O Fascínio das Autoridades (27/05/23)

Índice

O Fim de um Monopólio

Eis um monopólio difícil de acabar.

Em 2008, a revista História Viva inaugurou sua série “Grandes Temas” com o fascículo “Jesus – O Homem e Seu Tempo”. A última página – Livros sobre Jesus – dedicava-se a pequenas resenhas de leituras complementares ao leitor. Uma delas é esta:
Sabedoria do Evangelho, de Carlos Torres Pastorino (Editora Sabedoria, 8 vol.). Tradução e comentário das recentes edições críticas dos antigos manuscritos. Farta documentação. Orientação espírita.

Desconheço a vida dos autores desse último artigo para checar se há alguma predileção e isso não importa porque, justiça seja feita, há outro autores de diferentes orientações. Não deixo, porém, de matutar o que pode ter levado Pastorino a ser incluído, principalmente por uma obra que é muito mais apologia do que crítica textual. Uma razão pode jazer nas restrições que os autores impuseram a própria lista: livros em português e ainda disponíveis no mercado, mesmo que em sebos.

De fato, Pastorino foi pioneiro em trazer e traduzir textos gregos de qualidade ao público brasileiro. Em 1964, quando o primeiro volume de Sabedoria… foi lançado, o Concílio do Vaticano II ainda estava em andamento, a Neovulgata demoraria uns quinze anos para ficar pronta, e a maioria das Bíblias tupiniquins ainda tinha um Novo Testamento era tributário do infame Textus Receptus, de Erasmo de Rotterdam. Se eu fosse um estudante não dogmático de teologia, o material disponibilizado por Pastorino seria uma mão na roda. Pela mesma época, vale assinalar, era fundada a Ação Missionária Evangélica (1965), como uma dissidência com perfil pentecostal de igrejas da Convenção Batista Brasileira, posteriormente renomeada para Convenção Batista Nacional (1967). No ano em que a humanidade pousou na Lua, entrava em operação a ARPANet, com seus quatro primeiros computadores conseguindo se interconectar a grandes distâncias. Dois processos embrionários que se revelariam mais transformadores do que qualquer uma das “revoluções” daqueles turbulentos anos poderia imaginar.

Avançando no tempo… Depois de atingir cerca de 1.000 computadores em 1984, a ARPANet fechou suas atividades em 1990, mas não sem antes deixar sua tecnologia como herança para a rede da US National Science Fundation, criada em 1986. No ano seguinte, esta conseguia ligar 10.000 máquinas, saltando para 100.000 em 1990 e “impressionantes” 6,5 milhões em 1995, quando já se chamava Internet. Nesse mesmo ano, uma pequena “guerra religiosa” se instalou no Brasil, cujo gatilho foi o episódio do “chute na Santa” divulgado em horário nobre pela Rede Globo de televisão em seu embate com a Igreja Universal do Reino de Deus. Alguns de seu templos chegaram a ser apedrejados por papistas mais exaltados, mas uma coisa ficou patente: embora ainda fosse um país majoritariamente católico, essa identidade já não definia mais nosso povo com precisão.

A virada do século parecia promissora para a intelligentsia espírita: o dissidente católico e futuro confrade J.R. Chaves publicava A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência (1998), e em 2000 seria a vez de Celestino Severino da Silva lançar seu Analisando as Traduções Bíblicas. Ambas compilaram muito do que já se falava há tempos “na gringa” sobre teorias conspiratórias acerca da reencarnação no cristianismo primitivo e sua suposta supressão no século VI. Foram um prato cheio na curta e intensa Era de Ouro dos fóruns virtuais que se seguiu – tanto nos espíritas quanto nos evangélicos -, porém também foi a época em que os primeiros “ex-píritas” começaram a despontar nesse meio, como Júlio Siqueira, Carlos “ApodMan” Bella e este anjo caído que vos escreve (1).

Por volta de 2004, fui apresentado a Pastorino no saudoso fórum do Portal do Espírito (acho que pelo forista Paulo Neto) e em um debate em meu primeiro portal com Vítor Moura (então, ainda na ortodoxia). Reparei logo de cara ser um terreno novo, ao qual precisava estudar melhor. Tornei-me um costumaz visitante de uma das lojas da Sociedade Bíblica do Brasil em minha cidade, em busca de lançamentos de coubessem no bolso. Aos poucos, construí meu arsenal com edições críticas Bíblia (Vulgata Jeronimiana), ou do Antigo e Novo Testamento (Septuaginta de Rahlphs e Nestle-Aland, respectivamente), minhas primeiras gramáticas gregas e hebraicas, além de uma chave gramatical do NT. Na cada vez mais pujante internet, encontrei as ferramentas do StudyLight.Org, que me permitiram cruzar dados e analisar frequência e emprego de palavras de um modo impensável até a recente época analógica de pesquisa. A Perseus Digital Library ofertava o mesmo dicionário grego usado por Pastorino, com a vantagem de inúmeros hiperlinks para seus exemplos. Conheci, também, o portal alemão (com texto em inglês) New Testament Transcripts Prototype, da Universidade de Münster, que oferta a digitalização e aparato crítico de diversos manuscritos antigos do NT. Graças e a isso, foi possível este humilde leigo descobrir que alegações deste tipo:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

não se sustentam, pois ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto – o que é outra discussão (2)-, primeiramente esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. Em segundo lugar, no volume inicial de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:

  1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado (3);
  2. Alexandrino: idem;
  3. Vaticano: idem;
  4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
  5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
  6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

Definitivamente, seria impossível checar isso nos anos 60/70 do século XX caso não se fosse membro de um departamento de teologia de uma boa Universidade.

A Internet também trouxe as livrarias virtuais – notadamente a Amazon -, onde consegui livros de crítica textual mais especializados e gramáticas mais aprofundadas para consultas específicas. Na primeira década deste século e a metade da segunda, pude contar com um câmbio mais em conta e uma quantidade menor de responsabilidades pessoais para estudar e adquirir material. Coisas que já não me são mais possíveis. Mas, se você está começando agora, não desanime. O público evangélico cresceu tanto – puxado principalmente pelas denominações pentecostais – que surgiu um mercado para atender suas demandas, e muitos dos livros que tive de importar já têm edições nacionais em português, além de mais livros de domínio público terem sido disponibilizados de lá para cá (4). Hoje, pela própria força dos números, observo que começa a surgir uma elite intelectual evangélica, que daria bem mais trabalho aos apologistas da década de 2000.

O economista Steven Levitt conta em seu livro Freakonomics o interessante “causo” ocorrido nos anos 50 do século XX e protagonizado por um sujeito chamado Stetson Kennedy, que estava determinado a desbaratar a Ku Klux Klan. Ele se infiltrou nela, aprendeu todos os (ridículos) códigos, jargões e ritos da seita, só para vendê-los a emissoras de rádio interessadas em arranjar um novo adversário para ninguém menos que o Superman de sua programação infantil. Quando toda a subcultura da KKK passou a ser alvo de chacotas – feitas até por crianças -, o comparecimento as suas (não mais) secretas reuniões desabou, simplesmente.

Então Levitt faz um paralelo entre esse episódio na luta contra o racismo nos EUA com um fenômeno econômico do começo deste século: a perda do poder de pressão dos corretores de imóveis sobre seus potenciais clientes, graças à ampla disponibilidade de informações sobre casas, apartamentos e terrenos na Internet. Entre ambos, um denominador comum: o poder calcado no controle privilegiado de algum conhecimento. E suas próprias palavras:

Embora bastante diversos, todos esses crimes têm uma característica em comum: foram pecados de informação. A maioria envolveu um especialista, ou uma gangue deles, para introduzir informações falsas ou esconder informações verdadeiras. Em todos os casos os especialistas os especialistas buscavam manter a assimetria das informações tão assimétrica quanto possível.

(. . . )

Você acertou se concluiu que muitos especialistas usam contra você as informações que detêm. Eles dependem do fato de que você não as possui. Ou que fica de tal forma confuso diante da complexidade de operá-las que acaba não sabendo o que fazer com elas. Ou que, impressionado com a competência que demonstraram, não ouse desafiá-los. Se um médico lhe recomendar uma angioplastia – embora algumas pesquisas hoje em dia indiquem que a angioplastia é pouco eficaz na prevenção de infartes -, você provavelmente não suporá que ele esteja usando sua superioridade em termos de informação para conseguir uma boa grana para si próprio ou algum colega. Mas como explicou David, cardiologista do Southwestern Medical Center da Universidade do Texas, em Dalas, ao The New York Times, um médico pode ter os mesmos incentivos econômicos que tem um vendedor de carros, um agente funerário ou um administrador de fundos de investimentos: “Você é cirurgião-cardíaco e Joe Smith, o clínico local, lhe manda pacientes. Se começar a dizer a eles que o procedimento não é necessário, em pouco tempo Joe Smith deixará de mandar-lhe pacientes.”

Cap. II, pp. 72-3

* * *

Um problema óbvio que talvez o leitor esteja pensando é como separar o joio do trigo, neste mundo permeável por fakenews prontas para satisfazer nosso viés de confirmação? Afinal, um mesmo servidor que hospeda uma página educativa de astronomia pode também armazenar um portal terraplanista. Sugiro algumas pedras de toque a seguir.

A Carteirada Intelectual

Àquela altura do seriado, era só bravata.

Certa vez, em um dos poucos debates amistosos que tive, meu antagonista defendeu o livro Reencarnação: o Elo Perdido do Cristianismo com um elogio constante na capa, feito pelo escritor Brian Weiss:

Este é um livro extremamente importante, que apresenta uma verdade profunda, um livro que deverá abrir as mentes e remover os medos.

O problema é que Brian Weiss – autor de Muitas Vidas, muitos Mestres – é médico por formação, especializado em psiquiatria, e ficou famosos por seus relatos do que seriam vidas passadas de seus pacientes, acessadas por meio de regressão hipnótica. Se estivéssemos discutindo os alcances e limites da hipnose em si, tudo bem. Entanto, a proposta do livro de Prophet é uma pesquisa histórica de uma suposta crença da reencarnação entre os primeiros cristãos. Por mais famoso e competente que Weiss fosse em seu campo, sua opinião acerca do livro de Prophet não tem mais peso que a da maioria dos seus leitores. Ou seja, é a opinião de um fã, não de um historiador.

Esse é o exemplo mais pronto e acabado da falácia do “apelo à autoridade”, i.e., quando um especialista em determinado campo do conhecimento resolve dar “pitacos” fora dele. Maiores problemas surgem, porém, quando apologistas querem restringir a aplicação dessa falácia a apenas esse modelo, desconsiderando outras formas mais sutis de mal emprego da palavra de especialistas. Eis alguns:

  • Autoridade que não é autoridade nenhuma: o exemplo acima é bem ilustrativo desse tipo, i.e., uma autoridade de uma área dando pitaco em outra. Pode acontecer, também, de um generalista arrotar dados e fatos, sem o devido lastro de um real perito no tema (principalmente em matérias jornalísticas);
  • A dita autoridade é uma outsider, “ponto fora da curva” ou do estilo “lobo solitário”: o que não impede que ele realmente seja um especialista na área. Um exemplo clássico disso foi a defesa ferrenha do químico Linus Pauling – duas vezes ganhador do prêmio Nobel – de doses cavalares de vitamina C como santo remédio, capazes de prevenir de resfriados a tumores malignos.
  • O grupo ao qual se encontra a autoridade é minoritário: essa é um pouco capciosa. Qualquer ideia nova vai começar como minoritária. Agora, caso já tenha havido tempo para “o teste do tempo” e ela ainda não se tornou predominante, ou era uma tese mainstream e foi sendo abandonada, o problema deve estar na tese defendida. Um exemplo moderno é o aquecimento global antropogênico, que tinha boa oposição até o final do século XX e, agora, está se consolidando (5). Seus negacionistas o fazem mais por paixões políticas que científicas. Um erro estratégico ao se realizar debates com esse tipo de grupo é colocar um representante de cada lado, dando a ilusão de que ambos estariam em pé de igualdade. Mais útil seria ressaltar a diferença de pesos entre as produções científicas de cada lado dentro do tema;
  • A autoridade está defasada: do instante que uma tese é concebida na mente do pesquisador, ela já começa a envelhecer. Há aquelas que envelhecem bem, no sentido que o cerne de seus princípios permanece válido, e outras muito mal, i.e., têm seu princípio fundamental demolido. Por exemplo, a tese de que a Septuaginta é uma tradução ruim do texto hebraico ruiu com publicação dos Manuscritos do Mar Morto, que revelaram ser ela uma janela para versões do texto hebraico hoje perdidas.
  • O viés da autoridade: como já disse alhures, viés é como sotaque, ou seja, se alguém não tem sotaque/viés é por que o sotaque/viés dele é igual ao teu. A questão é se autoridade consegue ir além de suas próprias crenças ante da evidência dos fatos.
  • A autoridade é corporativista: um certo conselho de classe de profissionais de saúde, ao estourar uma pandemia, mantém-se impassivo quanto ao membros seus que administram coquetéis de remédios de eficácia não comprovada contra o novo patógeno. Aliás, há décadas esse conselho chancela um tipo de tratamento baseado em ultradiluições de princípios ativos para além o limite de Avogadro, e que nunca tiveram desempenho melhor que placebos em teses controlados.

Vejamos, então, como o espiritismo kardecista fez (e vem fazendo) uso e abuso das autoridades constituídas e das que ele mesmo constituiu, empurrando goela abaixo de seus adeptos.

Meu Mentor é mais Forte que o Teu

-Eu sou o codificador da Terceira Revelação!
-Desculpe-me, “terceira o quê”?
-Terceira revelação!
-Quem te disse isso?
-O senhor mesmo, há quase 2.000 anos …
-Ha, ha, ha! Vai nessa!

A autoridade-mor à qual todos os espíritas ortodoxos recorrem tem nome e sobrenome: Hippolyte Léon Denizard Rivail ou, para os íntimos, Allan Kardec. Isso por si só já é um bocado problemático, pois o cânon kardecista não é um todo coerente, i.e., dá para usar Kardec contra Kardec (6). Fora as diferenças entre a primeira e a segunda Edição de O Livro dos Espíritos, é possível notar uma progressiva mudança ao longo dos anos 60 do século XIX:

  • Progressiva aceitação da teoria da evolução biológica;
  • Progressiva cristianização;
  • Progressiva centralização em torno de si mesmo.

Assim, ao se mencionar Kardec, há mister de avaliar em qual etapa se encontra seu pensamento. Para não dar uma de “la garantía soy yo!”, Kardec propôs se fiar no que viria a ser chamado de “Consenso Universal dos Espíritos” (ou Controle…). Em suas palavras:

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
ESE, Introdução (7).

Porém existem três sérios problemas com ele:

  1. Não é Consenso (ou controle): Dada as flagrantes contradições tanto dentro da trajetória da codificação como fora dela. Por exemplo, Kardec sempre teve como pedra no sapato a ausência do conceito de reencarnação no espiritualismo anglo-saxão, algo capaz de fazer desmoronar todo o sistema que criou(8). A catolização do espiritismo tupiniquim ao longo de século XX só fez complicar essa situação em outras direções (9);
  2. Não é Universal: Será que se a codificação tivesse sido compilada em Istambul (então ainda chamada Constantinopla) ou no Cairo não teríamos um “Corão segundo o Espiritismo“, que teria vindo como a “Quarta Revelação” a complementar os ensinamentos do Profeta? Em outras palavras, a codificação é europeia e cristã demais para ser considerada como “Universal”. Uma concordância entre culturas bem mais díspares afastaria o risco de médiuns estarem, na verdade, reproduzindo seus e conceitos e preconceitos. Por outro lado, a discordância aponta para essa direção;
  3. Nem dever ser de espíritos muitas das vezes: É difícil considerar São Luis e Erasto como sendo espíritos evoluídos quando falam coisas nada apropriadas dos negros africanos ou dos nativos americanos(10), estando mais para preconceitos bem terrenos vigentes na época. Flammarion, posteriormente, declararia que a Uranografia Geral, ditada pelo espírito de ninguém menos que Galileu Galilei, (A Gênese) como tendo sido um caso de animismo, em que colocara ideias próprias, ou melhor, do que acreditava na época (11).

Allan Kardec aparentava ter uma confiança excessiva de ser um missionário imbuído de uma missão dada pelo “Alto”:

Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da revelação divina, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje os homens estão aptos a compreendê-las. Participa da revelação científica, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas sim ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega, porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que o homem estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

A Gênese, cap. I, item 13. Grifos itálicos no original.

De fato, ele não procurou ostensivamente pelos fenômenos espirituais, sendo inicialmente um cético. Após abraçar a missão do “Espírito da Verdade”, o grosso da elaboração ficou a cargo … dele mesmo! Ou melhor, foi dele a versão do espiritismo da Sociedade Paris.Uma questão premente, antes de qualquer sistematização, era separar o “joio do trigo”, o que teria origem “divina” dos preconceitos terrenos. Nisso a força dos números revelou-se um tanto traiçoeira. Repare a força da evidência da reencarnação:

Não é aqui o lugar de explicar esses fatos; somente um estudo seguido e perseverante pode dá-los a compreender; nosso fim era somente refutar a ideia de que essa doutrina [da reencarnação] é a tradução do nosso pensamento. Temos, ainda, uma outra refutação a opor: é que não somente a nós ela foi ensinada; foi, também, ensinada em muitos outros lugares, na França e no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isso antes mesmo da publicação de O Livro dos Espíritos. Acrescentamos, ainda, que, desde que nos entregamos ao estudo do Espiritismo, obtivemos comunicações através de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos, de inteligência normal mais ou menos limitada, alguns até mesmo completamente analfabetos e, em consequência, absolutamente estranhos às matérias filosóficas; não obstante, em nenhum caso os Espíritos se desmentiram sobre essa questão. Dá-se o mesmo em todos os círculos que conhecemos, onde tal princípio é confessado. Bem sabemos que esse argumento não é irretorquível, razão por que não insistiremos mais a não ser pelo raciocínio.

RE, novembro, 1858, artigo “Pluralidade de existências corpóreas”

Ainda bem que no tema reencarnação ele não pegou médiuns de Inglaterra ou dos EUA. O número de 50 impressiona, mas é superado pelo de outro tema:

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos diferentes globos de nosso turbilhão planetário, só temos o ensino dos Espíritos; ora, para os que só admitem provas palpáveis é positivo que sua assertiva, a esse respeito, não tenha a certeza da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos, confiantes, as descrições que os viajantes nos fazem de países que jamais vimos? Se só devêssemos crer no que vemos, creríamos em pouca coisa. O que aqui dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos principais. Para nós, que temos testemunhado essas comunicações centenas de vezes, que as temos apreciado em seus mínimos detalhes, que lhes investigamos os pontos fracos e fortes, que observamos as similitudes e as contradições, nelas encontramos todos os caracteres da probabilidade; contudo, não as damos senão como inventário e a título de ensinamentos, de que cada um será livre para dar a importância que julgar conveniente.

RE, março 1858, “Júpiter e alguns outros Mundos”

Neste caso, “por centenas de vezes” comunicações foram feitas confirmando a presença de extraterrestres me nosso sistema solar. Pode ser a palavra “centenas” uma força de expressão apontando que haveria “perdido a conta”. Podemos dizer que, por volta da mesma época (ca. 1858), as pluralidades de existências corpóreas e de mundos habitados tinham uma quantidade de testemunhos mediúnicos similar. Após mais de 150 anos, o panorama é:

  • Extraterrestres: diversos exoplanetas (i.e., planetas fora de nosso sistema solar) têm sido descobertos, aumentando a chance de existir vida inteligente no Universo, além da Terra. Porém ninguém espera encontrar nada além de micróbios em nossos irmãos do sistema solar. Quem se dispuser a ler o artigo da RE de março/1858 vai descobrir que já havia descrença quanto a isso naquela época, à qual Kardec tenta contrapor com hipóteses ad hoc para salvar as aparências, como a possibilidade de uma rarefeita (e por isso indetectável) atmosfera lunar ou a presença de seres extremófilos em Saturno ou Mercúrio. A partir da segunda metade de século XX, as sondas espaciais vêm jogado baldes e mais baldes de água fria nessas pretensões. E ainda há espíritas que não largam esse osso;
  • Reencarnação: os trabalhos de Ian Stevenson foram sugestivos na existência desse fenômeno, porém estão longe de confirmar o que ela ocorra nos termos espíritas (universal e compulsória a todos o seres, iniciando a partir da concepção, sempre progressiva, karma, etc.).

Enfim, os resultados nulos no primeiro e ainda muito magros no segundo item.

Se quantidade não foi o bastante, a qualidade também deixou a desejar. A autoridade alegada da Revelação Espírita não se encontra apenas nos números, mas na autoridade ser guiada pelo “Espírito da Verdade”, o consolador prometido por Jesus em (um dos) seu(s) discursos de despedida no Evangelho de João:

Consolador prometido.

3. Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. — Porém, o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. (S. João, 14:15 a 17 e 26.)

4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas. Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores.

Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V.

(Em Construção)

Para saber mais

– Navega, Sergio; Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Publicações Intellwise, 1a. Ed, 2005 (pp.147-8).

– Salmon, Wesley C.; Lógica, Zahar Editores, 1963 (pp. 88 – 93).

Notas

(1) Não teria sido tão mais fácil, para os apologistas espíritas se, simplesmente, não existíssemos mais? Se Chico Xavier relatou que Emmanuel estava autorizado a desencarná-lo caso se recusasse a prosseguir psicografando livros para além da quantidade originalmente estipulada (uma atitude digna de mafioso), então nos mandar para o Umbral mais cedo seria fácil, não? Ou será que nossa missão na Terra é justamente ser “do contra”? Tenho uma opinião bem parcimoniosa sobre isso: somos uma “inevitabilidade prática”, i.e., enquanto as contradições do Espiritismo kardecista persistirem sem tratamento, cedo ou tarde algum adepto se dará conta delas, não ouvirá eco em seus questionamentos e pulará fora. Alguns fazendo estrondo. Tanto que vieram outros dissidentes ex-apologistas na esteira, como Vítor Moura – com uma ajudinha nossa – e Felipe Morel, este de forma totalmente independente.

(2) Com já disse em outras partes, há duas versões para o “discurso de despedida” de Jesus no Evangelho de João, que foram entremeadas na redação final. Em uma (Jo 13-14 e 18) a identificação do Paracleto com o Espíritos Santo ocorre (Jo 14:26) e na outra (caps. 15-17), não. Concordo que a forma apositiva como “Espírito Santo” aparece Jo 14:26 pode sugerir um enxerto, porém não encontramos um documento antigo de João em que ela não apareça. Se foi uma interpolação, ela pode ter ocorrido no próprio autógrafo do Evangelho ou na fonte dessa versão do discurso. Assim, novas descobertas no campo da paleografia do NT são necessárias para elucidar a questão. O que se pode dizer, com mais certeza, é que Jo 14:26 é uma “pedra no sapato” dos espíritas que advogam Jesus ser o Espírito da Verdade, o Paracleto prometido. O que os espíritas não se mancam é que, embora as falas do Evangelho de João sejam atribuídas a Jesus, a maioria delas não são consideradas pelos pesquisadores como originárias de seus lábios. Inclusive os longos discursos de despedida (e outros) desse evangelho que, ao contrário das parábolas e aforismos dos seus irmãos sinópticos, dificilmente seriam memorizáveis de cor pelos primeiríssimos cristãos, majoritariamente analfabetos. Pois é, muito arranca-rabo já ocorreu internamente por coisas que sequer uma “fé racionada” deveria considerar como verídicas.

(3) Uma coisa que este portal também oferece são as diversas camadas de “correções” feitas por mãos posteriores. Isso ocorreu com o Códice Sinaítico nesta passagem. Mas calma: em todas as camadas, το πνευμα το αγιον pode ser encontrado.

(4) Poderia citar os dois dicionários (um grego/francês e outro sânscrito/inglês) utilizados por Carlos Torres Pastorino e mencionados no artigo anterior. Menciono, também, o magistral Documenta Catholica Omnia, que tanto usei em minhas análises sobre Orígenes.

(5) A Revista Veja, editora Abril, lançou em 9 de outubro de 1991 a edição 1.203, intitulada “O Planeta Resiste – A ciência derruba o mito da catástrofe ecológica inevitável”. Um show de ecoceticismo e um dos maiores desserviços feitos pelo jornalismo brasileiro à Ciência. Excetuando o buraco na camada de ozônio – que foi considerado um problema real – o resto foi um vexame atrás do outro. A extinção das espécies seria um “mal reparável”, pois a evolução se encarregaria de criar nova. Ok, pena que isso leva milhões de anos. Aquecimento global? Teria mais a ver com as explosões solares que pela ação humana. Aliás, a natureza seria muito mais poluidora que nós.
Justiça seja feita, outras edições mais responsáveis vieram depois – como a nº 1.696- “A Vingança Da Natureza” -, porém muito estrago já havia sido feito.

(6) A briga entre os adeptos da identificação do Espírito da Verdade como Jesus e os que combatem essa tese que o diga.

(7) Cf. “Controle Universal dos Espíritos”, RE, abril 1861

Em Profissão de fé espírita americana (RE, abril de 1869), Kardec faz um paralelo entre os artigos da profissão de dos espíritas norte-americanos e pontos que ele já havia levantado em seus próprios trabalhos. Até aí, tudo bem. O problema maior surge na seguinte observação que faz, mais perto do final do artigo:

Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas em mundos mais ou menos avançados; a única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências sobre a Terra até que o Espírito tenha adquirido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporte este globo, depois do que ele o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. De acordo sobre a ideia principal eles não diferem, pois, senão sobre um dos modos de aplicação. É que isso pode ser lá uma causa de antagonismo entre pessoas que perseguem um grande objetivo humanitário?

Em instante algum da profissão de fé americana isso pode ser inferido. O Codificador viu o que queria ver em prol de um suposto “consenso” entre amplos os lados do Atlântico.

(9)Em ESE, capítulo XXII, Allan Kardec tratou da questão do divórcio. Transcrevo integralmente suas palavras:

O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, está separado. Não é contrário à Lei de Deus, pois que apenas reforma o que os homens hão feito e só é aplicável nos casos em que não se levou em conta a Lei divina. Se fosse contrário a essa lei, a própria Igreja seria obrigada a considerar prevaricadores aqueles de seus chefes que, por autoridade própria e em nome da religião, hão imposto o divórcio em mais de uma ocasião. E dupla seria aí a prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses materiais, e não a satisfação da lei de amor.

Nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do casamento. Não disse Ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés, não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia tornar-se necessária. Acrescenta, porém: “no princípio, não foi assim”, isto é, na origem da Humanidade, quando os homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho e viviam segundo a Lei de Deus, as uniões, derivando da simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.

Vai mais longe: especifica o caso em que pode dar-se o repúdio, o de adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade que Ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas cumpre se tenham em vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.

Palavras razoáveis, não? Por outro lado, um padre e muitos pastores hodiernos sentiriam calafrios com essa leitura. Com certeza foi um episódios em que Kardec se mostrou à frente do tempo. Contudo, entretanto, todavia, no século XX, no “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, desenvolveu-se a ideia de que os cônjuges de casamentos estão em resgate de outras vidas … e um divórcio apenas atrasa a “quitação das dívidas”, levando a novo matrimônio na vida seguinte. O escritor espírita Richard Simonetti, em Atravessando a Rua, conto 39 (“Compromisso não cumprido”), narra uma desventura de Dona Flausina que – apesar de ter sido exemplar mãe, profissional e trabalhadora da seara espírita – não conseguira se acertar com seu problemático marido em vida, tendo apenas o “suportado” em vez de se “harmonizar” com ele realmente. Afinal, muitos desajustes dele na última vida seriam reflexo de influências dela em anteriores.

Na conclusão do autor:

No entanto, aqueles que atravessam o casamento a “ranger de dentes”, como se submetidos a intolerável prisão, forçosamente reencontrarão o cônjuge em novas experiências matrimoniais, presos um ao outro por algemas de ressentimentos, mágoa, avessão…

Somente quando formados por flores de amizade os elos do casamento, desfrutarão os cônjuges a liberdade de decidir se seguirão juntos nos caminhos do porvir.

Espero que exista uma terceira opção para vítimas de feminicídio…

Enquanto as outras duas grandes religiões abraamicas têm o divórcio aceito e codificado (ainda que com viés machista), o cristianismo e seus derivados (o espiritismo “chiquista” entre entre eles) o têm entalado na garganta. É como se o antigo “que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19:6-9) não admitisse a exegese “o que Deus realmente uniu, ninguém é capaz de separar“. Em meus tempos de mocidade espírita, quando estudamos “Atravessando a Rua” em nossa programação de férias, discutimos e achamos válido o divórcio em caso de violência doméstica. Hoje, com bem mais vivência, constato que, se uma relação já se deteriorou a esse ponto, pode ser tarde demais para um término indolor.

A ideia de que todo o casamento é a continuação de uma relação passada (seja harmoniosa ou cármica) esbarra em um problema: como conheceremos (e nos uniremos) gente nova?. Se, porventura, um “relacionamento inédito” se tornar “turbulento”, não seria mais razoável o divórcio enquanto os cônjuges ainda possuem um mínimo de respeito um pelo outro?

Ademais, em outro livro – “Encontros e Desencontros”, cap. XXVIII, “Aprendendo com os Próprios Erros” -, Simonetti narra a aflição de um pai, já no mundo espiritual, ao saber que sua filha casou às pressas com um homem que não estava no “planejamento” original em razão de uma gravidez inesperada. Como, então, nós do lado de cá saberemos se uma união vigente foi planejada ou não? Por que uma comunicação mediúnica assim o disse? Por temer o famoso “vai quê”?

(10) Vide RE, agosto de 1864, artigo Destruição dos aborígenes do México para as falas dúbias de Erasto e a edição de junho de 1859, artigo O Negro Pai César é feita a evocação de um recém-falecido ex-escravo norte-americano (i.e., desencarnou já como liberto), traficado do continente africano aos quinze anos. Conforme a segue a inquirição prossegue, somos informados que ele fora branco em encarnações prévias, deixara de ser negro ao desencarnar, e tinha um “autopreconceito” com sua última encarnação:

8. Considerais a brancura como uma superioridade?
Resp. – Sim, visto ter sido desprezado como negro.

9. [A São Luís.] – A raça negra é de fato uma raça inferior?
Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa.

Racismos à parte, essa previsão está simplesmente errada, pois, no instante em que redijo e mais de 160 anos após a resposta acima, a África subsaariana está em franca expansão demográfica. Sem contar os membros da “diáspora negra” pelo mundo.

(11) Ver Forças Psíquicas Misteriosas, cap. II.

Abrindo a Boceta de Pandora: Pastorino e a Falácia Etimológica

Confessa: Pensou naquilo, hein?

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Em Busca das Origens


“Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. “


Que diria o “Bruxo do Cosme Velho”, se soubesse que esse trecho do sétimo capítulo de Dom Casmurro soaria tão estranho cem anos depois do lançamento? Se meu leitor de hoje consegue depreender o que ocorreu com a antes inocente palavra “boceta”, não terá dificuldade em entender a minha crítica a seguinte passagem de Sabedoria do Evangelho”, por Carlos Torres Pastorino. E sem maldade alguma.

INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE I

(Ano 30 A. D. ou 783 A. U . C. – Janeiro – Fevereiro)

Mat. 10:5-15 Marc. 6:7 -11 Luc. 9:1-5
5. A estes doze (veja vol. 2) enviou Jesus, dando-lhes estas instruções: ‘Não ireis pelas estradas dos gentios, nem entrareis nas cidades dos samaritanos,

6. mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel.

7. Pondo-vos a caminho, pregai dizendo “está próximo o reino dos céus”.

8. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os espíritos desencarnados; de graça recebestes, de graça dai 9. Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de bronze em vossas cinturas;

10. nem de alforge para a jornada, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão, pois é digno o operário de seu sustento.

11. Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, indagai quem nela é digno; e aí ficai até vos retirardes.

12. Ao entrardes na casa, saudai-a

13. e se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas se o não for, torne para vós vossa paz.

14. E se alguém vos não receber nem ouvir vossas palavras ao sairdes daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó de vossos pés.

15. Em verdade vos digo, que no dia do carma haverá menor rigor para a terra de Sodoma e de Gomorta, do que para aquela cidade”
7. E chamou a si os doze e começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes autoridade sobre os espíritos atrasados,

8. e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto um só bordão; nem alforge, nem pão, nem dinheiro na cintura;

9. mas que fossem calçados de sandálias e que não vestissem duas túnicas.

10. Disse mais a eles: “Em qualquer casa onde entrardes, permanecei ali até que vos retireis do lugar.

11. E se algum (lugar) não vos receber, nem vos ouvir saindo dali sacudi o pó da sola de vossos pés em testemunho contra eles”.

