Urano: O Caso do Planeta Deitado

urano

Representação artística de Urano.

Índice

Agradecimentos a Carlos Bella pelas figuras e explicações técnicas sobre Urano e as luas de Marte.

* * *

O Relato de uma Descoberta Espiritual

Eis ainda outro fato que parece triunfar de todas as objeções: ele foi comunicado ao Light (1884, página 499) pelo General-major A .W. Drayson e publicado sob este título: The Solution of Scientific Problems by Spirits (Solução de Problemas Científicos pelos Espíritos). Eis aqui a tradução:

“Tendo recebido do Sr. George Stock uma carta em que me perguntava se eu podia citar, ao menos um exemplo, em que um Espírito, ou um que o pretendesse ser, tivesse resolvido, durante uma sessão, um desses problemas científicos que preocupam os sábios do século passado, tenho a honra de comunicar-lhe o fato seguinte, do qual fui testemunha ocular.

“Em 1781, William Herschel descobriu o planeta Urano e seus satélites. Observou que esses satélites, ao contrário de todos os outros satélites do sistema solar, percorrem suas órbitas de oriente para ocidente. J. F. Herschel diz em seus “Esboços Astronômicos”: “As órbitas desses satélites apresentam particularidades completamente inesperadas e excepcionais, contrária às leis gerais que regem os corpos do sistema solar. Os planos de suas órbitas são quase perpendiculares à eclíptica, fazendo um ângulo de 70º 58, e eles os percorrem com movimento retrógrado, isto é, sua revolução em roda do centro do planeta efetua-se de este para oeste, ao invés de seguir o sentindo inverso.”

“Quando Laplace emitiu a teoria de que o Sol e todos os planetas se formaram à custa de uma matéria nebulosa, esses satélites eram um enigma para ele.

“O Almirante Smyth menciona em seu “Ciclo Celeste” que o movimento desses satélites, com surpresa de todos os astrônomos, é retrógrado, ao contrário do movimento de todos os outros corpos observados até então.

“Na “Gallery of Nature”, diz-se do mesmo modo que os satélites de Urano descrevem sua órbita de este a oeste, anomalia estranha que faz exceção no sistema solar.

“Todas as obras sobre a Astronomia, publicadas anteriores de 1860, contêm o mesmo raciocínio a respeito dos satélites de Urano.

“Por meu lado, não encontrei explicação alguma a essa particularidade; para mim, era um mistério do mesmo modo para os escritores que citei.

“Em 1858, eu tinha como hóspede, em minha casa, uma senhora que era médium, e organizamos sessões quotidianas. Certa noite ela me disse que via a meu lado uma pessoa que pretendia ser astrônomo durante sua vida terrestre. Perguntei a essa personagem se estava mais adiantada presentemente do que durante sua vida terrestre. ‘Muito mais’ – respondeu ela.

‘”Tive a lembrança de apresentar a esse pretendido Espírito uma pergunta a fim de experimentar seus conhecimentos: – Podes dizer-me, perguntei-lhe, porque os satélites de Urano fazem sua revolução de este para oeste e não de oeste para este?

“Recebi imediatamente a resposta seguinte: – Os satélites de Urano não percorrem sua órbita de oriente para ocidente; eles giram em roda de seu planeta, de ocidente para oriente, no mesmo sentido em que a Lua gira em roda da Terra. O erro provém de que o polo sul de Urano estava voltado para a Terra no momento da descoberta desse planeta; do mesmo modo que o Sol, visto do hemisfério austral, parece fazer o seu percurso quotidiano da direita para a esquerda e não da esquerda para a direita, os satélites de Urano moviam-se da esquerda para a direita, o que não quer dizer que eles percorrem sua órbita de oriente para ocidente.

“Em resposta a outra pergunta que apresentei, meu interlocutor acrescentou: – Enquanto o polo sul de Urano estava voltado para a Terra, para um observador terrestre parecia que os satélites se deslocavam da esquerda para a direita, e conclui-se daí, por erro, que eles se dirigiam do oriente para o Ocidente; esse estado de coisas durou cerca de 42 anos. Quando o polo norte de Urano está voltado para a Terra, seus satélites percorrem o trajeto da direita para a esquerda, e sempre do ocidente para o oriente.

“Em seguida perguntei como tinha sucedido não se ter reconhecido o erro 42 anos depois da descoberta do planeta Urano por W. Herschel?

“Responderam-me: – É porque, em regra, os homens não fazem mais do que repetir o que disseram as autoridades que os precederam; deslumbrados pelos resultados obtidos por seus predecessores, não se dão ao trabalho de refletir.

“Guiado por essa informação comecei a resolver o problema geometricamente, e apercebi-me de que a explicação respectiva era exatíssima, e a solução muito simples. Por conseguinte, escrevi sobre essa questão um tratado que foi publicado nas Memórias do Ensino Real de Artilharia, em 1859.

“Em 1862, dei essa mesma explicação do pretendido enigma em uma pequena obra sobre a Astronomia: “Common Sights in the Heavens” (olhar pelos Céus); mas a influência da “opinião autorizada” é tão funesta, que só em nossos dias os escritores que se ocupam de Astronomia começam a reconhecer que o mistério dos satélites de urano deve ser atribuído à posição do eixo desse planeta.

“Na primavera do ano de 1859, tive ainda por uma vez oportunidade de, por intervenção da mesma médium, conversar com a personalidade que se apresentava como o mesmo espírito; perguntei-lhe se podia esclarecer-me acerca de um outro fato astronômico ainda desconhecido.

