse último que os discípulos também perguntam se o pecado cometido teria sido obra dos pais e não apenas dele; sugerindo, assim, que a ideia de punição hereditária ainda persistia, apesar das críticas de Ezequiel. Os mesmos que usam esta passagem são os que criticam Ex 20:5, só que eles não se atentam à contradição dessa atitude. Para saber mais, clique aqui.

Cerejas

“Se você não pode debater com seus oponentes no âmago da questão, esmague-os nos pequenos detalhes.”

Mas, como disse um poeta: “e agora, José?” Afinal, paga-se pelo próprio pecado apenas ou pelo dos outros, também? Analisando… citas os versículos da coluna da direita (e mais alguns) como garantia de sua interpretação reencarnacionista de Ex 20:5 e Ex 34:7, mas desconsidera o que está na coluna da esquerda. Este tipo de incoerência é que não pode ocorrer. Do mesmo modo, não se deveria defender essa ou aquela interpretação em prol de uma uniformidade em um grupo seleto de mensagens e depois, quando convém, retirar a autoridade do discurso de um debatedor salvacionista mostrando-lhe as disparidades do texto bíblico. Se deve haver coerência de algum tipo, que comece pelas atitudes.

A resposta para essas discrepâncias, de certa forma, pode ter sido dada por autores espíritas:

O exame do Velho Testamento nos leva a duas alternativas: Ou era o próprio legislador quem, com o propósito de infundir respeito, atribuía à Divindade todos aqueles rompantes de ferocidade de que o Antigo Testamento está repleto, ou Deus se fazia representar ante o povo por uma deidade tribal, talvez até mais de uma, como se infere de Gên. 3:22: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal.” E a prova de se tratar de Espírito ainda um tanto materializado é que habitava no tebernáculo (2a Sam. 7:6), ou “de tenda em tenda” 11″ (jôn. 17:5) e “se comprazia com o cheiro dos animais imolados em holocausto” (Números 29:36). Para os gnósticos do 2o Século, segundo o teólogo WALKER,

“O Deus do Antigo Testamento, criador do mundo visível, não pode ser o Deus Supremo revelado por Cristo, mas sim um demiurgo inferior.” (“História da Igreja Cristã”, 2a edição, pg. 80).

Id. 30

O leitor que desejar fazer um estudo mais aprofundado sobre as incongruências e incorreções contidas nesse livro poderá encontrar valiosos subsídios na importante obra do escritor MÁRIO CAVALCANTI DE MELLO, intitulada “Da Bíblia aos Nossos Dias”, ed. FEP, Curitiba, onde ele disseca magistralmente o Velho Testamento. Eis algumas da interessantes indagações do referido autor (Pgs. 363/ 371), aliás em alguns casos transcrevendo perguntas formuladas por DOMÊNICO ZAPATA, professor de Teologia na Universidade de Salamanca, no século XVII:

(…)
13 — Por que a lei judaica não menciona em lugar algum as penas e recompensas após a morte? E por que nem Moisés nem os outros profetas falaram na imortalidade da alma, se isso já era conhecido dos antigos caldeus, dos persas, dos egípcios e dos gregos?
(…)

Id. p.36

Bem, se o Javé o Antigo não era tão moralmente elevado assim e nem havia o conceito de punições após a morte no Pentateuco, então por que acreditar que ele seria justo em Ex 20:5 usando a reencarnação? E quanto ao versículo seguinte? Afinal, pela própria tradução de Analisando… milhares de gerações receberiam bênçãos imerecidas, o que não deixa de ser uma injustiça, também!

Então, retomo o primeiro princípio de crítica textual bíblica que apresentei em outra parte: a Bíblia não foi feita para você. Afinal, muitos desses nós podem ser desatados caso se leve em conta o ambiente em que os livros mais antigos da literatura hebraica foram redigidos:

  • Ausência de um pós-morte claramente definido: Para um judeu do Primeiro Templo, a morte era o retornou ao pó ou um existência vazia no Xeol. Conceitos de ressurreição surgiram apenas após exílio de Babilônia e os de reencarnação são medievais. O indivíduo se imortalizava pela descendência e, nesse contexto, as punições (e bênçãos) hereditárias faziam sentido;

  • antropomorfismo divino: um ponto assinalado por Jayme Andrade, em sua crítica à Inerrância Bíblica, foi a presença de emoções, digamos, “humanas demais” no Javé do Antigo Testamento, como seus rompantes de ira ou a possibilidade de até se arrepender (cf. op. cit. pp. 32-3). Se assim o é, certas teses usadas nas traduções encontradas em Analisando… perdem a razão ser, como esta feita, também, para Ex 20:5:

    Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que muitos tradutores colocam, em suas traduções, adjetivos que não condizem com a realidade divina. O termo hebraico (él kaná significa, entre outros atributos, Deus Zeloso. No entanto, muitos traduzem estas palavras como Deus Ciumento, como se Deus fosse possuidor de uma qualidade puramente humana e de caráter inferior. É devido a fatos como este que a Bíblia é tão incompreendida em suas traduções.

    Analisando…, cap. VIII, p. 125

    Dado que Javé “pede permissão a Moisés para destruir o povo (Ex. 32:10), porém este o repreende (Ex. 32:12) e Ele se arrepende (Ex. 32:14)” (Andrade, p. 33), concluo que Severino Celestino da Silva devia estar falando de outra divindade. Se você acha que estou interpretando literalmente o que não deveria ser, então comece a dar razão à tese da Inerrância.

  • A queda de Israel (mas não de Javé): em caso de uma conquista estrangeira, um padrão comum entre os povos politeístas da Antiguidade era adoção dos deus do conquistador; se não total, ao menos junto aos seu tradicionais. E se o conquistado fosse monoteísta? Uma hipótese mais imediata seria que o dito deus único era falso e inferior aos do conquistador ou julga que ele abandonara seu povo. A abordagem registrada nos livros proféticos de Israel (41), contudo, foi distinta: Javé não abandonara seu povo, foi esse que o deixou ao se desviar de sua Lei. O sofrimento dos exilados, em razão faltas de seus pais, cessaria tão logo eles retornassem a ela. Bem, essa é mensagem de Jeremias: as punições hereditárias são o presente de um povo desviado da Lei. As punições, neste caso, constituíam uma forma inocentar a Deus pela calamidade que assolaria Jerusalém e seu fim seria para o futuro, com a renovação do pacto com Deus.

    De certa forma, o livro de Deuteronômio já possui essa noção em sua teologia: o pacto de Javé com os hebreus estava condicionado à obediência do povo eleito: sua infidelidade resultaria numa série de desgraças. Muitas das quais os hebreus devem ter enfrentado por ocasião da queda de Israel e, posteriormente, de Judá ante potências estrangeiras. Estaria seu autor já intuindo o que iria acontecer? Para os devotos, sim; mas um observador externo poderia cogitar que tudo isso já tivesse acontecido e Deuteronômio foi redigido em torno de um código de leis para servir de base interpretativa à trajetória da nação (42);

  • Um noção de justiça simples e crua: Jayme Andrade critica a incoerências de atitudes de Moisés, pois ele

    que “era o mais manso de todos os homens que havia sobre a terra” (Num. 12:3), desce do Sinai com as “Tábuas da Lei”, onde constava o mandamento “não matarás” e logo, para passar da teoria à prática, manda matar 3 mil dos seus compatriotas e ainda por cima pede a bênção de Deus para os assassinos (Ex. 32:28/29).

    (Id, p. 32)

    Se o leitor reparar bem, várias sentenças contidas no Pentateuco são de morte – p.e., não guardar o sábado (Ex31:14/Nm 15:32-6) -, inclusive a adoração de ídolos (Dt 17:2-6), justamente o crime cometido no capítulo 32 de Êxodo (o bezerro de ouro). Isso, por incrível que pareça, não está em contradição com o quinto mandamento, levando-se em conta que sua tradução mais precisa seria “Não assassinarás”. Bem, ao menos essa é a opinião de André Chouraqui, tão elogiado em Analisando…. Portanto, para os antigos hebreus, era a pena capital para os que matassem um inocente, mas não era errado matar por determinação de Justiça. Em geral, por apedrejamento. Para os crimes não religiosos e que não atentassem contra a vida, as penas eram mais amenas, como multa, desterro, mutilação, servidão e encarceramento, aplicadas segundo o preceito de reparação equivalente estabelecido em Dt 19:21: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, vulgo lei de talião. Esse princípio tinha o bom aspecto não permitir que o castigo extrapolasse a falta, mas não havia tanta preocupação assim com a recuperação do faltoso. Também havia o pressuposto de a punição não dever ultrapassar a figura do faltoso, como explicitado em Dt 24:16. Curiosamente, esse versículo não está em contradição com Dt 5:9 ou Dt 28:18, ao contrário do que a sensibilidade moderna pode achar, pois os capítulos V e XXVIII desse livro tratam principalmente do relacionamento entre entre Deus e os homens, por meio dos mandamentos, ao passo que o XXIV regula as relações entre os mortais. São escopos diferentes;

  • Tribalismo: Embora seja apresentado como o Criador, Javé se comporta muitas vezes ao estilo de um deus tribal, posteriormente elevado à categoria de divindade nacional única. Assim, teríamos originalmente uma monolatria (adoração a só um deus, embora se reconheça a existência de outros) em vez de um monoteísmo genuíno (só há um deus, todos os demais são engodos). Nesse contexto, a tradução por “ciumento” em Ex 20:5 faz bem mais sentido que “zeloso”, a maldição sobre Canaã ganha ar de profecia da conquista de Josué e o amargor de um exilado na Babilônia fica compreensível;

  • Desconsideração pura e simples do todo: muitos dos versículos estão fora do seu contexto, o que coloca algumas ressalvas. Por exemplo: Jó 34:11, do jeito que está, não leva em conta que o sofrimento de Jó não era um castigo pela infração de outrem, muito menos algo merecido pelos próprios atos desse personagem; mas o resultado de uma aposta entre Deus e Satanás pela integridade de Jó. Severino Celestino da Silva passa por cima desse detalhe quando cita o versículo no cap. VIII de seu livro.

Diante desse panorama, a hereditariedade das penas pode, sim, ter sido a intenção dos autores do Pentateuco e, por mais que os apologistas espíritas bradem apelos emotivos, as evidências históricas (e bíblicas!) pendem a favor desse entendimento. Óbvio que os tempos mudam e leis começam a ficar desatualizadas. Os judeus da diáspora não podiam aplicar leis antigas que se chocassem com as de suas pátrias adotivas, além travarem contato com sofisticados sistemas filosóficos, às vezes contrastantes com a rudez do épico nacional contido na Escritura. Os cristãos ortodoxos, por sua vez, tinham de responder ao desafio que gnósticos e marcionitas lhes impuseram de conciliar os rompantes de brutalidade de Javé com a bondade do Pai do Novo Testamento.

Foram elaboradas, então, técnicas de exegese para extrair do texto significados que antes não possuíam, permitindo a suavização arestas, harmonia entre discrepâncias e até a sistematização de doutrinas. Evidente que o êxito depende da aceitação pelo interlocutor das premissas usadas. No caso de Ex 20:5 e 34:7, um dos argumentos mais simples consta no próprio Pentateuco: “Mas somente se eles seguirem os caminhos de seus pais (Dt 24:16)”. É isso que os targumim utilizaram e, recente, foi o que o supracitado Rabino Aryen Kaplan colocou no rodapé do livro de Êxodo em sua edição bilíngue A Torá Viva (p. 352). O louvado Chouraqui também fez uma abordagem bem singela nesse versículo, relacionando-o com o seguinte a ele:

5. (…)
quarto ciclo ou “geração”: A cólera de IHVH contra um povo infiel foi comparada por Hoshéa (Oseias) à de um esposo que expulsa uma esposa adúltera com seus filhos (Os 1-2). Ficamos sabendo aqui que ela é limitada, estando fundada no amor criador.

6. milésimo: O amor de IHVH pelos que lhe são fieis é eterno e sem limites.

A reencarnação é apenas outra interpretação para desatar o nó das punições hereditárias. Não é a única – ao contrário do alegado por espiritualistas -, nem a mais simples; além de ser a mais anacrônica com a Escritura: as evidências de reencarnação no judaísmo são medievais.