1. Convocando a si os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os espíritos desencarnados e para curarem doenças,

2. e enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar.

3. E disse-lhes: “Nada leveis para o caminho, nem bordão, nem alforge, nem pão, nem prata, nem tenhais duas túnicas.

4. Em qualquer casa em que entrardes, nela ficai e dali partireis.

5. E qualquer (local) que vos não receber, ao sair da cidade, sacudi o pó de vossos pés, em testemunho contra eles.
(…)

A memória do cataclismo de Sodoma e Gomorra permanecia viva, e era julgado como o mais terrível castigo da impiedade. Pois menos rigor haveria para essas cidades, que para aquela que não recebesse os enviados do Mestre.

No entanto, a permanência em cada localidade devia ser curta. A tradição da época, registrada da Didachê (11:1) prescreve um dia ou, no máximo, dois, acrescentando que “aquele que permanecer três dias é falso profeta”.

O “dia do carma” (krisis) não se refere ao “juízo final”, mas à colheita do resultado das ações feita por meio da frequência vibratória de cada um: de acordo com as ondas básicas (tônica) de cada ser, será ele atraído para este ou para aquele local, tal como as ondas hertzianas que penetram no aparelho de rádio-receptor de acordo com a sintonia em que este se encontra.

Se as ações forem na linha do bem (na direção do Espírito) a colheita será alegria e paz; se forem no sentido do mal (matéria ou satanás) o resultado colhido (carma) será dores e sofrimentos. Essa triagem, essa “separação” (Krísis) é exatamente o carma automático, pois a Lei já estabeleceu tudo de antemão, e não é necessário que ninguém faça julgamentos. A humanidade de hoje não precisa mais dessas figurações infantis: já está madura para receber a verdade sem distorções. Então, de acordo com o carma será o estado de espírito dos seres, vibratoriamente separados segundo suas tônicas.

JULGAMENTO

Há um verbo grego (krínó) que é sistematicamente traduzido nas edições correntes por JULGAR; e seu substantivo (krísis) é sempre transladado por JULGAMENTO ou JUÍZO.

Estudemos esses termos, que são de capital importância na compreensão do ensino de Jesus.

O verbo KRÍNÔ apresenta os sentidos básicos de: separar, fazer triagem, escolher, decidir, resolver e, por analogia e extensão, julgar.

O substantivo KRÍSIS exprime fundamentalmente: ação, separação, triagero, escolha, o resultado da ação de escolher, decisão, donde, por analogia e extensão, julgamento, ou juízo.

Analisemos, agora o sentido etimológico, que também importa. Foram consultados: “Émile Boisacq, Dictionnaire Étimologique de la Langue Grecque, 4.ª edição, Heidelberg, 1950″; Liddell & Scott, Greek-English Dictionary“, Oxford, 1897”; e “Sir Monier Monier-Williams, A Sanskrit-English Dictionary , Oxford, 1960”, pág. 258 e 300.

KRÍNÔ e KRÍSIS (assim como o latim CERNO) vêm da raiz sânscrita KRI, que significa: agir, fazer, causar, elaborar, construir, escolher, etc.

Dessa mesma raiz KRI deriva o substantivo sânscrito KARMA, que exprime: ação, realização, efeito, resultado da ação escolhida, escolha, e cujo sentido é perfeitamente compreendido pelos estudiosos do espiritualismo, ou seja: CARMA é a consequência (boa ou má) de uma ação (boa ou má) que a criatura tenha realizado por sua livre escolha.

Verificamos, pois, que traduzir sistematicamente KRÍNÔ e KRÍSIS por “julgar” e “julgamento” (sentidos analógicos e extensivos) é, em muitos casos, forçar o sentido e até desvirtuá-lo totalmente.

EXEMPLOS – “O Pai a ninguém julga, mas deu todo julgamento ao Filho” (João, 5:22) só formaria sentido se aceitássemos um deus pessoal, sentado num trono (como Salomão) a proferir sentenças, embora de grande sabedoria. Aliás, muita gente imagina exatamente uma cena assim … Sabemos, porém, que isso jamais pode dar-se com o Ser Absoluto e Impessoal que é O Pensamento Criador e Sustentador dos universos, transcendente a tudo e a todos, mas imanente em todos e em tudo, pois que constitui a essência última de todos os seres e de todas as coisas.

Apliquemos a tradução lógica (não a “analógica”) e vejamos: “O Pai a ninguém escolhe, mas deixa toda escolha ao filho”. Aí o sentido procede: justamente por ser imanente em todos, o Pai Impessoal a ninguém escolhe, porque a todos, “bons e maus, justos e injustos” (cfr. Mat. 5:45), santos e criminosos, dá as mesmas oportunidades, a mesma quantidade de amor e, liberdade absoluta do livre-arbítrio. Mas “toda escolha é dada ao filho”, isto é, ao ser humano, “filho de Deus” que, com seu livre-arbítrio, escolhe o caminho que quer, arcando depois com as consequências, na “época do carma” (no “dia do juízo”, que pretende traduzir exatamente a palavra krisis). No caso de Jesus, Ele podia afirmar, em continuação: “e minha escolha é justa, porque não busco a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou” (João, 5:30), isto é, o Pai que é representado em nós pelo Cristo Interno, pelo Logos em nós .

Se nesse trecho traduzíramos KRÍNÔ por “julgar”, haveria frontal contradição com os seguintes textos:

  1. João, 8:15-16: “vós julgais segundo a carne (as aparências); eu a ninguém julgo. Mas se eu julgo alguém, é verdadeiro meu julgamento, por que não estou só, mas eu, e o Pai que me enviou”. Afinal, é o Pai que julga? ou deu o julgamento ao filho? E como o filho não julga ninguém? Não seria possível compreender-se. Substitua-se, porém, nesse passo, a tradução analógica pela lógica, e o sentido se torna claro, óbvio, compreensível: “vós escolheis segundo a carne (as aparências); eu não escolho ninguém; mas, se escolho alguém, é verdadeira minha escolha, porque não estou só, mas eu, e o Pai que me enviou”.

  2. João, 12: 47: “Se alguém me ouve as palavras e não confia, eu não o julgo, pois não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo”. Afinal o julgamento é do filho ou do Pai? Se “todo o julgamento foi dado ao filho”, como diz o filho que “não veio para julgar”? Então, compreendemos que realmente, há uma diferença entre os dois textos, e que, neste último passo, krínô tem, de fato, o sentido analógico de “julgar”. Aqui é mesmo JULGAR como naquele outro passo de Lucas (5:37): “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados”.

No trecho que aqui comentamos, compreendemos perfeitamente que não pode haver um “dia do juízo”, interpretação que deu margem à invenção de um “juízo particular” e de um “juízo universal”, quando “o mundo terminaria”. Esses absurdos anticientíficos e antilógicos não mais podem ser aceitos hoje. Não haverá “fim do mundo”, pois no máximo poderá ocorrer um “fim de ciclo”, que coincide com o movimento pendular do eixo do planeta, cada 26.000 ou 28.000 anos. No entanto, há comprovadamente a época da “colheita de resultado de nossas ações” a cada término de existência terrena, ou seja, “o dia do carma”, assim como, a cada fim de ciclo, haverá uma triagem (separação) de acordo com as vibrações de cada um. Portanto, a melhor tradução do trecho, em termos atuais, para compreendermos o que Jesus ensinou, é exatamente “o dia do carma”, isto é, “o dia da colheita (krísis) dos resultados de nossas ações, boas ou más”.

Isto porque, a cada pessoa ou coletividade, “será dado segundo suas obras” (cfr. Mat. 16:27; Rom. 2:6; 2 Cor. 5:10 e 11:15; 1 Pe. 1:17: Apoc. 2:23 e 22:12; e outros semelhantes).

Pastorino, Sabedoria do Evangelho, Vol. III, 1964.

* * *

Deixe-me ver se captei: se, em sua origem, a raiz de uma palavra for afim de um sentido reencarnacionista, então ela deve ser traduzida com esse viés, pouco importando séculos de evolução linguística.

Ok, só que não.

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Quando o Passado NÃO condena: a Falácia Genética

Primeiros colonizadores britânicos da Austrália rumam esperançosos à nova pátria.

“O Brasil fracassou porque foi colonizado pelos portugueses e não pelos ingleses.”

“Somos uma mistura de índios indolentes com brancos degredados e negros escravizados. Não tem como dar certo.”

Aposto que algum dos leitores já ouviu alguma das frases acima (ou algo do mesmo quilate) e, o pior, inconscientemente aquiesceu com a cabeça. Mas será que há mesmo uma verdade autoevidente nesses dois lugares-comuns? Teria sido melhor que o governo de Maurício de Nassau perdurasse ou a França Antártica de Villegaignon tivesse prosperado? Ucronia pode ser um exercício interessante, até divertido, diria eu; mas há boas chances de o resultado dessa linha alternativa da História não ser animador: poderíamos ter sido um grande Suriname ao norte e um mega Senegal ao Sul. O fato de termos nos tornado uma colônia de exploração tem mais a ver com a geografia do que a metrópole em questão. Vide a diferenças entre as colônias do Norte e do Sul dos EUA, que levariam esse país à Guerra Civil menos de um século após a independência delas.

A pergunta que fica, então, é até que ponto nosso passado explica o presente? Certo que uma nação recém-independente ainda está sobre grande impacto da administração da ex-metrópole, mas o quanto isso permanece válido à medida que o tempo passa? A Índia, para começar, já está há 75 anos livre do jugo britânico e, embora tenha feito grandes progressos no século XXI, continua longe do padrão de desenvolvimento social que os europeus ocidentais. Questões como superpopulação, corrupção e nepotismo ainda são grandes entraves a serem vencidos por lá. Vamos para o continente sul-americano: Brasil e Argentina, por algum tempo, se saíram melhor que as antigas metrópoles, antes de suas administrações desandarem. Não esqueçamos da Coreia do Sul, que já foi, junto com sua irmã do norte, colônia japonesa. Entretanto, Seul já superou Tóquio em muitos aspectos, ao passo que Pyongyang patina num comunismo anacrônico.

O passado tem seu peso? Sem dúvida! Será que ele dá a última palavra? Às vezes, caso um ranço dele persista fortemente no entorno de um país, uma sociedade ou um indivíduo. Em grande parte das situações, por outro lado, atribuir poderes divinos ao que aconteceu numa cada vez mais profunda “noite dos tempos” é apenas um atalho preguiçoso – a falácia genética -, que nos impede de ir atrás de razões bem mais recentes e imediatas para problemas atuais.

Enfim, tal como um indivíduo de meia-idade que ainda culpa seus pais por não ter tomado rumo na vida, uma hora chega-se ao ponto em que a culpa dos antigos opressores começa a ser substituída pelos erros cometidos pelas escolhas dos habitantes locais. O Brasil não dá certo por ter sido uma terra de índios “indolentes”, portugueses degradados e africanos escravizados? Não vou entrar no mérito, mas Austrália começou como uma colônia penal, literalmente. O que cada extremo do globo fez com os seus libertos é que foi diferente…

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Campo Minado: na Ponta da Língua, mas não em sua Base

O Demolidor (1993): tão despretensioso quanto profético.

Quem já se entendia como gente em meados dos anos 90 do século XX pôde assistir a uma impressionante mudança cultural ocorrida dentro de uma única geração: a ascensão do “politicamente correto”. Antes de me tacar pedra, já digo sou a favor de mudanças de postura que tornem ambientes sociais e de trabalho mais salutares para grupos historicamente marginalizados. E justamente por isso lamento a caricatura que o movimento tem se tornado ao servir mais como ferramenta de ostentação de virtude própria e linchamento moral de desafetos, em vez de uma genuína consideração pelo próximo.

A lista de palavras “proibidas” só tem crescido, na medida que qualquer alegação de “termo agressivo” é acriticamente aceita. Ninguém deseja estar do lado “errado” e sofrer as consequências. Parece justo e razoável evitar de usar as palavras “judiar” e “denegrir”, visto que seus radicais facilmente identificáveis são “judeu” e “negro”, respectivamente, além de elas possuírem substitutas equivalentes, como “maltratar” e “macular”. Agora, vejamos o caso da palavra “histérico(a)”: alega-se que seu radical vem do grego hystéra (útero), o que é verdade, e até o começo do século XX era associado a doenças mentais tidas como tipicamente femininas. O problema é que (i) o termo hoje é utilizado para descrever comportamentos destemperados de homens, também, e (ii) será que alguém leigo saberia a relação de histérico com útero sem consultar um dicionário?

Há outras palavras que “etimologia engajada” (1) gostaria de banir e que talvez já tenham vindo à mente do leitor do começo desta terceira década do século XXI, ou de alguém que, no futuro, estude esta época. Ainda que você seja um militante sincero ou um hipócrita em busca de status moral, pelo próprio bem de sua causa (ou para não dar vexame), atente para não cometer uma variante da falácia genética mencionada acima: a falácia etimológica, i.e., a alegação que significado original de uma palavra (ou de seus radicais) determina o uso dela nos dias de hoje.

Línguas evoluem constantemente, sejam se modificando, crescendo, diversificando, hibridizando e, sim, extinguindo. Tudo numa dinâmica que guarda interessantes paralelos com a evolução biológica. Uma delas é que mudanças discretas podem até ser percebidas no prazo de uma geração de humanos, ao passo que mudanças mais profundas podem demandas um tempo maior que a mais memoriosa cabeça consiga guardar. Não foi à toa que coloquei “boceta” no título deste artigo. Além de ser uma isca para o leitor – capaz de atrair até os mais pudicos – ela é um exemplo perfeito de mudança semântica documentado. Originalmente, esta palavra designava uma pequena caixa com alguma ornamentação, cujo usos podiam ir desde guardar joias de mulheres ou o rapé dos homens.

Para quem nunca viu: isto é uma boceta!

Como ela também era usada para as damas guardarem “seus tesouros” a associação com a vulva começou a ocorrer. Na virada do século XIX para o XX já devia estar bem estabelecido o trocadilho, que o diga a música “A Boceta de Rapé” (1905), de Mário Pinheiro, que usa e abusa do duplo sentido:

É coisa boa devera
Num tabaco, fino pó
Quando tiro assim
Com o dedo da boceta de vovó
Fico triste, fico mudo
Fico mesmo que faz dó
Quando aparece raspada

Pelo visto, safadeza não foi invenção da contracultura. Com o tempo o sentido original caiu em desuso (até porque o consumo de rapé saiu de moda), restando apenas o sexual.

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Um Apelo à Antiguidade

Etimologia, explanando superficialmente, é o ramo da Linguística focado no estudo da evolução das palavras; retrocedendo, se possível, até sua versão original em uma antiga língua-mãe. Já o “significado” de uma palavra é o seu emprego corrente ou em determinado período histórico, atestado por testemunhos da época. A falácia etimológica é uma irmã da falácia genética, consistindo na impostura intelectual de achar que o verdadeiro (e “válido”) significado de uma palavra é o seu sentido original.

Quando Pastorino diz “analisemos, agora o sentido etimológico, que também importa“, declara algo um tanto discutível, pois o sentido original de uma palavra pode ser irrelevante caso já tenha sido esquecido há muito tempo. Qualquer estudante de inglês em nível médio já conhece as arapucas do “falsos cognatos”, i.e., palavras parecidas entre dois idiomas, mas com sentidos totalmente diferentes, como compasso e compass (2):

Para abalizar seu ponto de vista, Pastorino se valeu de três dicionários. Na época da publicação de Sabedoria …, eles estavam disponíveis apenas em bibliotecas de especialistas ou universidades. Felizmente, a Internet democratizou o conhecimento e, hoje, o grande público pode ver o que realmente dizem:

  • Liddell & Scott, Greek-English Dictionary: talvez o melhor dicionário de grego clássico para uma língua moderna a possuir uma versão em formato wiki. Em seu verbete κρίνω aparecem os significados básicos de “separar”, “escolher”, “selecionar”; porém a quantidade de exemplos para “extensões” – como “decidir uma disputa”, “decidir em favo”, “ajuizar”, “julgar”,”estimar” – é tamanha que fica difícil comprar a ideia de usá-las nos evangelhos seja desvirtuar totalmente o sentido. Por sua vez, κρίσις, como derivado de κρίνω, é apresentado primeiramente como “separação”, “distinção” (poucos exemplos), para em seguida exibir vários exemplos como “escolha”, “eleição”, “julgamento”, “julgamento em corte”, condenação”. Não aparece, contudo, um sentido como “ação”, que o aproximaria da raiz sânscrita kṛi;

  • Dictionnaire Étimologique de la Langue Grecque: em suas páginas 518 e 519 tratam do verbete κρίνω, ao passo que κρίσις não possui um verbete próprio, sendo apresentado como derivado de κρίνω. Aqui a ênfase em significados no sentido de “separação”,”escolha” ou “discernimento” é maior, o que pode explicar o viés de Pastorino. Por sua natureza etimológica, o dicionário procura apresentar vários correlatos de cada verbete com o que seriam seus cognatos em outras línguas indo-europeias antigas, sendo feita a correlação com a latina cerno. No caso do sânscrito, chama atenção que o paralelo é feito com ava-skara-h -“dejetos”-, i.e, algo que “convém ficar separado/apartado”;

  • A Sanskrit-English Dictionary: embora seja a edição (ou impressão), de 1899, a numeração das páginas bate com a fornecida por Pastorino. As páginas 258 e 259 tratam de karman, ao passo que 300 e, principalmente, 301 tratam da raiz kṛi, trazendo um dado curioso: os cognatos apresentados para latim são (3) creo (4) e ceremonia, já para o grego são κραίνω (5) e κρόνος (6).

Ou seja, pelas próprias fontes que Pastorino usa, não é possível afirmar que κρίνω derive da raiz sânscrita kṛi. Para começo de conversa, o grego e o sânscrito se originaram, paralelamente, do proto-indo-europeu (PIE): um hipotético ancestral comum a diversas línguas europeias, iranianas e indianas falado há cerca de 5.000 anos nas estepes russas. Ou essas palavras gregas teriam uma raiz indo-europeia comum ou o grego teria importado a raiz sânscrita de algum modo. Dado que κρίνω pode ser encontrado em obras tão antigas como a Odisseia (cf. Liddell & Scott), não foram as conquistas de Alexandre que a trouxeram para a orla do Mar Egeu. Quanto à segunda hipótese, ela não se sustenta: na reconstituição feita do PEI, κρίνω e karma têm raízes distintas. E ainda que possuíssem a mesma raiz, suas evoluções semânticas poderiam ter sido divergentes (7).

Segundo The American Heritage Dictionary, a palavra inglesa crisis (“crise”) é oriunda da grega κρίσις, que, por sua vez, tem krei- (peneirar, separar, dividir) por raiz PIE. A palavra karma, para esse mesmo dicionário, possui a raiz PIE kwer- (fazer, preparar, construir). O Wikitionary corrobora essas informações (8).

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Sobrevivendo ao Campo Minado


Soldados cavando.

– Sargento, encontrei um significado ideal pr’aquela nossa tradução!
– Ô bizonho! Não mexe nisso, que é bomba!

Deve ser tentador para um palestrante, escritor ou articulista espírita (para ser justo, de qualquer credo) realizar a exegese de uma determinada passagem de um livro sagrado a partir de uma palavra-chave, cujo significado que (lhe) é mais conveniente está atestado em dicionário. O resultado final terá com o cheiro doce de erudição, porém pode muito bem não passar de uma tradução “à moda da casa” e “ao gosto do freguês”, capaz de fazer o, em geral, ignoto autor se revirar na tumba.

É preciso ter sempre em mente que, por mais ranço que um texto em uma língua morta possua, houve uma época quando enamorados a usavam para trocar juras de amor, os comerciantes para fechar seus negócios, as crianças para dar ação às suas brincadeiras, os torcedores para aclamar/xingar seus favoritos, e os fiéis louvavam ou blasfemavam os deuses com ela. Sim, um dia esses idiomas estiveram vivos. E, mesmo com todo o analfabetismo reinante, esses escritores sabiam que seus textos seriam lidos em voz alta em algum templo, sinagoga ou catacumba por algum afortunado letrado (9). Assim, Paulo de Tarso queria ser compreendido no mundo helênico do primeiro século da Era Comum, não por Homero e, muito menos, pelos gregos atuais.

Concordo que um pouco de “sentimento” e “tato” se faz necessário na hora de executar uma tradução, e que o risco de algo particular adentrar o texto vertido é constante. Ainda assim, há uma pedra de toque sempre capaz de ajudar chamada contexto, do de maior relevância para o de menor:

  • A fonte da passagem em questão: não apenas o entorno da citação analisada, mas todo o espectro de conotações que a palavra tem o longo do livro. Ao se observar não apenas a árvore, mas toda a floresta permite também identificar os temas de que ele trata. Se ele tiver um perfil apocalipsista – como Marcos e Paulo -, então traduções com viés reencarnacionista não fazem o menor sentido;
  • Outras obras do mesmo autor: aí se cai na que questão verdadeira autoria dos textos bíblicas, o que pode ser problemático. Ficando no Novo Testamento, por exemplo, pode-se agrupar Lucas e Atos, João e I João, e as genuínas cartas paulinas;
  • Outras obras da mesma época: como Marcos e a mais antigas cartas paulinas;
  • Outras obras do mesmo testamento: com certas ressalvas. Cronologicamente, ocorreu uma progressiva separação do judaísmo e adaptação do cristianismo para se tornar uma religião de longo prazo. Isso se refletiu na criação de um jargão cristão próprio, que é um dos contrastes entre as cartas reconhecidamente autênticas de Paulo e as pseudopaulinas;
  • Obras de outro testamento, porém no mesmo idioma: notadamente a Septuaginta, de onde os autores do Novo Testamento buscavam suas citações;
  • Obras extrabíblicas da mesma época: que podem ser pseudoepígrafas ou até mesmo literatura pagã. Por vezes são o único recurso que sobra para palavras de uso raro, como a batida e rebatida palingenesia;
  • Todo o espectro de conotações: ou seja, pegar um dicionário em busca do melhor sentido para a palavra.

Suspeite, portanto, quando alguém pular direto para a última opção com uma palavra de uso recorrente dentro da própria obra ou literatura afim, com direito a análise etimológica.

Deixando claro que não sou contra o uso de dicionários, muito pelo contrário. O que digo é que o grosso do desempate entre os diversos significados que trazem para um verbete não reside neles, mas no uso que os antigos falantes davam. Bons dicionários são fundamentais para a identificação de polissemia, sinonímia e homonímia. Talvez um futuro estudioso do futebol brasileiro do século XX se valha de um dicionário etimológico da língua de Camões para determinar que certa cidade do Estado do Rio de Janeiro nada tinha de libidinosa.

cartão postal do distrito de Pau Grande.

Que foi? É só o letreiro de boas vindas do distrito de Pau Grande, na cidade de Magé – RJ, terra natal de Mané Garrincha (10). Pois é, a evolução dos idiomas nunca cessa.

(Índice)

Notas

(1) Ganha um manual de uso das “três conchas” quem acertar o nome do primeiro apologista a usar minha crítica aos excessos do “politicamente correto” contra mim mesmo. Dica: deve ser o mais hipócrita.

(2) Este mesmo exemplo produziu algo constrangedor na História das traduções literárias em terras tupiniquins:

O que dói é que a própria capa da edição em língua inglesa dava a dica.

(3) Por praxe, os dicionários gregos e latinos apresentam os verbos pela primeira pessoa do singular do presente do indicativo.

(4) Produzir, fazer crescer, engendrar, fazer nascer / nomear, eleger, indicar / causar, ocasionar. Deu origem ao nosso “criar”.

(5) Acabar, realizar, cumprir / mandar, governar / chegar ao termo.

(6) Liddell & Scott trata como uma variante de Khronos (um deus grego primordial, pai de Zeus, Hades e Posêidon), “era de ouro”, ou um apelido para “caduco” (dotard, old fool). O Wiktionary cogita a possibilidade de esse nome divino ser um derivado de κραίνω, na acepção de “comandar”/”governar”.

(7)Um exemplo disso são a portuguesa atualmente e a inglesa actually. Neste caso em particular, as palavras são cognatos genuínos, originários do latim actualis (“ativo”) e, com o tempo, derivaram significados diferentes em cada língua.

(8) Verifique os verbetes para κρίνω e कर्मन् (karma).

(9) Da Epístola aos Colossenses:

E, uma vez lida esta epístola perante vós, providenciai por que seja também lida na igreja dos laodicenses; e a dos de Laodiceia, lede-a igualmente perante vós.

v. 4:16
Quanto à Epístola aos Laodicenses, ninguém sabe, ninguém viu… é mais uma das obras citadas/mencionadas na Bíblia que não entraram nela.

(10) Caso tenhas chegado até aqui, sua poupança astral foi debitada em 1.000 (“hum” mil) bônus-hora, por teres lido e absorvido esse monte de sacanagem, ainda que inconscientemente. Caso ela tenha negativado, serás enviado ao pior lugar do Umbral e “de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil” (Mt 5:26).

(Índice)

Para saber mais

– Carson, D.A.; Exegetical Fallacies, Baker Academic, 1996.

– Ferreira, António Gomes; Dicionário de Latim – Português , Porto Editora.

– Isidro Pereira, S.J.; Dicionário Grego – Português e Português – Grego, Livraria Apostolado da Imprensa, 8a. ed., Braga, 1998.

– Rezende, Antônio Martinez de & Bianchet, Sandra Braga; Dicionário do Latim Essencial, Tessitura/Crisálida, 2005.

(Índice)

O Carro na Frente dos Bois (revisitado)

Você está fazendo isso errado!

A palavra Palingenesia aparece duas vezes no Novo Testamento (Tito 3:4-5 e Mt 19:28), sendo comumente traduzida por comentaristas espíritas como “reencarnação”. Carlos Torres Pastorino pode até não ter sido o autor dessa tradução “à moda da casa”, mas, sem dúvida, foi um de seus divulgadores pelas terras tupiniquins. Na série Sabedoria do Evangelho, ela aparece pelo menos duas vezes:

Paulo interpreta assim esse ensinamento de Jesus: “Mas quando apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens, não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação , e pelo renascimento de um espírito santo” (Tit.3:4-5). As palavras utilizadas são bastante claras e insofismáveis: lavatório (lavar com água; λουτρον da reencarnação: παλιγγενεσια que é o termo técnico da reencarnação entre os gregos; pelo renascimento (anaxinóseos) isto È, um novo nascimento). Paulo, pois, diz que Deus nos salvou não porque o tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da palingenésia (isto é, da reencarnação) a qual é um “lavatório” (de água) e um “renascimento” do espírito.

Volume II, p. 5

Temos que assinalar a expressão en têi paliggenesíai, “na reencarnação”, termo familiar aos pitagóricos e estoicos, para exprimir o que chamamos hoje, ainda, de reencarnação: o renascimento na matéria do espírito imortal; com ele também era designada outrora a “transformação do mundo”, nos passos evolutivos que o planeta vai conquistando através dos milênios. Flávio [Josefo] emprega a palavra para exprimir a restauração de Israel, sentido provavelmente corrente na época, entre os israelitas, o que fez que os discípulos pensassem que Jesus vinha operar essa restauração; e isso quiçá tenha provocado o pedido de Tiago e de João (Marc. 10:35) logo a seguir. Philon de Alexandria usa essa palavra para designar o renascimento do planeta após o dilúvio. E Paulo de Tarso (Tito, 3:5) com o sentido material de reencarnação e o sentido espiritual de nascimento na individualidade ou transição do psiquismo ao espírito, tendo como resultado o surgir do “homem novo”

(. . .)

Essa frase consolida a interpretação de “palingenesia” dada por Flávio Josefo: a restauração do reino de Israel, tornando a dividi-lo em doze tribos soberanas, cada uma das quais seria governada por um dos doze discípulos. Os Apocalipses (cfr. 4.º Esdras 7:75) falam na renovação messiânica do mundo, “quando o Todo-Poderoso vier renovar Sua criação”. Mas embora se acreditasse que o Messias julgaria o mundo (cfr. Mat. 25:31ss), neste trecho é dito que o julgamento seria feito pelos doze, a exemplo dos “juízes” de Israel (como os “sufetas” de Cartago). Já Paulo fala que “os santos julgarão o mundo” (l.ª Cor. 6:2).

Volume VI, p. 86

Na primeira versão, há apenas uma menção ao sentido de reencarnação que a palavra palingenesia pode assumir e uma atribuição a Paulo de Tarso desse uso. Poderíamos questionar isso duas forma: a primeira seria, em razão da apocalipcista natureza da mensagem de Paulo, não haveria tempo para uma salvação por um longo ciclo de reencarnações; e, em segundo lugar, o sofisticado “plano de salvação” descrito pormenorizadamente em sua Carta aos Romanos foca no sacrifício de Jesus, não deixando espaço para ela.

Já no volume sexto de Sabedoria…, somos apresentados a mais uma acepção de palingenesia: “restauração”, “renovação”, porém aplicada a países e ou ao Cosmo. Ficam, então as perguntas: “por que não para pessoas, também?”, “haveria outros sentidos de palingenesia omitidos por Pastorino a seus leitores?”. Como já disse alhures, quem define o sentido de uma palavra não é um dicionário, e muito menos seu tradutor, mas quem a usa(va). Assim, deixo abaixo linkado o artigo original, em que, embora não cite Pastorino explicitamente, discorro sobre o emprego desse palavra grega por um de seus herdeiros, lançando mão do que a literatura clássica grega tem a nos oferecer. Com vocês:

Palingenesia:

Colocando o carro na frente dos bois

(Original)

Pastorino, o Santo Graal e os Dinossauros Venusianos

.

Índice

Com este artigo, pretendo iniciar uma série sobre algumas técnicas, digamos, “criativas” do ex-padre, escritor de autoajuda e tradutor espírita Carlos Torres Pastorino, nacionalmente conhecido como o autor do best seller chamado Minutos de Sabedoria. Entretanto, não é sobre essa obra que eu pretendo falar, e, sim, sobre outra mais técnica deles: a coleção Sabedoria do Evangelho.

De certa forma, já falei dela no artigo Palingenesia: colocando o carro na frente dos bois, em que trato dessa palavra grega, referida por Pastorino no capítulo inicial do segundo volume de Sabedoria. Não pretendo me focar especificamente no preciosismo de palavras aqui, mas usar um ou outro caso sobre atitudes recorrentes em suas traduções.

Alego, também, que não vou entrar no mérito das interpretações sucessivamente mais livres de passagens da Bíblia, pois são como testes de “figuras de Rorschach”: podem ser o que você quiser. No caso de Sabedoria do Evangelho, as interpretações progressivamente alegóricas e místicas visam sustentar o ponto de vista kardecista. O foco deste portal é buscar qual seria a interpretação dos primeiros leitores, baseando-se no contexto em que viviam. Por exemplo, o Livro do Apocalipse: em cada geração há os intérpretes ávidos em relacionar suas alegorias com supostos “sinais” de sua própria época, em vez de buscar o que um leitor do começo do século II suporia ao ler o texto.

Comecemos apresentando um extrato contaminado -suponho inadvertidamente- por uma falácia lógica chamada: “exclusão do termo médio”.

Levanta-te!

O caso em estudo corresponde à seguinte passagem:

OPINIÃO DE HERODES

Mat. 14:1-2 Marc. 6:14-16 Luc. 9:7-9
1. Nessa época, ouviu o tetrarca Herodes a fama de Jesus 14. E Herodes o rei ouviu (porque o nome dele se tornava conhecido) e disse: “João o Batista despertou dentre os mortos, e por isso os poderes operam nele”. 7. Ora, o tetrarca Herodes ouviu tudo o que foi feito por ele (Jesus), e admirou-se, porque era dito por alguns:
2. e disse a seus cortesãos: “esse é João o Batista; ele despertou dentre mortos, e por isso os poderes operam nele”. 15. Outros diziam: “É Elias”; outros ainda: “É profeta, como um dos profetas” 8. “João despertou dentre os mortos”, por outros: “Elias apareceu”, e outros: “reencarnou um dos antigos profetas”.
16. Mas, ouvindo isso, Herodes dizia: “É João, que eu degolei, que despertou dentre os mortos”. 9. Disse, porém, Herodes: “Eu degolei João, mas quem é este de quem ouço tais coisas”. E procurava vê-lo.

Além da ação pessoal de Jesus a pregar as Boas-Novas, houve um recrudescimento de fatos extraordinários, que se multiplicaram com a saída dos Emissários Dele, por diversas aldeias concomitantemente. A fama de Jesus, em nome de Quem todos agiam, cresceu muito, estendendo-se tanto que chegou aos ouvidos do tetrarca daquela região.

As palavras de Herodes dão a perfeita impressão de que ele se convenceu da ressurreição de João Batista, “ressurreição” no sentido atual do termo, isto é, que o “morto” voltara a viver no mesmo corpo.Herodes não se refere à reencarnação, conforme o notara já Jerônimo (Patrol. Lat. vol. 26, col. 96)com razão: Jesus tinha mais de trinta anos, quando João desencarnou.