“Naquele tempo eu possuía um telescópio com uma objetiva de 4 polegadas e de uma distância focal de 5 pés. Fui informado de que o planeta Marte tinha dois satélites que ninguém tinha visto ainda e que eu poderia descobrir em condições favoráveis. Aproveitei-me da primeira ocasião que se apresentou para fazer observações nesse sentido, mas não descobri coisa alguma. Participei essa comunicação a três ou quatro amigos com os quais eu fazia experiências espiríticas, e ficou decidido que guardaríamos segredo acerca do que se tinha passado, pois que não possuíamos prova alguma em apoio às alegações de meu interlocutor, e corríamos o risco de expor-nos à risada geral.

“Durante minha estada nas Índias, falei nessas revelações ao Sr. Sinnett, não posso dizer com exatidão em que época. Dezoito anos mais tarde, em 1877, esses satélites foram descobertos por um astrônomo, em Washington.”

Alexandre Aksakof, Animismo e Espiritismo, vol. II, FEB, p. 88-91, 3ªed., 1978.

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Olhares sobre Urano


Já em 1781 Herschel facilmente teria observado que Titânia e Oberon ( com um período orbital aproximado de 8 e 13 dias respectivamente ) apresentavam uma estranha órbita que parecia circular os polos do planeta. Isso porque na época de Herschel Urano apresentava justamente seu polo Sul para Terra e Herschel tinha visão total das órbitas dos satélites, como pode ser visto na imagem abaixo:

Urano e seus satélites visto da Terra em 1781

  • Posição de Urano em sua órbita:
    O eixo de Urano é a linha reta que o atravessa e que quase aponta para o Sol,o sentido de rotação de urano está representado por uma linha perpendicular a linha do eixo, o pequeno circulo azul próximo ao Sol é a órbita da Terra:

    Posição relativa entre o Sol, a Terra e Urano em 1781

    O que Herschel viu foi isto ( a órbita dos dois satélites esta marcada bem como o sentido de sua órbita ao redor de Urano, Oberon é o mais externo):

O que deve ter incomodado Herschel logo de cara não foi o fato de os satélites parecerem orbitar de forma horária, mas de que eles aparentemente orbitavam os polos de Urano ! Nenhum satélite do sistema solar possui uma órbita polar, todas são aproximadamente equatoriais, órbitas polares (apesar de possíveis) não são estáveis. (1)

Como a órbita de Urano praticamente coincide com a eclíptica (o que elimina a possibilidade de que tivéssemos observando um planeta pelos seus polos muito acima de nosso plano orbital) era perfeitamente possível a Herschel concluir que estivéssemos observando um planeta cujo eixo era tão inclinado que ele nos mostrava seus polos.

E isto apenas seria reforçado pela observação continua do planeta em movimento de sua órbita. O livro Animismo e Espiritismo foi lançado em 1890, Aksakof se tornou espírita por volta de 1850. Nesta época os astrônomos já havia observado Urano tempo suficiente para verificar as seguintes situações:

  • Urano no Periélio ( 1798):

    Urano e seus satélites visto da Terra em 1798

    Posição relativa entre o Sol, a Terra e Urano em 1798

  • Urano mostra seu pólo norte a Terra, os satélites parecem se movimentar no sentido anti-horário (1820):

    Urano e seus satélites visto da Terra em 1820

    Posição relativa entre o Sol, a Terra e Urano em 1820

  • Urano no Afélio (1841):

    Urano e seus satélites visto da Terra em 1841

    Posição relativa entre o Sol, a Terra e Urano em 1841

Portanto essa estranha mudança no sentido de rotação dos satélites tanto não era novidade alguma para astronomia da época quanto esclareceu que o eixo de Urano era muito inclinado fazendo com que víssemos os polos dele.

Veja que Aksakof, quando em seu livro fala da previsão como verdadeira, ele só poderia considerá-la como tal se ninguém tivesse a informação em mãos de que realmente essa mudança do ponto de vista dos movimentos orbitais dos satélites ocorria. O problema é que, àquela altura, a Ciência já tinha condições de saber que o eixo de Urano era 90% inclinado e que essa mudança de sentido de rotação ocorria. Considerando que pouco tempo após o ano do periélio de Urano (1798) já se podia notar que os satélites do planeta estavam mostrando um movimento de “ocidente para oriente” como pode ser visto abaixo (em 1800).

Urano e seus satélites visto da Terra em 1800

Como esses fatos já deveriam ser de conhecimento da comunidade astronômica quase 50 anos antes de Aksakof tornar-se espírita e ter obtido seu primeiro contato com a narrativa de George Stock (o que deve ter acontecido entre 1850 e 1890), poder-se-ia cogitar ser um daqueles casos em que “viram, mas não enxergaram”. Será que realmente TODAS as obras de astronomia antes de 1860 ignoravam este fenômeno e só por volta da virada daquele século o pessoal começou a se tocar? Há uma importante exceção: a obra do escritor inglês Robert Chambers.

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Com a Palavra, Mr. Chambers

Foto de Chambers

Robert Chambers (1802 – 1871) não foi um cientista, mas um editor de periódicos populares que pode ser visto como o antecessor dos modernos “divulgadores da ciência”. Em 1844 lançou anonimamente o best-seller Vestiges of The Natural History of Creation. Ele fez um apanhado de toda a evolução cósmica, da colisão dos planetas, passando pela geração eletroquímica da vida, até as séries de fósseis – os “vestígios” de que fala o título – e o surgimento do homem. Apesar de ainda não contar com o conceito de “seleção natural” darwiniano, expôs de forma didática as ideias de evolucionismo já existentes e despertou a ira do clero inglês por sua versão exclusivamente naturalista da criação. Apesar de vários erros explicáveis pela falta de conhecimento formal do autor, as edições que se sucederam os corrigiram. Os críticos agradeciam a Deus pelo fato de o autor ter começado em “ignorância e presunção”. Nas palavras do professor episcopal de Edimburgo – James D. Forbes-, se tivesse começado pela versão revista “ele teria sido bem mais perigoso” (3). De certa forma, Chambers preparou o terreno para Darwin, que também o lera.