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Massorético X Massorético


Bem, algum hebraísta roxo pode ainda alegar: “Esses exemplos de trocas preposicionais só ocorreram em textos marginais ou traduções, ambos passíveis de serem feitos de forma descuidada. Nenhum deles é páreo para o esmero da transmissão textual feita pelos mestres massoretas”. Tudo bem, então vai um xeque-mate nessa teimosia:

1 Sm 14:1

vayhiy hayyom vayyo'mer yonâthân ben-shâ'ul 'el-hanna`ar nosê' khêlâyv lekhâh vena`berâh 'el-matsabh pelishtiym

“Um dia, Jônatas, filho de Saul, disse ao seu escudeiro: ‘Vamos, atravessemos até o posto avançado dos filisteus…”

1 Sm 14:4

ubhêyn hamma`beroth 'asher biqqêshyonâthân la`abhor `al-matsabh pelishtiym…

“No deslifadeiro que Jônatas procurava atravessar para atingir o posto avançado filisteu…”

Hum…

2 Sm 23:23

min-hasheloshiym nikhbâdh ve'el-hasheloshâh lo'-bhâ' vaysimêhu dhâvidh 'el-mishma`tos

1 Cr 11:25

min-hasheloshiym hinno nikhbâdh hu' ve'el-hasheloshâh lo'-bhâ' vaysiymêhu dhâviydh `al-mishma`tos

Era mais nobre do que os trinta, porém aos três primeiros não chegou, e Davi o pôs sobre a sua guarda pessoal. (i.e. no comando da guarda)

E outro

2 Sm 22:16

koh 'âmarAdonay hineniy mêbhiy' râ`âh 'el-hammâqom …

2 Cr 34:24…

koh 'âmar Adonay hineniymêbhiy' râ`âh `al-hammâqom…

Assim diz o Senhor: Eis que trarei males sobre/a este lugar…

E mais outro! (há muitos se quiser saber…)

2 Cr 34:15

vayya`an chilqiyyâhu vayyo'mer 'el-shâphân hassophêr

2 Re 22:8

vayyo'mer chilqiyyâhu hakkohên haggâdhol `al-shâphânhassophêr

Então, disse (o sumo sacerdote) Hilquias ao escrivão Safã.

Por mais que se esperneie, por mais que se negue, o massorético traz dentro de si o testemunho se sua própria evolução. De uma época em que o hebraico bíblico era língua viva e, como tal, sujeita a flutuações. Quando se extinguiu, fossilizou-se. Um fóssil extremamente bem conservado, ao ponto de poder ser ressuscitado com êxito no séc. XX e voltar a evoluir. Nesse ínterim, o que se transmitiu foi um conjunto de normas gramaticais mais rígido do que se estivesse ainda viva como língua. Isto se refletiu nas análises críticas da Bíblia, que privilegiaram o tradicional, o recebido, em detrimento do aspecto diacrônico dos tempos bíblicos.

Emanuel Tov, em seu Textual Criticism of the Hebrew Bible, cap. VIII, cita como tais questões contaminaram edições bíblicas da era moderna:

Ao longo dos anos, muitas correções gramaticais têm sido propostas, geralmente para formas incomuns que eram corrigidas nas bases de um modelo gramatical formal. Como uma vasta coletânea de exemplos, Sperber ataca diretamente as correções gramaticas desse tipo, argumentando que eles eram comumente baseadas em “gramática escolar”. A maioria das correções mencionadas por ele são encontradas na Bíblia Hebraica (BH) e em muitos dos comentários, e vale mencionar que a maioria delas não foram repetidas na Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).

(…)

Ez 2:6 ve'el-`aqrabbiym 'attha yoshebh

e estás sentado com/sobre escorpiões

Correção: ve`al-…

Os editores da BH tinham uma concepção petrificada do uso das preposições 'el e `al (tomadas respectivamente como “a/com” e “sobre”) e geralmente corrigiam os textos de acordo. Estas correções não são necessárias (ver A. Sperber, A Historical Grammar of Biblical hebrew – A Presentation of Problems com Suggestions to Their Solution, Leiden -1966, pags. 59-63).

Nas próprias palavras de Sperber:

Gramáticas bem como dicionários nos ensinam a diferenciar entre 'el e `al. A própria Bíblia é obviamente ignorante de qualquer diferença entre 'el e `al e as usa indiscriminadamente (…) Especialmente os livros de Jeremias e Ezequiel abundam em tais “irregularidades”: encontramos `al onde, de acordo com a gramática e dicionário, esperaríamos 'el e vice-versa. (…)

p. 58

As partículas `al e 'el são usadas indiscriminadamente. Qualquer diferença em seus significados é sem qualquer fundamentação na Bíblia e deve ser considerada arbitrária.

p. 633

Portanto, é provável que toda a crítica feita por Severino Celestino da Silva, não passe de um desses casos de “gramática escolar”. Por Sperber:

A prática adotada pelos comentadores de corrigir o texto da Bíblia – mesmo sobre evidências de manuscritos – para determinar que 'el deva significar “em direção” e `al “sobre” ou “contra”, trabalha com o pressuposto [grifo do autor] que estes são os reais significados destas palavras. Um exame objetivo revelará que todo e qualquer manuscrito as usa promiscuamente, apesar de eles poderem diferir em suas leituras em qualquer passagem dada.

p. 633

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Tentando uma Engenharia Reversa

Pois é: também comprei um exemplar.

“Sanciona o agravo dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos, sobre os terceiros e sobre os quartos.”

Essa é minha proposta para qual seria a estrutura original de Ex 20:5, Ex 34:7, Dt 5:9 e Nm 14:18. Isso não quer dizer que assim estivesse escrito em todos os autógrafos desses livros, mas deve ter sido uma fórmula que já circulava oralmente entre os antigos hebreus antes de ser grafada. E digo isso porque, se alguém reparou, os mandamentos apresentados no capítulo XX de Êxodo e, de novo, no XXXIV são diferentes, indicando que tais passagens foram compostas em épocas distintas e reunidas posteriormente em uma única obra. Escolho a forma de Ex 34:7 por ser ela a mais extensa – com quatro gerações explicitamente citadas (filhos, filhos dos filhos, terceiros e quartos) -, por dar um uso regular à preposição `al e por não possuir suavização alguma: o sentido mais duro e injusto tem mais chances de ser o original. Este último é um princípio da crítica textual: “A leitura mais difícil é preferível a mais fácil(43).

A seguir, lanço uma série de hipóteses de como as demais leituras surgiram a partir dessa.

diagrama hipotético de evolução

Clique para ampliar.

  1. Num primeiro momento, pode ter ocorrido uma espécie haplografia, i.e., o olho de algum copista (ou de quem lhe ditava um texto) teria “escorregado” em razão da repetição da palavra “filhos”. Pode até haver ocorrido mais de uma vez, dado que Dt 5:9, no Texto Massorético (TM), ainda preserva a conjunção “e” perdida em Ex 20:5 e Nm 14:18 dessa família de manuscritos. É plausível, pois, como já informado, antes que a tradição metódica de cópias dos sábios massoretas se firmasse, os textos hebraicos possuíram pelo menos uns 500 anos de flutuação mais livre;

  2. Essa perda de palavras não deve ter causado estranheza, pois, com a similaridade entre `al e 'el, a primeira passou não apenas a indicar uma posição pontual, mas toda uma sobreposição por uma extensão. O sentido de “até”, “em direção a” advém quando o foco cai sobre o término dessa extensão (cf. Ex 18:23);

  3. Numa particular coincidência linguística, a preposição grega επι abarcou boa parte dos usos da hebraica `al, especialmente os novos, ao reger o acusativo (cf. Gn 22:19). Um ecletismo que gerou dúvidas, em certos casos, se a melhor tradução para `al seria ela ou 'εως;

  4. Ao se transpor a língua para o latim, quer pela pena de Jerônimo (44) ou dos anônimos tradutores da Vetus, defrontou-se com mais de uma possibilidade para verter a επι de acusativo. Em alguns casos ela foi interpretada ora como “contra” ou “a” (utilizando-se in filios, no acusativo), ora como indicativo de posição (in de ablativo ou super) e, por fim, como indicativo de extensão (in de acusativo). O resultado foram versões distintas com significado similar:
    Êxodo 34:7
    Vetus reddens iniquitates patrum super filios et super filios filiorum, in tertiam et quartam generationem
    Vulgata qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem.

    Nesse versículo, ambos os tradutores entenderam as duas primeiras επι de acusativo como a posição onde a retribuição divina incidiria inicialmente, e a última επι de acusativo como sendo a extensão dessa retribuição (“até a terceira e quarta geração“).


De certa forma, a gama de significados que `al pode repercutir até hoje na forma como a Bíblia é traduzida para nosso idioma, ainda que passe por mãos judaicas. Trago dois exemplos ainda disponíveis nas prateleiras:

Aryeh Kaplan
A Torá Viva
Meir M. Melamed
Torá – A Lei de Moisés
Ex 20:5 Eu tenho em mente o pecado dos pais por (seus) descendentes, até a terceira e quarta (geração). (…) visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre as terceiras e quartas gerações
Nm 14:8 (…) mas guarda o pecado dos pais por seus filhos, netos e bisnetos. (…) visita o delito dos pais nos filhos, sobre terceiras e quartas gerações.
Dt 5:9 Eu lembro o pecado dos pais para (seus) descendentes por três e quatro (gerações). (…) visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e sobre quartas gerações.
Ex 34:7 (…) mas guarda em mente os pecados dos pais para seus filhos e netos, para a terceira e quarta gerações. (…) visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobre terceiras e quartas gerações.

Os tradutores de “Torá: A Lei de Moisés” preferiram se ater aos significados mais básicos de `al, no caso “sobre/em”, ao passo que Aryeh Kaplan preferiu explorar as demais conotações. Embora a forma esteja distinta, o entendimento das duas obras é semelhante, como atestam os comentários que fazem:

A Torá Viva Torá – A Lei de Moisés
Ex 20:5 Mas somente se seguirem os caminhos de seus pais (Dt 24:16, Berachot 7a). Quando os filhos continuam praticando a iniquidade de seus pais, pois os filhos não devem seguir o mau exemplo dos pais, depois de conhecer suas consequências.
Ex 34:7 Ver 20:5. Quando os filhos seguem o mau caminho dos pais, o Eterno os castiga também pelos pecados dos pais.

Observe-se que o uso de “sobre” ou “em” dado em “Torá – A Lei de Moisés“, Ex 20:5, está invertido em relação ao que consta no livro de Severino Celestino da Silva:

Ex 20:5 – (…) visito a culpa dos pais sobre os filhos, na terceira e na quarta geração.

Ex 34:7 – (…) visita a iniquidade dos pais nos filhos, e nos filhos dos filhos, sobre terceiras e quartas gerações ou sobre netos e bisnetos.

Analisando …, cap. VIII, p. 124 e 127.

Essa sutil mudança pode dar efeitos fortes no idioma português. Em Ex 20:5, alguém pode entender que apenas a terceira e a quarta gerações seriam punidas, deixando os filhos de fora. Em Ex 34:7, por sua vez, a situação é mais gritante em razão do complemento adicionado: “ou sobre netos e bisnetos“, equiparando a terceira geração aos netos. Se fosse esse o versículo Ex 20:5 e se considerasse os pais como a primeira geração, tudo bem. O problema é que os netos já aparecem em “filhos dos filhos”. Em Ex 34:7, temos – além de pais, filhos e netos -, os bistenos e trinetos. Está se forçando um salto de gerações que não existe (45)!

Caso se mantivesse um uso uniforme de `al como “sobre”, obter-se-ia a frase que abre esta seção, que é idêntica à tradução de André Chouraqui para Ex 34:7, por ele elogiada em [cap. VIII, p. 135] e já mencionada acima, com quatro (ou cinco) gerações em sequência para receber a sanção. Isso não significa prova absoluta da crueldade de Javé ou dos tradutores que assim prefiram, pois a fixação em preciosismos dos reencarnacionistas não lhes permite ver interpretações e comentários mais amenos (que não sejam os deles), nem se focar que a benevolência do Eterno é muito maior que Sua ira (cf. Ex 20:6), o cerne dessa passagem.

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Um Panorama da Questão


Fazendo um sumário que discutido aqui:

  • Apesar de a preposição (`al) possuir como significado mais comum “em/sobre”, ela também pode assumir outros valores, entre eles “até”;
  • Em Qumran, há casos de intercambialidade entre as preposições (`al), ('el) e (`ad);
  • Em tempos antigos, houve casos de homofonia entre (`al) e ('el), o que permitiu que a primeira assumisse funções de partícula dativa (i.e. preposição de objeto indireto) e outros significados de ('el), como “até” (e vice-versa);
  • A LXX e a Vulgata nem sempre utilizaram a mesma base textual do que viria a ser o Texto Massorético. Logo é precipitado chamar discordâncias do texto de propositais;
  • Trocas entre (`al), ('el) também podem ter ocorrido na matriz hebraica LXX e a troca de (`al) por (le) ocorreu na Peshitta;
  • As traduções de (Ex 20:5) e (Ex 34:7) feitas a partir da Vulgata estão corretas, ao contrário do que é alegado;
  • Há vários casos de castigos hereditários no AT e ao menos um no NT, mas isto não significa que eles fossem irrevogáveis ou que se tenha que apelar para interpretações reencarnacionistas (Targum Onkelos e R. Kaplan, em tempos modernos).