* * *

Para fins de estudo, observemos o emprego dos verbos gregos nesses textos, e para isso analisemos antes os próprios verbos.

Aparecem dois; egeírô e anístêmi, ambos traduzidos correntemente com a mesma palavra portuguesa:”ressuscitar”. Mas o sentido difere bastante de um para outro.

EGEÍRÔ, composto de GER com o prefixo reforçativo E (cfr. o sânscrito ajardi, que significa “estar acordado”) tem exatamente o sentido de “despertar do sono, acordar”, ou seja, passar do estado de sono ao de vigília. Era empregado correntemente com o sentido de ressuscitar, isto é, sair do estado de sono da morte, para o da vigília da vida. Para não haver confusão, acrescentava-se ao verbo o esclarecimento indispensável: egeíró ek (ou apó) nekrôn, “despertar de entre os mortos”.

ANÍSTÊMI, composto de ANÁ (com três sentidos: “para cima”, ou “de novo” ou “para trás”) e ÍSTÊMI (“estar de pé”). De acordo com as três vozes, teríamos os seguintes sentidos:

  1. voz ativa (transitivo) – “levantar alguém”, “elevá-lo”; ou “tornar a levantar”, ou então “fazer alguém voltar”;
  2. voz média – “levantar-se” (do lugar em que se estava sentado ou deitado, sem se cogitar se se estava desperto ou adormecido), ou “tornar a ficar de pé”, ou “regressar” ao lugar de onde se viera;
  3. voz passiva – “ser levantado por alguém”, ou “ser posto de novo em pé”, ou “ser mandado embora de volta”.

Esse verbo, portanto, apresenta maior elasticidade de sentido que o anterior, podendo, inclusive, ser interpretado como “ressuscitar”; com efeito, não só a ressurreição pode ser compreendida um “despertar do sono da morte” (egeírô, que é o mais exato tecnicamente), como também pode ser entendida como um “levantar-se” de onde se estava deitado (o caixão); ou como um “tornar a ficar de pé”; ou como um “regressar ao lugar de onde se veio”. No sentido de ressuscitar foi usado por Homero (“Ilíada”, 24, 551), por Ésquiles de Elêusis (“Agamemnon”, 1361), por Sófocles (“Electra”, 139), etc.

No entanto, esse verbo anístêmi apresenta outro sentido muito importante, e que geralmente é desprezado pelos hermeneutas, que procuram esconder as ideias originais dos autores, quando não estão de acordo com a sua, e isso até em obras “cientificamente” organizadas (Não estamos fazendo acusações levianas. Para só citar um exemplo moderno, tomemos a obra “Lexique de Platon, publicada em dois volumes (1964) pelas edições “Les Belles lettres” (portanto editora crítica, da qual se espera fidelidade absoluta ao original). Pois bem, nessa obra, preparada pelo padre Édouard des Places, jesuíta, não figuram anístêmi, nem egeírô, nem o substantivo anástasis, nem qualquer outra palavra que signifique “reencarnação” …), e é o sentido de “reencarnar”. Realmente, a reencarnação é um “levantar-se” para reaparecer na Terra; é um “tornar a ficar de pé”, e é sobretudo um “regressar ao lugar de sua vida anterior”. Nesse sentido foi bastante empregado pelos autores gregos. Anotemos, todavia, que esse não era um verbo especializado nesse sentido, como o é, por exemplo, ensómatóô ou o substantivo paliggenesía. Numerosas vezes é usado, mesmo nos Evangelhos, com a simples acepção de “levantar-se” do lugar em que se estava sentado (cfr. Marc. 3:26; Luc. 10:25; At. 6:9, etc.).

Daí a necessidade de interpretar, pelo contexto, qual o sentido exato em que foi empregado.

Ora, nos textos em estudo, os três sinópticos referem-se à opinião de Herodes com o mesmo verbo egeírô (que sistematicamente traduzimos por “despertar”, seu significado real e etimológico). No entanto, o próprio Lucas que empregou egeírô para exprimir a ideia de “ressurreição”, nesse mesmo versículo 8, para exprimir o “regresso à Terra” de algum dos antigos profetas, muda o verbo, e usa anístêmi … Então, não era a mesma coisa: João “ressuscitara”, despertara do sono da morte; mas o antigo profeta “regressara à Terra”, ou seja, em linguagem moderna, “reencarnara”. E assim traduzimos, acreditando haver agora justificado nossa tradução afoita.

Para antecipadamente responder à objeção de que não havia esse rigor “literário” nos evangelistas, queremos chamar a atenção para o verbo usado com referência a Elias. Era crença geral que Elias não desencarnara, mas fora raptado num carro de fogo (cfr. 2.º Reis, 2:11). Ora, nesse caso especial, não podia ser empregado egeírô (despertar dentre os mortos), nem anistêmi (reencarnar); e de fato, nenhum dos dois foi usado por Lucas, e sim um terceiro verbo: epháne, isto é “apareceu”.

Bem, meditem sobre essas observações e, quando estiverem quase convencidos, se distraiam com o grupo humorístico inglês Monty Python!

(Índice)

O Julgamento da Bruxa

Na cena do julgamento da bruxa, do filme Monty Python e o Cálice Sagrado, a quantidade falácias contidas é tamanha, que é fácil se perder no meio do “raciocínio”. Melhor ir por partes:

Alegação Problema
Essa mulher é uma bruxa porque se parece com uma. Não passava de uma jovem mal disfarçada pelos aldeões para parecer com uma bruxa.
Ela transformou alguém em verme. O sujeito não mudou tanto assim (engordou um pouco).
Bruxas queimam, madeira queima. Logo bruxas queimam porque são feitas de madeira. Vários outros materiais também queimam. Os aldeões citam alguns exemplos.
Pontes são feitas de madeira, contudo outros materiais, como pedras, também podem ser usados na construção de pontes. Aqui está certo: fazer uma ponte com bruxas não ajudaria a elucidar.
Madeira flutua na água. Patos também flutuam na água, logo uma bruxa deve pesar o mesmo que um pato. Vários outros materiais também flutuam, novamente elencados pelos aldeões. Ademais, o que faz um corpo flutuar não é seu peso, mas o fato de possuir uma densidade menor que a da água.
Se ela pesar o mesmo que um pato, a será feita de madeira. E assim será um bruxa! Faz sentido.

Das diversas falácias inclusas nesse exemplo de humor inglês, uma se destaca: a do termo médio não distribuído.

Creio que muitos já devem ter ouvido falar na expressão silogismo categórico, isto é, um raciocínio dedutivo básico em que, a partir de duas premissas, chega-se a uma conclusão. Um dos exemplos mais “clássicos” e simples é:

Todo homem é mortal.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Que utiliza apenas afirmações universais. Sua estrutura pode ser definida assim:
Todo A é B.
(Todo) C é A.
Logo, (todo) C é B.

Neste caso, A representa o termo médio, ao estar presente nas duas premissa, conectando-as. Diz-se que um termo está distribuído quando um predicado que lhe é feito abarca a todos de sua classe. Uma das regras para a validade de um silogismo estabelece que o termo médio deve estar distribuído em ao menos uma das premissas. No exemplo acima “homem” está distribuído na primeira premissa.

Uma falácia surge quando essa distribuição não ocorre em nenhuma delas, como neste exemplo:

Todos os cearenses são brasileiros.
Todos os baianos são brasileiros.
Logo, todos os baianos são cearenses.

A conclusão é, evidentemente, falsa. Neste caso, o termo médio é “brasileiros” e nem cearenses, nem baianos abarcam sua totalidade. Arapucas lógicas como esta já pregaram peças, inclusive, em cientistas, como vamos tratar no próximo tópico.

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Não estamos vendo Nada, logo existem Dinossauros em Vênus!

Capa da HQ En los Pantanos de Venus (1955).

Carl Sagan, famoso divulgador científico (e astrônomo) do século XX registrou em seu livro Cosmos, cap. IV – “Céu e Inferno” (ou no homônimo quarto episódio da série televisiva) relatou a curiosa crença de alguns cientistas de que Vênus seria um irmão tropical da Terra, tendo até animais análogos aos antigos dinossauros que andaram por estas bandas. O raciocínio deles era assim:

A ausência de algo visível em Vênus levou alguns cientistas à curiosa conclusão de que a sua superfície era um pântano, como a Terra no Período Carbonífero. O argumento — se pudermos usar esta palavra — foi mais ou menos este:

   — Não posso ver nada em Vênus.
   — Por que não?
   — Porque é totalmente coberto de nuvens.
   — De que são formadas?
   — De água, naturalmente.
   — Então por que as nuvens de Vênus são mais espessas do que as da Terra?
   — Porque há mais água lá.
   — Mas, se há mais água nas nuvens, deve haver mais água na superfície. Em que tipo de superfície há muita água?
   — Nos pântanos.

E se há pântanos, por que não ciacádeas, libélulas e talvez até dinossauros em Vênus? Observação: não há absolutamente nada visível em Vênus. Conclusão: deve ser coberto de vida. As nuvens amorfas refletem nossas próprias predisposições. Estamos vivos e admitimos a ideia da vida em outros locais. Mas somente o acúmulo e coleta cuidadosos de evidências podem-nos dizer se um determinado mundo é habitado. Vênus não força nossas predisposições.

Hoje sabemos que essas nuvens são compostas principalmente por gás carbônico, o que levou Vênus a sofrer um “efeito estufa” em último nível e se tornar o planeta cuja superfície é a mais quente do sistema solar (mais até que Mercúrio). Se houve alguma vida em sua superfície no passado, foi torrada há muito tempo.

Este pitoresco episódio da história da Ciência é, também, um caso de exclusão do ponto médio, desta vez aplicado à astrobiologia. Diversas substâncias, que não a água, estão em estado gasoso à temperatura ambiente. Ainda que essa substância na atmosfera venusiana fosse a água, a vida provavelmente teria trilhando um caminho totalmente diverso ao que percorreu na Terra. Seria possível, por uma espécie de “evolução convergente”, a aparição de análogos venusianos aos nossos dinossauros? Sim, caso satisfeitas diversas outras hipóteses prévias. Porém seria apenas uma entre um imenso leque de possibilidades.

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Escolha com Sabedoria

He chose … poorly!

Agora que apresentamos duas aplicações, digamos, lúdicas da falaciosa não-distribuição do termo médio, passemos à sua aplicação em Sabedoria… , se é que o leitor já não a percebeu. Caso não a tenha, não se apoquente, pois ela está diluída e refinada para parecer um raciocínio primoroso.

Se fizéssemos uma diagrama de Venn do silogismo básico apresentado na primeira parte deste artigo, teríamos algo assim:

E para o primeiro exemplo de meio-termo não-distribuído:

Já o que Pastorino faz com o sentido do verbo grego ανιστημι (anístêmi) é algo deste estilo:

Alguns empregos de anístêmi significam “reencarnar”.
Anístêmi é usado nos evangelhos.
Logo, algumas vezes “reencarnar” aparece nos evangelhos.

Que graficamente pode ser descrito como:

O que Pastorino propõe.

O problema é que o termo – reencarnar não está distribuído, já que não foram dadas garantias que a realidade não seja isto aqui:

A hipótese não considerada.

Uma maneira de sanar a dúvida seria testar a hipótese. No caso da acusação de bruxaria, a jovem e o pato tiveram seu peso comparado numa balança (que estava quebrada, diga-se de passagem). A tese dos dinossauros venusianos começou a ruir já na segunda década dos século XX, quando a análise espectral da luz vinda de Vênus indicava uma atmosfera composta principalmente de gás carbônico, porém sem sinais de água, e foi sepultada de vez quando as primeiras sondas lhe foram enviadas. Agora, como testar o que o evangelista tinha em mente quando empregou o verbo ανιστημι ?

Primeiramente, não há informação precisa alguma sobre o emprego de ανιστημι com a conotação “regressar à Terra” na literatura grega, embora tenham sido dados exemplos para a de “ressuscitar”. Procurando nos seguintes dicionários:

Em nenhum deles encontrei o sentido “regressar ao lugar de sua vida anterior”, muito pelo contrário: ele pode significar “expulsar alguém de um lugar”, “partir” ou até “forçar à emigração”. Embora Pastorino critique Lexique de Platon por não conter um sentido associável a “reencarnar”, em instante algum ele dá exemplo, na literatura pagã, em que isso ocorra inequivocamente. Simplesmente, algo muito curioso.

Ademais, embora Pastorino dê o braço a torcer e admita que “numerosas vezes é usado, mesmo nos Evangelhos, com a simples acepção de “levantar-se” do lugar em que se estava sentado (cfr. Marc. 3:26; Luc. 10:25; At. 6:9, etc.)”, a frequência dessa acepção é absurdamente maior do que se sugere nesses três exemplos. Tomemos, para começar, Lucas:

  • 1:39 Naqueles dias levantou-se Maria, foi apressadamente à região montanhosa, a uma cidade de Judá,
  • 4:16:Chegando a Nazaré, onde fora criado; entrou na sinagoga no dia de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para ler.
  • 4:29: e, levantando-se, expulsaram-no da cidade e o levaram até o despenhadeiro do monte em que a sua cidade estava edificada, para dali o precipitarem.
  • 4:38: Ora, levantando-se Jesus, saiu da sinagoga e entrou em casa de Simão; e estando a sogra de Simão enferma com muita febre, rogaram-lhe por ela.
  • 4:39: E ele, inclinando-se para ela, repreendeu a febre, e esta a deixou. Imediatamente ela se levantou e os servia.
  • 5:25: Imediatamente se levantou diante deles, tomou o leito em que estivera deitado e foi para sua casa, glorificando a Deus.
  • 5:28: Este, deixando tudo, levantou-se e o seguiu.
  • 6:8: Mas ele, conhecendo-lhes os pensamentos, disse ao homem que tinha a mão atrofiada: Levanta-te, e fica em pé aqui no maio. E ele, levantando-se, ficou em pé.
  • 8:55: E o seu espírito voltou, e ela se levantou imediatamente; e Jesus mandou que lhe desse de comer
  • 9:19: Responderam eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros, que um dos antigos profetas se levantou.
  • 10:25: E eis que se levantou certo doutor da lei e, para o experimentar, disse: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?
  • 11:7: e se ele, de dentro, responder: Não me incomodes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para te atender;
  • 11:8: digo-vos que, ainda que se levante para lhos dar por ser seu amigo, todavia, por causa da sua importunação, se levantará e lhe dará quantos pães ele precisar.
  • 11:32:Os homens de Nínive se levantarão no juízo com esta geração, e a condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas; e eis aqui quem é maior do que Jonas.
  • 15:18:Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti;
  • 15:20:Levantou-se, pois, e foi para seu pai. Estando ele ainda longe, seu pai o viu, encheu-se de compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.
  • 16:31:Abraão, porém, lhe disse: Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.
  • 17:19:E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.
  • 18:33: e depois de o açoitarem, o matarão; e ao terceiro dia ressurgirá.
  • 22:45: Depois, levantando-se da oração, veio para os seus discípulos, e achou-os dormindo de tristeza;
  • 22:46: e disse-lhes: Por que estais dormindo? Lenvantai-vos, e orai, para que não entreis em tentação.
  • 23:1: E levantando-se toda a multidão deles, conduziram Jesus a Pilatos.
  • 24:7: dizendo: Importa que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro dia ressurja (*resurgere, na Vulgata).
  • 24:12: Mas Pedro, levantando-se, correu ao sepulcro; e, abaixando-se, viu somente os panos de linho; e retirou-se, admirando consigo o que havia acontecido.
  • 24:33: E na mesma hora levantaram-se e voltaram para Jerusalém, e encontraram reunidos os onze e os que estavam com eles,
  • 24:46: e disse-lhes: Assim está escrito que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressurgisse dentre os mortos;

São vinte e seis exemplos deste evangelho, dos quais :

  • Quinze podem ser associadas ao sentido simples de “levantar(-se)”, tendo-se estado, implícita ou explicitamente, sentado ou deitado (4:16, 4:29, 4:38, 4:39, 5:25, 5:28, 6:8, 8:55, 10:25, 11:7, 11:8, 17:19, 22:45, 22:46, 23:1);
  • Cinco significam algo como “partir”, “pôr-se a caminho” (1:39, 15:18, 15:20, 24:12, 24:33);
  • Quatro passam a ideia de “reaparecer” dos mortos (16:31, 18:33, 24:7, 24:46). Não as coloco simplesmente por “ressuscitar”, pois é possível interpretá-las como “aparecer espiritualmente” ou dar algum viés docentista;
  • Uma está associada ao “levantar” dos mortos (11:32), i.e, “ressuscitar” no sentido tradicional, devido a sua associação ao fim dos tempos (“juízo”);
  • Uma é a que Pastorino deu como exemplo para sua tradução de anístêmi.

Em João este verbo e seu substantivo associado aparecem mais uma vez no sentido claro de ressurreição:

Jo 11:24 Disse-lhe Marta: Sei que ele há de ressurgir na ressurreição (αναστασει), no último dia.

Jo 11:25 Declarou-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá.

Resumindo: além de ainda carecer de um uso claro de anístêmi como “reencarnar”, a evidência interna ofertada pelos evangelhos depõe contra essa acepção. Ainda que Pastorino tenha feito uma tradução “possível”, ela está longe de ser “provável”. O diagrama de Venn que tem se delineado é o abaixo:

Por fim, tal como a associação entre flutuação e peso feita no “julgamento da bruxa”, Pastorino ainda faz um declaração que está simplesmente errada de que o substantivo paliggenesía seria especializado no sentido de “reencarnação”. Como foi demonstrado neste artigo, ele está longe de ser especializado nessa acepção, como também nem seu uso mais frequente na literatura pagã.

(Índice)

E os Necromantes seriam Médiuns Espíritas, ok?

Do Evangelho segundo o Espiritismo (ESE), cap. IV:
A reencarnação fazia parte dos dogmas judaicos sob o nome de ressurreição. Somente os saduceus, que pensavam que tudo acabava com a morte, não acreditavam nela. As ideias dos judeus sobre esse assunto, e sobre muitos outros, não estavam claramente definidas, pois apenas tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o corpo. Acreditavam que um homem que viveu podia reviver, sem entender entretanto de que modo isso podia acontecer. Designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama mais apropriadamente de reencarnação. De fato, a ressurreição supõe o retorno à vida do corpo que está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, porque os elementos desse corpo estão, desde há muito tempo, desintegrados na Natureza. A reencarnação é o retorno da alma ou Espírito à vida corporal, mas em um outro corpo, formado novamente para ele, e que não tem nada em comum com o que se desintegrou. A palavra ressurreição podia assim se aplicar a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, conforme se acreditava, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, porque João tinha sido visto desde criança e sabia-se quem eram seu pai e sua mãe. João, portanto, podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado.

Entrando num assunto que já discutira em outro artigo (nota nr 7), O “Mestre lionês” cometeu dois erros pesados nessa passagem do ESE. Primeiro, os grupos judaicos que creem em reencarnação também abraçam a ressurreição (esta praticamente um universal judaico), mas a tratam como algo diverso sua versão de reencarnação ,a gigul, além de esta ter tido uma aceitação mais tardia entre os herdeiros de Abraão. O outro ponto é a confusão que faz entre ressurreição e ressuscitação: segundo a teologia tradicional cristã, até o presente momento, a primeira só é aplicável ao caso de Jesus, tido por Paulo como as personificação das “primícias dos que dormem” (I Cor 15:20). Todos os demais casos, no Antigo e Novo Testamentos, de cadáveres que tornaram a viver, apenas para morrer novamente tempos depois, enquadram-se na segunda categoria.

Não é para fazer “um bicho de sete cabeças” desse erro, mas para mostrar como três conceitos distintos foram misturados para se obter uma tradução muito conveniente. Óbvio que essa atitude não é exclusividade do Espiritismo. Severino Celestino da Silva, em seu Analisando as Traduções Bíblicas identificou algumas traduções da ortodoxia cristã propositadamente enviesadas contra o Espiritismo. Eis uma delas:

Agora observe a tradução da 35a. edição da Bíblia, realizada pelo centro Bíblico Católico Editora Ave Maria [Dt 18:9-11]

“Quando tiveres entrado na terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não te porás a imitar as práticas abomináveis da gente daquela terra. Não se ache no meio de ti quem faça passar pelo fogo seu filho ou sua filha, nem quem se dê à adivinhação, à astrologia, aos agouros, ao feiticismo, à magia, ao espiritismo, à adivinhação ou a evocação dos mortos” (tradução incorreta).

Está de acordo, caro leitor, com os textos hebraicos traduzidos acima?

Observe ainda o que coloca a Bíblia “Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas” dos nossos irmãos Testemunhas de Jeová:

“Quando tiveres entrado na terra que Jeová, teu Deus, te dá, não deves aprender a fazer as coisas detestáveis dessas nações. Não se deve achar em ti alguém que faça seu filho ou sua filha passar pelo fogo, alguém que empregue adivinhação, algum praticante de magia ou quem procure presságios, ou um feiticeiro, ou alguém que prenda outros com encantamento, ou alguém que vá consultar um médium Espírita, ou um prognosticador profissional de eventos, ou alguém que consulte os mortos” (tradução incorreta).

Analise a tradução, comparando-a com o texto traduzido acima e tire suas conclusões… onde existe médium e espírita neste versículo?

Agora segue o texto traduzido e desprovido de qualquer intenção pessoal ou preconceituosa. Compare-o e veja que está de acordo com o original.

“Quando entrares na terra que Iahvéh, teu Deus, te dá, não aprendas a fazer as abominações daquelas nações. Não se achará em ti quem faça passar seu filho ou sua filha pelo fogo, nem adivinhador, nem feiticeiros, nem agoureiro, nem cartomante, nem bruxo, nem mago e semelhante, nem quem consulte o necromante e o adivinho, nem quem exija a presença dos mortos.”
[Cap. V, pp. 88-9]

Quem estiver chegando agora neste blog talvez não saiba, mas já teci críticas ácidas a esse livro, porém devo fazer justiça e reconhecer que ele demonstra valor na hora de defender a doutrina de ataques, como no trecho acima.

Antes de apontar o dedo, seja para Allan Kardec ou para os tradutores da Ave Maria ou da Torre de Vigia, gostaria de expor uma hipótese haver em comum na metodologia de ambos os lados, embora os resultados sejam tão diferentes:

Espíritas Ortodoxia cristã
A ressurreição advoga o retorno à vida.
A reencarnação advoga o retorno à vida.
“Reencarnação” é outro nome para “ressurreição”.
Necromantes se valem de espíritos.
Espíritas se valem de espíritos.
Espíritas cometem o mesmo pecado que necromantes.

Assim, a não-distribuição do termo médio se torna o recurso falacioso ideal para quem quer provar qualquer coisa baseando-se em informações incompletas. Um recurso ao alcance de ambos os lados de qualquer disputa.

(Índice)

Para saber mais

– Sagan, Carl; Cosmos, Ed. Francisco Alves, 1980.

– Salmon, Wesley C.; Lógica, Coleção Curso Moderno de Filosofia, Zahar Editores, 1969.

– Santos, Marcos; Vénus: planeta de dinossauros e outras maravilhas, acessado em 18/11/2021.

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A Perda da Fé: o Alto Preço da Liberdade

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Aos perplexos

Felipe Morel Wilkon: sob nova direção

O processo que eu vivi, outros poderão viver também, aliás tenho recebido contatos de alguns que o estão vivenciando agora as dúvidas e angústias que já experimentei antes. Cada caso é um caso, embora paralelos sempre possam ser feitos. Na primeira década do século o “ex-pírita” Carlos “APODman” Bella chegou a ter algum destaque em programas de televisivos como “Superpop” (apresentado por Luciana Gimenez), além de dar uma contribuição fundamental nos meios virtuais ao nascente movimento cético brasileiro. Mais recentemente, causou certo burburinho o desligamento do Movimento Espírita de Felipe Morel Wilkon – profícuo palestrante e dono de conceituado canal no YouTube -, que não apenas deixou o movimento como fez questão de metodicamente enumerar, em um novo canal, as razões que o levaram a tal atitude.

 

Em ambos os caso, temos indivíduos estudiosos não apenas da doutrina, mas também portadores de vasto cabedal intelectual, que começaram a notar sérias rachaduras no suntuoso edifício erguido por Allan Kardec. Ao invés de abraçarem alguma espécie de “duplipensar” ou culpar o preconceito do establishment científico, eles resolveram a dissonância cognitiva que lhes afligia decidindo que o erro estava no colo do Movimento Espírita. Ato contínuo, salpicaram dúvidas de que teriam sido “espíritas de verdade” ou se “vivenciaram a doutrina” no lugar de apenas estudá-la. Enfim, imputaram-lhes a versão espírita da “falácia do escocês”.

Este artigo, contudo, não tratará deles. Tomei-os apenas como exemplos da mídia para que meus leitores, digamos, mais perplexos já saibam de antemão que não estão sós. Nem falarei de Waldo Vieira, cujos motivos da “deserção” aparentam ter sido de outra ordem. Só posso falar de mim mesmo, do que passei, do que lhes espera, e, apesar de tudo, ainda tentar lhes dar ânimo para seguir em frente.

(Índice)

Espíritas, instruí-vos (pero no mucho…)

 

Biblioteca

O recém falecido escritor espírita Richard Simonetti (que sua memória permaneça entre nós) já se aventurou na tarefa de lidar com os corações abalados pelo ceticismo. Vejamos o que ele tinha a dizer:

28 – ENSINO UNIVERSITÁRIO

1 – Por que há jovens espíritas que se sentem abalados em suas convicções ao entrar para os círculos universitários?
É que nunca assimilaram a Doutrina Espírita devidamente. Falta-lhes a base doutrinária. Por isso são facilmente influenciados pelo materialismo que impera ali.

2 – Considerando a cultura e a Inteligência dos catedráticos universitários, não seria razoável admitir que eles têm uma visão mais próxima da realidade, desvinculada de fantasias religiosas?
Se a premissa é falsa a conclusão nunca será verdadeira. Nenhum intelectual, por mais brilhante e erudito enxergará a realidade espiritual, se equivocadamente supõe que somos um aglomerado de ossos, carnes e músculos que pensa.

3 – Não obstante, são professores de grande poder de persuasão, apoiados em vasta cultura. Como enfrentar esse pressionamento?
Estudando a Doutrina Espírita, a partir da ideia fundamental: somos Espíritos eternos em trânsito pela Terra. O que disso se afastar, por mais deslumbrante seja o raciocínio, é absolutamente quimérico.

4 – Mas Isso não será sempre mera questão de fé Incompatível com a racionalidade que Impera nos círculos universitários?
A existência do Espírito está longe de ser mera questão de fé. Está demonstrada pela Ciência Espírita, a partir de “O Livro dos Médiuns”.

5 – Se eu me disser espírita, pretendendo explicar determinados fenômenos à luz da Doutrina, para demonstrar a realidade espiritual, vão rir de mim.
Menos mal. No passado matavam os cristãos pelo simples fato de proclamarem sua fé. Além do mais, você está subestimando o alcance da Doutrina Espírita. Há muita gente interessada dentro das universidades, até professores. Ninguém vai rir se você estiver bem consciente do que fala, com base doutrinária.

6 – O que se poderia fazer, dentro das universidades, em favor de estudantes espíritas?
Procure identificá-los. Formem grupos de estudos no campus, convidando colegas para debates. Convidem os professores. É preciso mostrar o alcance da Doutrina, que ilumina o entendimento humano, principalmente em relação às ciências psicológicas.

7 – E se encontrar resistência por parte da direção?
Não me parece provável. Isso seria de um obscurantismo incompatível com os tempos atuais. De qualquer forma, é impossível impedir que pessoas conversem. Podem até usar o método peripatético, de Aristóteles: debater ideias ao longo de uma caminhada pelo campus.

8 – Teremos futuramente universidades espíritas?

Talvez. O mais importante é que futuramente as universidades descobrirão o Espiritismo, principalmente em relação à Medicina e à Psicologia. Saber-se-á, então, que é impossível cuidar com eficiência de problemas físicos e psíquicos da criatura humana sem admitir a existência do Espírito imortal.

Extraído de “Não pise na Bola”

Agora que você já leu todo o capítulo, vamos “por partes” e descobrir por que o autor pisou na bola nesta questão:

1 – Por que há jovens espíritas que se sentem abalados em suas convicções ao entrar para os círculos universitários?
É que nunca assimilaram a Doutrina Espírita devidamente. Falta-lhes a base doutrinária. Por isso são facilmente influenciados pelo materialismo que impera ali.

Um pastor fundamentalista também pode recomendar mais leitura da Bíblia para um estudante de biologia devoto assolado pela evidências da evolução. Há, também, considerável material sobre intelligent design para se “balizarem”, mas não adianta: só desconsiderando as volumosas evidências a favor da evolução e fazendo muito cherry picking em prol do criacionismo é que conseguem se manter inabalados. No caso dos espíritas, não é preciso apelar a nenhuma forma de materialismo ateu para colocar em cheque suas convicções: graduandos de biologia podem se espantar por espíritos defenderem a existência da abiogênese em nossos dias (para pluricelulares, inclusive) ou com a vida complexa em Vênus, Marte e Júpiter; os de astronomia vão espantar com a Uranografia Geral ditada por Galileu; os de Serviço Social podem se chocar com tratamento dado aos suicidas e os de Direito considerar a pena que lhes é imputada desproporcional à ofensa; os de Física, então, ficam com um nó na cabeça com a apropriação dos termos “fluido” e “magnetismo”; já os de Química perigam abandonar o curso por acreditar que jamais deveriam saber a forma das moléculas; e os de História acabam estarrecidos quanto à justificativa para “destruição dos aborígenes do México”.

Espíritos podem muito bem existir e o edifício da Codificação kardecista continuará a ter sérias rachaduras. O que está em jogo não são questões marginais e pontuais, mas a própria confiabilidade do “Consenso Universal dos Espíritos”, pois não temos mais os dados originais sobre os quais Allan Kardec trabalhou, apenas o resultado final. O que ele teria deixado na “sala de edição”? Não sabemos e, portanto, não é possível fazer nenhuma análise estatística das comunicações que recebia. Se eles erraram sobre fatos e fenômenos a que temos acesso – inclusive quanto àquilo que poderíamos saber -, então o quão certos estão no principal da doutrina? Enfim, os estudantes espíritas em crise padecem de forte “dissonância cognitiva” ao contrastar o que se sabe hoje com o que afirma a codificação, o modo como a Ciência era feita no século XIX e como é hoje. A opção por uma visão mais “materialista” é uma forma de resolver esse conflito. Cristãos não fundamentalistas “tradicionais” ainda podem recorrer a leituras alegóricas da Bíblia, coisa um tanto inviável para o Pentateuco espírita e a Revista.

2 – Considerando a cultura e a Inteligência dos catedráticos universitários, não seria razoável admitir que eles têm uma visão mais próxima da realidade, desvinculada de fantasias religiosas?
Se a premissa é falsa a conclusão nunca será verdadeira. Nenhum intelectual, por mais brilhante e erudito enxergará a realidade espiritual, se equivocadamente supõe que somos um aglomerado de ossos, carnes e músculos que pensa.

Pode ser contraintuitivo à primeira vista, mas é possível se chegar a conclusões corretas a partir de premissas completamente equivocadas. Um caso bizarro foi relatado pelo historiador inglês Lewis Narmia(1) a respeito da opinião de um médico do século XVIII que estudara a origem dos indígenas americanos e chegou à conclusão de que teriam origem asiática. Grosso modo, seu raciocínio era assim: Noé teve três filhos – Sem, Cam e Jafé – e, em qualquer lugar, os filhos de Cam devem servir aos filhos de Jafé. Como os índios não dispunham de escravos negros (supostos descendentes de Cam), portanto devem ser filhos de Sem (suposto ancestral dos asiáticos). Não preciso perder tempo (espero) em provar o quão estapafúrdias as premissas desse raciocínio são. Por outro lado, a afirmação da conclusão está correta! Com um pouco de conhecimento, isso não chega a surpreender, afinal, segundo as regras da lógica, é possível a partir da falsidade derivar-se uma verdade; o contrário é que não (2).