Uma das críticas levantadas foi a adoção da hipótese elaborada independentemente pelo filósofo Immanuel Kant (em 1755) e pelo matemático Pierre-Simon Laplace (em 1796) para a origem do sistema solar a partir de uma nebulosa em rotação. Um ponto positivo para essa hipótese era o de explicar por que todos os planetas orbitam na mesmo sentido em torno do Sol, entretanto o mesmo era esperado para seus satélites e os de Urano constituíam uma discrepância. Para responder a essa e outras críticas, Chambers lançou em 1845 Explanations: A Sequel to the “Vestiges”, em que já trazia ideias bem avançadas na questão de Urano.

A exceção apresentada pelos satélites de Urano ao senão uniforme movimento orbital dos corpos planetários é mostrada como uma surpreendente dificuldade(*). É, na verdade, apenas uma objeção superficial, vendo que tantos outros movimentos seguem uma regra e podemos algum dia arrumar uma causa para esta exceção, perfeitamente em harmonia com todos os fatos associados. Havia dificuldade similar na geologia, com os estratos mais elevados onde se esperava que estivessem mais abaixo; mais isto foi esclarecido a tempo. Os geólogos descobriram que ocorrera um dobramento entre as camadas, de forma a inverter suas posições originais e apropriadas. Não poderíamos assentar a esperança de que uma similar exceção em astronomia possa achar solução similar?

Dei a sugestão de uma possível anomalia (2)de todo o sistema planetário: tem-se zombado disto, mas é apenas a suposição de um grau maior de obliquidade na inclinação do eixo do planeta ao plano de sua órbita do que a que encontramos em vários outros. As mesmas causas que fizeram a inclinação do eixo de Vênus para sua órbita de 75 graus podem ter virado a de Urano um pouco além, e assim invertido seus polos. A inclinação admitida do eixo de Urano para a sua órbita é de 79 graus, sendo a maior entre qualquer dos planetas. Isto implica apenas na necessidade de um aumento de 22 graus, ou cerca de um quarto de quadrante, a fim de dar razão ao suposto arranjo reverso. Nem são as causas de tais fenômenos difíceis de procurar. Na rotação da presumida massa nebular, haveria grandes ondulações, como eu arriscaria em dizer que seriam encontradas em qualquer corpo que possamos colocar em movimento rotatório. Tal eu estimo como as causas da saída de Urano de seu eixo vertical. Uma curvatura na porção mais externa, juntando com o encrespamento redobrado de uma onda de alta frequência causaria a anomalia de Urano, e a consequente (aparente) retrogressão de seus satélites.

Explanations…, pp. 21-3

(*)Edinburgh Review, No. 165, p. 24 (Nota de Chambers, cf. nota 4)

Note que o valor de inclinação de 79 graus está mais próximo do atualmente conhecido (82º ou 98º, dependendo do que se considera polo norte e sul) do que o apresentado na citação de Herschel (70º58′), sendo que este se referia aos satélites, não ao eixo exatamente. Ainda pode-se alegar por um conhecimento “acima da capacidade do médium”, porém isto é uma pretensão bem mais modesta que “Solução de Problemas Científicos pelos Espíritos“. Pergunto: seria o caso dos satélites de Marte outro exemplo de “pós-fecia”? (5)
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Os Filhos de Marte


Sobre os satélites de Marte, vale a pena mencionar o caso dos anagramas de Galileu. Por curioso que seja, a ideia de Marte Marte possuir duas luas já existia desde 1610, oriunda de um equívoco do astrônomo Johannes Kepler. Sim, o mesmo daquelas três famosas leis.

Kepler, em uma memória que ele publicou em 1610, interpretou erroneamente um anagrama criado por seu contemporâneo Galileu para anunciar secretamente uma nova descoberta aos seus correspondentes (o que também incluía os padres jesuítas do Collegio Romano).

O que Galileu havia descoberto em suas observações iniciais eram duas pequenas estruturas aparentemente conectadas de cada lado do planeta Saturno, como visto em seu desenho abaixo:

Luas de Marte em desenho de Galileu

Hoje sabemos que se tratava dos anéis de Saturno mas os primeiros equipamentos de Galileu não possuíam resolução suficiente para defini-lo como tal.

O anagrama de Galileu era:

s m a i s m r m i l m e p o e t a l e u m i b u n e n u g t t a u i r a s

a solução correta do anagrama era:

Altissimum planetam tergeminum observavi.

Que significa: “Eu observei que o planeta mais distante [Saturno] tem uma forma tripla.” Porém, Kepler interpretou de forma errada o anagrama e entendeu que:

Salue umbistineum geminatum Martia proles

seria: “Saúde, companhia gêmea, crianças de Marte.” Então assumiu que Galileu havia descoberto duas luas marcianas. Para reforçar esta ideia Kepler ainda apelou para um argumento “matemático”, ele supôs que se a Terra possuía uma lua e Júpiter quatro ( as luas descobertas por Galileu ) logo o planeta intermediário deveria possuir duas luas !

Embora o verdadeiro significado do anagrama ficou conhecido depois de meio século, o erro de tradução de Kepler perdurou. É possível que os escritor irlandês que Jonatham Swift tenha tido contato com o erro de interpretação de Kepler. Na terceira parte de famosa obra Viagens de Gulliver, quando descreve a técnica e a ciência da ilha flutuante de Laputa (6), capítulo três, é narrado:

Fizeram um catálogo com dez mil estrelas fixas, enquanto o maior dos nossos catálogos não contém mais do que um terço disso. Eles também descobriram duas estrelas menores, ou satélites, que giram ao redor de Marte, e verificaram que a mais interna fica distante do planeta exatos três diâmetros, enquanto a mais externa está a cinco diâmetros; a primeira faz seu movimento de revolução no espaço em dez horas e a segunda, em vinte e uma horas e meia. De forma que o quadrado de seus tempos periódicos está muito próximo da mesma proporção com o cubo de suas distâncias do centro de Marte; o que evidentemente mostra que são governadas pela mesma lei da gravidade que influencia os outros corpos celestes.