Isso já é material bastante para considerar a tese de tradução errônea, no mínimo, equivocada. Para alguns, talvez, não passem de subterfúgios de “detratores”. Paciência. A bem da verdade, um subterfúgio muitíssimo mais grave foi querer impor aos há muito falecidos redatores, tradutores e copistas da Bíblia regras gramaticais que eles mesmos ignoravam em suas línguas maternas. Quando, ao final do capítulo VIII, o autor diz:

Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

p. 135

eu torço um pouco o nariz, pois sua própria bibliografia (Barrera, Chouraqui) e os dicionários usados (Berezin, Perreira) lançariam muita luz em sua dúvida. Quanto à questão da injustiça das “penas hereditárias”, outra obra bem cotada por ele – Torá: a Lei de Moisés – traz uma explicação alternativa à reencarnação em Ex 20:5 e 34:7, e que mantém a responsabilidade individual dos descendentes do faltoso.

Ainda há uma hipótese a considerar: a de que as penas hereditárias tenham sido realmente a intenção original que se passar aos leitores. Isso pode parecer cruel e injusto para você, cidadão do Ocidente moderno. Contudo, faria bastante sentido para um hebreu exilado na Babilônia, tentado a julgar que Javé o abandonara (Cf. nota 42). Afinal, a Bíblia não foi feita para você!

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Notas

(1) Óbvio que se pode achar dicionários e gramáticas que possuem apenas o sentido de “sobre/em” para `al, mas, como explanei em outro artigo, sair dizendo que outros significados não existem é “colocar o carro na frente dos bois”. Os verdadeiros donos de uma palavra são os que a usam, ou, no caso, os que a usaram e deixaram registrando na Bíblia. Os dicionários, na melhor das hipóteses, correm atrás dos significados que as palavras têm ou tiveram. Se um dicionário (ou gramática) não deixou registrado os usos que demonstrei com exemplos tirados da própria Bíblia, então ele(a) é que está deixando a desejar, ao menos nesse verbete. [voltar]

(2) Curiosamente, o autor traz no capítulo XI, p. 159, a seguinte frase atribuída a Arieh Kaplan: “Não é possível entender a Cabalá sem acreditar na eternidade da alma e suas reencarnações“. Não há referência alguma, contudo. Seja como for, Kaplan não enxergou a reencarnação em Ex. 20:5, nem o traduziu como os reencarnacionistas bíblicos gostariam.[voltar]

(3) Cf. [Störig, cap. XII] [voltar]

(4) O inglês ainda possui vestígios desse caso, por exemplo the Richard’s car (“o carro de Richard”). [voltar]

(5) Por exemplo “ô Fulano”, só que sem se valer de interjeições. Cogito se as expressões infantis “paiê”, “manhê” não são uma reinvenção do vocativo no português falado. [voltar]

(6) Ainda é possível alguma mudança de ordem no português se o objeto for marcado por uma mudança de entonação. Tomando o exemplo dado: “A teRRA, a água rega”. [voltar]

(7) O exemplo dado abarca apenas palavras da primeira declinação latina. [voltar]

(8) O romeno ainda possui vestígios do vocativo latino. As seis flexões verbais continuam bem nítidas no italiano, reduzidas a quatro ou cinco no português falado e a três no francês. Esse último é curioso, pois, na escrita, tem-se a impressão de que as seis pessoas estão ainda presentes, mas, na fala, muitas vezes as três pessoas do singular e a terceira do plural são indistintas, pois suas desinências não são pronunciadas, sendo obrigatório o uso do pronome pessoal reto para distingui-las. [voltar]

(9) Severino Celestino da Silva tem a edição de 1979 em sua bibliografia. Se verificarmos aparato crítico para Ex. 20:5, podemos constatar uma leitura variante no Codex Alexandrinus que usa επι em vez do 'εως. Tendo-se em mente a complexa evolução da tradução dos LXX, isso não invalida nosso raciocínio. Pelo contrário, sugere que sucessivas revisões feitas na Antiguidade acompanharam as trocas preposicionais do texto hebraico. De qualquer forma, o Codex Alexandrinus ainda traz 'εως para Nm 14:18. Aposto que haverá alguém que, ao encontrar um texto baseado no Alexandrinus, comece a bradar que maioria dos livros, portais e fóruns usam versões adulteradas da LXX e só a que ele encontrou esta acima de qualquer suspeita. Bem, ferramentas são tão boas quanto as pessoas que as manipulam…

Para constar: o Codex Vaticanus, outro peso-pesado entre os códices mais antigos da Bíblia, segue a leitura com 'εως para Ex. 20:5. O Codex Sinaiticus, infelizmente, está fragmentário no Pentateuco e não dispõe dos versículos aqui analisados. [voltar]

(10)[Freire, cap. IX, pp. 210-1] (grego clássico, usada por Severino Celestino da Silva) traz uma listagem de significados para επι, conforme a regência, no melhor estilo “decoreba”.

[Murochco, pp. 572-9](clássico) sugere um pouco da lógica subjacente:

  • επι + dativo -> “locativo”: ponto no espaço ou no tempo em que a predicação ocorre;
  • επι + genitivo -> “genitivo partitivo”: parte de uma superfície ou período temporal em que a predicação ocorre;
  • επι + acusativo -> “lativo” (cf n. 14): associado a ideia de movimento em direção a, finalidade.

Pode-se reparar que entre o dativo e genitivo, a diferença é bem sutil. Um dos exemplos que Murochco e Freire têm em comum para o genitivo – επι Σαμου πλειν – é traduzido bem mais literalmente no primeiro (“navegar sobre Samos”) que no segundo (“navegar rumo a Samos”).

A listagem de significados em [Wallace, p. 376] (grego koiné) é quase idêntica entre o dativo e genitivo, sendo a única diferença que o primeiro poderia dar a επι o sentido de “contra”.

A mais sofisticada análise das sutilezas semânticas de επι está [Robertson, cap. XIII, pp. 600-5](koiné), mas extrapola muito o escopo deste artigo. Por ora, segue a linha geral (p. 602) “O genitivo com επι tem, de maneira similar, uma ampla variedade de usos. Geralmente o sentido de ‘em cima de’ satisfaz todos os requerimentos”. [voltar]

(11) Cf. [Jobes, Parte I, cap II]. [voltar]

(12) “Pseudo” por ser erroneamente atribuído a Jônatas ben Izzel, que é o tradutor de outro targum, porém sobre os profetas. [voltar]

(13) A mais antiga referência ao Targum Onkelos se encontra no Talmude Babilônico (Meg. 3a), fazendo menção à tradução feita por “Onkelos, o prosélito”. Acontece que, no Talmude da Palestina, há um paralelo (Meg. 1, 9, 71c) a dizer que “Akylos, o prosélito” fez a tradução da Torá. No caso, a pessoa em questão seria Áquila, cuja tradução da Torá para o grego é bem conhecida. Teria seria sido “Onkelos” a versão hebraica do nome “Áquila” e o Targum atribuído a ele um caso de pseudonímia, como o de Jônatas? Talvez. Por outro lado, não se discute o conhecimento do hebraico de Áquila e, por extensão, poderia ele ter sido capaz traduzir, também, para outra língua aparentada. Além disso, as interpretações presentes no texto desse targum se aproximam das utilizadas pelo Rabbi Akiba, do qual Áquila foi discípulo. Enquanto a autoria do targum permanece incerta, análises linguísticas indicam que a linguagem de Onkelos se aproxima mais do aramaico literário praticado na Palestina que o vernáculo da Babilônia, embora fosse mais utilizado lá. É provável, então, que o atual “Targum Onkelos” seja uma babilônica edição final de um targum originário da Palestina. Para mais pormenores cf. [McNamara (2010), cap. XVII, pp 255-9] e [Barrera, parte III, cap. IV, pp 389-90]. [voltar]

(14) Se alguém quiser ler o texto inglês constante em Pentateuchal Targumim, informo que harmonizei as traduções inglesas entre os targumim. Nada para se assustar, pois que eles tiveram tradutores separados. Por exemplo, em Ex 34:7 de PsJo um palavra foi traduzida por “pecados”, enquanto em Onkelos o tradutor preferiu “culpa” para a mesma palavra. [voltar]

(15) A datação dos targumim pode ser um tanto problemática, em especial no caso do Pseudo-Jônatas, pois foi alvo de sucessivas interpolações. A mais tardia (Gn 21:21) dá às esposas de Ismael o nome de uma das filhas (Fátima) e uma das esposas (Adisha/Khadija) de Maomé, situando a redação final após a expansão islâmica. A que faz referência ao personagem mais antigo (Dt 33:11) é uma oração a Johanan, o Sumo Sacerdote, que pode ser João Hircano, do primeiro século antes de Cristo, o que não impede que seja um registro posterior. Assim, as datações mais tardias o colocam no século VIII da Era Cristã e a mais antiga o situa durante o reinado do imperador romano Juliano, o Apóstata, (361-3), quando houve uma breve esperança de reconstrução do Templo (cf. [MacNamara (2010), cap. XVII, pp. 265-6]). O Targum Onkelos é bem mais enxuto em termos de interpolações que o Pseudo-Jônatas, o que dificulta o rastreamento por evidências internas. Seu livro de Gênesis encontra paralelos no Gênesis Apócrifo de Qumran (cf. [Barrera, parte III, cap. IV, p. 389]) e a análise de sua linguagem o situa no começo do segundo século (cf. [McNamara (2010), cap. XVII, p. 258).[voltar]

(16) Isso seria o lativo existente em línguas ural-altaicas, como o finlandês. Para uma descrição resumida dos casos em latim, cf. [Ilari, cap. VII, p. 89]. [voltar]

(17) Cf. [Barrera, parte III, cap. VI, pp. 417s]. [voltar]

(18) Linguistica Românica é uma obra bem didática, mas às vezes derrapa quando sai de seu tema fim. Ao avaliar as diferenças entre a linguagem da tradução dos Evangelhos frente ao Antigo Testamento, o autor diz:

Como iniciativa de aproximação entre a língua vulgar e o latim culto, pode-se citar a decisão da Igreja, no tempo de São Jerônimo, de redigir em um latim tanto quanto possível popular os textos do Novo Testamento. Essa tentativa remonta ao tempo em que São Jerônimo (século IV a.C.) (sic), a pedido do papa São Dámaso, cuidou da versão da Bíblia conhecida como “Vulgata”. O Antigo Testamento havia sido traduzido por Jerônimo diretamente do hebraico, num latim literário impecável, sem levar em conta as versões anteriores (conhecidas pelo nome de Itala Vetus), feitas a partir do grego e eivadas de expressões e construções populares. Conta-se que quando São Jerônimo se preparava para traduzir o Novo Testamento, lhe apareceu um anjo, que o censurava por ser mais ciceroniano do que cristão (“ciceronianus es, non cristiano”). Segundo a tradição, foi esse o motivo pelo qual o texto do Novo Testamento foi decalcado mais diretamente da Itala Vetus, apresentando linguagem de caráter bem mais popular.

Tal anedota, de fato, existe, foi registrada em uma carta de Jerônimo endereçada a Eustóquio (Carta 22 na numeração da Nicene and Post-Nicene Fathers) e ela data realmente à época de sua tradução dos evangelhos. Entretanto:

  1. A reclamação do anjo não era com o trabalho de tradução, mas com o hábito de Jerônimo de ainda ler muito as obras clássicas e pouco as cristãs;
  2. Jerônimo não traduziu, revisando apenas levemente, os Atos, as Cartas e o Apocalipse. Eles ainda são em grande parte herança da Vetus;
  3. Ainda que Jerônimo tenha tentado preservar o que seus leitores já estavam acostumados a ler, não deixou de lapidar o texto dos Evangelhos aqui e ali;
  4. A tradução do Antigo Testamento foi posterior à revisão dos Evangelhos.

Não vou crucificar Rodolfo Ilari por ter cometido um erro histórico se sua obra trata de Linguística, da mesma forma que não criticaria um livro de Matemática por conter erros de português. Também não critico Analisando … por seu autor ser espírita ou crer na reencarnação, mas por conter erros históricos e linguísticos, estando a História e a Linguística no seu cerne.