Um exemplo claro de como os materialistas podem acertar mesmo que desconsiderem uma suposta realidade espiritual: medicina. No livro Emmanuel, o mentor de Chico Xavier assim escreveu:

Analisando-se todos os descobrimentos notáveis dos sistemas terapêuticos dos vossos dias, orientados pelas doutrinas mais avançadas, em virtude dos novos conhecimentos humanos com respeito à bacteriologia, à biologia, à química, etc., reconhecemos que, com exceção da cirurgia, que teve com Ambroise Paré, e outros inteligentes cirurgiões de guerra, o mais amplo dos desenvolvimentos, pouco têm adiantado os homens na solução dos problemas da cura, dentro dos dispositivos da medicina artificial por eles inventada. Apesar do concurso precioso do microscópio, existem hoje questões clínicas tão inquietantes, como há duzentos anos. Os progressos regulares que se verificam na questão angustiosíssima do câncer e da lepra, da tuberculose e de outras enfermidades contagiosas, não foram além das medidas preconizadas pela medicina natural, baseadas na profilaxia e na higiene. Os investigadores puderam vislumbrar o mundo microbiano sem saber eliminá-la. Se foi possível devassar o mistério da Natureza, a mentalidade humana ainda não conseguiu apreender o mecanismo das suas leis. O que os estudiosos, com poucas exceções, se satisfazem com o mundo aparente das formas, demorando-se nas expressões exteriores, incapazes de uma excursão espiritual no domínio das origens profundas. Sondam os fenômenos sem lhes auscultarem as causas divinas

Cap. XXIII

E isso foi escrito em 1938. Pouco depois a tuberculose e a lepra tornaram-se doenças curáveis. A varíola foi erradicada e poliomielite vai pelo mesmo caminho. Aliás, uma das causas dos novos movimentos antivacinação pode ser justamente a falta de contato das novas gerações com cadáveres e sequelados de inúmeras doenças contagiosas. Os tratamentos para diversos tipos de câncer têm avançado paulatinamente, ainda que uma “bala de prata” não esteja à vista no momento. Tudo graças ao avanço em nosso conhecimento do “mundo microbiano” (3).

O mesmo pode valer para princípios religiosos. A caridade, por exemplo, como pré-requisito para a salvação poder inócua. As razões podem ser várias: inexistir um mecanismo de “karma retributivo”, os protestantes estarem certos ou esta vida acabar no pó. E mesmo que inútil para a poupança de bônus-hora, sua prática ainda fará deste mundo um lugar melhor.

3 – Não obstante, são professores de grande poder de persuasão, apoiados em vasta cultura. Como enfrentar esse pressionamento?
Estudando a Doutrina Espírita, a partir da ideia fundamental: somos Espíritos eternos em trânsito pela Terra. O que disso se afastar, por mais deslumbrante seja o raciocínio, é absolutamente quimérico.

Nem sempre se trata de mero discurso, a cultura que esses professores apresentam supera em muito tudo o que a ortodoxia espírita pode ofertar. Adaptando as palavras que já li de outro crítico do espiritismo (e também do ateísmo militante), se você quer algo pouco “sobrenatural” leia o Livro dos Espíritos ou o Livro dos Médiuns. Agora, se o leitor quiser algo de fazer torcer o cérebro, leia Hiperespaço (Michio Kaku) ou O Universo Elegante (Brian Greene). Para entender as maravilhas que processos seletivos naturais podem produzir, leia o ameno À Beira d’Água (Carl Zimmer), ou o mais técnico e pesado The Origins of Order (Stuart Kauffman), sem falar no impressionante – embora bem especulativo – A Vida do Cosmos (Lee Smolin). Se quiser aprender sobre o Império Romano nos primeiros séculos do cristianismo, muito mais instrutivo será sorver o clássico Declínio e Queda do Império Romano (Edward Gibbon) do que com os livros de Emmanuel sobre o período. Se deseja aprender sobre literatura canônica bíblica, pseudoepígrafos e apócrifos recomendo The New Testament (Bart Ehrman), o Guia Literário da Bíblia (Robert Arter) e As Tradições Históricas de Israel (Antonio Gonzalez Lamadrid), pois, em vez de ficar catando versículos para justificar teologias pré-fabricadas, essas obras enquadram os livros no contexto históricos em que foram escritos, para qual tipo de leitores eles se destinavam (garanto que não foram para você, nascido milênios depois), e quais as técnicas redacionais de seus autores. Em vez da simples e fácil explicação de migrações espirituais transplanetárias, leia Armas, Germes e Aço (Jared Diamond) para entender, de forma multidisciplinar, a disparidade das sociedades humana à época das Grandes Navegações. Para elegantes discussões entre Ciência, Religião e Filosofia, recomendo Pilares do Tempo (Stephen Jay Gould) ou Infinito em Todas as Direções (Freeman Dyson).

Enfim, qualquer abordagem do conhecimento que já tenha sido feita em psicografias é superada, e muito, por suas contrapartes escritas por encarnados. Não dá para enfrentar esse pressionamento se a ciência espírita continuar a ser um “programa de pesquisas” estagnado ou até mesmo “degenerante”. O evolucionismo moderno nasceu quase junto com a Codificação, cresceu, aperfeiçoou-se e ainda continua a surpreender com sua capacidade de predição/explicação. A Mecânica Quântica e a Relativística são uns cinquenta anos mais novas que o Espiritualismo e revitalizaram a Física. Até agora, quimérico foi aguardar alguma real revolução vinda da erraticidade, mesmo que em seu próprio terreno.

4 – Mas Isso não será sempre mera questão de fé Incompatível com a racionalidade que Impera nos círculos universitários?
A existência do Espírito está longe de ser mera questão de fé. Está demonstrada pela Ciência Espírita, a partir de “O Livro dos Médiuns”.

O problema é que o Espiritismo afirma demais e prova de menos. O que os mais respeitados pesquisadores – sejam os da hipótese “sobrevivência” ou da psi – almejam é verificar se há algo além da nossa realidade tangível, ao passo que Espiritismo já vai logo dizendo como ele é em pormenores

5 – Se eu me disser espírita, pretendendo explicar determinados fenômenos à luz da Doutrina, para demonstrar a realidade espiritual, vão rir de mim.
Menos mal. No passado matavam os cristãos pelo simples fato de proclamarem sua fé. Além do mais, você está subestimando o alcance da Doutrina Espírita. Há muita gente interessada dentro das universidades, até professores. Ninguém vai rir se você estiver bem consciente do que fala, com base doutrinária.

Desculpe, mas discordo. Irão rir de ti, sim, como riram de muitos outros proponentes de hipóteses desafiantes do status quo científico. Alguns deles riram por último, outros não, além daqueles cujo reconhecimento foi apenas póstumo. Se quiser controlar riscos e minorar danos a sua autoestima, evite passos muito amplos. Um limite seguro é permanecer no “se há”, sem pretensões de já ir dizendo “como é”. Pode investigar se existe alguma separação entre “mente/cérebro”, pesquisa psi, avaliar se passes espirituais são mais efetivos que placebos, etc. Todas as pesquisas, porém, têm de ser controladas: o implica descrição de protocolos, grupos de controle, experimentos duplo-cego e o que mais for necessário para que suas conclusões tenham algum alicerce, do contrário serão meras convicções pessoais. Lembre-se: o que estava bom para o século XIX pode ser insuficiente hoje e, ainda naquele século, Richard Hodgson fez estudos sobre mediunidade da Leonora Piper muito mais controlados e pormenorizados que quase coisa que a Codificação possa oferecer. Mesmo assim, não convenceu os mais céticos.

Uma boa leitura em português seria Estudando o Invisível (Juliana Mesquita Hidalgo Ferreira), uma análise das pesquisas de William Crookes revelando que elas eram melhores do que os céticos imaginam, mas não tão boas quanto o próprio pensava. A quem quiser pular etapas, vale a pena se debruçar sobre o capítulo IX, onde se trata da Filosofia da Ciência e o enquadramento dado às modernas pesquisas psíquicas dentro dela.

6 – O que se poderia fazer, dentro das universidades, em favor de estudantes espíritas?
Procure identificá-los. Formem grupos de estudos no campus, convidando colegas para debates. Convidem os professores. É preciso mostrar o alcance da Doutrina, que ilumina o entendimento humano, principalmente em relação às ciências psicológicas.

7 – E se encontrar resistência por parte da direção?
Não me parece provável. Isso seria de um obscurantismo incompatível com os tempos atuais. De qualquer forma, é impossível impedir que pessoas conversem. Podem até usar o método peripatético, de Aristóteles: debater ideias ao longo de uma caminhada pelo campus.

Ok, tudo bem.

8 – Teremos futuramente universidades espíritas?

Talvez. O mais importante é que futuramente as universidades descobrirão o Espiritismo, principalmente em relação à Medicina e à Psicologia. Saber-se-á, então, que é impossível cuidar com eficiência de problemas físicos e psíquicos da criatura humana sem admitir a existência do Espírito imortal.

Universidades precisam lucrar. Então, a exemplo do que aconteceu com os católicos, os espíritas precisarão antes resolver seus problemas com o vil metal, a separar montante de aplicação imediata para caridade daquele apartado da atividade fim, almejando o que está a longo, longo prazo.

* * *

Enfim, os perplexos têm razões de sobra para a própria perplexidade. É, no mínimo, uma falta de empatia acusá-los de pouca fé ignorância e mandá-los ler mais Kardec. Por outro lado, como tirá-los da sinuca de bico em que se encontram? Bem, aqui vai o humilde achismo de alguém que já perdeu fé certa vez.

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Onde jaz a Resposta

 

Gostaria de começar com uma anedota:

Em certo vilarejo, havia um homem com fama de sábio, pois dava sempre um resposta inspiradora aos que vinham lhe pedir conselho. Um garotinho, sabedor da fama de seu conterrâneo, decidiu lhe pregar uma peça: “vou colocar um passarinho na mão e perguntar se ele está vivo ou morto. Se ele disser que está morto, é só abrir a mão e deixar voar. Se viver que está vivo, aperto até matar.”

Capturada a ave e bem escondida numa das mãos, ele dá o bote:

– Ei, moço! O senhor pode me dizer se o passarinho na minha mão está vivo ou morto?

O dito sábio, examinou o pequeno punho cerrado de um lado, do outro, por cima, por baixo, e, enfim, declarou:

– Meu menino, a resposta está em suas mãos!

Pois é, se você veio até a mim, você já sabe se quer ou não sair do movimento. Você quer é que eu lhe dê justificativas para isso.

Houve épocas em que eu queria produzir o maior número de descrentes possível e flertei com o ceticismo militante. Parei com isso, felizmente, e lamento se um dia fui exitoso. Fico feliz se alguém deixar de acreditar em teorias conspiratórias como o II Concílio de Constantinopla e parar de agir bovinamente ante pseudossábios como Emmanuel. Por outro lado, não me agradará nem um pouco saber que alguém deixou de ser espírita por minha causa. Perder a fé não é fácil: é uma sensação de ter lhe sido tirado o chão, talvez comparável à morte de um ente querido. Esse é o motivo pelo qual não vejo com bons olhos o ceticismo/ateísmo militante, afinal sua pregação termina por tirar a única esperança de muitas pessoas sem dar nada em troca. Seja lá qual for a escolha, faço aqui um pequeno apanágio razões para dar o passo que falta. Lembro que, em razão da escolha que também fiz, há um viés no que está para ler.

Motivos para ficar

  • O macio e felpudo colchão social que a religião organizada proporciona: você não existe num vácuo, simples assim. Você precisa de meio social com o qual se identifique e que lhe valide. O primeiro, sem dúvida, é família, seguida por comunidade, escola, trabalho, torcidas organizadas, etc. Muitas vezes, porém, todos esses grupos citados (e mais outros) são disfuncionais e, na melhor das hipóteses te tratam como uma peça substituível, quando não potencializam o pior de ti. Para muitos dos que tiveram esse azar, uma religião organizada serve, sim, de “tábua de salvação”. Aqueles testemunhos dados em coletivos sobre como a vida de um sujeito mudou da água para o vinho em tempo record após sua conversão têm uma boa dose de verdade o mais das vezes. Afinal, agora o prosélito tem motivação que algo maior o guia e as dificuldades que vierem fazem parte de seus planos, também; possui amparo da comunidade para se livrar seus vícios e maus hábitos; uma nova rede de relacionamentos a facilitar a obtenção de empregos, fornecedores ou clientes; um local para socializar bem mais produtivo do que seria, digamos, em um boteco altas horas da noite; e a jubilosa pertinência a um grupo que se importa com ele não importando qual fosse seu passado, onde será capaz de recomeçar.
    Quanto mais transcendente uma religião for, maior ela será capaz desse milagre. Quanto mais “sóbria”, mais você será apenas uma peça de uma grande chamada Universo. Ainda que digam que essa peça tem valor ela continua sendo substituível. Pessoas podem até abandonar uma religião que não as preencha, porém, em geral, o fazem em prol de outro grupo religioso (ou ideológico) com o qual se identifique mais.

     

  • Qualquer grupo pretensamente racional precisa, sim, de alguém do contra: suponha que você seja um alto funcionário de certa nação. Vocês estão planejando uma invasão a outra nação. Acontece que o inimigo, graças a sua rede de espionagem, já pôs as mãos em seus planos, sabe onde será a invasão, a data, total do efetivo, etc. De posse dessa informação, você sugeriria o cancelamento do ataque? Parece sensato a se fazer, não? Pois bem,você está nos Estados Unidos em 1961, o alvo da invasão é a Baía dos Porcos em Cuba. Deu no que deu. E, sim, houve gente dentro da CIA que alertou sobre o desastre iminente, mas foram preteridos em prol de um “Zé Tranquilo” que desinformou o recém eleito presidente John Kennedy. Tivessem sido eles os ouvidos, o EUA não precisariam sofrer uma humilhação pública e nem teriam jogado Cuba direto “nos braços de Moscou”. Bem, o que quero dizer com isso? Que em qualquer agrupamento, digamos, pensante é fundamental a figura do “advogado do Diabo”. Se ele não espontaneamente aparecer, então deve-se indicar alguém para fazer esse papel. Tudo isso porque há uma tendência inata na espécie humana buscar o consenso, ao menos em pequenos grupos, visto que houve épocas quando nossa sobrevivência dependeu disso. Se o argumento de uma liderança parece ser superficialmente sensato, a maioria sequer se dá ao trabalho de repensá-lo, de buscar brechas em suas fundações ou pontos cegos que foram desconsiderados. O clichê “se todo mundo pensa igual, então ninguém está pensando” é verdadeiro, e revelou-se muitas vezes fatalmente verdadeiro. Se eu fosse um dirigente de Centro, abraçaria calorosamente um “protodissidente” em meus grupos de estudo, afinal ele seria a principal diferença entre mim e o pastor neopetencostal da esquina. Agora, tente fazer isso de forma indolor, para que os outros não te tratem como “mala sem alça”. Há um vídeo interessante sobre isso aqui:

     

    Pode ser que nem o “jeitinho” de argumentar sem humilhar funcione para que você seja ao menos ouvido no Centro Espírita que frequenta. Talvez ainda valha a pena dar uma oportunidade ao movimento e buscar outro Centro.

    Enquanto esteve vivo, Allan Kardec revisou um ou outro ponto de sua doutrina. Talvez a mais notável mudança tenha sido a progressiva adoção do darwinismo, em especial quando aplicado à espécie humana, algo ausente em O Livro dos Espíritos, mas já bem cogitado em A Gênese. O problema é que ele, como todo ser vivo, faleceu e suas obras não puderam mais ser atualizadas. Outro contemporâneo de Kardec – Charles Darwin – publicou sua obra magistral A Origem das Espécies dois anos depois da primeira edição do LE.

  • De todas as alternativas ocidentais, o Espiritismo ainda é a menos ruim: o fato de o Espiritismo colocar a “salvação” (4) numa prática – a caridade -, ao invés de exigir que seus simpatizantes e possível prosélitos abandonem suas tradições sob a ameaça de danação eterna, é talvez sua maior virtude quando comparado com suas irmãs mais velhas. Difícil ser mais ecumênico e inclusivo (5), porém devo admitir que também não é uma boa estratégia de marketing, afinal “se posso ser salvo sem me mudar para o Espiritismo, vou ficar na religião dos meus ancestrais, pois ‘vai quê, né?'”; e um dos motivos pelo qual acho que ele jamais será predominante. Cabe, além disso, ressaltar a inexistência de “demônios” no sentido de seres inerente e irrecuperavelmente voltados contra a humanidade e, sim, de irmãos retardatários ou encalhados precisando de ajuda. Uma mudança de perspectiva e tanto.

     

  • Há muito trabalho a fazer: não apenas para reduzir defasagem do tempo, que se avolumou muito nestes 160 anos, mas também para tapar partes em que a literatura kardecista é frequentemente omissa, como sexualidade. Não que inexistam opiniões a respeito desse e outros assuntos sensíveis dentro do movimento, mas são exatamente isso: opiniões, muitas vezes a refletir os preconceitos de quem as emite e/ou de uma época. Sem contar as inovações técnico-científicas nem sonhadas na época de Kardec, como o transplante de órgãos. Sobre este assunto, como conciliar esta opinião:

    Não é de admirar-se que disso tenham resultado vários casos comprovados de obssessão, seja pela confusão do espírito espoliado, ao sentir seu coração pulsando no peito de outro ser encarnado, seja pelo desejo de vingança sobre aquele que “roubou” um órgão seu.
    (…)

    CONCLUSÕES
    (…)

    – Não encontramos no Espiritismo nada que justifique e aprove a fria técnica do transplante, mesmo considerando que examinada por um lado, poderia ser tida como socorro à vítima de certa deficiência orgânica. Enquanto não se levar em conta a existência do componente espiritual no ser humano, o transplante acarretará maiores desequilíbrios do que aqueles que pretende corrigir. Além do mais, a tentativa indiscriminada de prolongamento da vida a qualquer preço, é inatural. É preciso que tudo que tudo se destrua, ensinam os espíritos, para renascer e se regenerar

    (…)

    – A palavra final é, pois, que não encontramos no Espiritismo a aprovação à técnica dos transplantes, não porque não a entendamos, mas justamente porque, ainda que rudimentarmente, podemos já alcançar todas as complexidades e objeções éticas envolvidas.

    Miranda, Hermínio C., O Transplante de Órgãos perante o Espiritismo, em Anais do Instituto de Difusão de Cultura Espírita do Brasil, vol. IV, 1979, pág. 177.

    Com esta:

    E quando chega esta hora Inevitável, quando então o corpo não mais oferece condição de habitação para o Espírito, caso um ou outro órgão ainda possa servir para a existência orgânica de outra criatura em Humanidade – nossa irmã -deixemos que nossas córneas possibilitem a visão a terceiros; que o nosso coração bombeie sangue em peito de outrem; que os nossos rins filtrem o sangue de outro companheiro de romagem terrena; que o nosso fígado mantenha o metabolismo de outro irmão nosso que precise de um doador desta glândula hepática.
    No mundo espiritual, para o qual estaremos regressando não nos fará falta aquela peça anatômica que doamos. Até porque ela estaria mesmo fadada a sofrer degradação na enorme oficina da Natureza. Caso possa ser útil, melhor para nós e para quem a venha receber

    Martins, Celso; Doação de Órgãos – o Espiritismo esclarece, 3a. ed., Palavras Finais.

    Não coloquei aqui, mas este último também traz comunicações de jovens doadores desencarnados apoiando a doação. Entre ele e o artigo de Hermínio C. Miranda se passaram uns 19 anos, tempo bastante para transplantes deixarem de ser novidade e polêmica. O que mudou foi a opinião de desencarnados ou a nossa?

    É, há muito o que fazer ainda.

Motivos para deixar

 

  • O Espiritismo se tornou um beco sem saída: por culpa dos próprios espíritas. Isso parece paradoxal com a alegação de que “há muito ainda a ser feito” que fiz na seção anterior, mas não há contradição entre a presença de muitas pendências na doutrina e a inexistência, até o momento, de condições para resolvê-las. E o principal óbice para essa falta de inovação é que – para os espíritas – o cânon fechou há mais de 150 anos. Por cânon entenda o Pentateuco, as Revistas Espíritas e “O que é Espiritismo”. Alguém deve estar pensando “não é possível mudar as obras de Allan Kardec, pois o autor delas já morreu”, o que concordo plenamente, assim como não é possível mudar as obras de “A Origem das Espécies” de Charles Darwin ou o “Principia Mathematica de Issac Newton. Felizmente nenhum estudante de universitário de Biologia aprende Teoria da Evolução com o primeiro livro, nem seu colega de Física/Engenharia com o segundo. Embora as ideias centrais desses dois livros permaneçam válidas, muito nesses dois campos da Ciência foi revisto e expandido, tanto que o valor desses livros hoje é mais histórico do que realmente prático.

     

  • Será difícil fazer as coisas mudarem: embora eu diga acima que há muito trabalho a fazer, reconheço que (1) dificilmente você o fará sozinho e (2) mais duro ainda será achar quem lhe ajude. Se alguém quiser fazer uma revisão da codificação se valendo dos diversos centros espíritas do Oiapoque ao Chuí, correrá grande chance de ser acusado de querer ser mais Kardec que o próprio Allan. Daí para ter sua reputação questionada e/ou maculada é um pequeno passo. Grupos, após se estabilizarem, tendem ao consenso e ao continuísmo. Por mais que sua proposta seja obter um espaço amostral amplo, uma documentação sistemática, robusta e pública das perguntas e repostas que obtiver (algo inexistente para o LE), será visto na melhor das hipóteses como um presunçoso e na pior como um herege detrator de Kardec. Bem-vindo ao clube!
    Felizmente, graças à Internet, poderá descobrir outras pessoas com afinidade, só não é garantido que estejam fisicamente perto para constituir uma comunidade.

     

  • Há muitas oportunidades além do paradigma judaico-cristão: Já teci alhures minha opinião de que o espiritismo é um pós-cristianismo, herdando muito da segunda revelação (o sermão da montanha e outras injunções morais), descartando outras partes (a mensagem paulina, o apocalipcismo, a crença na ressurreição, etc.), e dando uma interpretação completamente distinta de outras (p.e. os milagres). Contundo, o espiritismo kardecista herda o ranço pecado-culpa/castigo-expiação de suas predecessoras. Assim como as religiões abraamicas antecessoras suas, o Espiritismo kardecista ainda se calca na resposta a esta pergunta:

Um ser poderoso existe e se importa com o que eu faço. Como posso agradá-lo?

Por outro lado, cerca de 550 anos antes de Jesus, alguém no coração do Índia se fez uma pergunta bem diferente

O sofrimento existe. Como posso escapar dele?

Enfim, existem diversas outras formas de espiritualidade que conseguem resolver melhor o “Problema do Mal” que as regiões cristãs, até pelo simples fato de não o criarem. Se o budismo é algo meio exótico para você, existem soluções na tradição ocidental como o estoicismo, por exemplo (5).

(Índice)

O que foi decido

Certa vez, em uma comunidade do finado Orkut, um jovem mancebo veio pedir conselhos amorosos: ele havia rompido com uma namorada de adolescência – a primeira e única que tivera até então -, trocado por um sujeito mais ao estilo “cafajeste”. Este, após se entediar da moça, também a descartou em dois ou três meses. Em ato contínuo, ela pediu para reatar. Confuso, o rapaz decidiu fazer uma “pesquisa de opinião”. Entre conselhos para voltar e outros para bani-la de vez da sua vida (6), alguém (não fui eu) teve um interessante vislumbre:

Você, no seu íntimo, já sabe se quer voltar pra ela ou não. Só está aqui atrás de uma racionalização para sua escolha sentimental.

Bingo! Quando a carga emocional envolvida é muito grande, O cérebro é posto a serviço do coração para racionalizar suas decisões, nem sempre muito acertadas (7). De forma análoga, meu caro, sua decisão de sair ou permanecer no Espiritismo já está tomada. Queres, apenas, um empurrãozinho.

Não importa qual seja ela, desejo-lhe felicidades.

(Índice)

Notas

(1) Em Personalities and Powers, capítulo “Human Nature in Politics“, Londres, 1955, p.6, apud David Hackett Fischer, Historians’ Fallacies, 1970, cap. XI, pp. 305-6

(2) Da tabela verdade da implicação “Se A, então B“:

A B A -> B
V V V
V F V
F V F
F F V

Ainda um pouco obscuro? Um exemplo prático pode ajudar: suponhamos que alguém afirme “Se fizer bom tempo(A), então irei me divertir(B)”. Caso o tempo esteja bom e ele saia para se divertir, a promessa terá sido cumprida. Também não terá quebrado a promessa caso o tempo esteja ruim e fique em casa. Agora, ele pode muito bem ir se divertir em ambiente fechado mesmo com tempo ruim, afinal jamais disse que não o faria. Apenas se ficasse deitado na cama mesmo com tempo bom é que violaria suas palavras.

O que a desatenção pode causar (e creio que foi o caso de Simonetti) é confundir implicação com equivalência, a famosa “se e somente se”. Essa sim demanda que as duas condições sejam iguais para a fórmula ser válida:

A B A <-> B
V V V
V F F
F V F
F F V

(3) Já ouvi de espíritas que o recente problema da eclosão de superbactérias resistentes seria uma prova validade da ladainha medicinal escrita em Emmanuel. Bem, primeiramente eu duvido que os defensores dessa tese se tratem apenas com passes quando adoecem. Segundo, eu recomendaria mais estudo de Biologia, em especial da teoria da evolução, pois o surgimento de cepas resistentes foi mais fruto da imprudência terrena que de um castigo divino. Terceiro, o mesmo princípio seletivo que deu resistência à germes, pode ser usado para combatê-los. O coquetel de antirretrovirais usado no tratamento da AIDS é um exemplo disso, pois é bem mais difícil um mesmo organismo se adaptar a dois ou mais tipos de ataques simultâneos. Quarto, sinto muito, mas a ciência não para. Se a descoberta da penicilina foi um feliz acidente, a pesquisa de novos medicamentos não o é mais. Antes tínhamos de buscar as substâncias ofertadas pela Natureza. Hoje, montamos moléculas complexas, algo supostamente inviável para nós, como corolário da resposta à questão 34 de O Livro dos Espíritos.

Não sei, mas sinto que um chamamento à humanidade encarnada para que se curve às leis divinas é uma camuflada ojeriza à ideia de que ela seja protagonista de sua própria História. Talvez a essa humildade moralista seja a forma mais abjeta de arrogância travestida.

(4) Coloco salvação entre aspas, porque não faz muito sentido falar nela em um sistema reencarnacionista. Na prática, significa prevenir sofrimentos (ainda que temporários) na erraticidade e acelerar o progresso.

(5) Parodiando uma das cenas finais do filme O Nome da Rosa, se minha biblioteca pegasse fogo e eu só pudesse salvar dois livros, eles seriam Meditações, de Marco Aurélio, e Ensaios, de Michel de Montaigne. O resto deixava queimar, inclusive o teu conjunto de livros sagrados, prezado leitor. Nada contra ele, é que só tenho duas mãos…

(6)Eu recomendei que ele partisse para outra. Aleguei que o ex-casal precisava aprender duas lições: ela só valorizaria realmente o relacionamento que teve se o perdesse; ele precisava se dar conta de que ela não era a única mulher no mundo. Os que me criticaram lembraram da parábola do filho pródigo (esqueci de dizer, o rapaz era religioso e ambos se conheceram em grupo jovem de Igreja), o que retruquei lembrando que o jovem da parábola chegou ao cúmulo de se alimentar da ração dos porcos. Ela, como mulher jovem, e sem filhos, estava no feijão com arroz, pelo menos. Outros cogitaram “e se ela for a mulher da vida dele?” – o que me fez lembrar da história dos “casamentos arranjados” no plano espiritual -, a estes respondi isso até poderia ser verdade (afinal, não conhecera outra), porém ele não era o homem da vida dela. Esse título estava com o “cafa” que a descartou. Ela não esqueceria dele tão facilmente, nem em pouco tempo. As comparações e frustrações seriam inevitáveis.

Não enganei o rapaz e lembrei-lhe que das dificuldades que viriam. Ela, por ser mulher, tinha o privilégio da escolha no jogo da corte, ao passo que ele teria de suar a camisa e o cérebro para se tornar o escolhido de outra. Por outro lado, a demografia das igrejas era favorável aos homens. E que não tivesse pressa, pois tinha de passar um tempo só para se aperfeiçoar e esquecer o relacionamento antigo, antes de passar a um novo.

Não sei que fim levou, mas acho que ele estava mais inclinado a voltar para ela…

(7) Por esse e outros motivos, considero a expressão “fé racionada” uma contradição em termos.

(Índice)

A Profissão – por Isaac Asimov

Capa de Astounding Science Fiction, novembro de 1957

este conto integra o livro Nove Amanhãs

traduzido e adaptado por Sérgio Coelho*

Terra, 30 de abril de 6551. George Platen mal se continha de ansiedade e ressentimento. No dia seguinte, como todos os anos, 1.500 mundos habitados iriam participar das Olimpíadas, nas quais “técnicos registrados” se confrontariam em uma prova de habilidades, sendo que os melhores em cada profissão iriam ser convocados para trabalhar nos mundos superiores, como Nóvia. Mas George não poderia participar.

Desde criança, George demonstrara algumas esquisitices. Queria ser programador de computadores, porque achava que sempre seriam necessários, independentemente das profissões da moda. Seu vizinho, principal amigo e rival, Trevelyan, queria ser metalúrgico como seu pai e avô haviam sido antes dele. Só que, havia mais de 1.500 anos, as pessoas não escolhiam mais aquilo que gostariam de ser. O sistema de ensino havia se desenvolvido tanto que se tornara instantâneo.

Todo mês de novembro, os jovens que completavam 18 anos passavam pelo Dia da Instrução, quando tinham seus cérebros vasculhados por grandes máquinas capazes de reconhecer para que tipo de profissão eles eram mais aptos, e programá-los para ela através de fitas pré-gravadas. De um dia para o outro, eles se tornavam “técnicos registrados”, sabendo tudo o que era preciso para ganhar a vida, sem poder decidir sobre isso – da mesma forma que, dez anos antes, haviam passado pelo “Dia da Leitura”, quando aprendiam a ler, também instantaneamente.

As Olimpíadas existiam, então, para que se classificassem aqueles que iriam trabalhar em mundos mais evoluídos. Desde criança George se preparava para ir para o melhor deles, Nóvia, chegando até – coisa esquisita – a estudar computação por conta própria, em antigos livros que ninguém mais usava, querendo aumentar as sua chances. No Dia da Leitura, porém, já havia surgido um primeiro sinal: os técnicos demoraram um pouco mais para fazê-lo ler, parecendo intrigados com seu caso.

Mas no Dia da Instrução, a desgraça caiu sobre ele. Depois de uma disputa acirrada na fila de espera com seu rival Trevelyan, para saber quem iria ter uma profissão mais nobre, George entrou na máquina, ansioso, e recebeu um resultado ainda pior do que poderia imaginar. Simplesmente seu cérebro não podia ser lido pela máquina: não era apto a absorver nenhum conhecimento em especial. George era um desadaptado para o mundo perfeito do século 60.

George então é encaminhado em segredo para uma instituição especial, que lhe dizem ser uma casa para débeis mentais, onde ele tem que aprender lentamente, através de livros. Dizem também que ele é “um protegido do planeta” mas nada o consola. Pensa que “não passaria nunca disso. Seria uma adolescente por toda a vida. Um pré-instruído eterno, e para ele teriam que ser escritos livros especiais”.

George Platen, como 18 anos, tem que ficar morando em um quarto junto com Omani, que tem 30, o mesmo problema que ele, mas parecendo não se importar.

Quando chega a época das Olimpíadas, George se revolta. Não consegue esquecer que, no Dia da Instrução, caíra na besteira de ter se vangloriado diante do técnico de que havia tentado aprender por conta própria. Acha que tudo é uma vingança dos burocratas por ele ter tentado burlar as regras, e quer provar para o mundo que não é débil mental. Por isso, toma a iniciativa de sair da instituição, depois de um ano de reclusão, e ir até um centro olímpico, encontrar alguém importante que o escute.

Para a sua surpresa, ninguém o impede de sair, e também não tem nenhuma dificuldade em tomar um avião. Por coincidência, chega ao mesmo centro no qual seu antigo colega Trevelyan – agora um metalúrgico registrado, como imaginou que seria – compete para poder ir trabalhar em Nóvia.

No estádio imenso, cheio de uma torcida histérica, George está desamparado. Lembra de repente que, quando criança, fizera uma pergunta que ninguém soube responder: por que chamam isso de Olimpíada? De onde veio esse nome? Qual a razão de tudo isso? O seu pai simplesmente dissera: “Não faça perguntas bobas. Quando for instruído saberá tudo o que for preciso saber”, e ninguém poderia imaginar a possibilidade de ele nunca vir a ser instruído.

Cada competido tem que analisar uma barra de liga não-ferrosa e descobrir sua composição exata, usando um “microespectógrafo Beeman”. Trevelyan não consegue ficar entre os três primeiros, e tem de desistir de Nóvia. Quando encontra George, no final da competição, fica um pouco surpreso, mas não desconfia de que seu amigo agora é um “fora-da-lei”, porque está muito preocupado em reclamar da injustiça que sofreu.