Curiosamente, Swift dá valores numéricos dentro da ordem de grandeza dos que seriam descobertos depois. É possível, mesmo por exercício criativo razoavelmente embasados, escritores antecederem descobertas. No século XX, por exemplo, o escritor Arthur Clark escreveu sobre uma lua que orbitava o (então considerado) planeta Plutão em seu livro “Rendezvous com Rama” (publicado em 1973), cap. 38. O satélite Caronte, por sua vez, só foi descoberto em 1978.

Ao contrário do que se popularizou, “As viagens de Gulliver” não é um livro infantil, nem Guilliver viajou apenas para Liliput (a terra das pessoas em miniatura). É um livro para adultos com críticas pesadas e sarcásticas à sociedade da época e a humanidade como um todo. Com o tempo, foi mutilado de suas passagens pesadas até virar conto da Carochinha. Na terceira parte, o autor zomba da ciência de sua época – em especial à Royal Society londrina -, que considerava tremendamente dissociada da realidade cotidiana e incapaz de fazer algo produtivo. Por exemplo: tudo em Laputa, das roupas às edificações, é feito de forma grosseira embora seus habitantes adorem as perfeições da matemática e da música. Uma crítica um tanto injusta de Swift ao não separar o caráter de longo prazo da “Ciência Básica” das questões imediatas da “Técnica Aplicada”. Seriam necessários ainda 100 anos para que a segunda fase de Revolução Industrial começasse a transformar aquelas abstrações em grandes obras de engenharia, iluminação pública e vacinas, mas os engenheiros e biólogos vitorianos nada fariam se os cientistas do iluminismo não tivessem criado antes o ferramental.
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Com a Palavra, M. Flammarion

Retrato de Camille Flammarion

Agradecimentos a Vitor Moura pela referência.

Camille Flammarion – médium, espírita de primeira hora e colaborador de Kardec – lançou em 1907 o livro Forças Psíquicas Misteriosas e ao final do segundo capítulo (pp. 50-6 da edição inglesa de 1909) analisou essa mesma alegação de Aksakof. Sua opinião, contudo, foi bem distinta:

O raciocínio do “espírito” é falso. O sistema de Urano é quase perpendicular ao plano de sua órbita. É o oposto direto dos satélites de Júpiter, que giram quase no plano de sua órbita. A inclinação do plano dos satélites com a eclíptica é que 98º e o planeta se encontra quase no plano da eclíptica. Essa é uma consideração fundamental no imagem que devemos nos fazer do aspecto desse sistema visto da Terra.

p.52

E Flammarion traçou um esquemático muito similar ao apresentado aqui para chegar a uma opinião oposta a de Chambers? Como é possível? A chave para tal diferença está mais adiante:

O erro da médium do General Drayson vem do fato de que ela alegou que o polo sul de Urano estava voltado para nós à data de sua descoberta. Então, em 1781, o sistema de Urano com relação a nós a mesma situação que em 1862, já que o tempo de sua revolução é de 82 anos. É evidente a partir da figura que, naquele momento, o planeta apresentava para nós o polo mais elevado acima da eclíptica; isto é, o polo norte.
p.53

Ou seja, o critério que ele adota para diferenciar os polos é outro! Na verdade existem dois critérios (Wikipedia, sorry) para se diferenciar o polo norte do polo sul. O primeiro foi esse apresentado por Flamarion, considerando como polo norte de um planeta o que se encontrar acima do plano da eclíptica. O segundo, considerado por Chambers, é uma espécie de “regra da mão direita”, conforme a figura abaixo:

Regra da mão direita para a inclinação do eixo planetário.

Qual sistema é melhor? São equivalentes na prática, sendo puramente arbitrária a preferência por um ou outro.

Flammarion também teceu comentários às duas luas marcianas:

Aksakof cita, no mesmo capítulo (p. 343), a descoberta de dois satélites de Marte, também feita por Drayson por meio de um médium, em 1859; ou seja, 18 anos antes da descoberta delas em 1877. Tal descoberta, não tendo sido publicada na época, permanece duvidosa. Além disso, após Kepler ter assinalado sua possibilidade, essa questão dos dois satélites de Marte foi várias vezes discutida, notoriamente por Swift e Voltaire (vide minha Astronomia Popular, p. 501). Isso, portanto, não deve ser considerado como um exemplo inegável de descoberta feita por espíritos.

p. 55

Bons tempos quando os maiores críticos do Espiritismo eram os próprios espíritas.

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Com a palavra, o Sr. Tempo


A hipótese nebular tão defendida por Chambers já estava desacreditada pelo começo do século XX. Além da questão da rotação retrógrada de Urano (e Vênus), cuja solução ad hoc não foi bem aceita, a hipótese continha uma dificuldade mais séria para explicar por que o Sol, com 99% da massa do sistema solar, possui apenas 1% do seu momento angular. Isso era o oposto do esperado, pois, ao contrair a maior parte de sua massa para o centro, o interior do disco gasoso rotativo deveria ter preservado o grosso do momento angular da nebulosa original, ou seja, a rotação do futuro Sol deveria ser mais rápida (7). Outras propostas foram feitas ao longo do século XX, cada qual com suas próprias fraquezas e pontos obscuros, até a reabilitação da hipótese nebular nos anos 70, com um nova roupagem e sugestões de como o momento angular poderia ter sido transferido para as partes mais externas de nosso sistema.