[voltar]

(19) Essa é a origem da partícula indefinida on do francês, via corruptela de hom(me). [voltar]

(20) O texto de [Sabatier] não tem esse versículo, Cf. [Harrington, p. 29]. Uma outra variante, a preposição composta de + intro, deu origem a nossa palavra “dentro”. Note que a Vulgata usa o “que enclítico” como conjunção (=et). [voltar]

(21) E foi a preposição latina de ablativo de que, com o desaparecimento dos casos, assumiu o genitivo nas neolatinas. Curiosamente, essa construção não era desconhecida no latim clássico. Que o diga o poeta Virgílio:”Et viridi in campo templum de marmore ponam (Geórgicas 3.13). [voltar]

(22) Cf. [Sidwell, cap. III, p. 30]. [voltar]

(23) Por exemplo, a frase genitiva in saecula saeculorum (“pelas eras das eras”) é uma latinização de uma expressão grega que reflete um jeito hebraico de fazer o superlativo. Cf. [Sidwell, Grammar 10.a]. [voltar]

(24) [Ilari, cap. V, p. 70]. [voltar]

(25) Magis deu origem ao nosso “mais” e ao “más” espanhol, ao passo que plus deu origem ao “plus” francês e ao “più” italiano. [voltar]

(26) Repare em At 2:28 (Vetus Latina) …replebis me laetitia cum facie tua. Mesmo a literatura preservando todo o sistema de casos clássico, ainda havia risco de confusões. Na palavra do exemplo acima, seu nominativo singular (facies) era idêntico ao acusativo plural e o significado era deduzido do contexto. Assim, mesmo não tendo mais latim como língua materna, escritores medievais continuaram a usar preposições gramaticalmente dispensáveis para fins de clareza. [voltar]

(27) O que talvez fosse a preservação de um falar antigo que não foi adotado pelos clássicos. O teatrólogo Tito Plauto, no segundo século a.C., escreveu em sua peça “Os Prisioneiros” (Captivi) a frase Ego hunc ad carnuficem dabo (“Darei este ao executor”). [voltar]

(28) Uma pequena licença poética de [Sidwell, cap. III, p. 30]: “[Vulgate] is unlike anything else in Latin“. [voltar]

(29) Hebraica e grega para Jerônimo, do vernáculo para os escritores mais tardios. [voltar]

(30) Sugestão de leitura [Plater & White]. [voltar]

(31) Codex Cavenensis (C); um manuscrito da Biblioteca Vallicelliana, Roma, B.25II, s. VIII-IX in Latio vel Romae (I); e o Codex Legionensis (Λ). [voltar]

(32)É possível encontrar construções do tipo usque in + ablativo, como em At 7:45 “expulit Deus a facie patrum nostrorum usque in diebus David“. Nesses casos, in se refere a uma época passada específica, o que seria, de certa forma, o equivalente temporal do repouso. O advérbio usque assume sozinho o sentido de “até” (cf. II Cr 12:4). Compare com At 7:41 “et vitulum feccerunt in illis diebus” e Eclo 47:1 “post hoc surrexit Nathan propheta in diebus David“. [voltar]

(33) A preposição composta de + usque + ad deu origem ao jusqu'à francês. [voltar]

(34) Cf. [Plater & White, cap. VI, p. 102]. [voltar]

(35) A preposição super é comumente traduzida por “sobre”, “acima de”. Em ideias de movimento ela sempre rege o acusativo. Em repouso ou circunscrição, pode reger tanto o acusativo como o ablativo. Por exemplo
Lc 23:38

Erat autem et superscriptio inscripta super illum [ac.](…) hic est rex Iudaeorum.
ην δε και επιγραφη επ αυτω [dat.] ο βασιλευς των ιουδαιων ουτος

[voltar]

(36) Literalmente, “uma dos sábados” ou “primeira dos sábados”, traduzido do grego “μια [ημερα] των σαββατων”. O numeral é feminino porque “dia” em grego é uma palavra feminina (ημερα) e, dependendo do contexto, também o é em latim. A expressão como um todo aparece no Antigo Testamento encabeçando o salmo 23 da LXX e é, possivelmente, um hebraísmo vindo do fato de hebraico nomear apenas o dia de sábado (“Shabbat”). Todos os demais são referenciados por numerais. A palavra “sábado”, além do dia da semana, também é algumas vezes utilizada como equivalente para “semana”, na forma singular ou plural (cf. Mt 28:1 e Lc 18:12). Os tradutores da LXX preferiram, provavelmente, essa construção porque traduzir para os nomes semanais gregos obrigaria o leitor dizer nomes de divindades pagãs. [voltar]

(37)No prólogo ao livro de Tobias, Jerônimo informa que traduzira o livro do “caldeu” (i.e., do aramaico) em apenas um dia, com o auxílio de uma pessoa fluente tanto nesse idioma quanto em hebraico, que são bastante próximos, como ele reconheceu. Jerônimo, em seguida, traduziu do hebraico para o latim. Não temos mais o documento sobre o qual a dupla trabalhou, mas supõe-se que fosse bem distinto dos remanescentes, pois resultado final possui um texto consideravelmente maior. A tradição da Septuaginta contempla duas versões, ambas constam na edição de Rahlfs, mas nenhuma contém os versículos finais do texto latino no capítulo IX. As edições Sixto-Clementina e a Neovulgata preferiram um dos texto gregos ao legado por Jerônimo. Feita essa preleção, deixamos claro que não há interesse aqui em fazer análise crítica do texto latino de Tobias, mas na redação que Jerônimo deu a uma frase muito similar ao versículo Ex 20:5, tendo ela sido original ou não. [voltar]

(38) Para o primeiro caso, vale lembrar que usque ad/in é a tradução imediata de εως, encontrada em Ex 20:5 da LXX. Quanto ao segundo, cf. Sabatier, tomo I, p. 205, Ex 34:7, Versio antiqua. Como será visto mais adiante no texto, Jerônimo retoma a redação que está em sua Vulgata nas correspondências pessoais. Uma hipótese é que conviria ao comentário, por ser destinado a um público mais amplo, receber uma redação com a qual a maioria dos leitores (e ouvintes) já estivesse acostumada. [voltar]

(39) Propatheia é um conceito importado da escola estoica de filosofia por teólogos gregos como Orígenes e Dídimo, o Cego, que se refere às impressões preliminares ou pré-emoções que, caso persistam, levam ao desenvolvimento de uma paixão (pathos). [voltar]

(40) A argumentação de Jerônimo não seria válida caso se utilizasse o texto da Vulgata Sixto-Clementina. Tanto a Vetus quanto os mais antigos exemplares da Vulgata e os manuscritos gregos trazem a leitura: “ Será salva, porém, através da geração de filhos, se permanecerem [perseveraverint (Vetus)/permanserint] com modéstia na fé (…)“, dando a entender que os filhos salvam a mãe pela virtude deles, já a Sixto-Clementina traz o último verbo no singular “(…) se permanecer [permanserit] (…)“, deixando a salvação exclusivamente nas mãos da mulher. Alguns códices medievais da Vulgata, contudo, sustentam essa leitura e podem ter sido utilizados na revisão da Contrarreforma. As Bíblias protestantes em língua portuguesa, em especial as calcadas na tradução de João Ferreira de Almeida, costumam trazer essa leitura, também. Por outro lado, já no século XX, a Nova Vulgata retornou à leitura original, mais criticamente embasada. [voltar]

(41) Traduzo a seguir um quadro de informações constante no capítulo XVI de [Ehrman (2008)]

* * *

Box 16.1 Profecia ou Apocalipticismo?

A maioria dos historiadores do antigo judaísmo concorda que as opiniões apocalípticas encontradas em livros como Daniel e nas obras não canônicas de I Enoque e 4 Esra estão vinculadas bem de perto com as opiniões proféticas encontradas nos profetas clássicos, incluindo Isaías, Jeremias, Amós e Miqueias. Tanto profetas e apocalipticistas acreditavam que Deus estava por intervir em nome do povo israelita para aliviar seu sofrimento. Mas discordavam quanto ao porquê de o sofrimento ocorrer, sobre quem era o culpado e como ela seria removida.

Opinião Profética Opinião Apocalíptica
Por que o povo de Deus sofre? Pecou contra Deus e ele o está punindo por isso. Existem forças cósmicas malignas que se opõem a Deus e estão fazendo estragos entre seu povo justo.
Quem causa o sofrimento? O próprio Deus. Ele está punindo seu povo a fim de que ele se arrependa. As forças malignas. Elas são propensas a machucar o povo de Deus.
De quem é a culpa? Do povo de Deus, porque vive em pecado. As forças cósmicas no mundo, que se opõem aos justos de Deus.
O que deve acontecer para haver um fim no sofrimento? O povo de Deus deve ser arrepender e voltar para Ele. Deus deve intervir em nome de seu povo justo e destruir as forças malignas.
O que o povo de Deus deve fazer? Abandonar seu pecado e voltar para Deus. Permanecer fiel e esperar pela intervenção de Deus.

* * *

[voltar]

(42) Chama-se de “História Deuteronomista” a narração bíblica contida entre os livros de Deuteronômio e 1-2 Reis (excetuando Rute), que é interpretada principalmente à luz da teologia contida em seu primeiro livro: uma alternância entre períodos de salvação e redenção conforme o comportamento do povo hebreu, culminando com o desastre da destruição do Templo. Acredita-se que houve duas redações para essa história: original a terminar com queda do “idólatra” Reino de Israel no final do sétimo século a.C., que teria servido de propaganda ao supostamente virtuoso Reino de Judá, e uma posterior revisão feita após a conquista desse último pelos babilônicos. Para mais informações, vide [Lamadrid, cap. I].
[voltar]

(43) Cf. [Ehrman (2006), cap. IV, p. 121]. Bart D. Ehrman se tornou querido por certos apologistas espíritas após a publicação de O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (Misquoting Jesus no original). Esse autor é bom, de fato, só gostaria de saber como os espíritas se sairiam se eu o usasse contra eles. Afinal, ele está mais alinhado comigo do que com eles. De qualquer forma, esse princípio é amplamente aceito como ferramenta de crítica textual.

Contudo, algumas ressalvas devo fazer:

  • Quando se fala em “leitura mais difícil“, entenda-se “mais difícil para o escriba.“. É possível que a fórmula original não possuísse “e sobre os filhos dos filhos” e o escriba não estranhasse por já entender `al como “por, até” ou ele até estranhasse e por isso expandiu o texto. No primeiro primeiro caso, o texto ganhou cadência e no segundo uma suposta correção;
  • Há uma tendência dos textos a crescer, o que seria um ponto favorável ao texto mais curto de Ex 20:5. Porém;
  • Essa tendência se reverte, caso haja uma repetição de palavras que possibilite o olho escriba (ou a memória do narrador) “escorregar” – um fenômeno conhecido na crítica textual como parablepse – e ter pulado algumas palavras. A versão longa de Ex 34:7 preenche esse requisito.
  • Assim, devo admitir que outras possibilidades de reconstrução são possíveis. Preferi esta, também, por haver outro fator em prol do texto longo: a discrepância entre Dt 5:9 (TM) e Ex 20:5 (TM), com a presença de uma conjunção “e” no primeiro caso, sugerindo duas parablepses distintas para um mesmo original.

    Para uma exposição sucinta dos critérios de crítica textual, ver [Metzger, Introdução]. Quem desejar um estudo acadêmico que também aventa a hipótese de omissão de palavras em Ex 20:5, ver [Freedman & Overton, pp. 104-5].

[voltar]

(44) Lembrando que Jerônimo também se valeu de recensões do texto grego feitas por judeus constantes na Hexapla, como as de Áquila, Teódicio e Símaco. [voltar]

(45) O estranho é que, na página anterior, o autor traduz corretamente shilesh como “neto” ou “terceira geração”. Parece que se enxerga o que se quer ver.[voltar]

[topo]

Para Saber Mais


– Abegg Jr., Martin; Flint, Peter & Ulrich Eugene; The Dead Sea Scrolls Bible, Harper San Francisco, 1ª ed.

– Barrera, Julio Trebolle; A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Vozes, 2ª ed.

– Berezin, Rifka; Dicionário Hebraico-Português, Edusp, 1ª ed., 2003,

– Chouraqui, André;A Bíblia: Nomes (Êxodo), Imago, 1996.

– Coutinho, Ismael de Lima; Gramática Histórica, Ao Livro Técnico.

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– Ehrman, Bart D.; The New Testament, Oxford University Press, 4a. ed., 2008.

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– Hiponense, Agostinho; Questões sobre o Heptateuco, Patrologia Latina, vol. XXXIV, cols.547 – 824.

– Ilari, Rodolfo; Linguística Românica, Ática, 2000.

– Jerônimo, Eusébio Sofrônio; Comentário sobre Ezequiel, Patrologia Latina, vol. XXV, cols 15 – 0490.

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– Jobes, Karen H. & Silva, Moisés; An Invitation to the Septuagint, Paternoster / Baker Academic, 1ª ed.

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– McNamara, Martin, The Aramaica Bible – The Targums, vol. II, The Liturgical Press, 1994.

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– Metzger, Bruce M.;A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2ª ed, 4ª rev., Deutsche Bibelgesellschaft/United Bible Societes, 2005.