Como Trevelyan tivesse vindo de uma cidade pequena, suas fitas de instrução o haviam habilitado para o uso de máquinas Hensler, menos sofisticadas que as Beeman de última geração, que eram usadas em Nóvia. Ele sabia disso, mas mesmo assim insistiu em tentar concorrer para Nóvia. Ingenuamente, George pergunta: “Se você sabia com antecedência que seriam usadas Beemans, não poderia ter estudado sobre elas em livros?”. Trevelyan acha a proposta tão estranha, que deduz que seu antigo rival está querendo gozá-lo. Puxa uma briga, como nos velhos tempos, e o policial que vem apartar a luta está pronto descobrir sobre George, quando … surge um senhor grisalho e mostra uma carteira ao policial, que se afasta rapidamente. Esse senhor é um sociólogo registrado, Ingenescu, que estivera observando George havia algum tempo. Convida George para jantar em seu hotel, e explica-lhe por quê, por ser desadaptado, era tão importante: “Sociólogos trabalham com sociedades e sociedades são compostas de pessoas. Mas pessoas não são máquinas. Os profissionais das ciências físicas trabalham com máquinas. Há apenas uma quantidade limitada de coisas a saber a respeito de uma máquina, e os profissionais sabem tudo a seu respeito. Além do mais, todas as máquinas de determinada espécie são extremamente parecidas, de modo que não há nada que lhes interesse especialmente em determinada máquina. Mas as pessoas … bem, tratam-se de estruturas tão complexas e diferentes umas das outras, que um sociólogo nunca é capaz de saber tudo ou mesmo uma boa parte do que há para saber. Para compreender sua especialidade ele deve estar sempre pronto a estudar as pessoas, especialmente os espécimes incomuns”.

Sentindo-se valorizado pela primeira vez, George pede a Ingenescu para falar com uma noviano por “visofone”, privilégio de poucos terráqueos, para poder provar que ele não é um inútil. O sociólogo aceita.

O noviano é uma figura totalmente desprezível, pretensioso e meio bêbado, que fica ridicularizando Ingenescu por a Terra ser um “supermercado mental”, que vive trocando de modelos para obrigar Nóvia a vir fazer compras todos os anos. Ele mesmo, naquele dia, havia contratado três novos metalúrgicos que só diferiam dos modelos antigos por uma pequeno detalhe: o fato de conhecerem os espectrógrafos Beeman.

Neste momento, para espanto do noviano, George pede para interferir na conversa, e lhe apresenta sua ideia de “instruir sem fitas”, para que os metalúrgicos pudessem pensar por conta própria, sem que fosse preciso substituí-los. A princípio divertido, o noviano vai se irritando com essa ideia de “pensadores originais”, e, alegando que isso não seria prático, desliga na cara de George.

George, que havia chegado muito perto da realização de seu sonho, se desespera. Ingenescu tenta consolá-lo, e de repente George percebe que o sociólogo o chama pelo seu nome, sem que ele tivesse dito – tudo era um grande complô, e ele vinha sendo observado desde que saiu da “casa para débeis mentais”. Desesperado, grita: “Eu não sou débil mental! O mundo inteiro é, mas eu não!”. Dois policiais aparecem e o anestesiam.

Quando George Platen acorda, está de novo ao lado de Omani, na Casa. De repente, tudo fica claro. Percebe que aquilo que estava querendo propor ao noviano, uma lugar que concentrasse homens e mulheres com pensamentos originais, já existia: a própria Casa. Omani confirma, e revela que o verdadeiro nome da Casa é Instituto para Estudos Superiores. “Por que não me disseram isso desde o início?”, pergunta George. Omani responde: “Podemos analisar uma mente e dizer que esta dará um bom arquiteto e aquela um bom entalhador. Não somos capazes, porém, de detectar a capacidade para pensamentos originais e ideias criativas…”.

“No Dia da Instrução, um em cada 100 mil apresenta a desadaptação que você apresentou, e são mandados para lugares como este aqui. Mas, mesmo depois dessa seleção, nove entre dez dos que vêm para cá não chegam a ser do tipo de material classificável como gênio criativo. Esses nove restantes recebem instrução por fita e acabam se tornando sociólogos registrados como Ingenescu, ou psicólogos, como eu. O décimo, ele mesmo tem que se revelar.”

“Nós trazemos todos para uma ‘casa para débeis mentais’, e aquele que não consegue aceitar isso é justamente o homem que procuramos. Pode ser um método cruel, mas funciona. Não adianta dizer a um homem: ‘Você é capaz de criar. Crie!’. É bem mais seguro esperar que o próprio homem diga: ‘Eu sou capaz de criar e vou fazê-lo, quer vocês queiram, quer não’. Há apenas 10 mil homens como você, George, que constituem a base para o avanço tecnológico de 1.500 mundos.”

George pensa na pergunta que nunca lhe haviam respondido: “por que” (e não “como são”) “as Olimpíadas?”. E descobre a grande responsabilidade que lhe cabe: inventar as novas fitas de instrução.

(*)[publicado em Escuta, Charlie Brown!, Moderna, 2a. ed., pp. 72-8]

* * *

E você, prezado leitor, qual a pergunta que fez e nunca lhe responderam em seu centro espírita (ou igreja, terreiro, sinagoga, mesquita, templo, etc.)?

Ele chegou

Bem vindo

Bem, a imagem acima vale mais que mil palavras para explicar o que me aconteceu recentemente.

Não, não vou abandonar este portal, mas seu ritmo diminuirá muito.

A meu garoto, antes de mais nada, seja bem vindo! Sei que não pediu para existir, mas desde já obrigado existir em minha vida. Eu, que me considero uma ironia do destino ambulante, me pergunto o que será que você irá aprontar? Embora a promessa que fiz a tua mãe te coloque num caminho quase oposto ao que teu avô paterno imaginou para o futuro da família, sei bem que a capacidade dos pais em moldar os filhos é limitada. Do fundo do meu coração, espero que daqui a quinze anos, quem sabe até um pouco antes, você tenha uma baita de uma crise existencial. Brigue com o mundo, comigo e até com Deus, também. Só não magoe sua mãe, por favor. Depois, uma década ou duas mais à frente, vá se reconciliando, porém nos seus termos. Se voltar para mim, será sinal que não posso mais falar contigo como filho, e sim como igual. Quando não precisar mais de mim, então saberei que continua ao meu lado pelo prazer da companhia. Caso desenvolva novamente algum tipo de espiritualidade, tenho certeza de que ela não será mais a que as crianças aprendem nas aulas de catequese, escolas dominicais ou evangelizações. Não envolverá nenhuma das diversas divindades que a humanidade inventou, nem se apresentará de forma ininteligível no intuito de não ser questionada. Caso ela ainda contenha um deus pessoal, que seja um que não precise ser defendido, pois você poderá amá-lo sem temê-lo. Jamais acredite na sinceridade da fé de alguém que nunca tenha blasfemado.

Por que digo essas coisas? Simples: para que siga seu próprio caminho. O amadurecimento é um processo edipiano, i.e., é preciso que você me mate (simbolicamente, por favor) para que possa seguir em frente. E em sua “paternidade” estará tudo aquilo que receber pronto: a educação escolar, sua cultura, seus valores e seus medos. Quando se libertar disso, não recomeçará do zero: pegará nossos destroços e com eles pavimentará a estrada de seu destino. Não pense que não encontrará resistência do status quo, pois no calor da discussão, serei capaz de te deserdar; outros te prometerão o inferno na Terra ou no outro mundo. Mantenha-se firme, afinal sempre foram os hereges os responsáveis pela evolução cultural da humanidade.

Adaptando certa inscrição feita em famoso templo religioso da Espanha, reúna tudo o que veio antes de você para que venha a inspirar os que vierem depois.

PS: Ele tem seus olhos, meu velho!

Prezado Hater

O Coronel, personagem de War for the Planet of the Apes

Enquanto redigia minhas memórias em “Prezado Fred“, recebi um e-mail de alguém meio desesperado:

Assunto: Alerta
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx <xxxxxxx@yahoo.com.br> <Nome completo do cidadão e e-mai>
Para Falhas Do Espiritismo
02/13/16 às 10:21 AM
Xxxxxxxx Xxxxxxx, <Meu nome>

Muito cuidado ao revelar assuntos referentes a minha vida particular, pois poderá se decepcionar com a verdade. Você pode estar sendo usando por pessoas que há muito tempo tentam me caluniar e difamar com objetivos escusos. Embora não saiba do conteúdo de muita coisa, informo que existem eventos que ainda não posso revelar, pois colocará pessoas próximas a mim em situações bem desconfortáveis. A história de minha vida já dá por si só um livro, mas existem ainda páginas em branco que precisam ser vividas, bem como eventos que aconteceram que somente quando eu aposentar, poderei revelar. Esta atitude sua poderá arranhar sua credibilidade na internet! Outrossim, a partir do ano que vem colocaremos seus argumentos à prova através do XXXXX <sigla de grupo apologético>, mas pouparemos sua identidade, visando somente seu conteúdo publicado. Este é o trato de nossa trilogia em resposta ao Falhas do Espiritismo!

Até breve!

Atenciosamente,

Xxxxxx <Primeiro nome do cidadão>

“A invencibilidade repousa na defesa, a vulnerabilidade revela-se no ataque”.
(Sun Tzu).

Visite: http://www.xxxxxx.org/

Bem, não intencionando tirar o leite das crianças, vou poupar sua identidade também, porém deixarei uma quantidade de dicas grande o suficiente para que seu “grupo” saiba com quem estão lidando, se é que por lá não há mais gente capaz de atitude semelhante. Acho que nenhum deles paga suas contas, não?

A Conspiração

Muito cuidado ao revelar assuntos referentes a minha vida particular, pois poderá se decepcionar com a verdade. Você pode estar sendo usando por pessoas que há muito tempo tentam me caluniar e difamar com objetivos escusos.

Sem nenhum dado tangível que valide sua alegação, sou tentado a pensar que os illuminati se aliaram aos reptilianos em seus planos de dominação mundial e você é a última barreira no caminho deles. Zoeiras à parte, tenho bons motivos para não acreditar em ti, afinal já te peguei distorcendo o conteúdo do material deste portal quando lhe convinha. Se você age assim com o que tenho pleno conhecimento, o que não faria com o que me é ignorado.

“Uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma”

Embora não saiba do conteúdo de muita coisa, informo que existem eventos que ainda não posso revelar, pois colocará pessoas próximas a mim em situações bem desconfortáveis.

Então seus segredos podem ser qualquer coisa, inclusive coisa nenhuma. Sei que não tem muitos motivos para confiar em mim, porém se quiser obter algo extra de mim terá de arriscar.

Algo (quase) em comum

A história de minha vida já dá por si só um livro, (…)

Sou cético de que esteja com essa bola toda.

(…)mas existem ainda páginas em branco que precisam ser vividas, bem como eventos que aconteceram que somente quando eu aposentar, poderei revelar.

Acho que você talvez agora entenda porque usei um pseudônimo. Você usou seu nome verdadeiro desde o início, às vezes o nome completo. Se tudo fosse bem, ganharia muitos bônus por sua iniciativa, porém me parece que não esteve preparado para algum ônus quando as coisas desandassem.

Apelando para meu Ego

Esta atitude sua poderá arranhar sua credibilidade na internet!

Que credibilidade, diga-me? Você tem RG e CPF, mas Cyrix nunca existiu, caso não tenha percebido. Posso me reinventar em outro pseudônimo quantas vezes quiser enquanto existir a Internet. Será uma “reencarnação sem morte”. De certa forma, fiz isso uma vez, apenas não troquei de nome artístico. Por outro lado, “Falhas do Espiritismo” nunca estará em meu Curriculum Vitae. Ele é satisfação (ou obsessão) pessoal, apenas isso. Minha verdadeira carreira passa léguas daqui.

Uma falsa modéstia

Outrossim, a partir do ano que vem colocaremos seus argumentos à prova através do XXXXX <sigla de grupo apologético>, mas pouparemos sua identidade, visando somente seu conteúdo publicado.

A primeira pessoa do plural foi empregada, portanto, pergunto: você e mais quem? Ou tudo não passa de um “plural de modéstia”, sendo uma questão de honra só sua me refutar? Isso me é importante, pois eu gostaria de saber se você é a única maçã (até agora) podre do seu grupo de apologistas ou se há mais. Digo podre porque agora sei…

… do que você é capaz

mas pouparemos sua identidade, visando somente seu conteúdo publicado. Este é o trato de nossa trilogia em resposta ao Falhas do Espiritismo!

“Chantagem” agora tem outro nome? Não existe trato com chantagistas. Cedo ou tarde eles farão outra demanda com a mesma moeda de troca. Então, meu caro, faça o que você quiser! Ainda que me constranja de início, vai me libertar no longo prazo, pois poderei finalmente sair das sombras e tonar o portal útil para mim. Quem sabe até profissionalizar-me.

César sob a mira de uma pistola.

– Então, temos um trato, combinado?
– Ora, vai te catar!

Mau discípulo

Até breve!

Atenciosamente,

Xxxxxx <Primeiro nome do cidadão>

“A invencibilidade repousa na defesa, a vulnerabilidade revela-se no ataque”.
(Sun Tzu).

Visite: http://www.xxxxxx.org/

Por favor, não macule a memória de Sun Tzu com uma citação pinçada para fazer uma frase de efeito e fingir que é o tal. Em vez disso, faça uma citação longa, generosa e verdadeiramente instrutiva:

Capítulo IV – Disposições
Sun Tzu disse:

  1. Antigamente os guerreiros bem adestrados primeiro se faziam invencíveis para depois esperar o momento de vulnerabilidade do inimigo.
  2. A invencibilidade depende de nós mesmo; a vulnerabilidade do inimigo, dele;
  3. Segue-se que os homens conspícuos na guerra podem fazer-se invencíveis, mas não ter a certeza de provocar a vulnerabilidade do inimigo.

    Mei Yao-ch’en: Aquilo que depende de mim, eu o faço; aquilo que depende do inimigo, disso não estou certo.

  4. Por isso se disse que é possível saber vencer, mas não necessariamente conseguir vencer.
  5. A invencibilidade reside na defesa; a possibilidade de vitória no ataque.
  6. Defendemo-nos quando nossa força é insuficiente; atacamos quando ela é sobeja.
  7. Os peritos em defesa como que se escondem sob as nove camadas da terra; os versados no ataque movem-se como que acima das nove camadas do céu. Dessa forma mostram-se capazes de proteger-se e de obter uma vitória completa.

    Tu Yu: Os peritos na preparação de defesas acham fundamental contar com a força de obstáculos tais como montanhas, rios e encostas. Eles tornam impossível ao inimigo saber onde atacar. Como que se ocultam sob as nove camadas do solo.

    Os peritos na arte de desfechar ataques acham fundamental contar com as estações e as vantagens do terreno; provocam inundações e incêndios conforme a situação. Tornam impossível ao inimigo saber onde se entrincheirar. Lançam o ataque como se fora o raio vibrado do mais alto das nove camadas do céu.

    (. . .)

Sun Tzu, A Arte da Guerra, Paz e Terra, 1999, pp 45-6.

Com essa mensagem, demonstraste sua vulnerabilidade de forma lastimável. Já o fizeras antes numa pretensa refutação.

Diga “Cyrix” se for capaz!

Já que prontamente agiu ao me enviar a mensagem antes que eu adentrasse nas Flame Wars dos fóruns virtuais, presumo que estivesse me acompanhando de perto ou alguém te mantivesse a par. Isso demonstra, de alguma forma sou importante para ti, nem que seja como o detrator que ama odiar. É o que os anglófonos chamam de hate-watching. Calma, também procuro saber o que falam de mim por aí, e um belo dia encontrei um artigo seu longo e prolixo em que se gabava de suas “artes como debatedor”. Após um começo piegas em que o livro Torá: a Lei de Moisés é apresentado como ofertante prova da reencarnação na Bíblia nos versículos Ex 20:5 e 34:7 numa fatídica livraria, começo a ler parágrafos que aparentam ser respostas a argumentos meus contra Severino Celestino da Silva. Até aí tudo bem, estavas fazendo teu papel. O estranho, porém, residia numa particularidade: em instante algum houve uma alusão a este portal era feita, muito menos o apelido Cyrix era mencionado. Quem de fora do seu grupo lesse o artigo perceberia que esse autor era defendido de críticas, porém não saberia exatamente quais eram elas, nem quem as fez. Senti-me como uma espécie Lorde Voldemort, “aquele que não deve ser nomeado” ou “Você sabe quem”, tamanho é o medo que sentem dele. Como a carapuça aparentava ser do meu tamanho, resolvi prová-la.

Para ser sincero, aquilo sequer poderia ser chamado de uma verdadeira resposta, pois você fez uma jogada muito malandra: não respondeu a crítica alguma explicitamente; em vez disso, recontou os pontos do Dr. Severino com outros “fundamentos”. Dessa forma, esquivou-se de responder aos pontos mais indefensáveis, forneceu explicações sobre alguns pormenores e, de quebra, pregou para o coral. Para terminar, encheu linguiça com um extrato imenso do livro Analisando as Tradução Bíblicas. Nessa arte do debate, você fez um longo monólogo com o que julgou serem seus melhores momentos e os piores dos outros. Assim fica fácil.

Como se não bastasse, você cometeu erros crassos como, por exemplo, ignorar que trabalho com a mesma edição crítica da Septuaginta que o Dr. Severino e insinuou que minha versão era tendenciosa. Eu poderia ter feito uma refutação avassaladora, mas concluí que não valia a pena gastar meu escasso tempo livre com articulistas desonestos. Fiz algo melhor: elevei o nível do artigo original para “além do nono céu”, seguindo o conselho de Sun Tzu e explicitando ainda mais todas as fraquezas de Analisando…. Não deu outra: você retirou seu texto do ar e só voltou com ele depois de lapidá-lo um pouco, fazendo menções bem en passant às fragilidades que tentara esconder. Acho que ainda pensava que estou no nível de argumentação do pessoal do CACP.

Quer me refutar? Eu te ajudo!

Baseado nesse malfadado artigo, darei algumas dicas que te farão do um articulista melhor. Se bem que seu ponto de partida é tão ruim que não será preciso muito. Vamos lá:

  1. Deixe claro quem você está refutando: caso sua refutação seja realmente boa, não há por que temer que seus leitores leiam o original. Do contrário, corre-se sério risco de começar refutar a uma caricatura do original, que será mais fácil de trabalhar e muito ilusória quanto ao seu potencial;
  2. Faça citações grandes: já disseram que “texto fora de contexto é pretexto”. Clichês à parte, isso é uma grande verdade (e por isso que virou clichê). Siga o exemplo de Orígenes em sua obra Contra Celso. Por ela sabemos que a obra refutada se chamava “O Verdadeiro Discurso” ou “A Verdadeira Razão” e, embora não tenha sobrado exemplar algum do texto anticristão desse filósofo, pode-se ter uma boa noção dele devido às fartas citações que Orígenes fazia;
  3. Aprenda inglês: em certa altura você se esquiva de analisar certo trecho do Talmude Babilônico (tratado Sanhedrim) por ainda esperar uma tradução em português. Curiosamente, é o mesmo tratado que utilizei em Quanto pesa a alma?, que peguei de uma tradução inglesa, online, gratuita. Sinceramente, tire um ano sabático e aprenda inglês. Não estou falando para você se tornar superfluente, capaz de assistir filmes sem dublagem, nem legenda, ou discutir filosofia com um nativo ao telefone. Você precisaria apenas ler. Você e todos os outros monoglotas do seu grupo não têm a mínima condição de autointitular “pesquisadores” sem essa ferramenta. Isso já bastaria para ver que não adulterei nada em minha tradução. Para vocês fazerem suas próprias traduções, um bom dicionário e prática lhes ajudariam. Agora, se seu inglês, digamos, já “dava pro gasto”, então você tirou o corpo fora para ganhar tempo. Outra esperteza;
  4. Arrume uma bibliografia decente: que muito provavelmente estará em inglês, afinal a maior parte da produção científica da atualidade é nesse idioma. Preste atenção: científica, ou seja, textos que procuram embasar seus argumentos em fontes primárias e submeterem-se ao contraditório. Cansei de ler textos espíritas que só trazem (quando trazem) referência a outros textos espíritas/espiritualistas. Vejo dentistas, auditores fiscais, juízes, jornalistas, etc. se arvorando de autoridade para falar do passado, já historiador que se preze, nada. E, principalmente ao lidar com ciências humanas, é bom saber o quanto a tese proposta é controversa ou não, do contrário você clamará como certa uma publicação pelo simples fato de ter sido publicada;
  5. Tire o escorpião do bolso: não vai encontrar a maioria desses livros em sebos nacionais. Foi durante meus estudos sobre o II Concílio de Constantinopla que mais maltratei meu cartão de crédito na Amazon e em outras livrarias virtuais estrangeiras. Foram três anos de muito bons investimentos. Não sei como anda seu bolso no momento, mas lembre-se que sou apenas um, ao passo que você tem seus confrades. Alguns, julgo eu, bem de vida, financeiramente falando. Fazer uma vaquinha será uma boa forma de testar sua coesão interna e verificar se são realmente um grupo organizado ou mero bando;
  6. Cuidado com as autoridades: a escolha de uma boa bibliografia requer cuidado, porém. Primeiramente, alguns escrevem livros aventurando-se em temas sobre os quais não têm expertise alguma. Incluiria nesse rol José Reis Chaves, Elizabeth Prophet e, sim, Severino Celestino da Silva. Boa parte dos membros desse grupo já tem a conclusão de seus estudos pronta antes de sequer começar; apenas catam e organizam dados corroboradores e fingem inexistirem controvérsias. Por outro lado, há um grande número de autoridades cuja formação realmente segue seus estudos, mas lembre-se: não possuem divina infalibilidade. Autoridades antigas podem já estar defasadas em diversos pontos; por exemplo, eu adoro Edward Gibbon e seu Declínio e Queda do Império Romano, mas sou comedido em seu uso, pois sei que muita coisa sobre o tema foi revista de duzentos anos para cá. Além disso, atenção às envoltas em grande controvérsia, como esotérico Champlin. Existem, também, o temas que são controversos por sua própria natureza – como o perfil do Jesus Histórico – e nesses você pode encontrar autores igualmente competentes falando coisas díspares, por pertencerem a escolas diferentes. Por fim, mas não menos importante, peço que não envergonhe suas fontes se escondendo atrás delas. Não use autoridades como “carteirada intelectual”. Elas, em si, são apenas humanos como nós; seus argumentos e provas é que são fundamentais. Não faça como certo cidadão que fica clamando que Bart Ehrman é o “maior biblista do mundo” e ainda confunde “variações” com “alterações” (da Bíblia), demonstrando não entender muito bem do que Ehrman escrevera;
  7. Prefira o acadêmico ao de divulgação: Por falar em Bart Ehrman, ele é, de fato, bom, mas não é “o maior biblista do mundo” e nem ele se rotula assim. Creio que foi uma jogada de marketing da Prestígio, a editora no Brasil de O que Jesus disse? O que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê. É um grande divulgador, devo concordar, e competente em sua área. Mas se quer realmente ler um livro dele, comece por The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings, que é seu livro escrito para estudantes de seminários protestantes. É outro nível de discussão e, ao fim de cada capítulo, há dicas para continuar seu estudos sobre o tema em questão. Seus livros para o grande público são bem escritos e desenvolvem alguns tópicos que neste livro, ficaram limitados a um capítulo; porém nenhum deles dará uma visão abrangente. Ah! Já ia me esquecendo: está em inglês;
  8. Se possível, leia os originais: já que o Pentateuco espírita é o ponto de partida para os novatos do movimento, porque você se furtaria de ler os textos originais de autores antigos? Sim, essa é uma pergunta capciosa. De fato, é possível aprender sobre determinado autor e época sem ler todos os originais ou apenas extratos. A questão real é qual pedra de toque usarias para saber quem está sendo fidedigno ao objeto de estudo e quem o distorce fazendo uma releitura muito pessoal? Estaria um antagonista exagerando na crítica, um simpatizante nos elogios e um pretenso isento na falta de substância de sua análise? É possível enxergar “fora da caixa”? Para responder essas perguntas, terá você mesmo de ler algo de fontes em primeira mão sobre determinado assunto e tecer seu próprio juízo separando estudiosos de impostores. Mas para isso, você tem que ter…;
  9. Fontes, diga quais são elas é bizarro, mas você faz alusão a certos “eruditos” que nunca são especificados ou nomeados. Será que eles existem, ou será algum deles já foi chamado de “detrator” por você ou pelos seus?
  10. Não diga apenas a verdade, mas toda a verdade: quando citar os versículos que contradizem a ideia de maldições hereditárias, cite, também os que a corroboram (que, aliás, estão em maior número). Em outras palavras, não faça “cherry picking“. Depois, tente explicar essa contradição sem aparentar dar uma de “ensaboado” para quem está de fora;
  11. Não dê tiro no pé: Não capítulo VIII, p. 135 da 4ª edição de Analisando as Traduções Bíblicas, Dr. Severino diz:

    Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

    No caso, ele se refere ao uso da preposição “até” em Ex 20: e 34:7, no trecho “até a terceira e quarta geração“. Você tacitamente admitiu a possibilidade, na língua latina, de uma tradução da preposição in como “até”, caso se seguisse a norma clássica da regência dessa preposição no caso acusativo. De certa forma, ao elevar o nível da discussão, você soube de onde “tiraram isso” e, por vias tortas, demonstrou o quão rasa foi a análise da tradução feita por Severino, ao menos da versão latina. A questão é que você não aceitou a norma clássica nesse caso, o que te levou a…

  12. Apelar – sem isso, por favor: por não aceitar a tradução latina convencional, você elaborou uma elucubrada tese de que Jerônimo – o tradutor da Vulgata – teria usado a regência do acusativo da preposição in objetivando um sentido que, na norma clássica, corresponderia à regência dela no ablativo: “em”. Era um parágrafo particularmente confuso em que você fez uma série de considerações especiais para convencer seu leitor de que a tradução do Dr. Severino seria válida. Desculpe, mas esse bizarro contorcionismo foi infeliz:
    1. Não se baseia em nenhuma análise da gramática da Vulgata propriamente dita, a não ser o alegado por “estudiosos” e “eruditos” que nunca são nomeados;
    2. Até acerta ao sugerir que o latim da Vulgata não corresponde exatamente ao clássico, mas erra no grau: se quer um texto latino cheio de vulgarismos, deveria ter optado pela Vetus;
    3. Acha que por se chamar Vulgata (i.e., para o vulgo), ela deveria estar escrita em linguagem popular. Isso é um anacronismo, pois esse termo originalmente se referia à Vetus (cf. Agostinho de Hipona, Cidade de Deus, livro XVI, cap. VIII), apenas sendo usado para designar a tradução/revisão de Jerônimo a partir da Idade Média;
    4. Sequer a Vetus te confirmaria: Jerônimo, quando faz uso da Vetus, revela que seu exemplar não trazia a tradução que você gostaria;
    5. Tampouco Jerônimo (e Agostinho) interpretava(m) esses versículo do jeito que você gostaria. Como sei disso? Fui ler o que esse(s) cidadão(s) escreveu(ram) a respeito, em vez de inventar outro(s) que me aprouvesse(m);
    6. Outra vez: seu tecnicismo mostrou o quão raso ou, melhor, inexistente foi o tratamento dado no livro do Dr. Severino à regência da preposição in. Tem certeza que vale a pena defendê-lo só por ter sido escrito por um confrade?

    Tudo bem que se queira fazer uma alegação contundente, porém, para tanto, é mister alguma solidez nos fundamentos. E você fincou seus alicerces na areia dos “achismos”;

  13. Seja coerente: e lembre-se que isso não significa estar certo, mas, sim, não se contradizer, seja por palavras ou atitudes. Pode-se estar tremendamente equivocado e ainda assim em conformidade com seus princípios. A incoerência, no seu caso, deu-se ao tratar o texto hebraico usando regras normativas de gramática e o latino por uma (errônea) abordagem descritiva do que teria sido o latim vulgar. Ou seja, a língua hebraica não teria evoluído nada durante a transmissão do texto massorético, ao passo que a latina não só evoluía, como seguiu para uma direção muito conveniente para ti. Poderia até haver uma razão para tanto, porém, no balanço geral, o único fundamento dessa tese foi sua própria conveniência. Ah! Não se esqueça: “em” com o sentido de “a/até” ainda é usada até hoje na linguagem coloquial do português brasileiro;
  14. Reconheça que Deus também evolui: ao menos na cabeça de seus adoradores. Você comete uma série de wishful thinkings ao recusar a admitir a ideia de maldições hereditárias entre os antigos hebreus. Era uma doutrina injusta? Sim, e daí? Aquele era o deus que eles precisavam para um contexto pré-exílio, quando não havia, ainda, crença em vida após a morte. As concepções acerca do deus único e seu relacionamento com os mortais mudou após a passagem por Babilônia e continuaram a mudar (e se diversificar) ao longo da sucessão de invasores estrangeiros. Se você, antolhado por sua fé cega, acha que a reencarnação é a única forma de salvar Ex 20:5 e 34:7, então você (1) é pouco criativo e (2) tem um baita narcisismo teológico. Uma terceira opção é você saber que as alternativas existem e não julgá-las tão elegantes como considera a reencarnação. Mais um motivo porque seu “debate” não passa de um monólogo;
  15. Não tape o Sol com peneira: na primeira versão, você se valeu de um exemplar interlinear (inglês/grego) da LXX, cuja leitura de Ex 20:5 lhe era conveniente e chegou ao ponto de cogitar que alguns portais com uma edição virtual da LXX haviam adulterado o versículo grego para conciliá-lo com a leitura “até a terceira…” do texto inglês. Pena que você não leu Nm 14:18 do seu próprio exemplar para encontrar justamente essa leitura. Tudo bem, talvez não tenha se tocado. Por isso mesmo esfreguei na sua cara que a edição crítica usada pelo Dr. Severino – a de Alfred Rahlfs – traz “até a terceira…” como leitura principal e “na terceira…” como uma leitura variante encontrada no Códice Alexandrino. Ela ainda trazia “na terceira…” em Dt 5:9 e “até a terceira…” em Nm 14:18. Estava aí a explicação para as diferenças entre as leituras: códices distintos. Você até passou a fazer menção a Rahlphs na revisão que fez, mas desviou do ponto mais nevrágico: o Dr. Severino tinha pelo acesso à leitura “até a terceira e quarta geração” em Ex 20:5 na LXX (e na tradução de André Chouraqui, também), porém omitiu esse fato em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas, exibindo apenas Ex 34:7. Muito conveniente (e grave), não acha? Sequer se aferrar à leitura alexandrina (como você fez) ele tentou. Aliás, exatamente essa oscilação entre “até” e “em” diversos versículo paralelos da LXX sugere que a confusão de significados nas preposições hebraicas já estava ocorrendo nos últimos séculos antes da Era Cristã. E com quem será que aprendeste a respeito das trocas preposicionais, hein?
  16. Dê créditos a quem faz jus: na segunda versão você passou a mencionar a edição crítica da LXX feita por Rahlphs e a usar expressões como “trocas preposicionais em códices”. Isso já me era familiar, porém gritante mesmo foi isto:

    Havia uma certa sobreposição semântica nas duas versões pesquisadas, sendo estas entre εως e επι de acusativo. Isso dever ter repercutido nas versões latinas.

    p. 16

    Substituindo-se a preposição εως por εις fica praticamente igual a uma frase que eu disse neste portal. Pois é, meu hater de estimação: você aprendeu algo comigo e recusou-se a admitir que se “apoiou em meus ombros” também! Você pode até jurar ajoelhado que não foi nada disso, alegando que chegou à conclusão por via independente – usando outra gramática  -, e até enganar meio mundo. Só me pergunto se já conseguiu enganar a si mesmo, tornando-se o mais perfeito tipo de mentiroso: o que acredita nas próprias lorotas. Como escrevi isso antes e sei que você me lê, não caio nesse papo. Um confrade seu escreveu um e-book sobre a questão da reencarnação e o II Concílio de Constantinopla e, apesar de nossas inúmeras diferenças, ele me reconheceu meu artigo como o motivo da revisão de sua postura anterior. O coroamento da ironia é que você prefaciou justamente esse e-book. Não que eu me ressinta pela falta de reconhecimento, o que me preocupa é o que ela revelou de sua personalidade e me pergunto até onde irá teu cinismo;

  17. Por princípio, sem petições de princípio: traduzindo para bom português, não use em sua argumentação coisas que ainda carecem ser provadas, ou, pior, são justamente parte daquilo que se quer demonstrar. Por exemplo, muitas argumentações que já vi assumem, a priori, que o Espiritismo é a “Terceira Revelação”, o Consolador Prometido que veio relembrar das coisas esquecidas. O problema é que vários grupos já reclamaram esse título antes, e não creio que os espíritas serão sempre os últimos dessa fila. Certa vez, recebi um e-mail de leitor defendendo que Teodora influenciou, sim, Justiniano no V Concílio Ecumênico, embora houvesse morrido cinco anos antes, pois teria atuado a partir da espiritualidade. Respondi que não achava isso possível porque ela teria sofrido uma reencarnação compulsória como forma de proteção contra o assédio das 500 prostitutas que assassinara. Nossa conversa acabou por aí. Muitas das pessoas que me escrevem, de fato, trazem “respostas” aos meus questionamentos, porém não chegam a ser refutações, pois um ou mais ingredientes de seu raciocínio só é válido ou aceito dentro de Centros Espíritas. Agora, se seu intento foi apenas pregar para convertidos, tudo bem. Só me inclua fora dessa.<br />
  18. Por último, mas não menos importante: transcenda sua condição de espírita: ao menos a de ortodoxo. Do contrário, não passará de um mero revisor da obra kardecista: todas as conclusões já estarão no Pentateuco (espírita), na Revista e em O que é Espiritismo?. Seu único trabalho será catar evidências que corroborem tais “conclusões” e fazer vista grossa para as discrepâncias. Exatamente o que você fez no seu infeliz artigo, algo não muito diferente do que os criacionistas bíblicos (e védicos, também) fazem. Em outras palavras, toda vez que a Ciência corroborar sua ortodoxia, você dirá: “viram só, o Espiritismo já antecipava isso há 150 anos”; porém, quando ela discordar, papo será: “a Ciência é falível por ser feita por homens”, “tudo nela é provisório”. Ainda que haja certa verdade nisso, essa atitude continuará sendo uma cortina de fumaça para auxiliar sua fuga ante qualquer tentativa de refutação.
    Como você pode fazer isso? Bem, uma possibilidade é chutar o balde, como eu, e se tornar um detrator antagonista. Algo menos radical é caminhar entre o espiritualismo e o livre pensamento, como fez Vitor Moura. Nesse caso, as pesquisas nos campos psi e “hipótese sobrevivência” deixam de ser ameaças e geram insumos para elaboração de novas hipóteses sobre a relação mente x cérebro. Um terceiro caminho é compartimentar o espírita em uma parte de seu ser e o pesquisador em outra. Um exemplo disso seria o historiador Lair Amaro, que impressionante análise crítica fez do romance Há Dois Mil Anos, de Chico Xavier/Emmanuel. Não importa qual desses caminhos você escolha, mexerá com “vacas sagradas” do movimento espírita e, portanto, há de desagradar alguém. Pelo menos pode escolher a quem importunar e como.
    Caso opte em bater de boa com todos os “confrades”, ótimo. Para mim, claro, afinal terá alguns “graus de liberdade” intelectual a menos para se locomover e terei uma vantagem da qual usarei e abusarei. De certa forma, ficará com u’a mão amarrada tal qual os fanáticos cristãos de que tanto gosta. Pode até não falar em Adão e Eva ou cobra falante, porém outras posturas anticientíficas surgem sem falta.