O entendimento sobre a inclinação dos eixos de rotação planetários também evoluiu, sendo melhor compreendido como efeito da interação gravitacional entre planetas suas luas e o Sol. Marte, por exemplo, sofre oscilações consideráveis em seu eixo ao sabor dos campos gravitacionais do Sol, de Júpiter e de suas duas pequenas luas, provocando comportamento aparentemente caótico. A Terra teve a bênção uma única lua próxima e relativamente grande. Sua influência prepondera sobre as do Sol e de Júpiter, além de não competir com nenhum outro satélite, sendo assim o “estabilizador” do eixo de nosso planeta. Caso ela desaparecesse num passe de mágica, a Terra começaria lentamente a sofrer grandes amplitudes na posição de seu eixo, podendo ocasionalmente chegar a “deitar” como Urano (8).

A compreensão sobre a origem dos modernos seres vivos teve um grande salto quinze anos após o lançamento de Vestiges, com a publicação conjunta da descoberta do processo de “seleção natural” das espécies pelo meio ambiente, feita por Charles Darwin e Russel Wallace. No mesmo ano, Darwin publicou A Origem das Espécies, que popularizou suas descobertas. Não que inexistissem propostas anteriores quanto à possibilidade de modificações anatômicas e fisiológicas em seres vivos ao longo do tempo, mas foram os trabalhos de Darwin e Wallace os primeiros a conseguir evidências de isso acontece e como (9). Ainda assim, sua aceitação foi uma batalha “morro acima”, tendo seus partidários de enfrentar clérigos de um lado e biólogos fixistas do outro, ambos se valendo de pontos ainda obscuros da nova teoria (10) em seus ataques. A prova do tempo deu vitória aos evolucionista, que reformularam as ideias de Darwin e Wallace à luz das descobertas de um novo campo da biologia – a genética – e agora contam com amplo testemunho fóssil das transições entre os grandes grupo taxionômicos. Continuam a haver divergências quanto aos pormenores do processo evolutivo (11) e talvez seja mais correto dizer que hoje há “teorias da evolução”, mas há consenso quanto a evolução como um fato: ela ocorre, ainda que precisemos esclarecer as minúcias desse processo.

Nosso conhecimento sobre Urano pouco avançara até meados do século XX, destacando-se a descoberta de algumas outras luas, até que em 1986 ele foi visitado pela sonda Voyager 2, que nos angariou muito do que sabemos hoje a respeito do planeta, como a relativa complexidade, ao estilo de Saturno, de um sistema de anéis que fora avistado nove anos antes, a descoberta de mais dez luas e informações sobre sua atmosfera e campo magnético. Posteriormente, observações feitas pelo telescópio espacial Hubble elevaram o total de satélites para 27. Alguns, por sinal, giram em torno do planeta no sentido direto, mas suas órbitas muito excêntricas sugerem que sejam asteroides capturados pelo campo gravitacional de Urano. Até agora nenhuma outra missão não tripulada foi enviada ao planeta.

Robert Chambers foi praticamente esquecido pelo grande público, sendo agora só encontrado em literatura sobre a Ciência da época vitoriana, mais como um amador que preparou o terreno para Darwin. Entretanto o tempo lhe fez jus e, ainda que muitas de suas premissas estivessem erradas, ele sorriu por último.

Quanto ao episódio contado por Aksakof, não foi dessa vez…
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Notas

(1) Primeiro porque os planetas, luas e outros grandes corpos do sistema solar se formaram dentro de um “plano” que correspondia ao plano do Disco Planetário, a famosa eclíptica, e tendem a manter sua posição devido a conservação de momento Angular. O segundo ponto é que as órbitas polares exigem maior energia para serem mantidas já que a maior massa de um corpo celeste esferoide está localizado em sua região equatorial , assim o centro de massa está deslocado preferencialmente acompanhando a região equatorial do planeta. No Universo, os sistemas tendem a estabilidade nos estados de menor energia. Apenas satélites artificiais são conhecidos por manterem órbitas polares já que é possível recorrer a correções em sua órbita de tempos em tempos conforme perdem energia.

(2) Chambers usa a palavra francesa bouleversement: ruína e confusão; desordem, transtorno.

(3) Para mais informações sobre as repercussões da obra de Chambers, cf. [Adrian & Jamres, cap. XXI].

(4) Provavelmente, cometeu um engano na edição do texto. O artigo a que se referiu deveria ser o da edição nº 24 de Edinburgh Review, iniciando-se na página 164. Sua autoria é de Sir John Herschel, filho do descobridor de Urano.

(5) Embora engenhosa, a proposta de Chambers não foi bem aceita de imediato. Em uma crítica a Explanations publicada em The North British Review, Volume 4, nº VIII, 1845, pp 487-506, lê-se:

Sem dar atenção à realmente ridícula explicação que nosso autor persiste em dar ao movimento retrógrado dos satélites de Urano, vamos agora discutir a importantíssima questão da existência de animais vertebrados – de peixes nos mais antigos estratos fossilíferos (…)
p. 497

O que não chega nem de longe a ser uma refutação.

(6)Dado que Jonatham Swift conhecia o idioma espanhol, o nome da ilha flutuante pode significar exatamente isso que você está pensando.

(7)O momento angular funciona quase igual ao momento linear. Se um objeto está girando em torno de um eixo, diz-se que possui alguma quantidade de momento angular, que é baseado em seu momento de inércia (I) e sua velocidade angular (ω), de modo similar à massa e à velocidade linear para o momento linear.

O momento angular (L) é definido por:

L = Iω

E a conservação do momento angular, na ausência de forças externas, é matematicamente expressa por:

L = I1ω1 = I2ω2

Ou seja, um aumento no momento de inércia de um corpo (i.e., o grau de dificuldade em alterar sua rotação) será compensado por uma redução na velocidade angular e vice-versa.

Bailarinos, patinadores e dançarinos se valem empiricamente da conservação do momento angular de um sistema que, no caso, são seus próprios corpos. Ao realizarem uma pirueta, podem controlar a velocidade de rotação estendendo ou contraindo os membros.

patinadora no gelo

(8) Cf. [Ward & Brownlee], cap. X, pp. 248-51.