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– Ross, Allen P.; Gramática do Hebraico Bíblico, Vida.

– Sabatier, D. Petri; Bibliorum Sacrorum Latinae Versiones Antiquae, Remis, 1743.

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– Störig Hans Joachim, A Aventura das Línguas, Melhoramentos, 3ª ed., 1990.

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– Weber, Robert; Biblia Sacra Vulgata, revisão de Roger Gryson, 5ª ed., Sociedade Bíblica do Brasil, 2007. Sob licença da Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, Alemanha.

Para Acessar

Aramaic Targum Search é mecanismo de busca de versículos de targumim, com análise léxica embutida, criado pelo Comprehensive Aramaic Lexicon Project do Hebrew Union College-Jewish Institute of Religion. Acessado em 04/02/2014.

Hebrew Lexicon contém a entrada completa para (`al) do léxico hebraico-caldeu de Genesius. Acessado em 10/07/2015.

Common Man’s Prospective, The traz uma tradução da Septuaginta para o inglês. Acessado em 04/02/2014.

Latin Vulgate traz a Vulgata de Jerônimo. Acessado em 04/02/2014.

Nova Vulgata é o atual texto litúrgico do Vaticano. Acessado em 04/02/204.

Pentateuchal Targumim traz traduções inglesas de alguns targumim do Pentateuco. Acessado em 04/02/2014.

[topo]

Uma História de Dois Equívocos

Leia as frase abaixo:

– “Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.”

– “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos2.”

São duas declarações extraídas do cap. IX, tópico “Os Cristãos”, de “
Analisando as Traduções Bíblicas, 4ª ed. A primeira está categoricamente errada. O origenismo já era rejeitado de pelo menos duzentos anos antes do fatídico quinto concílio. A segunda citação foi deixada propositadamente com o índice (2) que constava no original. Este número nada mais é do que a referência bibliográfica dada pelo autor Severino Celestino da Silva:

2. Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

Bem, o que realmente continha o texto da coletânea de Alberigo?

Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o Monge, ed. ch. De Boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos.

pág. 134

Curiosamente, o texto de [Alberigo] é contraditório. Dois parágrafos antes do texto acima:

Não sabemos, porém, com exatidão o que aconteceu durante o concílio. As atas do concílio se perderam. Temos somente uma tradução latina, e em duas versões diferentes. Parece que os originais se perderam em 1453, por ocasião da tomada de Constantinopla, pois em 1448, durante o concílio de Florença, ainda se fez uso deles (Gill S., Actorum Graecorum Conciliorum Concilii Florentini, Roma, 1953). De qualquer modo, sabemos que se realizaram oito sessões no secretum de Santa Sofia.

De fato, versões das atas do V concílio chegaram até nós e uma delas, inclusive, pode ser encontrada em inglês na bibliografia ao fim deste tópico. Porém, há algo interessante no primeiro extrato: “(…) o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos”, em contraste com o termo citado por Severino Celestino da Silva: “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos”. Parece pouca coisa, não fica claro aos mais desavisados a abismal diferença entre uma alegação categórica e uma dedução lógica representada pelo verbo “indicar” usado no texto original e cujas premissas estão envoltas por certa névoa. Isto é mais sério do que alguns apologistas espíritas gostariam de admitir. A coletânea de Alberigo não foi tão categórica assim no trato contra o origenismo, apesar de dar bons indícios. Se isso ainda não te convenceu da gravidade do mal uso de fontes bibliográficas em Analisando…, citemos alguns parágrafos anteriores de Alberigo:

Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as idéias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

págs. 130-131

Eis aí uma explicação mais correta para a primeira condenação do origenismo em 543 e os motivos pelos quais ele (talvez) voltou a ser comentado em 553. E o nome da imperatriz Teodora não é citado em nenhum instante. Muito menos as ditas 500 prostitutas! Severino Celestino da Silva teve acesso a uma melhor informação sobre as preliminares do V concílio. Mas preferiu a teoria conspiratória …. por quê? E mais:

Nesse contexto já complicado, um novo movimento – o origenismo – veio tornar a situação realmente insolúvel. É verdade que Orígenes fora condenado há muito tempo, mas sua irradiação intelectual nunca cessou, e seu misticismo exercia constante atração sobre os monges instruídos do deserto. Na realidade, o origenismo jamais desapareceu das zonas sírio-palestinenses. Era tolerado na medida em que não criava problemas. Ora, na efervescência provocada pelas decisões do concílio de Calcedônia, tudo estava envolto pela suspeita de heresia. Pelo final do séc. V, o origenismo reapareceu sob a forma de contestação contra a ortodoxia, contra o monofisismo e contra o nestorianismo. É claro que essa quarta via não tinha muitas possibilidades em contexto tão carregado como aquele.

Pág. 125

A própria referência de Severino Celestino da Silva o desmente quando diz que até o século VI a Igreja (i.e. a ortodoxia, não os dissidentes) acreditava na reencarnação. O origenismo já fora rejeitado de muito antes – como explanado acima – e recruscedeu como um fenômeno sírio-palestino, que estava mais ligado ao monacato local. O texto de Severino Celestino da Silva contém mais dois erros crassos. O primeiro é que o concílio não se deu 299 dias após a morte do teólogo, mas 299 anos! Poderia até ser um descuido de revisão, se esta não fosse a quarta edição do livro. O mesmo dado (299 “dias”) se encontra em um livro de sua bibliografia (O Livro Tibetano dos Mortos, W.Y. Evans-Wentz, Ed. Pensamento, p. 177). Talvez houve uma predileção por esta fonte errônea em vez de outra correta, porém menos chamativa. A definição de apocatástase também está errada. Ela era uma doutrina concebida por Orígenes que enfatizava o caráter sacrificial da morte de Cristo, resgate tão alto pago aos poderes do mal que levaria não só todas as criaturas à salvação. Ou seja, Orígenes era um universalista, mas fica patente que sua doutrina era essencialmente salvacionista. Uma consequência lógica deste princípio seria a salvação até do diabo, ideia que Orígenes parece ter rejeitado depois. José Reis Chaves, outra fonte de Analisando…, acerta mais nessa definição.

Teorias Conspiratórias a (des)Serviço da História

Há muitos boatos e meias-verdades espalhados quanto ao II Concílio de Constantinopla, que teria riscado a reencarnação da Bíblia. Um bem conhecido é:

Até agora, quase todos os historiadores da Igreja acreditaram que a doutrina da reencarnação foi declarada herética durante o Concilio de Constantinopla em 553. No entanto, a condenação da doutrina se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concilio. Segundo Procópio, a ambiciosa esposa de Justiniano, que, na realidade, era quem manejava o poder, era filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio. Ela iniciou sua rápida ascensão ao poder como cortesã. Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas “colegas” e, para não sofrer as consequências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconizava a lei do Carma, empenhou-se em abolir toda a magnífica doutrina da reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por “ordem divina”!

Em 543 d.C. o imperador Justiniano, sem levar em conta o ponto de vista papal, declarou guerra frontal aos ensinamentos de Orígenes, condenando-os através de um sínodo especial. Em suas obras De Principiis e Contra Celsum, Orígenes (185-235 d.C), o grande Padre da Igreja, tinha reconhecido, abertamente, a existência da alma antes do nascimento e sua dependência de ações passadas. Ele pensava que certas passagens do Novo Testamento poderiam ser explicadas somente à luz da reencarnação.

– Kersten, Holger; Jesus Viveu na Índia, Ed. Best Seller, 7ª ed., Cp. VI – “Considerações Finais”.

O engraçado é terem encontrado recentemente uma tumba atribuída a Jesus e Maria Madalena em Israel. Será que enterraram a cabeça em Jerusalém e as canelas na Índia? Bem, isto foge ao assunto, vamos a José Reis Chaves:

A Igreja teve alguns concílios tumultuados. Mas parece que o V Concílio de Constantinopla II (553) bateu o recorde em matéria de desordem e mesmo de desrespeito aos bispos e ao próprio Papa Virgílio, papa da época.

O imperador Justiniano tem seus méritos, inclusive o de ter construído a famosa Igreja de Santa Sofia, obra-prima da arte bizantina, hoje uma mesquita muçulmana.

Era um teólogo que queria saber mais que teologia do que o papa. Sua mulher, a imperatriz Teodora, foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra, que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarnacionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição, sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes.

Como a doutrina da reencarnação pressupõe a da preexistência do espírito, Justiniano e Teodora partiram, primeiro, para desestruturar a da preexistência, com o que estariam, automaticamente, desestruturando a da reencarnação.

Chaves, J.R.; A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VIII, 7ªed., Ed. Ebm

Agora, um texto extraído de Analisando as traduções bíblicas, de Severino Celestino da Silva, Editora Idéia, 4ª ed., cap XI:

Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina Cristã.
Devido a esta sua crença, 299 (duzentos e noventa e nove) dias, após sua morte, contra ele a igreja decretou a excomunhão. O segundo Concílio de Constantinopla, no ano de 553, decretou: “Todo aquele que defender a doutrina mística da preexistência da alma e a consequente assombrosa opinião de que ela retorna, seja anátema”[grifo do autor].

Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.

A história do II Concílio de Constantinopla teve marcante acontecimento com a figura do imperador Justiniano, um teólogo, que queria saber mais teologia do que o papa. Justiniano tentou reinserir os monofisistas no meio dos ortodoxos da Igreja, pois temia que os monofisistas, comandados por Severo de Antioquia, se afastassem e voltassem-se para a Pérsia. Organizou no palácio a primeira conferência entre ortodoxos e monofisistas, para a qual convidou seis ortodoxos e seis monofisistas tentando definir diferenças entre as doutrinas.

O papa, Vigílio, apesar de se encontrar em Constantinopla, recusou-se a participar do concílio convocado pelo imperador e tampouco se fez representar. O Concílio pressionado pelo imperador excomungou o papa. O papa Vigílio acabou reconhecendo o concílio em troca da suspensão de sua excomunhão.

A esposa de Justiniano chamada Teodora, teve muita influência nos assuntos do marido e até no que se referiu à teologia. Foi ela quem acomodou os monges egípcios e os clérigos siríacos nos vários palácios da capital e sobretudo no palácio Hormisdas, que se tornara o centro da propaganda monofisista.

Por ter sido uma prostituta, suas ex-colegas se sentiam orgulhosas e decantavam tal honra. Mas esse fato a revoltava e se constituía numa desonra, fazendo com que mandasse matar todas as quinhentas prostitutas de Constantinopla.

Os cristãos da época passaram a chamá-la de assassina e a dizer que ela deveria ser assassinada, quinhentas vezes, em vidas futuras. Este seria seu carma por ter mandado matar suas quinhentas ex-colegas prostitutas.
A partir daí, Teodora passou a odiar a doutrina da Reencarnação e como mandava e desmandava em meio-mundo através de seu marido, resolveu partir para a perseguição sem tréguas contra essa doutrina e contra maior defensor que era Orígenes.

O concílio tratou de duas questões básicas: o Monofisismo e o Origenismo. O Origenismo defendia a apocatástase do universo (revolução de um astro) e a Reencarnação. O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos.

Para começo de conversa, eu adoraria saber quais foram estes historiadores comentados por Kersten, em quais de suas obras está essa tese de reencarnação na igreja primitiva e em quais capítulos. O único historiador citado, Procópio, dá uma versão “ligeiramente” diferente dos fatos:

(…)Havia uma multidão de mulheres em Bizâncio que realizava em bordéis uma atividade de libertinagem, não por escolha própria, mas sob a força da luxúria. Visto que isto era mantido por cafetões, e as mulheres de tais casas eram obrigadas a toda e qualquer hora a praticar obscenidade e copular de imediato com desconhecidos à medida que apareciam, elas se submetiam aos seus abraços. Já que houvera um numeroso corpo de alcoviteiros na cidade desde os tempos antigos, conduzindo seu tráfico em licenciosidade nos bordéis e vendendo a juventude alheia no mercado público, reduzindo pessoas virtuosas à escravidão. Mas o imperador Justiniano e a Imperatriz Teodora, que sempre compartilhavam uma comum piedade em tudo que faziam, arquitetaram o seguinte plano. Limparam o estado de poluição dos bordéis, banindo o próprio nome dos cafetões e libertaram de uma licenciosidade adequada apenas a escravas as mulheres que estavam lutando com imensa pobreza, provendo-as com sustendo independente e liberando virtude. Isso ele conseguiram da seguinte forma. Próximo à margem do estreito que está à direita dos que navegam em direção ao mar chamado Euxino, eles transformaram o que fora anteriormente um palácio em um imponente mosteiro projetado para servir de refúgio a mulheres que se arrependessem de suas vidas anteriores, de forma que lá, através da ocupação que suas mentes teriam com Deus e com a religião, poderiam ser capazes de limpar os pecados de suas vidas no prostíbulo. Portanto, denominaram o domicílio de tais mulheres de ‘Arrependimento’, em adequação com seu propósito. E estes soberanos dotaram este convento com ampla soma em dinheiro e adicionaram várias construções, a maioria notável por sua beleza e suntuosidade, para servirem de consolo às mulheres, a fim de que nunca se sintam compelidas a se afastar da prática da virtude de uma forma ou de outra.(..)