    O Coronel sucumbe à infecção pelo vírus

    – Ei, apologista espírita, onde estão os marcianos e jupiterianos?
    – aah.. ugh ugh… grr.
    – Pelo visto, o vírus do fundamentalismo já comeu teu cérebro todo.

    Pode até rir dos católicos e evangélicos por suas doutrinas engessadas, não será mais do um pássaro de um viveiro amplo rindo de seu irmão aprisionado numa gaiola, esquecendo-se da vastidão do céu que lhe é inatingível. Estará numa caixa maior, porém ainda incapaz de pensar fora dela. Com o tempo, perderá aquilo de que tanto se vangloria com relação aos demais cristãos: a faculdade da razão. Deixará de criar para meramente copiar, contará histórias que leu ou ouviu em vez de viver as suas próprias. Tornar-se-á mais digno de pena que de raiva.

* * *

Bem, agora que já te mordi um bocado, vou assoprar um pouco: parabéns! Sim, verdade, você está de parabéns por, ao menos, ter tentado me refutar. Bem ao contrário de certo confrade teu que esbravejou as mágoas num jornal de circulação regional e deixou por isso mesmo. Você não, muito pelo contrário, parece obcecado por mim. Pergunto-me, um pouco, pelo porquê.

Conta uma anedota que o alpinista George Mallory (1886 – 1924), quando perguntado sobre a razão de seu desejo em escalar o Monte Evereste, simplesmente respondia: “Porque ele está lá”. Creio que seu caso seja um tanto análogo a isso. Você e seu grupo apologético já digladiaram com quevedianos, o Centro Apologético Cristão de Pesquisas (CACP), o Instituto Cristãos de Pesquisas (ICP), o Fórum Evangélico, o Adventista, etc., sobrando apenas eu a ser devidamente atacado. Não, talvez seja muita pretensão minha. Não posso esquecer do Criticando Kardec e do Obras Psicografadas que, embora contenham muito material que lhes seria útil, são bem pesquisados desde seus respectivos começos, volta e meia importunando “vacas sagradas” do Movimento Espírita. Meu portal, assim, seria apenas o próximo da fila por possuir tanto um pé no aspecto religioso e outro no científico. Por meio do primeiro pretendiam começar o ataque com a farta discussão que tiveram com os religiosos.

Parece-me que esqueceu de um pormenor crucial: o paradigma aqui é outro, pois eu não tento provar a Bíblia com ela mesma. Meu universo de pesquisa é muito maior que o deles. Maior que o seu, também. Ademais, como não religioso, dispenso qualquer obrigação de aceitar juízos de valor ao tratar de alguma divindade antiga. Se o Javé do Antigo Testamento te desagrada, sinto muito, pois era o deus que os antigos hebreus precisavam, o resto é releitura posterior. Com isso, boa parte do arsenal que acumulou simplesmente deixou de ter serventia. Não desanime, você continuará, em sua teimosia, autoiludindo-se e carregando outros consigo. E podes até ser bem exitoso nisso, afinal é possível tecer raciocínios perfeitamente lógicos com premissas erradas. Criacionistas da Terra Jovem fazem assim. Quer saber de uma coisa: vocês, o CACP e o ICP se merecem.

Pergunto-me, às vezes, qual a razão por essa obsessão. Deve ter sido aquele “debate” que eu unilateralmente larguei no agora moribundo fórum do “Portal de Espírito” acho que discutíamos algo a respeito da natureza de Deus ou coisa do gênero. Acho que ficaste estimulado pela possibilidade de ter um adversário de maior quilate que a média do pessoal da seção “Do Contra” (lembras do Erivelton?) e injuriado por não conseguires atenção dele (i.e., de mim). Estou sendo vaidoso? Sem dúvida! Outra opção é que eu seja perigoso de mais para ser deixado solto impunemente por aí, o que afagaria meu ego do mesmo jeito. Um mero exercício para a atividade cerebral de um entediado? Pode ser, mas não está funcionando pelos motivos apontados acima. Estou aberto a sugestões.

Sabe, aqui do alto é muito solitário, frio e com ar rarefeito. Adoraria ter uma companhia para admirar a paisagem. Você pode ser um dos felizardos caso aceite o desafio de chegar até o cume. O lado bom é que, quando tiver vencido o desafio, terei eu vencido também, pois não será mais a mesma pessoa que começou a escalada. Apenas lembro que deves respeitar o desafio, do contrário o desafio se fará respeitar. O cadáver de George Mallory até pouco tempo repousava no Evereste sob camadas e camadas de neve.

Um abraço e veja se toma tenência. Caso não tome, tudo bem: haters gonna hate, e caravana continuará a passar enquanto eles ladram.

A Fonte da Vida

Pingo d'água

    Índice

    Além de fundamental para a existência orgânica, a água comumente esteve associada à ideia pureza. Na dualidade Imundície x limpeza recorrente no antigo judaísmo, a água teve papel fundamental como elemento purificador, o que também foi mais um legado da antiga religião ao cristianismo.

    Lavar-se: mais que um Dever, um Ritual

    Lavagem das mãos

    Lavar as mãos antes da oração: um serviço a Iahweh.

    Para o povo judeu, pureza do corpo é fundamental desde a época do Primeiro Templo. Atesta isso o livro de Levítico, o único do Pentateuco a ser praticamente desprovido de narrativa histórica, centrando-se quase exclusivamente na legislação da vida religiosa, civil, dietética e diária. Diversas são suas instruções de como lidar com os que estão doentes, envolvendo diversas práticas que hoje seriam consideradas de higiene e assepsia:

    E todo o animal que anda sobre as suas patas, todo o animal que anda a quatro pés, vos será por imundo; qualquer que tocar nos seus cadáveres será imundo até à tarde.

    E o que levar os seus cadáveres lavará as suas vestes, e será imundo até à tarde; eles vos serão por imundos.

    Lv 11:27,28

    Esta aparenta ser razoável, e surpreende ao estender o entendimento de “fluxo” para emissões naturais da fisiologia do corpo humano.

    Falai aos filhos de Israel, e dizei-lhes: Qualquer homem que tiver fluxo da sua carne, será imundo por causa do seu fluxo.

    Esta, pois, será a sua imundícia, por causa do seu fluxo; se a sua carne vasa o seu fluxo ou se a sua carne estanca o seu fluxo, esta é a sua imundícia.

    Toda a cama, em que se deitar o que tiver fluxo, será imunda; e toda a coisa, sobre o que se assentar, será imunda.

    E qualquer que tocar a sua cama, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    E aquele que se assentar sobre aquilo em que se assentou o que tem o fluxo, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    E aquele que tocar a carne do que tem o fluxo, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    Quando também o que tem o fluxo cuspir sobre um limpo, então lavará este as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    Lv 15:2-8

    Também o homem, quando sair dele o sêmen da cópula, toda a sua carne banhará com água, e será imundo até à tarde.

    Também toda a roupa, e toda a pele em que houver sêmen da cópula se lavará com água, e será imundo até à tarde.

    E também se um homem se deitar com a mulher e tiver emissão de sêmen, ambos se banharão com água, e serão imundos até à tarde.

    Lv 15:16-18

    O capítulo XIII é dedicado à distinção da lepra de feridas comuns. Caso alguém fosse diagnosticado com ela pelo sacerdote, era declarado “imundo” e tinha de viver apartado sociedade. O capítulo seguinte trata de sua reintegração em caso de remissão da doença, não sem antes passar por algumas limpezas finais:

    Esta será a lei do leproso no dia da sua purificação: será levado ao sacerdote,

    E o sacerdote sairá fora do arraial, e o examinará, e eis que, se a praga da lepra do leproso for sarada,

    Então o sacerdote ordenará que por aquele que se houver de purificar se tomem duas aves vivas e limpas, e pau de cedro, e carmesim, e hissopo.

    Mandará também o sacerdote que se degole uma ave num vaso de barro sobre águas vivas,

    E tomará a ave viva, e o pau de cedro, e o carmesim, e o hissopo, e os molhará, com a ave viva, no sangue da ave que foi degolada sobre as águas correntes.

    E sobre aquele que há de purificar-se da lepra espargirá sete vezes; então o declarará por limpo, e soltará a ave viva sobre a face do campo.

    E aquele que tem de purificar-se lavará as suas vestes, e rapará todo o seu pelo, e se lavará com água; assim será limpo; e depois entrará no arraial, porém, ficará fora da sua tenda por sete dias;

    E será que ao sétimo dia rapará todo o seu pelo, a sua cabeça, e a sua barba, e as sobrancelhas; sim, rapará todo o pelo, e lavará as suas vestes, e lavará a sua carne com água, e será limpo,

    E ao oitavo dia tomará dois cordeiros sem defeito, e uma cordeira sem defeito, de um ano, e três dízimas de flor de farinha para oferta de alimentos, amassada com azeite, e um logue de azeite;

    E o sacerdote que faz a purificação apresentará o homem que houver de purificar-se, com aquelas coisas, perante o Senhor, à porta da tenda da congregação.

    Lv 14:2-11

    De fato, cadáveres, conforme de degradam, tornam-se criadouros de germes e focos de doenças; sangue e sêmen podem ser infectantes caso seu emissor esteja doente. Faz sentido isolar o portador de uma doença (tida por) contagiosa antes que ela se torne uma praga. Contudo, Levítico traz uma série de restrições que são irrelevantes do ponto de vista medicinal:

    • Não usar um tecido feito com dois tipos de fios (19:19);

    • Não cortar o cabelo em redondo e aparar a barba dos lados (19:27);

    • Não comer carne de porco, camarão, mariscos, coelho, etc (11:1-12);

    • Não comer os frutos dos três primeiros anos de colheita (19:23).

    Por outro lado, tudo faz sentido se observarmos estes versículos:

    Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual vos levo, nem andareis nos seus estatutos.

    Fareis conforme os meus juízos, e os meus estatutos guardareis, para andardes neles. Eu sou o Senhor vosso Deus.

    Lv 18:3,4

    Ou seja, as diversas regras que Levíticos estipula existem para realçar a distinção entre os hebreus e os povos que os circundavam e, claro, garantir que pouco misturassem. Ao tornar tabu os pratos prediletos dos vizinhos, participar de uma confraternização com pagãos fica impraticável. Não adotar suas indumentárias torna hebreus e gentios distinguíveis de longe, já a constante higiene torna a proximidade com esses últimos desagradável aos primeiros, caso não a seguissem tão à risca. Não misturar tipos diferentes de fios num tecido, de animais num mesmo pasto ou de plantas no campo reforça ainda mais a ideia de segregação entre o Povo Eleito e restante. Em suma, as deliberações de Levíticos – a pureza material entre elas – estava a serviço da criação de uma identidade nacional israelita (1).

    Nos antigos textos hebraicos, três são as formas de purificação pela água: espargimento (aspersão), lavagem (ablução) e imersão. Algum ritual de limpeza tinha de ser aplicado àquele que se encontra-se me estado “imundo”. O fato de ter sido contaminado por alguma impureza não faria alguém automaticamente um pecador, podia-se simples ser algo que lhe aconteceu por estar no lugar errado, na hora errada:

    Esta é a lei, quando morrer algum homem em alguma tenda, todo aquele que entrar naquela tenda, e todo aquele que nela estiver, será imundo sete dias.

    Também todo o vaso aberto, sobre o qual não houver pano atado, será imundo.

    E todo aquele que sobre a face do campo tocar em alguém que for morto pela espada, ou em outro morto ou nos ossos de algum homem, ou numa sepultura, será imundo sete dias.

    Para um imundo, pois, tomarão da cinza da queima da expiação, e sobre ela colocarão água corrente num vaso.

    E um homem limpo tomará hissopo, e o molhará naquela água, e a espargirá sobre aquela tenda, e sobre todos os móveis, e sobre as pessoas que ali estiverem, como também sobre aquele que tocar os ossos, ou em alguém que foi morto, ou que faleceu, ou numa sepultura.

    E o limpo ao terceiro e sétimo dia espargirá sobre o imundo; e ao sétimo dia o purificará; e lavará as suas vestes, e se banhará na água, e à tarde será limpo.

    Nm 19:14-19

    O que deixaria alguém realmente em apuros seria não ter praticado a purificação sabendo de seu dever:

    Porém o que for imundo, e se não purificar, do meio da congregação será ele extirpado; porquanto contaminou o santuário do Senhor; água de separação sobre ele não foi espargida; imundo é.

    Nm 19:20

    [topo]

    A Mediadora de Deus

    Piscina encontrada na comunidade de Qumran

    Piscina de duas saídas, localizada em Qumran [Lawrence, p. 210].

    Se em Levíticos elas aparecem como parte de um conjunto de instruções para a vida cotidiana, outros livros apresentam a purificação como uma preparação simbólica a algo superior. Em Êxodo, Aarão e seus filhos lavaram pés e mãos antes de iniciar seus serviços na tenda do tabernáculo:

    E falou o Senhor a Moisés, dizendo:

    Farás também uma pia de cobre com a sua base de cobre, para lavar; e a porás entre a tenda da congregação e o altar; e nela deitarás água.

    E Aarão e seus filhos nela lavarão as suas mãos e os seus pés.

    Quando entrarem na tenda da congregação, lavar-se-ão com água, para que não morram, ou quando se chegarem ao altar para ministrar, para acender a oferta queimada ao Senhor.

    Lavarão, pois, as suas mãos e os seus pés, para que não morram; e isto lhes será por estatuto perpétuo a ele e à sua descendência nas suas gerações.

    Ex 30:17-21

    O salmista (Sl 26:5-7) deixou transparecer que esse procedimento era adotado também no Templo de Jerusalém ao tempo de Davi e o historiador Flávio Josefo também escreveu nesse sentido (2). No contexto cotidiano, o ato de lavar das mãos chegou a ser ritualizado já no período intertestamentário pela seita dos fariseus, como sugere Mc 7:3, já a lavagem dos pés permaneceu como parte de um ritual de hospitalidade (3).

    Em Números, os levitas precisam ser purificados antes da execução de seu ofício:

    E falou o Senhor a Moisés, dizendo: Toma os levitas do meio dos filhos de Israel e purifica-os;

    E assim lhes farás, para os purificar: Esparge sobre eles a água da expiação; e sobre toda a sua carne farão passar a navalha, e lavarão as suas vestes, e se purificarão.

    Então tomarão um novilho, com a sua oferta de alimentos de flor de farinha amassada com azeite; e tomarás tu outro novilho, para expiação do pecado.

    Nm 8:5-8

    Fora do Pentateuco, uma nova dinâmica de purificação surge: o próprio Deus procedendo a limpeza física por meio da ritual. O Segundo Livro de Reis, por exemplo, traz um caso interessante de cura mediante ritual de purificação:

    E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu Senhor, e de muito respeito; porque por ele o Senhor dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.

    E saíram tropas da Síria, da terra de Israel, e levaram presa uma menina que ficou ao serviço da mulher de Naamã.

    E disse esta à sua senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra.
    (. . .)

    Veio, pois, Naamã com os seus cavalos, e com o seu carro, e parou à porta da casa de Eliseu.

    Então Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: Vai, e lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será curada e ficarás purificado.

    (. . .)

    Então desceu, e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne de um menino, e ficou purificado.

    Então voltou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, e chegando, pôs-se diante dele, e disse: Eis que agora sei que em toda a terra não há Deus senão em Israel; agora, pois, peço-te que aceites uma bênção do teu servo.

    II Re 5:1-3, 9,10, 14,15

    Embora fosse sírio, Naamã era um homem de valor e serviria ao propósito de propaganda de Eliseu (II Re 5:8). Outras duas passagens chamam atenção: uma é um salmo de Davi a clamar por sua purificação:

    Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e mais branco do que a neve serei. (…) Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto.
    Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu Espírito Santo.

    Sl 51(50):7,10-1

    A segunda, a promessa de restauração da Nação após o jugo estrangeiro:

    Pois eu os tirarei das nações, os ajuntarei do meio de todas as terras e os trarei de volta para a sua própria terra. Aspergirei água pura sobre vocês, e vocês ficarão puros; eu os purificarei de todas as suas impurezas e de todos os seus ídolos. E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis.

    Ez 36:24-7

    Todas apresentam em comum uma limpeza ritual, representada pela ação da água, acompanhada por outra de cunho moral, propiciada pelo Espírito do próprio Deus, como uma permanente presença sua junto ao purificado. Esse padrão aparece repetidas vezes nos Manuscritos do Mar Morto, preservados nas cavernas de Qumran, com ocasiões em que a purificação é feita pelo próprio Espírito divino:

    Impuro, impuro ele será todos os dias que rejeitar as ordenações de Deus (…). Mas pelo espírito do verdadeiro conselho para os hábitos do homem, todas as iniquidades serão expiadas, de modo que ele olhará a luz da vida, e pelo espírito da santidade que o unirá em sua verdade ele será purificado de todas as suas iniquidades; e pelo espírito da probidade e da brandura seu pecado será expiado, e pela submissão de sua alma a todos os estatutos de Deus sua carne será purificada, para que ele possa ser aspergido com água para a impureza e santificar-se com a água da purificação.

    (1QS – III, 5-9)

    Não os deixes entrar na água para tocar a pureza dos homens da Santidade, pois eles não serão purificados a menos que tenham se arrependido de sua maldade.

    (1QS – V, 13-14)

    E então Deus selecionará os feitos do homem, e purificará por Si o corpo do homem consumindo cada espírito do mal nos tecidos de sua carne e purificando-o com o Espírito Santo de todos os seus feitos maus. E lançará sobre ele o Espírito da Verdade, como água para impureza, por causa de todas as abominações de falsidade e por chafurdar no espírito da impureza.

    (1QS – IV, 20-22)

    Agradeço a ti, ó Senhor, por me apoiares com Tua força. Derramaste Teu Espírito Santo sobre mim para que eu não tropece.

    (1QH -VII, 7)

    E sei que o homem não é reto a não ser através de Ti, e por isso Te imploro, pelo espírito que Tu me deste, que aumentes Tuas [benevolências] para com Teu servo [para sempre], purificando-me pelo Teu Espírito Santo, e aproximando-me de Ti pela Tua graça conforme a abundância de Tuas benesses (…)

    (1QH XVI)

    Fonte: [Vermes]

    Um princípio permeia os textos da comunidade do deserto: a pureza moral deve preceder a ritual, i.e., a limpeza da alma pelo Espírito Santo (ou alguma variante) deve ser feita antes da lavagem em água. Isso nos remete a certa personagem dos princípios do cristianismo e contemporânea da seita essênia de Qumran (4).

    [topo]

    A Voz que clama do Deserto

    A Pregação de João Batista

    A Pregação de João Batista, por Domenico Ghirlandaio

    Nas literaturas deuterocanônicas, intertestamentária e pseudoepígrafa continuaram a existir relatos de práticas de pureza ritual para os leitores de épocas mais próximas a de Jesus ou até contemporâneas:

    Aí entrando, Judite pediu que lhe fosse permitido sair à noite e antes do amanhecer, para fazer suas devoções e orar ao Senhor. Holofernes ordenou aos seus escravos que a deixassem sair e entrar como quisesse, durante três dias, para adorar o seu Deus. Cada noite ela saía ao vale de Betúlia e fazia as suas abluções numa fonte. Ao voltar, rogava ao Senhor Deus de Israel que lhe dirigisse os passos para a libertação do seu povo. Entrava em seguida na sua tenda, e ali permanecia pura até que tomava a sua refeição pela tarde.
    Jt 12:5-9

    Quando havia reunido seu exército, Judas alcançou a cidade de Odolão e, chegando o sétimo dia da semana, purificaram-se segundo o costume e celebraram ali o sábado (5).
    II Mac 12:38

    Tudo que eles [os 72 sábios] queriam era fornecido para eles numa escala pródiga (6). Além disso, Doroteu fazia os mesmos preparativos para eles diariamente, tal como era feito para o próprio rei – pois assim ele fora ordenado pelo rei. De manhã cedo, eles apareciam diariamente na corte, e depois de saudar o rei, voltaram a seus próprios lugares. E como é costume de todos os judeus, lavavam as mãos no mar e oraram a Deus, e então se dedicavam a ler e traduzir a passagem em particular sobre a qual estavam encarregados, e eu lhes fiz a pergunta: “Por que foi que lavaram as mãos antes de orar?” E eles explicaram que era um sinal de que eles não haviam feito mal (pois toda forma de atividade é executada por meio das mãos), pois em seu modo nobre e santo consideram tudo como um símbolo de justiça e verdade.
    Carta de Aristeias.

    Quando tinha eu cerca de dezesseis anos, tive a ideia de provar das diversas seitas que existiam entre nós. Havia três delas, a dos fariseus, os saduceus e a dos essências, como frequentemente lhes disse. Pensava que me familiarizando com todas elas, poderia escolher a melhor. Então me entreguei às asperezas, e me submeti a grandes dificuldades, e passei por todas elas. Nem mesmo me contentei em experimentar apenas dessas três, pois quando tomei ciência daquele cujo nome era Bano, que vivia no deserto, e não usava outra vestimenta senão o que crescia sobre as árvores, e não tinha outro alimento senão o que crescesse por conta própria, e se banhava em água fria frequentemente, tanto de dia como de noite, a fim de se purificar. Eu o imitei nessas coisas e fiquei com ele três anos.

    Flávio Josefo, Autobiografia, segundo parágrafo

    Uma novidade, porém, que se afigurou nesse período foi o uso da lavagem não apenas como um ritual de purificação, mas também iniciático. Em Qumran, banhos purificadores estariam destinados aos que abraçassem os preceitos da comunidade durante um longo estágio probatório:

    O homem, ao recusar-se unir-se à [Aliança de] Deus para caminhar na obstinação de seu coração [não permanecerá na] Comunidade de Sua verdade, pois sua alma despreza o ensinamento sábio das leis justas. Ele não será considerado entre os justos por não ter persistido na conversão de sua vida. Seu conhecimento, seus poderes e suas propriedades não serão recebidos no Conselho da Comunidade, pois quem vai arar a lama da iniquidade volta impuro (?). Não será absolvido pelo que seu coração obstinado reconhece como dentro da lei, pois ao buscar os caminhos da luz ele olha para as trevas. Não será considerado entre os perfeitos; não será purificado pela expiação, nem limpado pelas águas purificadoras, nem santificado pelos mares ou rios, nem lavado com nenhuma ablução. Sendo impuro, impuro permanecerá. Pois enquanto desprezar os preceitos de Deus, não receberá nenhum ensinamento na Comunidade do conselho divino.

    (1QS III)

    Mas então, se alguém tem a intenção de ingressar a sua seita, ele não é imediatamente admitido, mas lhe é prescrito o mesmo método de vida que eles usam por um ano, enquanto ele continua excluído; E dar-lhe-ão também uma pequena pá, e o cinturão supramencionado, e a veste branca. E quando ele tiver dado evidência, durante esse tempo, de que pode observar sua continência, aproxima-se mais de seu modo de viver, e se torna participante das águas da purificação; contudo, não se admite ainda que viva com eles; pois após essa demonstração de sua fortaleza, seu temperamento é provado por mais dois anos; e se aparenta ser digno, então eles o admitem em sua sociedade.

    Josefo, Guerras dos Judeus, livro II, cap. VIII

    Numa singela história de amor contada por um livro pseudoepígrafo, é apresentado o ritual executado pela jovem egípcia Asenath quando Deus aceitou sua conversão ao judaísmo, com a qual poderia se casar com José, “o intérprete de sonhos” (7). Ele possuía semelhanças com a liturgia essênia no que diz respeito ao uso da água, veste branca e certos paramentos:

    Encorajada, Asenath ergueu-se e colocou-se em posição ereta. Então o Anjo falou-lhe assim: “Vai agora mesmo ao teu segundo quarto, desveste a roupa de luto como que te cobriste e tira dos teus quadris a veste de penitência! Remove as cinzas de tua cabeça! Lava as mãos e o rosto com água pura e veste uma roupa branca inata! Cinge os teus rins com o cinto puro e duplo e duplo da virgindade! Depois volta para junto de mim, para que eu possa transmitir-te a mensagem pela qual o Senhor me enviou a ti!

    Asenath dirigiu-se a toda pressa ao seu segundo quarto, repositório dos seus adornos, abriu a arca, retirou dela um vestido branco, fino e imaculado, e vestiu-o, depois de se desfazer da vestimenta preta e arrancar a corda e os andrajos de penitência que lhe envolviam os flancos. Depois colocou seu cinto duplo da virgindade, um nos quadris, outro no peito.

    Isso feito, sacudiu as cinzas da cabeça, lavou as mãos e o rosto com água limpa, tomou também um véu fino e belíssimo e cobriu com ele a cabeça.

    José e Asenath. Fonte: [Tricca, p. 117]

    Pela cronologia bíblica, essa história se passa mais de 400 anos antes da narrativa do Êxodo e, por conseguinte, da entrega da Lei. Para os homens, a única regra de conversão explícita é a circuncisão (Gn. 17:9 – 14), inexistindo uma norma para as mulheres. É provável que o autor desse livro tenha transposto práticas já vigentes em sua época (ca. séc. I a.C. – II d.C.), quando o judaísmo contava com simpatizantes e prosélitos na diáspora (cf. At 6:5). Ainda hoje, os convertidos ao judaísmo concluem um longo processo de admissão com um banho de imersão ritual, após, no caso dos homens, submeterem-se à circuncisão (8).

    O que viria a ser o mais famoso ritual de purificação da cultura ocidental ficou registrado pelo historiador judeu Flávio Josefo e, notadamente, pelos evangelhos. Começando pelo primeiro, uma fonte não religiosa e, supostamente, independente (9):

    Alguns judeus pensavam que a destruição do exército de Herodes veio de Deus, de forma justa, como punição pelo que ele havia feito contra João, chamado Batista: pois Herodes o matara, ele que era um homem bom e pregava para que os judeus praticassem a virtude, tanto pela justiça de uns para com os outros, como pela reverência a Deus, para isso vindo ao batismo. Esta lavagem era aceita por ele, não se fosse para terem alguns pecados perdoados, mas para a purificação do corpo. A alma devia estar purificada antes pela retidão. Quando muitos vieram em multidão até João, movidos por suas palavras, Herodes, que temia a grande influência de João sobre o povo, o que permitiria que estimulasse uma revolta (pois pareciam prontos a fazer o que ele dissesse), pensou ser melhor matá-lo. Isto impediria qualquer ação contrária causada por João e não traria dificuldades para o rei, que poderia arrepender-se muito tarde de tê-lo deixado vivo. Assim, foi aprisionado em Maqueronte, castelo que mencionei antes, e morto. Os judeus consideraram que a destruição do exército de Herodes foi uma punição, para mostrar o desagrado de Deus

    Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap. V

    Josefo atribui a João um codinome que indica a prática de uma lavagem por imersão (de βαπτιστης, “imersor”), e o retrata como um mestre de sabedoria. Os evangelhos – os sinópticos em particular – acrescentaram um caráter apocalíptico a sua mensagem, um conceito desconhecido no universo greco-romanos do público-alvo de Josefo e bem difundido no judaísmo intertestamentário, inclusive na seita de Qumran. Ao contrário das práticas dela, porém, sua imersão não era um ritual a ser executado recorrentemente, nem após uma longa iniciação. Afinal, o juízo já lhe era iminente.

    Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados.
    E toda a província da Judeia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.

    Mc 1:4-5

    E, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus, que vinham ao seu batismo, dizia-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?
    Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento;
    E não presumais, de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão.
    E também agora está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo.

    Mt 3:7-10

    Dizia, pois, João à multidão que saía para ser batizada por ele: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?
    Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque eu vos digo que até destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão.
    E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo.
    E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois?
    E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira.
    E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer?
    E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado.
    E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.

    Lc 3:7-14

    Portanto, tal como os essênios, João Batista advogava que a pureza moral proporcionada pelo arrependimento e conduta reta deveria preceder a ritual. Outra similaridade chamativa com a seita era a crença de que o Espírito Santo proporcionaria uma purificação mais completa do ser.

    E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
    Mc 1:7,8

    E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo.

    Mt 3:11 (cf. Lc 3:16)

    Descontando-se a considerável cristianização que a figura de João Batista sofreu ao longo do tempo, é provável que, como apocalipsista de sua época, aguardasse a chegada do Filho do Homem (10), descrito em Daniel 7:1-7, I Enoque (cap. 58 e 69) e com paralelos em Qumran (4QFlor e 11QMelch). Diante de tantas semelhanças, há de se perguntar se João Batista teria sido um essênio que largou a clausura? É uma possibilidade, por outro lado, como demonstrado pela literatura intertestamentária, esses elementos já estavam disseminados no ambiente cultural do judaísmo do Segundo Templo. A seita pode apenas tê-los levado para dentro de sua comunidade quando decidiu se apartar do restante da população. Num caso ou no outro, o Batista serviu de elo entre as antigas práticas de purificação dos judeus e a iniciação dos seguidores de seu mais famoso imerso: Jesus de Nazaré.

    [topo]

    Nos Sinópticos, um Começo de Magistério

    Cena do batismo de Jesus em O Filho de Deus (2014)

    Com pequenas diferenças, o batismo de Jesus é retratado de maneira similar nos três sinópticos. Apresentando a de Marcos:

    E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Galiléia, foi batizado por João, no Jordão. E, logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo.

    Mc 1:9-11

    Nos sinópticos, o batismo de Jesus marca o início de seu ministério público. Independentemente de uma “voz dos céus” realmente ter sido ouvida ou uma pomba repousado sobre Jesus, seus signos remetem a ideia de uma nova vida, quer por uma nova filiação ou pelo início de uma nova era; afinal uma pomba trouxe a Noé um ramo de oliveira assinalando o fim o dilúvio (8:11) e, em Cantares, a voz das rolas anunciava o fim do inverno (Ct 2:12). Por outro lado, também podem representar dor e provação: a Abraão foi dada a ordem para sacrificar seu filho Isaque (Gn 22) e a pomba era a oferta de sacrifício no Templo mais usada pelos pobres.