(9) Darwin abre A Origem das Espécies com uma explanação sobre o processo de “seleção artificial” induzido pelo homem nos diversos animais e vegetais domesticados por ele, por meio de cruzamentos entre espécimes selecionados. A indagação que adveio disso era: “seria possível a Natureza fazer um tipo de ‘seleção’ por conta própria?” A chave para questão foi o estudo dele sobre os pássaros tentilhões das Galápagos, no oceano Pacífico, por onde passou como naturalista de uma expedição científica. Darwin observou que o padrão dos bicos das diversas populações daqueles pássaros variava conforme o habitat que residiam e o tipo de alimentação que ele poderia fornecer. Cogitou que deveria ter existido um tipo original de tentilhão que se espalhou pelos diversos ambientes. Em cada local, essas novas populações foram submetidas a um tipo de “pressão seletiva” diferente (uma seca por exemplo), que fez vingar apenas os tentilhões cujo o bico fosse mais adequado para capturas os alimentos disponíveis (insetos, sementes, etc.). Com o tempo, os indivíduos sobreviventes de cada nicho passaram a se reproduzir exclusivamente entre si, constituindo espécies distintas. De uma tacada só, estavam elaborados os conceitos de “seleção natural”, “irradiação adaptativa” e “isolamento geográfico”, tendo Wallace chegado a conclusões semelhantes em suas pesquisas sobre a fauna da Malásia e da Indonésia.

Imagem de alguns tentilhões

Algumas espécies de tentilhões de Galápagos

(10) Basicamente eram duas as dificuldades que primeiros darwinistas tiveram de lidar. A primeira era saber quanto tempo um punhado de seres vivos originais demoraria para se diversificar nas diversas espécies que hoje conhecemos. Isso era nevrálgico pois, por aquela época, começaram as tentativas de datação da idade da Terra e os valores estimados com base na velocidade de resfriamento das rochas sugeriam cerca de 100 milhões anos, total posteriormente revisto apenas 20 milhões. Era muito pouco. A segunda dificuldade era explicar como as novas variedades em uma espécies surgiriam. Para desatar esses dois nós, Darwin retomou, a partir da quinta edição de A Origem…, as antigas leis do “uso e do desuso” e “herança de caracteres adquiridos” propostas por Lamarck no começo do século XIX, a fim de possibilitar um surgimento rápido de novas variedades. Caberia à seleção natural determinar quais delas vingariam.

A solução real para essas fraquezas só viria no século XX, quando se descobriu que a desintegração de isótopos radioativos contribuía para manter o planeta aquecido e a idade da Terra foi recalculada para 4,5 bilhões de anos. Os resquícios de lamarckismo foram abandonados com a (re)descoberta dos genes e das mutações genéticas.

(11) O próprio Darwin percebeu que a “seleção natural” poderia não ser suficiente para explicar certas estruturas anatômicas particulares, por exemplo, por que os pavões machos desenvolveram uma cauda vistosa que lhes é um verdadeiro fardo? Propôs então a existência de uma “seleção sexual” por parte de ao menos um dos gêneros como grande responsável pelo dimorfismo sexual encontrado entre diversas espécies de animais complexos. Ela, ainda assim, presta contas com a “seleção natural”: a partir de algum limite o tamanho da cauda do pavão o tornaria presa fácil.

Por falar em “presa”, continua-se discutindo se o verdadeiro “motor” por trás da seleção natural é a competição de um ser vivo contra outro, entre os seres vivos e o meio ambiente ou, num reducionismo extremo, tudo não passa de uma tentativa dos genes para se perpetuarem (O Gene Egoísta, de Richard Dawkins). O ritmo em que as mudanças ocorrem também é algo em debate tendo os neodarwinistas de um lado – defendendo mudanças graduais e contínuas – e do outro os adeptos do “equilíbrio pontuado” – alegando que espécies permanecem estáveis por longo períodos, seguidos por uma relativamente rápida mudança (em termos geológicos).

Em suma, a Teoria da Evolução “evoluiu” e continuar a se refinar conforme novos fatos surgem. Do contrário, caso se engessasse, o evolucionismo seria uma religião, como o criacionismo bíblico ou a ortodoxia espírita.

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Para saber mais

– Chambers, Robert; Explanations: A Sequel to the “Vestiges” , scan da segunda edição (1846) no Google Books.

– Desmond, Adrian & Jamres, Moore; Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, Geração editorial, 3ª ed.

– Lynch, John M.; “Vestiges” and the Debate Before Darwin – Volume 1, Thoemmes Press, 2000

Robert Chambers – pequena biografia feita pelo University of California Museum of Paleontology.

– Ward, Peter D. & Brownlee, Donald; Sós no Universo?, Campus, 2000.

No mundo da Lua

Índice

A Lua sobre o mar.

Apresentação


Em Gen, cap VI, 25 se encontra uma declaração estranha sobre a Lua, feitas pelo espírito de Galileu, através da mediunidade de Camille Flammarion:

As condições em que se efetuou a desagregação da Lua pouco lhe permitiram afastar-se da Terra e a constrangeram a conservar-se perpetuamente suspensa no seu firmamento como uma figura ovoide cujas partes mais pesadas formaram a face inferior voltada para a Terra e cujas partes menos densas lhe constituíram o vértice se com esta palavra se designar a face que, do lado oposta à Terra , se eleva para o céu. É o que faz que esse astro nos apresente sempre a mesma face. Para melhor compreender-se o seu estado geológico, pode ele ser comparado a um globo de cortiça, tendo formada de chumbo a face voltada para a Terra.