Procópio, Das Construções (De Aedificiis), livro I, cap. IX.

E, agora, uma variação do mesmo tema:

Teodora também devotou considerável atenção ao castigo de mulheres flagradas em pecado carnal. Ela apanhou quinhentas prostitutas no Fórum, que lá auferiam uma vida miserável se vendendo por três óboles, e as enviou para a margem oposta [do Bósforo], onde foram trancadas no mosteiro chamado Arrependimento, para forçá-las a reformar seu estilo de vida. Algumas delas, porém, atiravam-se à noite dos parapeitos e assim se livravam de uma salvação indesejada.

Procópio, A História Secreta, (Anekdota), cap XVII, “Como Teodora salvou quinhentas prostitutas de uma vida de pecado.”

Os dois relatos de Procópio dão um tratamento radicalmente distinto ao casal imperial. Das Construções é uma propaganda estatal, cheia de elogios às realizações urbanísticas e arquitetônicas do governo de Justiniano. A História Secreta, por sua vez, macula a imagem deles o tempo todo, chegando ao ponto de considerar Justiniano, literalmente, um demônio encarnado (cap. XII). Comparando esses dois extratos, consta-se que Procópio muda o tom de um ato piedoso para uma deportação das prostitutas para fora da capital. Ao que parece, o mosteiro ex-palácio fora convertido numa “gaiola de ouro” para uma espécie de noviciado forçado e perpétuo. Algumas (note bem, algumas) preferiam a liberdade com insegurança àquela vida de beatas e morriam tentando escapar (ou se suicidavam, simplesmente). Nada diz que o mosteiro “Arrependimento” era uma usina de morte como o Auschwitz nazista, onde elas iriam esmagadoramente parar morrer. A não ser morrer de velhas.

Um importante historiador do iluminismo inglês – que, ao contrário dos historiógrafos espiritualistas acima, procurava sempre ler os originais – fez interessante fusão dessas duas passagens de Procópio, fornecendo um panorama intermediário do que pode ter ocorrido:

O nome de Teodora figura com igual distinção em todas as iniciativas piedosas e caritativas de Justiniano; as instituições mais benevolentes do seu reinado podem ser atribuídas à simpatia da imperatriz por suas irmãs menos afortunadas que haviam sido seduzidas ou compelidas a dedicar-se ao ramo da prostituição. Um palácio no lado asiático do Bósforo foi convertido num espaçoso e imponente mosteiro, e um generoso sustento, garantido a quinhentas mulheres recolhidas das ruas e bordéis de Constantinopla. Nesse retiro sacro e seguro, elas se devotavam a um perpétuo confinamento, e o desespero de algumas, que se precipitaram ao mar, foi calado pela gratidão das penitentes libertadas do pecado e da miséria por sua generosa benfeitora.

Edward Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, Cap. XV, Tradução de José Paulo Paes, Companhia das Letras.

Diga-se de passagem que Teodora não era flor que se cheirasse, sendo que tanto Procópio e Gibbon concordam que ela cometeu inúmeras crueldades. Procópio, porém, exagera demais nos ataques à imperatriz, a ponto descrever o voraz apetite sexual da imperatriz, quando solteira, de maneira pouco verossímil (cap. IX). De qualquer forma, nada indica que ela tenha cometido o crime que seria o pivô da condenação de Orígenes. Justiniano não era tão fantoche assim como foi alegado. Ele e Teodora tinham visões políticas diferentes em alguns pontos, sendo que ela advogava uma tolerância religiosa maior do que de seu fanático e intransigente marido, afinal era monofisista.

Outro cronista bizantino, João Malala, deu um curioso relato de uma tentativa de Teodora de erradicar a prostituição:

Naquela época, a piedosa Teodora acrescentou o seguinte a suas outras boas ações. Certos conhecidos cafetões percorriam cada distrito em busca que homens pobres que tivessem filhas e dando-lhes, dizia-se, sua palavra e alguns nomismata, levavam as garotas como se fosse um contrato; transformavam-nas em prostitutas públicas, vestindo-as como sua desventurada sorte exigia e recebendo delas, e miserável preço de seus corpos, forçavam-nas a ingressar na prostituição. Ela ordenou que todos os cafetões deveriam ser presos com urgência. Quando foram apresentados junto com as garotas, ordenou que cada um deles declarasse sob juramento o quanto haviam pagado aos pais das garotas. Disseram que deram a cada um cinco nomismata. Quando todos deram a informação sob juramento, a piedosa imperatriz devolveu o dinheiro e libertou as garotas do jugo de sua desgraçada escravidão, ordenando que a partir daí não houvesse cafetões. Presenteou as garotas com um conjunto de roupas e dispensou-as com um nomismata para cada.

João Malala; Crônicas, Livro XVIII, seção 24

Malala data seu relato em 532-3 d.C. e a partir de 534 começou a ser publicado um conjunto de leis conhecido como Novellae, cujo artigo primeiro do capítulo XIV traz uma condenação de morte aos que perpetrassem o tráfico humano e a cafetinagem, mas é compassivo com as prostitutas. É provável que a indenização relatada por Malala tenha fracassado, pois o dinheiro concedido à cada garota era pequeno demais para recomeçar a vida e dotação mais farta dos agenciadores deve ter servido para realimentar o tráfico humano (1). Uma hipótese aventada é que a construção de “Arrependimento” tenha sido parte dessa nova política social de acabar com a prostituição à força.

Notas:

(1) Cf. Evans, J. A; The Empress Theodora – Partner of Justinian, University of Texas Press, 2002, cap. III, p. 30-32.

Agostinho de Hipona

Do livro “O Espiritismo e as Igreja Reformadas” (de Jayme Andrade, editora EME, quarta edição) capítulo VII, parte 3:

Santo Agostinho escreveu: “Não teria eu vivido em outro corpo, ou em outra parte qualquer, antes de entrar no ventre de minha mãe?” (‘Confissões’, I, cap. VI).

Já em traduções diretas do latim, encontra-se: “E antes deste tempo, que era eu, minha doçura, meu Deus? Existi, porventura, em qualquer parte, ou era acaso alguém. Não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. (…)[não há nenhuma alusão à entrada no ventre]”? (Confissões, da coleção “Os Pensadores”, vol. 6, Abril Cultural, 1973). Provavelmente houve algum conflito com versões inglesas onde se lê: “Was I, indeed, anywhere, or anybody? ” [fuine alicubi aut aliquis?, em latim], daí uma má tradução errada do termo anybody. Estas duas versões têm sutis e cruciais diferenças: a primeira é claramente reencarnacionista, ao passo que a segunda não o é necessariamente, podendo ser um questionamento apenas quanto a preexistência. O trecho imediatamente antes esclarece a dúvida: “dizei se a minha infância sucedeu a outra idade já morta ou se tal idade foi a que levei no seio da minha mãe?”. Esta dúvida sempre acompanhou Agostinho, que nunca se definiu como a favor ou contra a existência antes do nascimento, preferindo assumir sua ignorância quanto à origem da alma:

Pois você [Vincêncio Vítor] não apenas caluniou com sua censura os que são afligidos com a mesma ignorância sob a qual eu próprio estou penando, quero dizer, no que diz respeito à origem da alma humana (apesar de eu não ser absolutamente ignorante mesmo quanto a esse ponto, pois sei que Deus soprou a face do primeiro homem, e tal “homem então se tornou alma vivente” (Gn 2:7) – uma verdade, porém, que eu nunca soube por conta própria, exceto o que lera na Escritura); mas você perguntou tão sucintamente. “Qual diferença há entre um homem e uma fera selvagem, se ele não sabe como discutir e determinar sua própria qualidade e natureza?” E você parece nutrir sua opinião tão distintamente, como tendo pensado que um homem deva ser capaz de discutir e determinar completamente os fatos de própria qualidade e natureza tão distintamente, de modo que nada acerca de si mesmo deva escapar de sua observação. Agora, se isto é realmente a verdade da questão, devo, então, compará-lo “ao gado” se não puder me dizer o número preciso de fios de cabelo da sua cabeça. Mas se, apesar do quanto possamos avançar nesta vida, você nos permitir sermos ignorantes de diversos fatos pertencentes a nossa natureza, então eu quero sabe o quão longe sua concessão se estende, que, porventura, pode incluir o mesmo ponto que estamos tratando agora, que de qualquer maneira não sabemos a origem de nossa alma, apesar de sabermos – algo que pertence à fé – além de qualquer dúvida, que a alma é um presente de Deus ao homem, e ainda que ela não é da mesma natureza do próprio Deus.

Da Alma e Sua Origem, Livro IV, cap. III

Ao contrário de Orígenes, ele não considerava a união da alma com o corpo como uma punição. Os problemas viriam com o pecado, que imporia um domínio da matéria sobre alma. A discordância entre Orígenes fica patente numa carta de Agostinho a Optatus:

Mas como afirmas que as almas não se propagam, deves explicar a partir de quê Deus as faz. É a partir de algum material pré-existente ou do nada? Pois é impossível que sustentes a opinião de Orígenes, Prisciliano e outros hereges que, por causa dos atos cometido numa vida anterior, as almas são confinadas em corpos mortais e terrenos. Esta opinião é, na verdade, categoricamente contradita pelo o que o apóstolo de Jacó e Esaú que, antes de terem nascido, não cometeram nem o bem, nem o mal (Rom 9:11).

Nota: Esta carta aparece como sendo a 144ª da coletânea de Jerônimo, que teria, na verdade, uma versão simplificada dela.

J.R. Chaves em seu Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VI até traz uma versão correta do texto de “Confissões”, que sugere pré-existência, mas não ainda reencarnação. O texto que Chaves realmente traz de novo é o de “Contra Acadêmicos”:

A mensagem de Platão, a mais pura e luminosa de toda a Filosofia, pelo menos tornou difusa a escuridão do erro e agora brilha em Plotino, discípulo de Platão, tão semelhante ao mestre, que se pensaria que viveram juntos, ou melhor – uma vez que separados por tão longo período de tempo-, que Platão nasceu de novo em Plotino. (8)

Na nota de rodapé (8) : Vidas passadas – Vidas Futuras, pág. 35, Dr. Bruce Goldberg, Editorial Nórdica Ltda, Rio de Janeiro, 1993.

Ora, mais uma citação de citação. Mas, felizmente, tal texto realmente existe e está no capítulo XVIII de Contra Acadêmicos. O texto da tradução inglesa de John J. O’Meara (Paulist Press) traz : “that one should rather think that Plato had come to life again in Plotinus”. Isto é: “voltara à vida novamente em Plotino”. Isto pode até significar “nascer de novo”, mas pode ter, também, sentido puramente metafórico. Digo isso porque, quando questões doutrinárias estavam realmente em jogo, Agostinho tinha uma posição bem nítida:

Devo agora, vejo eu, entrar na arena de afável controvérsia com aqueles cristãos compassivos que renegam em acreditar que qualquer, ou todos os que o infalivelmente justo Juiz possa declarar merecedor do castigo do inferno, sofrerá eternamente e quem supõe que eles serão enviados a um período fixo de castigo, maior ou menor de acordo com a quantidade de pecado de cada homem. Quanto a esta questão, Orígenes foi ainda mais indulgente; pois acreditava que mesmo o próprio diabo e seus anjos, depois de sofrerem das mais severas e prolongadas dores a que seus pecados estão reservados, devam ser libertados de seus tormentos e associados com os santos anjos. Mas a Igreja, não sem razão, condenou-o por este e outros erros, especialmente por sua teoria de alternâncias incessantes entre felicidade e miséria e uma interminável transição de um estado a outro em períodos de eras fixas; pois nesta teoria ele perde mesmo o crédito por ser misericordioso, ao distribuir aos santos misérias verdadeiras misérias para a expiação de seus pecados e falsa felicidade, que não lhes traz nenhuma alegria verdadeira e segura, isto é, uma destemida certeza da eterna redenção. Muito diferente, porém, é o erro de que falamos, que é ditado pela compaixão destes cristãos que supõem que os sofrimentos dos que forem condenados no julgamento será temporário, ao passo que a redenção de todos que serão cedo ou tarde libertos será eterna.

Cidade de Deus, XXI, 17

De Chaves:

Santo Agostinho morreu em 430, ou seja, 123 anos antes de V Concílio Ecumênico de Constantinopla II (553), o qual, supostamente, teria condenado a reencarnação.