    Marcos dista uns trinta da morte de Jesus, teria havia tempo suficiente para seus continuadores e novos seguidores desenvolverem uma identificação com esse “renascer”? Pouca informação o primeiro dos evangelhos redigidos nos dá quanto a isso. Em um diálogo entre Jesus e seus discípulos em, há uma confirmação de que eles receberiam o mesmo “batismo que ele recebeu”, embora isso não aparente ser a preocupação central de Jesus quanto à conduta deles:

    Então, se aproximaram dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo-lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te vamos pedir. E ele lhes perguntou: Que quereis que vos faça? Responderam-lhe: Permite-nos que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda. Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batizado? Disseram-lhe: Podemos. Tornou-lhes Jesus: Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o batismo com que eu sou batizado; quanto, porém, ao assentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado. Ouvindo isto, indignaram-se os dez contra Tiago e João. Mas Jesus, chamando-os para junto de si, disse-lhes: Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.

    Mc 10:35-45

    O tempo futuro usado na resposta de Jesus em Mc 10:39 indica que os apóstolos ainda não passaram pelo tal “batismo” nem provaram do cálice. Como Marcos já deveria ter conhecimento da morte de Tiago pelas mãos de Herodes Agripa (At 12:1,2), esta passagem é uma antecipação feita pelo evangelista da Última Ceia (cálice) e da morte de Jesus (batismo de sangue). Ou seja, ela serve para a justificação de um passado recente, mas não ao estabelecimento de um rito de iniciação. Alguns podem alegar que Mc 16:16 diz com todas as letras que é preciso “crer e ser batizado” para ser salvo, o que eu concordaria se não fosse um porém: os mais antigos manuscritos deste evangelho encerram o capítulo abruptamente no versículo 8, ou seja, tudo do versículo 9 em diante é espúrio (11).

    Ao copiar Mc 10:35-45, Mateus removeu a referência ao batismo de sangue (cf. Mt 20:20-8); quanto ao batismo convencional, as adições são poucas: uma é armadilha preparada pelos sacerdotes e anciãos indagando sobre a natureza do batismo de João (Mt 21:23-7) – que ficou em aberta pela evasiva de Jesus -, a outra é a crucial ordem dada no último capítulo, em polêmico versículo:

    Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;

    Mt 20:19

    Como a baixa cristologia de Mateus não nos oferece nada como “eu e o Pai somos um” ou “Eu sou“, é tentador pensar que houve uma adulteração. Há, inclusive, uma variante a este versículo sem fórmula trinitária ou alusão ao batismo, que se assemelha a Lc 24:47:

    Ide e fazei discípulos de todas as nações em Meu Nome, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado.

    Eusébio de Cesareia, Demonstratio Evangelica, III, 6

    O problema é que todos os manuscritos conhecidos até agora de Mateus, e que possuem seus últimos versículos, trazem a fórmula trinitária bem como a ordem para batizar. Eusébio, por sua vez, também é suspeito por ter sido simpatias pela causa ariana e proposto um credo de conciliação. Por ora essa questão permanece em aberto, cabendo-nos cogitar como a comunidade de Mateus poderia ter entendido essa fórmula de modo a manter uma baixa cristologia (12).

    Lucas também não acrescenta muito em relação a Marcos, possuindo também sua versão da pergunta dos sacerdotes a respeito do batismo de João (Lc 20:1-8) e, de forma sucinta, uma alusão ao batismo de sangue de Jesus (Lc 12:50). Em suma, baseando-se exclusivamente no material dos sinópticos, temos o ritual do batismo como uma preparação do povo para a chegada do Messias (Jesus) e o marco inicial de seu ministério, restando apenas uma dúbia ordem para sua prática aos novos conversos após a ressurreição.

    Entretanto falta um pormenor: Lucas possui um segundo volume: Atos dos Apóstolos.

    Já no segundo capítulo, na fala de Pedro à multidão cosmopolita estupefata diante do comportamento dos apóstolos após receberem as “línguas de fogo”, é dito:

    “Portanto, que todo o Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo”.

    Quando ouviram isso, ficaram aflitos em seu coração, e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: “Irmãos, que faremos?”

    Pedro respondeu: Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo.

    Pois a promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar.

    At 2:36-9

    Uma ordem que foi executada em diversas passagens do livro (At 8:12-7; 9:17,8; 10:44-8; 11:15-7; 19:5,6) em que o batismo de água e o do Espírito andam juntos, demonstrando que, para comunidade lucana, era importante uma pessoa se submeter a ambos para se tornar membro dela. De certa forma, Lucas trabalhou fazendo um paralelo (13) com o próprio batismo de Jesus: alguém, ao ser batizado, faria pregações similares e com resultados parecidos, faria milagres semelhantes e também teria visões. Enfim, o batismo seria o início de uma nova vida que espelhava (em menor escala) a de Jesus e dava continuidade a sua obra, podendo até levar a sofrer o mesmo destino. Assim, pela datação desse evangelho e de Atos, o ritual do batismo da água e do Espírito já estava estabelecido entre os cristãos da virada do primeiro século para o segundo. Será que há indícios dele um pouco antes?

    [topo]

    Paulo: partilhando da Vitória de Cristo

    Mosaico do batismo de Paulo de Tarso

    O Batismo de São Paulo Mosaico do século XII da Capela Palatina, em Palermo (Sicília)

    O “apóstolo dos gentios” descreveu em sua carta escrita aos cristãos de Roma sua própria visão religiosa. Como única carta remanescente de Paulo direcionada a uma comunidade que não fora criada por ele, Romanos possui a característica ímpar de ser onde ele desenvolve em profundidade temas de sua mensagem que apenas comenta ou relembra a seus prosélitos nas demais, afinal teve de explicar tudo do zero a quem não conhecera pessoalmente. Por esse motivo, um nome mais adequado para esta carta seria “Evangelho segundo Paulo”, pois é aqui que descreve em pormenores sua fé e a “boa nova” que tinha a repassar. Em sua apresentação, Paulo expõe um pequeno catecismo cristão, testemunho de uma tradição que antecederia a própria redação do Novo Testamento:

    Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade [κατα πνευμα αγιωσυνης], pela ressurreição dentre os mortos – Jesus Cristo nosso Senhor -, pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios, entre os quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo; a todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados para serdes santos: Graça a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

    Rm 1:1-7

    Nesse “cartão de visitas” em forma de credo condensado, Paulo usa um hebraísmo – “espírito de santidade” – em vez do simples adjetivo grego talvez por ser uma forma mais familiar aos fundadores daquela comunidade, além de reforçar sua apresentação como um cristão genuíno, não falso apóstolo a propagandear ideias alienígenas. Uma maneira de preparar terreno para expor sua própria visão a respeito da fé em Jesus: o papel central do martírio de Jesus e sua subsequente ressurreição na salvação da humanidade. Ou melhor, de todos aqueles que reconhecessem esse sacrifício e acreditassem em sua vitória sobre a morte.

    Há diferentes linhas de argumentação utilizadas por Paulo ao longo da carta (14). Uma das principais é o modelo judicial (cf. cap. 3 a 5): Deus seria uma espécie de legislador a regular como os humanos (judeus e gentios Rm 2:9-10) deveriam se portar. O problema é que ninguém, mas ninguém, consegue seguir suas leis, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). Como Deus também é juiz (3:9), a humanidade toda está condenada. A solução, segundo esse argumento, estaria em outra pessoa cumprir a punição por nós, aí que entra o valor do sacrifício de Jesus na cruz (3:24) como forma de cumprimento alternativo da pena, cuja aprovação divina estaria no fato de ele ter sido ressuscitado em seguida (4:24-5). Aos humanos caberia aceitar de bom grado esse sacrifício ofertado em seu lugar (3:27-8).

    Outro argumento importante utilizado por Paulo foi o modelo participacionista. Enquanto o modelo visto acima explica a salvação por meios de termos “jurídicos”, este explica a salvação por meio de uma espécie de união com Jesus Cristo, que livra a humanidade das forças malignas. Bem que forças seriam essas?

    Como apocalipcista, Paulo acreditava num tipo de “dualismo brando”, em que haviam forças antagônicas a Deus regiam a Terra momentaneamente, até que Deus resolvesse intervir. Duas dessas formas cósmicas são de particular relevância: o Pecado e a Morte. Nisso as coisas começam a soar um tanto estranhas ao leitor moderno, para o qual “pecado” é algo ruim que alguém faz e “morte” é o cessar das funções vitais. No entanto, no primeiro século, tanto o ato quanto o fato eram produtos de entidades autônomas, que a todos controlavam. Começando pelo Pecado:

    • O pecado está no mundo (5:13);
    • O pecado governa as pessoas (5:21, 6:12);
    • As pessoas podem servir ao pecado (6:6);
    • Elas podem ser escravizadas pelo pecado (6:17);
    • Elas podem morrer ao pecar (6:11);
    • Elas podem ser libertas do pecado (6:18).

    O pecado, para Paulo, não é meramente algo que as pessoas fazem, mas sim um poder que as compele à prática do mal. Associado a ele, está outro poder maligno: a morte (6:21-3), que definitivamente afasta alguém de Deus. Ao ressuscitar, Jesus teria quebrado o jugo da morte e, por conseguinte, dos poderes com ela associados (6:9-10). Por meio do batismo, tomaríamos parte dessa vitória sobre a morte e nos reconciliaríamos com Deus. Para Paulo, o batismo não seria apenas uma simbólica limpeza de uma alma arrependida ou um rito de passagem para uma nova vida, mas uma experiência de união com Jesus Cristo de modo a participar de sua vitória com a morte:

    Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos? Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição, sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos; porquanto quem morreu está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos, sabedores de que, havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.

    Rm 1-11

    Valer reparar que, por esse modelo, embora os fiéis batizados já estivessem mortos em Cristo, i.e., partilhavam de sua vitória contra a morte e o pecado, isso não significava que não fossem mais morrer fisicamente. A salvação só estaria completa no fim dos tempos, quando seriam ressuscitados à semelhança dele. Até lá, deveriam viver “em novidade de vida”, pois já estariam livres da sujeição ao poder do pecado.

    * * *

    Apesar de Romanos já ser suficiente para atestar o valor que Paulo dava ao ritual do batismo, não será improvável encontrar apologistas que tentem rebater com o seguinte versículo:

    Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo.

    I Cor 1:17

    Esse é mais um clássico caso de texto fora do contexto se fazendo de pretexto. Vejamos mais:

    Pois a vosso respeito, meus irmãos, fui informado, pelos da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo. Acaso, Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo? Dou graças [a Deus] porque a nenhum de vós batizei, exceto Crispo e Gaio; para que ninguém diga que fostes batizados em meu nome. Batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum outro. Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo.

    I Cor 1:12-7

    A comunidade de Coríntio enfrentava uma série de problemas, dentre eles rixas internas. Paulo não estava menosprezando o ritual do batismo, apenas relatando seu alívio por não ter se tornado mais um elemento desagregador por ter se abstido de praticar o batismo entre eles e, assim, vincular sua imagem ao ritual. Embora essa tarefa pudesse ser delegada, não significa que considerasse o batismo como opcional, pelo contrário:

    Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.

    I Cor 12:13

    Assim, pela datação de I Coríntios, pode-se dizer que a associação entre o batismo e a ação do Espírito já estava estabelecida entre os cristãos por volta de 60 da era cristã.

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    Um Passo além: o Batismo no período Subapostólico

    Jesus como o bom pastaor

    Bom Pastor. Pintura mural das catacumbas de Priscilla, em Roma (século II)

    Quando os apóstolos já havia partido, mas uma estrutura bem organizada ainda não surgira, as comunidades cristãs lidavam como podiam com suas questões cotidianas. Uma tentativa de criar um conjunto mínimo de referências, foi redigida entre o final do primeiro século e o começo do segundo a Didaqué, também conhecida como “o Ensino dos doze Apóstolos”. Com seus conselhos, diretrizes e exortações, ela procurava amparar as nascentes comunidades numa época em que ainda existiam “profetas itinerantes” um tanto duvidosos e não caíssem em suas arapucas. No que tange ao batismo, ela nos oferece um pequeno manual de “como fazer”:

    Quanto ao batismo, procedam assim: Depois de ditas todas essas coisas [uma instrução quanto aos “dois caminhos”: o da vida (o Bem) e o da morte (o Mal)], batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

    Se você não tem água corrente, batize em outra água; se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente.

    Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

    Antes do batismo, tanto aquele que batiza como aquele que vai ser batizado, e se outros puderem também, observem o jejum. Àquele que vai ser batizado, você deverá ordenar jejum de um ou dois dias.

    Didaqué, cap. VII, tradução de Padres Apostólicos, pp.351-2

    A Didaqué reapresenta a fórmula trinitária utilizada por Mateus, da mesma forma como sua versão do Pai Nosso (cap. VIII) se assemelha mais à dele que à de Lucas, indicando que talvez tenham bebido da mesma tradição, além de ser um ponto a favor de Mt 28:19. Outro aspecto interessante que ela traz é a necessidade de lidar com questões de ordem prática na execução do ritual: embora recomendada, a imersão não era mais obrigatória.

    Enquanto a Didaqué já apresentava uma versão do batismo que viria a se tornar dominante posteriormente, outros textos contemporâneos seus exploravam concepções mais radicais quanto ao caráter e potencialidades do ritual, porém que seriam rejeitadas. Gostaria de comentar dois deles que constituem o que alguns chamam de “cânon falido”: textos de grande circulação nos primeiros séculos do cristianismo, mas que terminaram por ficar fora do Novo Testamento. Datado do começo do século II, o primeiro se chama Epístola de Barnabé, um verdadeiro tratado antissemita obcecado em provar que o judaísmo seria uma religião falsa e o cristianismo a verdadeira interpretação de suas Escrituras, usando e abusando de alegorias. No que diz respeito ao batismo, interpreta o Antigo Testamento alegoricamente a fim de deixar todo Israel de fora do ritual:

    Pesquisemos se o Senhor teve intenção de falar antecipadamente sobre a água e sobre a cruz.

    Quanto à água, está escrito que Israel não teria recebido o batismo que leva à remissão dos pecados, mas que eles próprios teriam construído um. Com efeito, diz o profeta [Jr 2:12,3 e Is 16:1-2]: “Pasma, ó céu, e que a terra trema ainda mais! Pois este povo cometeu um mal duplo: eles me abandonaram, a mim que sou a fonte viva da água, e cavaram para si mesmos uma cisterna da morte. Por acaso, o Sinai, minha montanha santa, é rocha deserta? Vós sereis como os passarinhos que voam, quando se lhes tira o ninho.” E o profeta diz ainda [Is 45:2,3 e Is 33:16–8]: “Eu marcharei à tua frente, aplainarei as montanhas, quebrarei as portas de bronze, despedaçarei as trancas de ferro, e te darei tesouros secretos, escondidos, invisíveis, a fim de que saibam que eu sou o Senhor Deus. Tu habitarás numa caverna alta de rocha sólida, onde a água não falta nunca. Vereis o rei em sua glória e vossa alma meditará no temor do Senhor.

    Epístola de Barnabé, 11:1-5

    No que diz respeito ao ritual em si, Barnabé inova ao dizer que o batismo leva à regeneração moral, em vez de esta ser requisito para ele:

    E outro profeta diz ainda (15): “E a terra de Jacó era celebrada mais do que qualquer outra terra“. Isso quer dizer que ele glorifica o vaso do seu Espírito. O que diz (16) ele a seguir? “Havia um rio que corria, vinda da direita, e árvores esplêndidas hauriam dele seu crescimento. Qualquer pessoa que delas comer, viverá eternamente.” Isso significa que descemos para a água carregados de pecados e poluição, mas subimos dela para dar frutos em nosso coração, tendo no Espírito o tempo e a esperança em Jesus. “Quem comer deles viverá eternamente“, quer dizer: quem escutar, quando tais palavras são ditas, e crer nelas, viverá eternamente.

    Idem, 11:9-11

    Algumas décadas depois, em meados do segundo século, com bem menos ódio e mais teor pio, um escritor cristão denominado Hermas redigiu um documento que viria a ser conhecido como A Carta do Pastor, ou, simplesmente, O Pastor. Teve boa aceitação entre os antigos cristãos (17) e, tal como a Epístola Barnabé, chegou até a ser incluído no Códice Sinaítico – um dos mais antigos manuscritos completos do Novo Testamento (18). Narrado em primeira pessoa, Hermas descreve os encontros que travou com um mediador que lhe apareceu na forma de um pastor, além de outras figuras angélicas. Esses diversos personagens lhe transmitem visões, mandamentos e parábolas; cujo significado ele sempre indaga, recebendo, então, uma explanação de seu mensageiro da ocasião, às vezes a contragosto do explanador. Durante o “Quarto Mandamento”, toca-se na questão do pecado e do batismo:

    Eu disse: “Senhor, ainda quero te fazer outra pergunta.” Ele respondeu: “Pergunta.” Continuei: “Ouvi alguns doutores dizerem que não há outra conversão além daquela do dia em que descemos à água e recebemos o perdão dos pecados anteriores.” Ele me respondeu: “Ouviste bem. E assim mesmo. Aquele que recebeu o perdão de seus pecados não deveria mais pecar, e sim permanecer na pureza. Entretanto, como queres saber tudo com pormenores, eu te explicarei também isso, sem dar pretexto para pecar aos que hão de crer ou aos que começaram agora a crer no Senhor, pois tanto uns como outros não têm necessidade de fazer penitência de seus pecados, pois seus pecados passados já foram abolidos. Para os que foram chamados antes destes dias, o Senhor estabeleceu uma penitência, pois o Senhor conhece os corações. E sabendo tudo de antemão, ele conheceu a fraqueza dos homens e a esperteza do diabo em fazer o mal aos servos de Deus e exercer sua malícia contra eles. Sendo misericordioso, o Senhor teve compaixão de sua criatura e estabeleceu a penitência, e deu-me o poder sobre ela. Todavia, eu te digo: se, depois desse chamado importante e solene, alguém, seduzido pelo diabo, cometer pecado, ele dispõe de uma só penitência; contudo, se peca repetidamente, ainda que se arrependa, a penitência será inútil para tal homem, pois dificilmente viverá.” Então eu lhe disse: “Senhor, sinto-me reviver depois de ouvir essas coisas tão pormenorizadamente, pois sei que serei salvo, se eu não continuar a pecar.” Ele me disse: “Serás salvo, tu e todos os que fizerem essas coisas.

    Carta do Pastor, cap. XXXI

    Hermas retorna a opinião original de que o batismo complementa um arrependimento prévio, mas não seria capaz de evitar recaídas no mal. Mas adiante, na Nona Parábola, ele compara o batismo a um “selo divino” (19) capaz de transformar os (espiritualmente) mortos em vivos:

    Eu pedi: “Senhor, explica-me mais ainda.” Ele respondeu: “O que procuras mais?” Eu continuei: “Senhor, por que as pedras tiveram que subir do fundo, para ser colocadas na construção da torre, embora tivessem esses espíritos?” Ele respondeu: “Era preciso que saíssem da água, para receber a vida. Elas não podiam entrar no Reino de Deus, senão deixando a mortalidade da vida anterior. Tais mortos receberam o selo do Filho de Deus e entraram no Reino de Deus. De fato, antes de levar o nome do Filho de Deus o homem está morto. Quando recebe o selo, deixa a morte e retoma a vida. O selo é a água: eles descem à água e daí saem vivos. Também a eles foi anunciado esse selo, e eles o usaram para entrar no Reino de Deus.” Eu perguntei: “Senhor, por que as quarenta pedras também sobem com eles do abismo, visto que estas já haviam recebido o selo?” Ele respondeu. “Porque esses apóstolos e doutores que anunciaram o nome do Filho de Deus, adormecidos no poder e na fé do Filho de Deus, o anunciaram também àqueles que tinham morrido antes deles, e lhes deram o selo do anúncio. Desceram com eles à água e novamente subiram. Contudo, desceram vivos e subiram vivos, enquanto os que estavam mortos antes deles desceram mortos e subiram vivos. E graças a eles que estes últimos receberam o nome do Filho de Deus. Por isso, subiram com eles, foram ajustados à construção da torre, e colocados sem ser lavrados, porque morreram na justiça e na pureza. Apenas não tinham o selo. Agora tens a explicação dessas coisas.” Eu respondi: “Sim, senhor.

    Idem, cap. XCIII

    Ao lado de Hermas e Barnabé, por pouco não ficou a Carta aos Hebreus, vista com desconfiança por sua autoria desconhecida e cuja tentativa de atribuição a Paulo já era questionada nos primeiros séculos. Em seu capítulo sexto, ela estabelece o batismo como doutrina fundamental e dá um alerta para os que fraquejam na fé:

    Por isso, pondo de parte os princípios elementares da doutrina de Cristo, deixemo-nos levar para o que é perfeito, não lançando, de novo, a base do arrependimento de obras mortas e da fé em Deus, o ensino de batismos e da imposição de mãos, da ressurreição dos mortos e do juízo eterno. Isso faremos, se Deus permitir. É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia.

    Hb 6:1-6

    Ou seja, para o anônimo autor de Hebreus, os que recaíssem em pecado não teriam uma segunda chance de arrependimento, uma exceção aberta por Hermas. Uma fórmula ritualística à moda das antigas purificações judaicas é usada por ele em Hb 10:22: “Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa“. O autor da Epístola deve ter feito uso dessa fórmula porque ela era tradicional, embora ele fosse oposto às “várias abluções“(Hb 9:9-10) dos judeus que, segundo ele, pertencem à categoria das “justificações da carne” e “não podem aperfeiçoar aquele que faz o serviço” (idem).

    Outras cartas canônicas – agora com autoria reconhecida pela tradição apesar de serem pseudonímias – trazem um entendimento multifacetado do batismo como ritual. Em Efésios (5:25-26), temos a lavagem mais como um simbolismo para a purificação, do que ela em si: “E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela Palavra(…)”, ao passo que I Pedro (I Pe 3:20,1) fala do batismo em termos semelhantes a Hebreus 10:22, aceitando-o como a confirmação de uma consciência purificada, mas rejeitando com toda a ênfase a ideia de um corpo purificado: “agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundície da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo.

    * * *

    Se, numa época quando a proto-ortodoxia ainda se organizava, eram de se esperar divergências em diversas questões doutrinárias. Então, o que pensariam acerca do batismo os grupos dissidentes?

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    Um Toque Esotérico

    Os códices de manuscritos gnósticos descobertos em Nag Hammadi.

    Não é incomum encontrar quem pense terem constituído os gnósticos um grupo à parte da proto-ortodoxia, com seus próprios locais de cultos. Na verdade, eles foram um movimento secretista dentro da própria Igreja nascente. Eles estavam disseminados entre os fiéis comuns, partilhavam de suas atividades e cultos. Apartavam-se apenas quando o assunto era o “conhecimento” especial que julgavam ter, e, inclusive, admitiam que seus irmãos ignorantes – embora bons cristãos – também teriam direito a serem salvos, ainda que não recebessem uma salvação tão plena quanto a deles (20). Assim, os gnósticos também se batizavam; a questão é: o que o ritual significava para eles? Nas palavras de uma estudiosa do cristianismo gnóstico:

    (…) Felipe [no Evangelho Gnóstico de Felipe] pergunta O que acontece – ou não acontece – quando uma pessoa recebe o batismo? É o mesmo para todos? Felipe sugere que não. Há muita gente, diz ele, para quem o batismo simplesmente assinala a iniciação. Um indivíduo desses “entra na água e sai sem ter recebido nada e diz ‘Sou cristão'”(li). Às vezes, porém, prossegue Felipe, a pessoa batizada “recebe o Espírito Santo (…) que é o que acontece quando se experimenta um mistério”(lii). O que faz a diferença envolve não só a dádiva misteriosa da graça divina, mas também a capacidade de compreensão espiritual do iniciado.

    Assim, escreve Felipe, repetindo a carta de Paulo aos gálatas, muitos crentes se veem mais como escravos do que como filhos de Deus; mais os batizados, qual bebês recém-nascidos, destinam-se a crescer na fé rumo à esperança, ao amor e à compreensão (gnose):

    “A fé é a nossa terra, na qual criamos raízes; a esperança é a água que nos nutre; o amor é o ar com que crescemos; a gnose é a luz com que nos tornamos plenamente desenvolvidos” (liii).

    Quem inicialmente professa a fé no nascimento virgem pode, mais tarde, atingir uma compreensão diferente do que isso significa, explica ele. Muitos crentes continuam a interpretá-lo literalmente, como se Maria tivesse concebido sem José; “alguns dizem que Maria concebeu através do Espírito Santo”, mas “estão errados”(liv), diz Felipe. Pois o “nascimento virgem” não é algo que aconteceu uma vez a Jesus; refere-se ao que pode acontecer a qualquer um que seja batizado e “renascido” por meio de uma “virgem que desce”, ou seja, do Espírito Santo(lv). Assim como Jesus nasceu “espiritualmente” quando o Espírito Santo desceu sobre ele em seu batismo, também nós, que primeiro nascemos fisicamente, podemos “renascer por meio do Espírito Santo” no batismo, de modo que “ao nos tornarmos cristãos, passamos a ter um pai e uma mãe”, (lvi) ou seja, o Pai celestial e o Espírito Santo.

    Cf. [Pagels, cap IV, p.138-9].

    Notas da autora:
    (li)Evangelho de Felipe, 64.22-26
    (lii)Ibidem, 64.29-31
    (liii)Ibidem 79.25-31
    (liv)Ibidem 55.23-24
    (lv)Ibidem 71.3-15
    (lv)Ibidem 52.21-24

    Ou seja, ao menos para um grupo específico de gnósticos, o batismo, para alguns iluminados, propiciaria uma experiência de “renascimento” através do Espírito, que desvelaria o conhecimento (gnose) mais profundo. É um linguajar que guarda semelhança ao de uma passagem encontrada em outro evangelho de grande sucesso entre os gnósticos – embora tenha se originado fora de seus círculos -, a Boa Nova de João.

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    O Novo Nascimento

    Jesus e Nicodemos

    Jesus e Nicodemos, por Crijn Hendricksz.

    Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.

    Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?

    Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode ser isto?

    Respondeu-lhe Jesus: Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testemunhamos o que temos visto; e não aceitais o nosso testemunho! Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem. E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna.

    Jo 3:1-15

    Único entre os evangelhos canônicos, João refaz elementos dos sinópticos de um jeito alternativo: a expulsão dos vendilhões do Templo se dá no começo de seu ministério, tendo ele de criar outra causa imediata (21) para a decisão do Sinédrio de entregar Jesus aos romanos; a instituição da eucaristia – o clímax da Última Ceia – é substituída por um (na verdade, dois) longo discurso de despedida; e o encontro de Jesus e João Batista nas águas do Jordão é narrado de forma indireta por este último (Jo 1:30-4). Embora haja uma série de sinais e prodígios, não há exorcismo algum; apesar de ressaltar uma regra de ouro – “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13:34) -, nenhuma parábola ao estilo dos sinópticos é contada (22).

    A diferença mais brutal, sem dúvida, é falta de qualquer pormenor quanto à mensagem de Jesus: o tema central deste evangelho é o próprio Jesus! Haveria razões para uma abordagem tão diferente? Pela dinâmica social que transparece nas linhas deste evangelho, pode-se intuir que sua comunidade estaria em crise: seus membros eram expulsos da sinagoga, desenvolviam, por conta disso, sentimentos antijudaicos (Jo 8:37:47), eram perseguidos pelos pagãos (Jo 17:14), e, como indica a Primeira Carta de João, enfrentavam uma rixa interna que terminou em cisma. Como se não bastasse, quiçá ainda enfrentasse a rivalidade com outras comunidades cristãs, como a que redigiu o evangelho gnóstico de Tomé, o Dídimo, dado o pouco apreço que essa figura recebeu durante o episódio da ressurreição, sendo retratado como incréu (Jo 20:24-9).

    Nesse contexto turbulento, a questão dos sacramentos também parece ser matéria de discussão. Embora não haja uma instituição da eucaristia na Última Ceia, ela aparece de forma poética num discurso dado no primeiro terço do livro:

    Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém visse ao Pai, a não ser aquele que é de Deus; este tem visto ao Pai. Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como nos pode dar este a sua carne a comer? Jesus, pois, lhes disse: Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu; não é o caso de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre.

    Jo 6:44-58

    Se isso foi uma adição posterior à redação original ou não, fica em aberto. Como em Jo 6:59 somos informados que Jesus “disse estas coisas na sinagoga, ensinando em Cafarnaum”, isso pode ser indício de uma justificação do ritual ante uma comunidade judaica que não o entendia e o desprezava. Neste caso, e em muitos aspectos, este evangelho aparenta não ter sido escrito como uma instrução a novatos – como foi o de Lucas – mas para a justificação da fé de uma comunidade que perigava colapsar. Quando Jesus deu um novo mandamento em Jo 13:34 – “amai-vos uns aos outros” – está implícito que outros mandamentos já eram de conhecimento de seus primeiros leitores/ouvintes.

    De forma similar, caso não existisse a conversa com Nicodemos pouca informação haveria quanto ao significado do batismo para aquela comunidade. O batismo do próprio Jesus aparece apenas nas entrelinha da fala de João Batista:

    E eu não o conhecia; mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando com água.
    E João testificou, dizendo: Eu vi o Espírito descer do céu como pomba, e repousar sobre ele.
    E eu não o conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo.

    Jo 1:31-33

    A partir dos sinópticos, é possível saber a que esse episódio se refere, mas com o material exclusivo do próprio João, isso fica apenas sugerido. Seu público já o deveria saber por outros meios.
    Também chega a ser chamativa uma certa contradição que salta de seus versículos:

    Depois disto foi Jesus com os seus discípulos para a terra da Judeia; e estava ali com eles, e batizava (3:22)

    E quando o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João (ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos), deixou a Judeia, e foi outra vez para a Galileia. (4:1-3)

    O versículo Jo 4:2 tem forte cheiro de enxerto, deixando dúvida se toda essa comunidade acreditava que Jesus batizara em vida ou não. Sabemos que a comunidade passou por grave cisma por meio da primeira Epístola de João – um documento bem afinado com a teologia do Evangelho atribuído ao mesmo apóstolo -, mas especificamente uma dissidência de caráter docetista (23). Assim, no último capítulo dessa epístola, é feito um reforço aos aspectos redentores das substâncias materiais utilizadas na eucaristia e no batismo, que possivelmente eram desprezadas pelos dissidentes:

    Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? Este é aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só por água, mas por água e por sangue. E o Espírito é o que testifica, porque o Espírito é a verdade.

    1 Jo 5:5,6

    No enfoque de sanar contendas da comunidade e validar crenças, a conversa entre Jesus e Nicodemos vinha a resolver outro problema: o batismo deveria ser pela água ou pelo Espírito? Se lembramos a fala de João Batista (Jo 1:33): “o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo.” ficamos com a impressão de que Jesus não batizaria mais com água, o que pode ter gerado o arremedo que Jo 4:2. Lembrando a tradição de Atos, em algumas passagens o recebimento do Espírito se dá por imposição das mãos em pessoas previamente batizadas (At 8:17-8 e 19:6). Já em At 10:44-8, temos o padrão oposto: gente que primeiro recebeu o Espírito Santo (mesmo sem imposição de mãos) e só depois foi batizada. Isso sugere que, na Igreja primitiva, houvesse quem tomasse o batismo de água e o de Espírito por dois sacramentos separados (ou separáveis), uma ideia radicalizada entre a comunidade joanina, levando ao risco de o segundo preterir o primeiro. Assim, a conversa de Nicodemos vem a reafirmar a necessidade da sagração por ambos o meios para que se “nasça de novo”. No caso em particular dessa comunidade, o novo nascimento pressupunha a morte como judeu, afinal já haviam sido “mortos” ao serem expulsos da sinagoga (24).

    Um possível complemento a essa análise surge ao se reparar que a palavra grega anothen (Jo 3:3) pode significar tanto “de novo” como “do alto”, provocando um interessante jogo de palavras: Nicodemos teria compreendido o primeiro sentido, enquanto Jesus teria em mente o primeiro. O entendimento quanto a esse nascimento celestial (Cf. [Ehrman (2008), cap. XI, p.167]) só poderia ser explicado por aquele que tivesse vindo do céu: o Filho do Homem (Jo 3:13), que já é um circunlóquio para figura de Jesus nesse evangelho. Há um reforço ao sentido “do alto” por ocasião da fala de João Batista nesse mesmo capítulo

    Aquele que vem de cima [ανωθεν] é sobre todos; aquele que vem da terra é da terra e fala da terra. Aquele que vem do céu é sobre todos.

    Jo 3:31

    Contudo, a análise do tecido social do Quarto Evangelho passou longe do tratamento espírita a essa conversa e a análise linguística repete equívocos dos fanáticos religiosos que tanto eles criticam.