Daí, duas naturezas essencialmente distintas na superfície do mundo lunar: uma, sem qualquer analogia com o nosso, porquanto lhe são desconhecidos os corpos fluídicos e etéreos; a outra, leve, relativamente à Terra pois que todas as substâncias menos densas se encaminharam para esse hemisfério. A primeira, perpetuamente sem águas e sem atmosfera, a não ser, aqui e ali, nos limites desse hemisfério subterrâneo; a outra, rica em fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo.

As viagens espaciais comprovaram que a face oculta da Lua não se difere em natureza da que fica voltada para nós, sendo igualmente inóspita. A aparente imobilidade da Lua se deve ao fato de sua órbita ser síncrona: rotação em torno do eixo e translação em volta da Terra têm a mesma duração (28 dias)

Sistema Terra Lua, segundo A Gênese.

Sistema Terra-Lua, segundo “Galileu”: Lua ovoide, com materiais menos densos na face oculta

Na hora de julgar a comunicação, Kardec foi ao mesmo tempo prudente e descuidado, como relatado na nota de rodapé:

Por muito racional e científica que seja essa teoria, como ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta, somente a título de hipótese pode ser aceita e como ideia capaz de servir de baliza à Ciência. Não se pode, porém, deixar de convir em que é a única, até ao presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.

Seria isso mesmo?
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Tão Perto e tão Misteriosa


Na verdade, o entendimento a respeito da rotação lunar (ou aparente falta dela) já contava com amplo histórico. Issac Newton, em seu Principia Mathematica produziu uma das primeiras tentativas de explicar o fenômeno:

Se o corpo da Lua fosse fluido como nosso mar, a força da Terra para levantar este fluido nas partes mais próximas e mais remotas estaria para a força da Lua através da qual nosso mar é levantado nos lugares sob e opostos à Lua da mesma forma que a gravidade aceleradora da Lua em direção à Terra para a gravidade aceleradora da Terra em direção à Lua, e o diâmetro da Lua para o diâmetro da Terra conjuntamente; ou seja, da mesma forma que 39,788 para 1, e 100 para 365 conjuntamente, ou da mesma forma que 1081 para 100. Por conseguinte, já que nosso mar, pela força da Lua, é levantado até 8 1/3 pés, o fluido lunar seria levantado pela força da Terra até 93 pés; e por causa disto a forma da Lua seria um esferoide, cujo maior diâmetro produzido passaria através do centro da Terra, e excederia os diâmetros perpendiculares em 186 pés. Tal é a forma, portanto, para qual a Lua tenderia, e deve ter desde o início. C.Q.E.

COROLÁRIO. Por conseguinte, ocorre que a mesma face da Lua está sempre voltada para a Terra; nem poderia o corpo da Lua possivelmente repousar em qualquer outra posição, mas sempre retornaria através de um movimento de libração para esta situação; mas estas librações, no entanto, devem ser excessivamente vagarosas, por causa da fraqueza das forças que as excitam; de forma que a face da Lua, que deveria estar sempre voltada para a Terra, pode, pelo mesmo motivo designado na proposição XVII se voltar em direção ao outro foco da órbita da Lua, sem ser imediatamente puxada de volta, e convertida novamente em direção à Terra.

O Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, proposição XXXVIII, problema XIX

Sistema Terra-Lua, segundo Newton.

Sistema Terra-Lua segundo Newton: no passado com uma Lua líquida (Esq) e, no presente, solidificada numa forma oblonga (Dir).

Apesar do gênio de Newton, sua tese é passível de sérios questionamentos. Primeiro, supôs aprioristicamente uma falta de rotação na Lua desde o princípio, algo difícil em um universo em que os corpos de grande porte frequentemente giram; e, segundo, desconsiderou a atração do Sol, que desalinharia a maré lunar.

Foi um contemporâneo de Newton, o ítalo-francês Cassini I, que, em 1693, fez a primeira descrição correta da rotação lunar, por meio do enunciado de três leis. A primeira, que é a que nos interessa, diz:

A Lua tem rotação uniforme em torno de um eixo fixo seu, sendo o período de rotação igual ao sideral.

Acontece que as leis de Cassini I são empíricas, dizem o como, não o porquê. Assim como a Gravitação Universal tinha dado um embasamento teórico às leis (também empíricas) de Kepler, era necessária uma teoria para os fatos descritos por ele. A primeira concepção correta a respeito da origem deste sincronismo remonta 1754/1755, em um trabalho de início de carreira do filósofo Immanuel Kant:

Mas se o desenvolvimento de um corpo produz por si mesmo produz a rotação axial, então todas as esferas da estrutura cósmica devem tê-la. Por que, então, a Lua não a tem? Algumas pessoas erroneamente pensam que a Lua tem um tipo de rotação pela qual ela sempre tem o mesmo lado voltado para a Terra muito mais devido ao desbalanceamento de um hemisfério que de um verdadeiro impulso rotacional. Deve a Lua realmente ter girado em seu eixo em um período anterior mais rápido e através de alguma causa desconhecido gradualmente ter reduzido seu movimento até que ele se tornou este leve e ponderado resíduo? Precisamos responder esta questão somente em conexão com um dos planetas. Então a aplicação para todos os planetas se seguirá de si mesma. Estou protelando esta solução para outra ocasião, visto que ele tem uma imperiosa conexão ao tema o qual a Real Academia de Ciências de Berlim estabeleceu para o prêmio no ano de 1754.

Kant, História Natural Universal e Teoria do Céu, 1755.

Kant faz uma alusão (bem) indireta a outro artigo publicado por ele em 1754, em que explica o desenvolvimento de um lado oculto da Lua pela ação das marés. Interessante notar a revelação de Kant que da hipótese da “Lua desbalanceada” era mais antiga do que supunha Kardec.

Sistema Terra-Lua, segundo Kant.

Sistema Terra-Lua segundo Kant (visão atual).