Agostinho de Hipona, mais de 123 antes de 553, já condenava o origenismo com seu sistema entre-eras e as ideias ao estilo de Gregório de Nissa, afinal fora contemporâneo à primeira crise origenista. Podes até achar cruéis as palavras de Agostinho – também acho – mas era o que ele realmente pensava. Apesar de crente em certo tipo de pré-existência, adota a vida única em estado mortal. Uma combinação sui generis. Ironicamente, Chaves deveria saber disso, pois um autor usado por ele – William Walker Atkinson, em A Reencarnação e a Lei do Carma, p. 47; uma página após falar de Justino – já falava da oposição de Agostinho ao origenismo.

Latino, pelo fim do terceiro século opinava que a ideia de imortalidade da alma implicava sua pré-existência. S. Agostinho, em suas “Confissões”, usa as seguintes notáveis palavras: ‘Não vivi eu em outro corpo [erro aqui, como visto acima] antes de entrar no ventre de minha mãe?’ Esta expressão é tanto mais notável, porque Agostinho se opunha a Orígenes em muitos pontos da doutrina, e porque foram escritas no ano de 415.

A quem quiser saber mais sobre as ida e vindas de Agostinho quanto à origem das almas, do sofrimento humano e a gestação de sua doutrina do “pecado original”, sugiro a leitura de The Origenist Controversy, de Elzabeth A. Clark, cap. V, p. 227-244.

Gregório de Nissa

São Gregório de Nissa era reencarnacionista e fazia parte dos teólogos cabalistas que afirmavam que o maior argumento a favor da reencarnação era a justiça de Deus.(14)

Um texto dele: ”Há necessidade de natureza para a alma imortal ser curada e purificada, e se ela não o for na sua vida terrestre, a cura se dará através de vidas futuras e subsequentes.”(15)

José Reis Chaves, em A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, 7ª ed., ebm, cap VI;

notas de rodapé:

(14) A Reencarnação e a Lei do Carma, pág 47, William Walker Atkinson, São Paulo, SP.

(15) Reencarnação, pág. 153, John Van Auken, Editora Record, Rio de Janeiro, RJ, 1989; e O Mistério do Eterno Retorno, pág. 123, Jean Prieur, Editora Best Seller, São Paulo, SP.

Bem, estamos diante de mais uma “citação de citação” patrística sem referência exata da fonte. Diz-se o nome do autor, mas nada sobre a obra de onde ela saiu. Chaves até acerta ao afirmar (um pouco antes) que Gregório de Nissa não cria na “eternidade do inferno” e, junto a Orígenes, foi um dos poucos universalistas da patrística:

Nós certamente cremos, tanto por causa da opinião prevalecente e ainda mais do ensinamento da Escritura, que existe um outro mundo de seres além deste, despojado de corpos tais como são os nossos, que se opõem a tudo que é bom e são capazes de machucar as vidas dos homens, tendo por um ato de vontade se desviado da nobre visão e por sua revolta contra a bondade, personificaram o princípio oposto em si mesmos; e esse mundo é o que, dizem alguns, o Apóstolo acresce ao número de “coisas sob a terra”, significando em tal passagem que quando o mal for algum dia aniquilado nos longos ciclos das eras, nada será deixado fora do mundo de bondade, mas que mesmo aqueles maus espíritos se erguerão em harmonia com a confissão da Soberania de Cristo.

Sobre a alma e a Ressurreição.

Porém, ao contrário de Orígenes, ele limitava a existência humana a duas claras etapas:

A primeira das ordens de Deus atesta a verdade disto; a tal que, nominalmente, deu ao homem irrestrito gozo de todas as bênçãos do Paraíso, proibindo apenas o que fosse uma mistura do bom e mal e, assim, composto de opostos, mas fazendo da morte a pena por transgredir esse detalhe. Porém o homem, agindo livremente por um impulso voluntário, abandonou o quinhão que não estava misturado com o mal e atirou-se no que era uma mistura de opostos. Embora a Divina Providência não tenha deixado aquela nossa imprudência sem um corretivo. De fato a morte, como a pena prescrita para a quebra da lei, necessariamente caiu sobre seus transgressores; mas Deus dividiu a vida do homem em duas partes, nominalmente, esta vida presente e a “fora do corpo” do além-mundo, e colocou sobre a primeira um limite do mais breve tempo possível, enquanto prolongou a outra para a eternidade; e em Seu amor pelo homem deu-lhe sua escolha, de ter uma ou outra dessas coisas, bom ou mal, digo, qual das partes ele preferia: ou esta curta e transitória ou aquela de eras infindáveis, cujo limite é a eternidade. (…)

Quando, então, a humanidade tiver alcançado a que pertence, este movimento contínuo de produção cessará totalmente; terá tocado a meta destinada e uma nova ordem de coisas bem distinta da presente precessão de nascimentos e morte que conduz a vida da humanidade. Se não há nascimento, segue necessariamente que não haverá nada para morrer. Composição deve preceder dissolução ( e por composição entendo como a vinda a este mundo pelo nascer); necessariamente, portanto, se a síntese não precede, a dissolução não se segue. Portanto, se temos de ir além das probabilidades, a vida após esta se mostra de antemão como algo que é fixo e imperecível, com nenhum nascimento ou decomposição para mudá-la.

Sobre a alma e a Ressurreição.

Gregório de Nissa não desconhecia transmigração de almas, mas não aprovava nem sua versão entre humanos, nem a de metempsicose e muito menos a pré-existência das almas:

Desde então a doutrina envolvida em ambas destas teorias está aberta à crítica – a doutrina similar àquelas que associam às almas uma fabulosa pré-existência em um estado especial e as que pensam terem elas sido criadas em uma época posterior aos corpos, talvez seja necessário não deixar nenhuma das declarações contidas nas doutrinas sem exame: embora embrenhar-se e lutar completamente com as doutrinas de cada lado e revelar todos os absurdos envolvidos nas teorias necessitaria de grande empenho tanto de argumentos como de tempo; iremos, contudo, rapidamente pesquisar o melhor que pudermos de cada um dos pontos de vista mencionados e então prosseguir nosso assunto.

Aqueles que advogam a referida doutrina e asseveram que o estado de almas é anterior a esta vida na carne, não me parecem serem limpos das doutrinas fabulosas dos pagãos que sustentam aspecto da sucessiva incorporação: pois alguém tiver de procurar cuidadosamente, descobrirá que a doutrina deles é necessariamente resumida a isto. Contam-nos que em um de seus doutos disse que, sendo uma e a mesma pessoa, nasceu como homem, e depois assumiu a forma de uma mulher, e voou com os pássaros, e brotou como um arbusto, e obteve a vida de um ser aquático. E ele que disse essas coisas de si mesmo, até onde podemos julgar, não foi muito longe da verdade: por tais doutrinas como esta, dizendo que alma passou através de diversas mudanças, são realmente adequadas para o matraquear das rãs e gralhas, a estupidez dos peixes ou insensibilidade das árvores.

Sobre a Criação do Homem – XXVIII. “Aos que dizem que a alma existiu antes dos corpos ou que os corpos foram formados antes das almas; e daí também uma refutação para as fábulas acerca da transmigração da alma.

Ele era, na verdade, traducianista, i.e., acreditava que alma e corpo eram gerados juntos:

Mas assim como dissemos que no trigo, ou em qualquer outro grão, toda a forma da planta está potencialmente inclusa – as folhas, o talo, as juntas, o grão, a farpa – e não dissemos em nossa avaliação de sua natureza que nenhuma dessas coisas tem pré-existência ou vem à existência antes das outras, mas que o poder conformado na semente é manifestado em certa ordem natural, não por quaisquer meios que outra natureza seja infusa dentro dele – da mesma maneira que supomos que o germe humano possui a potencialidade de sua natureza, semeada com ele ao primeiro ímpeto de sua existência e que se desdobra e manifesta por uma sequência natural como procede ao seu perfeito estado, não empregando nada externo a si mesma como um degrau para a perfeição, mas avançando por conta própria no devido curso para o estado perfeito; de modo que não é verdade dizer tanto que a alma existia antes do corpo ou que o corpo existia antes da alma, mas há um começo para ambos, que, de acordo com a visão celeste, jazem sua fundação no arbítrio original de Deus; segundo a outra, veio à existência por ocasião de sua geração.

Sobre a construção do homem, cap. XXIX – “Uma instituição da doutrina de que a causa da existência da alma e do corpo é uma e a mesma.

Jerônimo de Estridão

Quanto ao elaborador da Vulgata, Léon Denis diz em Cristianismo e Espiritismo que ele “afirma que a transmissão das almas fazia parte dos ensinos revelados a um certo número de iniciados”, porém não faz nenhuma alusão à fonte. O livro O Espiritismo e as Igreja Reformadas (de Jayme Andrade, editora EME, quarta edição) dedica o capítulo VII, parte 3 ao estudo da reencarnação na história e lá preenche tal lacuna:

São Jerônimo afirmou (Hyeron, Epistola ad Demeter) que a “doutrina das transmigrações era ensinada secretamente a um pequeno número, desde os tempos antigos, como um verdade tradicional que não devia ser divulgada”. Esse mesmo Pai se mostra crente na preexistência, em sua 94ª Carta a Ávitus.

José Reis Chaves, em A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, 7ª ed., ebm, cap VI; faz coro com Andrade :

São Jerônimo (…) também aceitava a reencarnação. Aliás talvez seja por isso que a Igreja pouco fale de São Jerônimo.

Ele afirma que a transmigração das almas foi ensinada durante um longo tempo na Igreja. (9)

Muito do que escreveu São Jerônimo escreveu está em forma de cartas. Em suas Cartas a Avitus, imperador romano, Jerônimo fala sobre a reencarnação (transmigração das almas) (10).

E eis o que escreveu São Jerônimo: “A transmigração das almas é ensinada secretamente a poucos, desde os mais remotos tempos, como uma verdade não divulgável”.(11)

As notas de rodapé são:

(9) Evangelho Esotérico de São João, pág. 68, Paulo le Cour, São Paulo, 1993.

(10) Vidas Passadas – Vidas Futuras, pág. 237, Dr. Bruce Goldberg, Editorial Nórdica Ltda. Rio de Janeiro, 1993.

(11) O Mistério do Eterno Retorno,pág. 123, Jean Prieur, Editora Best Seller, São Paulo, SP.

Sinceramente, estranhei quando foi atribuído a Jerônimo um perfil pró reencarnação. Ao contrário dos citados acima, Jerônimo já é um Pai pós-nicêno e, portanto, viveu numa época em que a fluidez teológica já diminuíra bastante. Bem, começando com a carta a Demetrius, pode-se constatar, procurando diretamente na tal carta, que NÃO existe tal referência elogiosa à doutrina da transmigração na carta a Demetrius. Pelo contrário, o que se encontra é:

Este ensinamento perverso e ímpio foi anteriormente amadurecido no Egito e no Oriente e agora que embosca secretamente como uma víbora em sua toca muitas pessoas daquela região, corrompendo a pureza da fé e gradualmente tocando conta de forma silenciosa como um mal hereditário, até atacar um grande número.

Isto é, Jerônimo está fazendo alusão à disseminação do origenismo no meio sírio-egípcio, um dos ingredientes da primeira crise origenista. Continuando: a Carta a Ávitus é de número 124 (desconheço outra sequência que a enquadre na 94ª posição), bom… são detalhes. O que começa a chamar atenção seria é o título de imperador desse tal de Ávitus. Jerônimo nasceu em 340, no ano da morte de Constantino II (imperador do ocidente) e subida ao trono de Constante (340-350). O oriente era governado pelo irmão de ambos Constâncio II. Em 350, Magnêncio toma o trono do ocidente, mas no ano seguinte Constâncio II o derrota e governa o império todo até 360 (ano de batismo de Jerônimo) quando é derrubado por Juliano (360-363). Seguem Valentiano I (364-375), tendo como co-imperador Valente (364-378) e Teodósio – o último a governar um império indiviso (378-395). Seu filho Honório ficou com o ocidente (395-423) e Arcádio com o oriente (395-408). Este foi substituído por Teodósio II (408-450). Jerônimo morreu em 420, não conhecendo nenhum imperador de nome Avitus. O cidadão a que ele faz menção deve ter sido o mesmo que o apresentou a uma mulher de nome Salvina na carta 79ª, datada em 400 d.C. A carta a Avitus é datada em 409-10. De fato, existiu um imperador romano de nome Avitus (Marcus Maecilius Flavius Eparchius Avitus) que reinou em 455-6 no ocidente, mais de trinta anos após a morte de Jerônimo. Ele nasceu em 395, logo era muito novo quando Jerônimo conheceu Salvina por intermédio do outro Avitus e um rapazola quando a carta em questão foi escrita. Voltando ao que interessa, J.R. Chaves acerta quando diz que que Jerônimo escreveu sobre a “transmigração das almas” para Avitus. Só esqueceu de dizer que ele desceu o sarrafo em tal doutrina a carta inteira! Isso parece um típico caso de informação que se corrompeu ao passar de mão em mão. Na verdade, Jerônimo faz uma sinopse ácida para Avitus de sua tradução latina de De Principiis, a mais polêmica obra de Orígenes, em contraposição à versão feita por Rufino, e acusa (erroneamente) Orígenes de ser crente na transmigração e não se mostra nem um pouco a favor da preexistência como diz Andrade. Maiores comentários em dessa briga no artigo sobre o Concílio de Constantinopla.