Inicialmente a Lua deveria girar mais rápido, estar mais perto da Terra e sua translação deveria ser mais lenta. A ação das marés sobre cada astro (mais especificamente nos oceanos terrestres e na superfície de uma Lua ainda plástica) não seria equilibrada. F4 e F1 seriam mais intensos que F3 e F1, respectivamente, devido a maior proximidade com o centro de gravidade com o astro oposto. O atrito entre as partes mais “fluidas” com as menos plásticas de cada astro “freia” a rotação de cada um. Na Lua, esta frenagem teria praticamente cessado quando ela atingiu a situação de órbita síncrona, mais permanece na Terra (lado direito da figura acima). Além da diminuição da rotação terrestre, o desequilíbrio da atividade das marés provoca o afastamento progressivo da Lua.

Infelizmente, o artigo de Kant (1754) foi publicado em um jornal sem expressão e caiu no esquecimento. O matemático francês Pierre Simon Laplace elaborou nos fins do século XVIII uma teoria alternativa do movimento lunar condizente com as observações da época. Seu prestígio praticamente eclipsou a importância da fricção das marés. Revisões das equações de Laplace revelaram falhas na teoria, que levaram o físico alemão Helmholtz, quase cem anos após o artigo de Kant, a novamente cogitar a frenagem das marés. O artigo de Kant foi redescoberto em 1867, sendo-lhe os créditos dados como precursor. Foi no começo da década de 80 do séc. XIX é que a interação das marés entre dois corpos recebeu um tratamento matemático amplo por George Darwin (filho de Charles Darwin), mas ainda assim ela não é considerada um tema esgotado até o momento.

É imperioso observar que ao longo do século XIX ainda existiam pesquisadores que defendiam a hipótese da Lua estática. Augustus de Morgan, em sua obra Budget of Paradoxes, analisa diversos panfletos do século XIX que atacam a noção de que a Lua gira. Por exemplo, Henry Perigal, astrônomo amador de Londres, foi infatigável nessa argumentação. Segundo um obituário, “o principal objetivo astronômico de sua vida” consistiu em convencer seus contemporâneos de que a Lua não girava. Assim, escreveu brochuras, construiu modelos, chegou a compor poemas para provar sua tese, “suportando com heroica jovialidade o contínuo desapontamento de ver como era vã tal tarefa”.

Mais tarde, Flammarion declarou:

Nesses encontros da Sociedade Parisiense de Estudos Espiritualísticos, escrevi de minha conta algumas páginas sobre assuntos astronômicos assinadas como “Galileu”. As comunicações permaneceram em posse da sociedade e, em 1867, Allan Kardec os publicou sob o título de Uranografia Geral, em sua obra intitulada Gênesis (preservei uma dessas cópias, com sua dedicatória). Essas páginas astronômicas nada me ensinaram. Portanto, não demorei a concluir que elas eram apenas o eco do que eu já sabia e que Galileu não teve nenhuma mão nelas. Quando escrevi as páginas, estava numa espécie de sonho acordado. Ademais, minhas mãos paravam de escrever quando pensava em outro assunto.

Forças Psíquicas Misteriosas, cap. II, p. 27.

Assim, teria tudo sido uma fraude inconsciente. Em O Mundo Invisível e a Guerra, de Léon Denis, cap XVI, atesta esta descrença de Flammarion já no fim da vida:

Também Camille Flammarion teve suas horas de vacilação e alguém nos fez notar que na última edição de seu livro As Forças Naturais Desconhecidas (*), aparecida em 1917, mostra uma tendência em explicar todos os fenômenos apenas pela exteriorização dos médiuns.

(*)Talvez o que Denis chame de “última edição de As Forças Naturais Desconhecidas” seja, na verdade, Forças Psíquicas Misteriosas, lançado em 1906. Flammarion, na introdução, informa que o primeiro livro jamais fora reeditado.

Ainda o espírito “Galileu”, no mesmo capítulo de Gênese, é a afirmação de que Marte não possui satélites. Em 1877, foram descobertas as duas luas marcianas, menos de uma década após a morte de Kardec. Edições mais recentes da Gênese possuem notas de rodapé corrigindo o erro, mas as mudanças partiram de “baixo para cima” e, pelo menos até a décima edição em português (de 1944, antes das viagens espaciais e bem depois da primeira edição francesa), não existiam tais notas.

Curiosamente, uma quantidade grande de artigos on-line dá o baricentro lunar como estando um pouco afastado do centro, em direção à face oculta. Por outro lado, a crosta da face oculta seria mais espessa. A frenagem das marés teria cessado na situação de maior estabilidade, como intuitivamente esperado. De qualquer forma, não há “fluidos” na face oculta da Lua, que continua tão inóspita como sempre, e a Lua realmente gira, coisa que não ocorreria segundo A Gênese.
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Para saber mais

– Autor desconhecido Physical Conditions Govern Appearances of Spectra, World Wide School.

– Brosche, Peter; Understanding Tidal Friction: A History of Science in a Nutshell

– Campbell, William Wallace; The Evolution of the Stars and the Formation of the Earth World Wide School, cap. V

– Danby, J.M.A; Fundamentals of Celestial Mechanics, Willmann-Bell Inc., 2ª ed., págs 382-385, 401

– Flammarion, Camille; Mysterious Psychic Forces, acessado em 17/08/2015

– Gardner, Martin; Ah, Apanhei-te! – Coleção O Prazer da Matemática, Gradiva (Portugal), 1ª ed., vol. XII, págs. 89-93.

– Hawking, Stephen; Os Gênios da Ciência – Sobre os Ombros de Gigantes[contém todo o Principia Mathematica], Ed. Campus/Elsevier.

– Kant, Immanuel; Universal History and Theory of Heaven, 1755, tradução inglesa de Ian C. Johnston.

– Williams, Henry Smith; History of Science, World Wide School, vol. III, cap. XII,

Why doesn’t the Moon Rotate?

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