Orígenes

A Igreja Católica aceitava a reencarnação até o ano 553 da nossa era (…) Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina cristã.

– Severino Celestino da Silva, Analisando as traduções bíblicas, cap. IX

Com estas palavras, Severino Celestino da Silva abre o tópico Os Cristãos daquele capítulo. Note que é a “Igreja Católica” a que ele se refere, não se está fazendo nenhuma menção grupos gnósticos, seitas sincréticas, heresias, etc. Bem, se a “ortodoxia” que daria origem ao catolicismo moderno já defendera a reencarnação até aquela data, nada mais natural que encontrássemos referências simpáticas a ela nos escritos de seus primeiros teólogos. Mas será?

O teólogo cristão do século III Orígenes, mencionado acima, não desconhecia tal doutrina, nem a metempsicose professadas por seitas orientais, mas não as aprovava. Dou aqui algumas pinceladas em obras de Orígenes que rejeitam a transmigração das almas em moldes pitagóricos e até modernos. Orígenes terá um tratamento à parte posteriormente, pois poucos Padres da Igreja têm sido tão mal citados como ele.

[As escrituras dizem] Eles então lhe perguntaram: “Quem és, então? Elias?” e ele disse: “Não sou” (Jo, 1:21). Não se pode deixar de lembrar a conexão disso com o que Jesus disse a respeito de Elias: “Se quiserdes dar crédito, ele é o Elias que deve vir“. (Mt 11:14). Como então João replica aos que lhe perguntaram: “És tu Elias?“Não sou“. (… ) Pode-se dizer que João não sabia que era Elias. Esta será a explicação para aqueles que encontraram nessa passagem sustentação para sua doutrina de transmigração, como se a alma fosse revestida em novo corpo e também não lembrasse das vidas anteriores (…) Entretanto, um membro da Igreja, que rejeita a doutrina da transmigração como falsa e não admite que a alma de João fosse a de Elias, pode se referir às palavras do anjo supracitadas e assinalar que não é a alma de Elias que é dita ao nascimento de João, mas o espírito e poder de Elias.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro VI, cap VII

Quanto aos espíritos dos profetas, esses são dados por Deus e são considerados como, de certo modo, propriedades deles, como “Os espíritos dos profetas estão submissos aos profetas” (I Cor 14:32) e o “Espírito de Elias repousou sobre Eliseu” (2 Reis 2:15). Assim, diz-se, não há nada de absurdo supor que João, “no espírito e poder de Elias“, converteu o coração dos pais para os filhos (Lc 1:17) e foi por causa desse espírito que foi chamado de “o Elias que deve vir“.

Idem.

Se a doutrina [da transmigração] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.

Idem.

Alguém pode dizer, porém, que Herodes e parte da população mantinham o falso dogma da transmigração de almas para os corpos, com a consequência de que eles pensassem que o antigo João apareceu outra vez devido a um novo nascimento e tinha vindo da morte para a vida como Jesus. Mas o tempo entre o nascimento de João e o de Jesus, que não foi mais que seis meses, não permite se dar crédito a esta falsa opinião. E talvez fosse melhor que outra ideia estivesse na mente de Herodes – os poderes que operaram com João tivessem passado para Jesus – fazendo que ele fosse visto pelo povo como João Batista. E pode-se usar a seguinte linha de raciocínio: apenas por causa do espírito e poder de Elias, não pela alma dele, que se diz de João: “Este é o Elias que deve vir“.

Comentário sobre Mateus, livro X, cap XX

Nesse ponto [a dentificação de João Batista com Elias em Mt 17:10-13], não me parece que se falava da alma de Elias, para que eu não caia na doutrina da transmigração, que é estranha à Igreja de Deus, não sendo ensinada pelos apóstolos, nem encontrada nas escrituras.

Comentário sobre Mateus Livro XIII, cap I

Mas se necessariamente os gregos, que introduziram a doutrina da transmigração, ajustando as coisas em harmonia com ela, não reconhecem que o mundo está se corrompendo; é adequado, que quando eles encararem diretamente a escritura, que declara de modo franco que o mundo perecerá, devem ou desacreditá-las ou inventar uma série de argumentos a respeito da interpretação das coisas referentes à consumação; que mesmo que desejem, não serão capazes de fazer.

Idem

Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de nossas Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo moral, explicada não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais elevada. Teria visto, ao contrário, uma descida extraordinária devido a um excesso de amor aos homens, visando reconduzir, conforme a expressão misteriosa da divina Escritura, “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15:24), que desceram das montanhas, e para as quais o pastor de certas parábolas “desceu”, deixando nas montanhas as que não se tinham perdido (Mt 18:12-13, Lc 15:4s).

Contra Celsus, IV, 17

Entretanto, não admitimos, de modo algum, a metensomatose da alma nem sua queda em animais irracionais, e se por vezes nos abstemos de carne de animais, evidentemente não é pelo mesmo motivo de Pitágoras que nos privaremos dela. Pois sabemos honrar somente a alma racional e confiar com honra seu órgãos a uma sepultura honrada conforme os costumes estabelecidos.

Contra Celsus, VIII, 30

O assunto encerra uma profunda doutrina mística à qual se aplicam as palavras: “É bom manter o oculto o segredo do rei” (Tb 12, 7). Não devemos expor aos ouvidos profanos a doutrina sobre a entrada das almas no corpo que não se dá por metensomatose; não devemos dar aos cães as coisas sagradas, nem lançar as pérolas aos porcos (cf. Mt 7,6).

Contra Celsus, V, 29 – Note que ele rejeita a mudança da alma de um corpo para outro (metensomatose), mas sugere admitir sua pré-existência (entrada no corpo).

O desconhecimento das citadas obras de Orígenes tem levado a uma série de equívocos facilmente evitáveis por parte de apologistas espiritualistas. Léon Denis expõe nas notas num. 4 de seu “Cristianismo e Espiritismo” apenas a parte que lhe interessava de Orígenes, ele poderia ter dado o exemplo e não ter escondido fatos: Cita um resumo do abade Bérault-Bereastel sobre Orígenes que, de cara, erra ao afirmar que “as almas foram criadas simples, livres, ingênuas e inocentes por sua própria ignorância”, de estilo semelhante ao proposto pelos espíritas, em vez de racionais. Também não inclui as explanações do livro III de De Principiis, que privilegiam a pré-existência das almas em vez de reencarnação, nem faz menção a obras posteriores do teólogo alexandrino (Comentários sobre Mateus, João, Contra Celsus) que rejeitam a interpretação que ele quer. Já no século XX, certo autor fez uma curiosa citação:

Ele [Orígenes] chegou a tecer judiciosas ponderações sobre certos trechos da Escritura (…) que não teriam sentido sem admitir a preexistência da alma: “Se o nosso destino atual não era determinado pelas obras de nossas existências passadas, o que dizer de um Deus justo permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes de haver cometido atos que merecessem a servidão e o ódio? Só as nossas vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó e Esaú antes do seu nascimento, a eleição de Jeremias quando ainda estava no seio da mãe … e tantos outros fatos que atirarão o descrédito sobre a Justiça Divina, se não forem justificados ou praticados pelos atos bons ou maus cometidos em existências passadas” (Contra Celso, I, III, cit. por Mário C. Mello, em Como os Teólogos Refutam, pg. 153).

Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igreja Reformadas, editora EME, 4ª ed., cap. VII, parte 3

Tal citação não existe em Contra Celso, livro I, cap. III. Uma menção à superioridade de Jacó em relação a Esaú ainda no útero é encontrada em De Pricipiis, livro II, cap. IX. O texto real de Contra Celsus é:

Depois disto, Celsus prosseguindo a falar dos cristãos ensinando e praticando suas doutrinas favoritas em segredo e dizendo que eles fazem isto para, com alguma intenção, ver se escapam de uma pena de morte que é iminente; ele compara seus perigos com aqueles encontrados por homens tais como Sócrates pelo amor à filosofia; e aqui ele poderia ter citado Pitágoras também e outros filósofos. Mas nossa resposta com relação a isto é que, no caso de Sócrates, os atenienses se arrependeram imediatamente depois e nenhum sentimento de amargor permaneceu em suas mentes com relação a ele, bem como ocorreu na história de Pitágoras. Os seguidores do último, de fato, estabeleceram por um tempo considerável suas escolas numa parte da Itália chamada Magna Grécia; mas no caso dos cristãos, o Senado Romano, e o príncipe do momento, e a soldadesca, e o povo, e os parentes dos que se tornaram conversos à fé fazem guerra contra sua doutrina e teriam impedido seu (progresso), sobrepujando-a com uma aliança de natureza tão poderosa que, não fosse pela ajuda de Deus, não teria escapado do perigo e se erguido acima dele, a fim de (finalmente) derrotar o mundo em sua conspiração contra ela.

Orígenes, Contra Celsus, I,III

É um capítulo curto e não há nenhuma referência a Esaú e Jacó nele. A questão destes filhos de Rebeca é recorrente nas discussões entre ortodoxos e reencarnacionistas, porém a chave dela pode estar além de qualquer teologia. Numa visão laica, a diferença de tratamento entre estes dois gêmeos pode ser, na verdade, parte do mito nacional da criação de Israel e seus vizinhos, contidos na Gênese:

Deus diz a Rebeca, então grávida: “Duas nações estão em teu útero, e dos dois povos, nascidos de ti, serão divididos; um será mais forte que o outro, o mais velho deverá servir ao mais moço.” (Gen 25:23). Como os eventos se desenrolaram, aprendemos que Esaú é o mais velho e Jacó, o mais moço. Portanto a descrição dos dois irmãos fundadores de Edom e Israel, serve como legitimação para uma relação política entre duas nações nos tempos posteriores da monarquia. Jacó-Israel é sensível e educado, enquanto Esaú-Edom é bem primitivo, um caçador e um homem ao ar livre. Mas Edom não existe como entidade política até um período relativamente tardio.(…) A evidência arqueológica também é clara: a primeira onda de assentamento em larga escala em Edom, acompanhada pelo estabelecimento de grandes povoações e fortalezas, pode ter começado no final do século VIII a.C., mas alcançou o ápice apenas no século VII e no início do século VI a.C. Antes, portanto, a área era pouco povoada. (…) Assim, aqui também as histórias de Jacó e Esaú – filho delicado e poderoso caçador – são habilmente construídas como lendas arcaizantes, para refletir as rivalidades dos tempos monárquicos posteriores.

Finkelstein, Israel & Silberman, Neil Aser; A Bíblia não tinha razão, Ed. A Girafa, cap. I

Este “erro de citação” é até uma falha “menor”, digamos assim. Porém demonstra claramente que nem Andrade, nem sua fonte (Mello) se deram ao trabalho de ler Orígenes diretamente.

Agora, só para constar:

Orígenes é conhecido como um dos maiores sábios cristãos de todos os tempos. Foi praticamente o criador de nossa teologia cristã. E, como apenas 17 anos, foi reitor da Universidade de Alexandria, em substituição a São Clemente de Alexandria. E diga-se, de passagem, que Alexandria foi o maior centro intelectual do mundo, na época de Orígenes, século 3º.

José Reis Chaves, A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VI, 7ª ed., p. 203.

Se formos conferir o que nos diz o principal biógrafo de Orígenes, leremos algo um tanto diferente:

Orígenes ia completar dezoito anos quando foi posto à frete da escola catequética, momento em que, sob a perseguição do governador de Alexandria Aquila, realizava grandes progressos. Foi então também que seu nome se fez famoso entre todos a quem movia a fé, pela acolhida e solicitude que mostrava para com todos os santos mártires conhecidos e desconhecidos. [grifo meu]

Eusébio de Cesareia, A História Eclesiástica, VI, cap. 3, item 3

Não é demérito nenhum um garoto ser posto no comando de um cargo importante na comunidade cristã de então – a escola catequética. Indica que era reconhecido como um mestre pelos seus. Mas convenhamos que é uma posição bem mais modesta do que ser o reitor da pagã Universidade de Alexandria, que cobria uma gama bem maior de interesses e gente.