    [topo]

    A Releitura de Kardec

    Retrato de Allan Kardec

    Do Evangelho segundo o Espiritismo (ESE), cap. IV

    5 – E havia um homem dentre os fariseus, por nome Nicodemos, senador dos judeus. Este, uma noite, veio buscar a Jesus, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és mestre, vindo da parte de Deus, porque ninguém pode fazer estes milagres, que tu fazes, se Deus não estiver com ele. Jesus respondeu e lhe disse: Na verdade, na verdade te digo que não pode ver o Reino de Deus senão aquele que renascer de novo. Nicodemos lhe disse: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode entrar no ventre de sua mãe e nascer outra vez? Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus, o que é nascido de carne é carne, e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te maravilhes de eu te dizer que vos importa nascer de novo. O Espírito sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde ele vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do Espírito. Perguntou Nicodemos: Como se pode fazer isto? Respondeu Jesus: Tu és mestre em Israel, e não sabes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo: que nós dizemos o que sabemos, e damos testemunho do que vimos, e vós, com tudo isso, não recebeis o nosso testemunho. Se quando eu vos tenho falado das coisas terrenas, ainda assim me credes, como creríeis, se eu vos falasse das celestiais? (João, III: 1-12)

    6 – A ideia de que João Batista era Elias, e de que os profetas podiam reviver na Terra, encontra-se em muitas passagens dos Evangelhos, notadamente nas acima reproduzidas (nº 1 a 3). Se essa crença fosse um erro, Jesus não deixaria de combatê-la, como fez com tantas outras. Longe disso, porém, ele a sancionou com toda a sua autoridade, e a transformou num princípio, fazendo-a condição necessária, quando disse: Ninguém pode ver o Reino dos Céus, se não nascer de novo. E insistiu, acrescentando: Não te maravilhes de eu ter dito que é necessário nascer de novo.

    7 – Estas palavras: “Se não renascer da água e do Espírito”, foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. Mas o texto primitivo diz simplesmente: Não renascer da água e do Espírito, enquanto que, em algumas traduções, a expressão do Espírito foi substituída por do Espírito Santo, o que não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários feitos sobre o Evangelho, assim como um dia será constatado sem equívoco possível.(1)

    8 – Para compreender o verdadeiro sentido dessas palavras, é necessário reportar à significação da palavra, que não foi empregada no seu sentido específico. Os antigos tinham conhecimentos imperfeitos sobre as ciências físicas, e acreditavam que a Terra havia saído das águas. Por isso, consideravam a água como o elemento gerador absoluto. É assim que encontramos no Gênesis: “O Espírito de Deus era levado sobre as águas”, “flutuava sobre as águas”, “que o firmamento seja no meio das águas”, que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar, e que o elemento árido apareça”, “que as águas produzam animais viventes, que nadem na água, e pássaros que voem sobre a terra e debaixo do firmamento”.

    Conforme essa crença, a água se transformara no símbolo da natureza material, como o Espírito o era da natureza inteligente. Estas palavras: “Se o homem renascer da água e do Espírito”, ou “na água e no Espírito”, significam pois: “Se o homem não renascer com o corpo e a alma”. Neste sentido é que foram compreendidas no princípio.

    Esta interpretação se justifica, aliás, por estas outras palavras: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é Espírito”. Jesus faz aqui uma distinção positiva entre o Espírito e o corpo. “O que é nascido da carne é carne”, indica claramente que o corpo procede apenas do corpo, e que o Espírito é independente dele.

    9 – “O Espírito sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, é uma passagem que se pode entender pelo Espírito de Deus que dá a vida a quem quer, ou pela alma do homem. Nesta última acepção, a sequência: “mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, significa que não se sabe o que foi nem o que será o Espírito. Se, pelo contrário, o Espírito, ou alma, fosse criado com o corpo, saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso, esta passagem é a consagração do principio da preexistência da alma, e por conseguinte da pluralidade das existências.

    (…)

    (1) A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo, e traz: não renascer da água e do Espírito. A de Sacy diz do Espírito Santo. A de Lamennais também diz: Espírito Santo.

    Essa interpretação que Allan Kardec dá aos versículos de Jo 3:1-15 é menos apelativa que a dada no capítulo anterior do ESE, quando Jo 14:1-3 (“Há muitas moradas na casa de meu pai“) é utilizado como justificativa da vida em outros planetas (espiritual ou carnal). Eu também creio na possibilidade de que haja outros planetas habitados neste vasto universo, porém sou cético de que os antigos hebreus criam nisso. Tal interpretação soa mais como uma espécie de anacronismo: a transposição de ideias, conceitos, costumes, etc. de uma época para outra, a qual eles são alienígenas. O tratamento dado à conversa com Nicodemos padece do mesmo problema.

    Um adepto ou simpatizante pode não perceber isso, pois Kardec faz uma seleção de versículos auxiliares que lhe são úteis. A questão é que há, como vimos, toda uma massa de textos do Antigo Testamento, pseudoepígrafos, essênios, neotestamentários e da literatura cristã primitiva apontando para o uso de “água” e “Espírito” vinculados explicitamente à purificação e à iniciação, e não à reencarnação. Já essa última, quando indicada por espiritualistas, tem de ser extraída das entrelinhas. O sentido mais provável em que essas palavras “foram compreendidas no princípio” não foi o apregoado por Kardec.

    Um espírita tem todo o direito de assim interpretar, porém os demais religiosos não tem a menor obrigação de comprar esse peixe. Contudo o que é ruim ainda pôde ficar pior…

    [topo]

    Si hay Bautismo, soy Contra

    Emergindo das águas

    Pode não.

    Em Analisando as Traduções Bíblicas, cap. XVII, Severino Celestino da Silva sintetiza várias das objeções espíritas ao entendimento da conversa com Nicodemos como uma alusão ao batismo, além de acrescentar algumas de própria autoria:

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como isso pode acontecer? Respondeu-lhe Jesus: És mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém não aceitais o nosso testemunho. Se não credes quando vos falo das coisas da terra, como ireis crer quando vos falar das coisas do céu?”

    Este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que querem negar a Reencarnação. No entanto, é o mais claro e contundente de todos, por isso, existe um verdadeiro malabarismo por parte destes, no sentido de obscurecer o verdadeiro e claro sentido desta passagem. Iniciamos pelo vocábulo “anóten” que em grego pode significar “de novo” e “do alto”.

    Nesta passagem, esse vocábulo significa realmente “de novo”, porém a maioria dos exegetas emprega o termo “do alto” para justificar a sua descrença na Reencarnação. Este malabarismo envolve também a questão gramatical na tradução do texto, como veremos mais adiante. Colocaremos, aqui, muitas observações e conceitos empregados, sobre este texto, feitos por Torres Pastorino na sua obra “Sabedoria do Evangelho”, com relação ao texto grego. Concordamos plenamente com todos os seus conceitos, razão por que o usaremos para reforçar nossa exegese. A análise do texto hebraico é de autoria e responsabilidade nossa.

    p. 238, 4a. ed.

    Vejamos, então, cada parte dessa análise:

    Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: “AQUELE QUE NÃO NASCER “DO ALTO”. Observe, no entanto, que a pergunta feita por Nicodemos, em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente em nascer “de novo” e não “do alto”: Como pode “o homem, depois de velho, entrar pela segunda vez (deuteron) no ventre materno?”

    Esta ambiguidade de entendimento só acontece na língua grega, porque no hebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com Nicodemos, este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode significar “do alto”. Diz o seguinte: (“im Iô iualed ish mimkôr ’ai lô-iukal lirôt et-malkut haelohim”) im=se, =nâo, iualed=incompleto do grau qal do verbo “nolad”=nascer, ish=um homem, mimekôr= palavra composta, formada por mi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão hebraica “Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da vida”. Observe que não existe nada referente “ao alto”, no texto grego, como muitos querem se fazer entender. Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem, no sentido de se voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente, “não poderá” (lô-iuchal=incompleto do verbo iachôl =poder) ver o reino de Deus (lirôt et-malkut haelohim).

    Assim, no diálogo, a palavra grega “anóten” tem o sentido e significado de “de novo”, portanto, Jesus falava de retorno, ou seja, de Reencarnação mesmo, como foi visto no texto hebraico.

    Lembramos, ainda, que Nicodemos já era um cidadão de idade avançada e o Cristo lhe fala de Reencarnação (Nascer de Novo), como uma esperança e reconforto para ele, mostrando-lhe que a vida não termina com a morte, nem os velhos devem temer a morte, pois podem renascer e começar tudo novamente.

    p. 239 [grifos do autor do livro]

    Eu não teria tanta certeza assim. Concordo que o texto é controverso: Na impressão de 1995 de A Bíblia de Jerusalém, optou-se pelo termo “do alto”, sem nenhuma alusão a duplo sentido (apenas fala “melhor do que ‘de novo’”). Já a impressão de 1998 substituiu anothen por “de novo” e criticou a tese do jogo de palavras. Segundo André Chouraqui, autor bem cotado pelo Dr. Severino, o anônimo redator do texto deixou transparecer que dominava tanto o idioma grego quanto os do ramo semítico (Chouraqui, A Bíblia – Johanam), podendo ter expresso seu raciocínio no primeiro idioma. Como não sou exegeta e, sim, alguém buscando mais um enfoque histórico, repito duas objeções implicitamente levantadas por Bart Ehrman [(2008), cap. XIV, p. 237] à historicidade do episódio:

    1. Tal diálogo ocorreu realmente?
    2. Se ocorreu, foi do jeito que consta no Evangelho de João?

    Sim, ainda hoje há adeptos da “fé racionada” achando que alguém gravou a conversa entre Jesus e Nicodemos, ao estilo do livro Operação Cavalo de Troia, ou, de forma menos apelativa, registrou taquigraficamente a conversa em uma tábua de cera. Se tal registro um dia existiu, encontra-se perdido. O que temos é o Evangelho de João, cuja língua original é tida como sendo a grega, pela maioria dos pesquisadores. O jogo de palavras feito pode ter sido a intenção de seu anônimo autor. “Peraí, o Dr. Severino postou o texto em hebraico“. Sim, fiquei tão surpreso que gostaria de saber de onde esse texto saiu. Nenhuma informação é dada em sua bibliografia e, ao que eu saiba, a primeira tradução para esse idioma foi feita nos tempos do Renascimento. Ou seja, até que se esclareça a fonte utilizada por ele, há um forte cheiro de uma tradução de outra tradução.

    Isso me lembra o episódio de Teodora e as 500 prostitutas assassinadas: ninguém soube indicar a fonte, embora propalassem o boato. Acho que a fonte hebraica para evangelho de João vai pelo mesmo caminho: quando um apologista espírita for cobrado, vai declarar frases como: “tenho que ir, pois vai chover!”, “Alá um disco voador!” ou “não tenho de dar fonte alguma pois você não refutou tais e tais pontos“… Haja paciência.

    [topo]

    Um Artigo (Nada) em Falta


    Os artigos gregos do nominativo singular

    Na sequência, Cristo confirma que era isso que Ele queria dizer: “Quem não nascer de água (materialmente, com o corpo denso, dado que o nascimento físico é feito através da bolsa d’água do líquido amniótico), (…) e de espírito (pneumatos), (ou seja, que adquirira nova personalidade no mundo terreno, em cada nova existência, a fim de progredir). Se Nicodemos entendeu ao pé da letra as palavras de Jesus, o Mestre confirma ao pé da letra e reforça o seu ensino. Com efeito, o espírito ao reentrar na vida física, pode ser considerado o mesmo espírito que inicia suas experiências, esquecido de todo o passado.”

    A questão gramatical: No texto em grego não há artigo diante das palavras “água” (ek ydatos = de água) e “espírito” (kai pneumatos), portanto, o texto fala em nascer “de água e de espírito”. Não é portanto, nascer da água do batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da reencarnação) e de espírito (pela Reencarnação do espírito).

    p. 239-40 [grifos do autor do livro]

    Agora será muito estranho o que vou dizer: a tradução em português que usa do artigo (“da água e do espírito”) é a mais correta! Bem, acho que o leitor deve estar se perguntando por quê? Para entender, vamos ter de entrar em certas particularidades do grego. Coisa que Severino da Silva não realçou é que a preposição εκ/εξ (e sua equivalente latina “ex”) não tem o sentido simples de nosso “de”. O mais preciso seria: de dentro para fora ( no espaço e no tempo), a partir de, de, origem, ponto de partida, de iniciativa.

    Exemplos retirados de [Murachco, pp. 563-565]:

    εκ θαλαττης – do mar. [a partir do mar]
    εκ παιδων – desde a infância. [a partir da infância]
    εκ χρυσων πινομεν φιαλων – Nós bebemos de taças de ouro.
    οι εξ εκεινων γεγονοτες – os que nasceram deles

    Note que em alguns dos exemplos, o artigo inexiste em grego, mas se faz necessário em português para dar a ideia de origem, como se fez em “da água” e “do espírito”, e não o uso deles como um veículo. Vale lembrar que várias palavras e, principalmente, sentenças de sentido geral não costumam levar artigo em grego: mar, cidade, céu, dia, sol e uma das gramáticas usadas pelo Dr. Severino informa isso (25). Não houve nenhuma garantia que um uso sem artigo (anartro) da palavra “água” foi feito, que teria causado uma ausência também em “espírito”. Para corroborar sua tese de que não se falou de batismo em tal versículo, Dr. Severino faz uma interpretação sui generis do livro de Gênesis:

    O primeiro versículo do Gênesis (1:1) fala que no princípio criou Deus os Céus e a terra. A palavra “céus” em hebraico “Shamaim” (…) significa: “Carrega água”, “Ali existe água”; “fogo e água” que, misturados um ao outro, formaram os Céus.

    Como podemos observar, tudo começou com as águas. Água é vida e essa era a crença geral naquela época. É lógico que o Cristo não falava de batismo e sim de retorno através da água. Lembramos ainda que 99% da constituição das células reprodutoras são água.

    p. 240 [grifos do autor do livro]

    A crença da época apontava a água como instrumento de purificação. Como já foi dito aqui anteriormente, há toda uma massa de textos do Antigo Testamento, pseudoepígrafos, essênios, neotestamentários e da literatura cristã primitiva apontando para o uso de “água” e “Espírito” vinculados explicitamente à purificação e à iniciação, em vez da reencarnação. E não será um versículo que mudará isso. Ademais, como o conceito de “célula” era desconhecido pelos antigos hebreus, a analogia com as células reprodutoras não passou de um forte anacronismo por parte do autor.

    Uma ironia é que logo no parágrafo seguinte, a palavra grega para “espírito” aparece precedida de artigo; um pormenor pelo qual Severino Celestino da Silva passou tangencialmente:

    Daí a explicação que segue “o que nasce da carne (ek tês sarkos) com artigo (tês) em grego, é carne”, isto é com corpo físico, com toda a hereditariedade física herdada do corpo dos pais; “e o que nasce do espírito (ek tou pneumatos) é espírito”, ou seja, o espírito que reencarna provém do espírito da última reencarnação com toda a hereditariedade pessoal (cármica) que traz do passado.

    p. 240 [grifos do autor do livro]

    Ou seja, nem ele explica que a tradução mais ao pé da letra de pneuma é “sopro” e ela não tinha o sentido de “alma” que ganhou com o tempo. Tanto que em textos de Justino Mártir (Diálogos…, IV) e Orígenes (Comentário sobre o Evangelho de João, livro VI, cap VII) é clara a distinção entre alma (psyché, em grego) e espírito (pneuma).

    E no próprio Novo Testamento há exemplos de expressões preposicionadas (com εκ e outras), de sentido definido, que não levam artigo em grego:

    εν αρχη – no princípio (Jo 1:1)
    απ’αρωχης – desde o princípio (Mt 19:4)
    εκ δεξιων – à direita (Mc 10:37)
    εκ αριοτερων – à esquerda (Mc 10:37)
    εκ νεκρων – dentre os mortos (Mt 17:9)
    εν πνευπατι – no espírito (Ef 6:18)

    Em resumo: em grego antigo, existia apenas o artigo defino. Sua presença delimitava o substantivo ao qual se referia, porém sua ausência não o tornava necessariamente indefinido. Clique neste link para acessar um estudo pormenorizado sobre o tema.

    [topo]

    Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ

    Jo 3:6 em P66
    foto de P66
    Papiro P66 em Jo 3:6

    Detalhe do papiro P66 em Jo 3:6, exibindo o nomem sacrum para pneuma em apenas uma das aparições dessa palavra no versículo. Extraído de Early Bible.

    Recapitulando as observações feitas por Kardec quanto às traduções que dispunha do Evangelhos João, em relação ao versículo 3:5:

    7 – Estas palavras: “Se não renascer da água e do Espírito”, foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. Mas o texto primitivo diz simplesmente: Não renascer da água e do Espírito, enquanto que, em algumas traduções, a expressão do Espírito foi substituída por do Espírito Santo, o que não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários feitos sobre o Evangelho, assim como um dia será constatado sem equívoco possível.(1)

    (. . .)

    Nota (1): A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo, e traz: não renascer da água e do Espírito. A de Sacy diz do Espírito Santo. A de Lamennais também diz: Espírito Santo.

    A tradução da Bíblia para o francês feita por Louis-Isaac Lemaistre de Sacy (1613 – 1684) se valeu da Vulgata, segundo informa a aprovação clerical recebida por ela. A tradução dos Evangelhos de Félicité Robert de Lamennais, em meados do século XIX, faz referências às leitura do texto grego e da Vulgata, embora em Jo 3:5 traga a leitura Esprit-Saint sem maiores explicações. Já o pastor protestante suíço Jean-Frédéric Osterwald (1663 – 1747) revisou a Bible de Genève com base no texto grego e redigiu apenas esprit, com letra minúscula. Tanto Kardec quanto Dr. Severino advogam que “espírito” em Jo 3:5 não deve ser entendido como “Espírito Santo” com base na autoridade do texto “mais antigo”.

    Inicialmente, vejamos o que entendiam os tradutores acima por “Vulgata” e “Texto Grego”. A primeira é a Vulgata Sixto-Clementina, uma recensão feita nos tempos da Contrarreforma da tradução de Jerônimo de Estridão. Alguns manuscritos da Vulgata – como o Códice Covensis – trazem a leitura ex aqua et Spiritu Sancto, enquanto o Códice Amiatinus – o mais antigo exemplar completo da Vulgata (ca. séc. VIII) – traz apenas ex … Spiritu. Já o mais tardio Códice Cavense (séc. IX) traz a leitura mais longa, assim como diversos outros códices cujas leituras refletem a Vetus Latina, além de ser citada por autores latinos tão separados no tempo como Tertuliano (séc. II e III, em De Baptismo, cap. XIII) e Tomás de Aquino (séc. XIII, em Suma Teológica, parte III, questão 66, art 2º). Essa leitura pode até não ser a original, porém é mais antiga do que sugere Kardec. Quanto a “texto grego”, entenda-se que seria o Textus Receptus (“Texto Recebido”), a edição do Novo Testamento em grego feita pelo erudito Erasmo de Roterdã (1466 – 1536). Apesar de todas as críticas justificadas feitas ao texto de Erasmo, não há em Jo 3:5 discrepância com relação aos manuscritos de melhor qualidade: apenas “εξ … πνευματος” aparece na fala de Jesus a Nicodemos. Teria, então, algum tradutor latino inserido no texto da Vetus uma interpretação em vez da tradução mais literal? É provável que sim, embora ele ainda seja inocente ou, pelo menos, digno de um atenuante, pois é possível rastrear essa associação de “espírito” como “Espírito Santo” em Jo 3:5 desde o século III. Como sabemos disso? Os antigos copistas deixaram indicações.

    Uma linha argumentativa recorrente entre pretensiosos “biblistas” espiritualistas é a de que, nos evangelhos, sempre se deveria escrever “espírito” em vez de “Espírito”, pois na antiguidade inexistiam a diferenciação entre letras maiúsculas e minúsculas, afinal essas últimas só foram inventadas na Idade Média. Portanto, qualquer um que traduza ΠΝEYMA por “Espírito” terá inserido uma interpretação teológica tardia, após a consolidação da doutrina da Trindade. Quem dera que os fatos fossem tão simples assim. De fato, os antigos copistas escreviam apenas em maiúsculas e, para economizar tempo e aproveitar ao máximo as caríssimas folhas de pergaminho, nãoseparavamumapalavradaoutra (scripta continua) recorriam muitas vezes a abreviaturas. Como essas eram feitas para as palavras mais frequentes, nada mais natural que as de cunho religioso fossem escolhidas e dessem origem ao que, em tempos modernos, seria designado como uma classe especial de abreviaturas: os nomina sacra (“nomes sagrados”).

    Uma particularidade interessante dos nomina sacra é que todos os manuscritos antigos possuem um conjunto mínimo deles, dando a entender que, se já não surgiram junto com os originais dos livros, começaram a ser utilizados bem cedo. Quatro nomes aparecem universalmente em todos os unciais na forma abreviada: “Senhor” (Κυριος), “Deus” (Θεος), “Jesus” (Ιησους) e “Cristo” (Χριστος). Conforme a datação dos manuscritos avança, outras palavras se juntam ao grupo, como “Pai” (Πατηρ), “Filho” (Υιος), “Cruz” (Cταυρος), “Israel” (Ισραηλ), “Céu” (Ουρανος), etc. Não havia uma regra única para as abreviaturas, mas, em geral, os copistas tomavam a primeira ou as duas primeiras letras, a última, e as sobrescreviam com um traço horizontal. Como a terminação de uma palavra variava conforme o caso em que se encontrasse, os nomina sacra também mudavam em concordância.

    Uncial Nominativo Genitivo
    Senhor ΚΥΡΙΟC ΚC ΚΥ
    Deus ΘΕΟC ΘC ΘΥ
    Jesus ΙΗCΟΥC ΙC ΙΥ
    Cristo ΧΡΙCΤΟC ΧC ΧΥ
    Espírito ΠΝΕΥΜΑ ΠΝΑ ΠΝC
    Pai ΠΑΤΗΡ ΠΗΡ ΠΡC
    Filho ΥΙΟC ΥC ΥΥ
    Cruz CΤΑΥΡΟC CΤC CΤΥ
    Israel ΙCΡΑΗΛ ΙΗΛ indeclinável
    Céu ΟΥΡΑΝΟC ΟΥΝΟC ΟΥΝΟΥ

    Lista não exaustiva de nomina sacra comuns em manuscritos do Novo Testamento. Não foram incluídas variantes como IHC para Jesus. Mais pormenores em [Comfort, cap. IV]

    Como se enquadra Pneuma no histórico do emprego dos nomina sacra? Seu nomen sacrum ΠΝΑ se encontra presente nos mais antigos manuscritos que chegaram até nós contendo a palavra “espírito” denotando uma origem divina, dando a entender que seria tão antigo quanto os quatro primários e seria tranquilamente aceito como um quinto membro desse grupo se não fosse por duas anomalias [Comfort, cap. IV, pp. 231-41]:

    • O papiro P46 (c. 175-225, contém epístolas paulinas) deixa de aplicar o nomen sacrum para o espírito divino em dez circunstâncias que seriam comumente aceitas depois;
    • O Códice Vaticano, contemporâneo do igualmente famoso Sinaítico (séc. IV), não possui nomen sacrum para Pneuma.

    Uma conciliação proposta é que P46 teria sido redigido numa época de transição, quando as abreviaturas para Pneuma ainda estavam se desenvolvendo e o Códice Vaticano seria uma reprodução de um manuscrito ainda mais antigo que P46. Com o material disponível atualmente, isso é apenas conjectura, não estando descartada a hipótese de o copista de P46 ter se descuidado. Por ora, pode-se afirmar que, se ΠΝΑ não for um nomen sacrum primário, ao menos é quase tão antigo quanto os desse grupo.

    O impacto desse registro paleográfico é deixar claro que a personalização do Espírito Santo – representando um ente específico e não uma classe – se encontra presente desde o II século de nossa Era e duzentos anos antes do I Concílio de Constantinopla. E, embora o registro escrito fosse bem mais precário, os antigos tinham, sim, seus meios para destacar o que lhes era relevante. Os nomina sacra constituíam um deles. Não revelam apenas vislumbres de como “Espírito” era compreendido, mas também aspectos um pouco mais profundos de exegese. Por exemplo, relembrando o diálogo entre Jesus e Nicodemus, mais especificamente este versículo:

    Jo 3:6
    P66
    (Fonte)
    Papiro P66 em Jo 3:6
    P75
    (Fonte)
    Papiro P75 em Jo 3:6

    A última oração do versículo – και το γεγεννημενον εκ του πνευματος πνευμα εστιν (“e o que é nascido do espírito é espírito”) – é interpretada de forma diferente pelos copistas. O de P66 distinguiu o Espírito divino do humano, dando a entender que “o Espírito divino gera o espírito humano”. Essa é a interpretação da maioria das traduções modernas. Já o de P75, por sua vez, tratou os dois como divinos, sugerindo que “o que é gerado pelo Espírito também é divino”. A passagem, sem dúvida, permite mais de um entendimento, não havendo razão alguma para se considerar o viés reencarnacionista como o único possível, como fazem certos apologistas espíritas. Bem antes de Niceia, as opiniões eram outras…
    [topo]

    Várias Línguas, Poucos Poliglotas

    Jesus perante Pilatos

    – Quid est veritas?
    – Por favor, Pilatos, você deveria falar:
    Τι εστιν αληθεια;
    Aliás, cadê o intérprete nesta cena do filme?

    Na encruzilhada de diversos impérios ao longo de sua história, a região do antigo reino de Herodes recebeu diversas influências, que deixaram suas marcas linguística nas culturas locais. Quatro são os idiomas em questão: hebraico, aramaico, grego e latim; cada um com um papel diferente em sua sociedade no primeiro século da Era Comum.

    1. Latim: Do grupo, este idioma era o “recém-chegado”, tendo sido apresentado às terras da Judeia pelas tropas do general Pompeu em 63 a.C., passando a marcar um pouco mais de presença quando ela passou para a administração de direta de Roma no sexto ano da Era Comum. Com certeza era ouvida na capital administrativa, Cesareia Marítima, entre os soldados e altos funcionários civis do império, contudo era a língua do conquistador. Para um romano, aprender um idioma local seria uma habilidade a mais, já um nativo poderia ser visto como traidor se fizesse o contrário. Inscrições monumentais encontradas nos vestígios arqueológicos das construções romanas da época de forma alguma significam que seus autores desejavam ser lidos por outros que não fossem os seus. Os romanos se congratulavam entre si e, para os que estavam de fora, a mensagem de uma inscrição latina era sempre a mesma: “Roma manda aqui“;

    2. Grego: difundido no Levante pelas tropas de Alexandre da Macedônia, o dialeto koiné desse idioma era a língua internacional da helenizada orla oriental do Mediterrâneo no primeiro século da Era Comum e só perderia esse posto após a expansão do Islã, a partir do século VII. Na divisão do império macedônio, a Judeia ficou inicialmente com o Egito dos Ptolomeus e, em seguida, passou para o domínio dos Selêucidas da Síria. Esse último tentou impor uma helenização forçada e acelerada que resultou na vitoriosa revolta dos Macabeus e na instauração da dinastia Hasmoneia. Entretanto, isso não foi o fim da influência grega na região, afinal já estavam estabelecidas grandes comunidades judaicas pelo mundo helênico, cujo idioma materno não era mais o hebraico ou o aramaico e, sim, o grego. Em suas peregrinações ao Templo, esses judeus da diáspora faziam garantir que a língua de Platão fosse escutada pelos nativos Jerusalém e arredores. Com a conquista romana e o reinado de Herodes, uma nova fase de aculturação começou e voltaram a florescer colônias gregas nas bordas de seu reino. Um desses centros cosmopolitas foi a cidade de Séforis, localizada a apenas 7 km de Nazaré, onde um certo jovem galileu chamado Jesus deve ter trabalhado. Sim, Jesus Histórico com certeza travou contato com a cultura greco-romana e em algum grau deveria compreender a língua franca de sua região – o grego koiné, a questão é qual era seu provável grau de intimidade com o idioma? Ou, em outras palavras, até onde era difundido o bilinguismo na Galileia/Judeia do primeiro século?

      De fato, mesmo uma pessoa pouco instruída pode dominar várias línguas caso tenha sido exposta a elas desde cedo ao interagir com falantes nativos de outros idiomas. Contudo, ser capaz de realizar transações comerciais, fornecer instruções objetivas, ou dar explicações de como chegar a algum lugar, requer bem menos vocabulário e domínio da gramática que sermões religiosos ou expressões de afeto. Via de regra, gentios e judeus viviam perto uns dos outros o suficiente para estabelecer um contato superficial, mas dificilmente seriam entrosados o bastante para precisar de uma comunicação profunda. O fato de alguns discípulos de Jesus – como Felipe e André – e o próprio Nicodemos possuírem nomes de origem helênica atesta uma elevada influência da cultura grega na região, mas pouco garante algo sobre o bilinguismo de seus habitantes. Um paralelo moderno pode ser a profusão de nomes próprios de origem inglesa na Brasil, mesmo nas camadas populares (às vezes grosseiramente aportuguesados), embora o grosso da população continue monoglota.

      Alguns relatos fora dos evangelhos reforçam a ideia de que a maioria dos judeus locais não possuía o grego como primeira língua:

      • Em Atos, capítulos VI a VIII, é relatada uma rixa entre os “judeus de fala hebraica” e os de “fala grega”. Bem, esses dois grupos deveriam se comunicar utilizando alguma língua em comum, mas qual? No capítulo XXI, vv. 37-40, Paulo comunica-se com os soldados que o prendem em grego, mas fala à multidão em aramaico. Ainda que tal passagem não tenha sido 100% verídica, a Lucas deve ter tentado dar plausibilidade à narrativa, lembrando que a maioria dos os ouvintes não dominava o grego muito bem. Assim, os bilíngues eram os judeus de fala grega, como Paulo o era;

      • No livro V, capítulo IX de A Guerra dos Judeus, Flávio Josefo informa que serviu de intérprete para o general romano Tito:

        Mas então Tito, sabendo que a cidade [Jerusalém] seria ou salva ou destruída por ele mesmo, não apenas procedeu prontamente ao cerco, mas não deixou de exortar os judeus ao arrependimento; de modo que uniu um bom aconselhamento com seus trabalhos de cerco. E tendo o senso de que exortações são frequentemente mais efetivas que braços, persuadiu-os a entregar a cidade, que já estava tomada de certa forma, e assim se salvarem, e enviou Josefo para falar com eles em sua própria língua; pois imaginou que poderiam ceder à persuasão de um conterrâneo deles.

      Assim, é provável que Jesus (o Histórico) conhecesse e até entendesse um pouco de grego, mas com certeza não era sua língua materna, nem o idioma com que pregava às massas.

    3. Hebraico: Com o Cativeiro de Babilônia (590 – 538 a.C.) , os israelitas remanescentes foram expostos ao, ou melhor, imersos no idioma do conquistador: o aramaico, que era um parente próximo do hebraico na família das línguas semíticas. Mesmo com a queda do Império Babilônico ante os persas e o retorno de parcela do povo a Israel, ele continuou a ser a língua oficial da parte ocidental do novo império. Com seu uso constante no contato com outros povos, quer na diplomacia ou no comércio, e com os que permaneceram na Babilônia fez o aramaico suplantar o hebraico como língua materna dos judeus, deixando ao segundo apenas o uso litúrgico. O livro de Neemias (v. 13:24) dá um registro dessa mudança linguística ao relatar que metade dos filhos de casamentos mistos “não sabia mais o hebraico”. Acredita-se que ao tempo de Jesus, esse processo já estivesse quase completo na Palestina romana.

      Estaria o hebraico ainda vivo o bastante para ter sido usado como veículo para a pregação de Jesus? Nem todos os judeus foram exilados na Babilônia e, com certeza, ele ainda era usado nas Sinagogas, mas e fora delas? As regiões rurais poderiam ser isoladas o bastante ter ficado imunes a exílio, num primeiro momento, e ao cosmopolitismo posterior; além do que, bem longe de Jerusalém, a comunidade de Qumran escreveu todos os seus textos doutrinários em hebraico, indicando que deveria ser ao menos a língua litúrgica local. Entretanto, já não era o hebraico dos livros bíblicos, mas um intermediário entre ele o hebraico mishinaico utilizado pelos rabinos após a revolta de Bar Kochba, o que seria sinal de que o hebraico continuava a evoluir como língua justamente por ainda estar bem vivo.

      Esses indícios, contudo, não são conclusivos: quinze porcento dos textos bíblicos em Qumran estão em aramaico, indicando que boa parte dos membros da comunidade (os novatos, talvez) não conseguia ler diretamente em hebraico, além do fato de línguas puramente escritas também evoluírem, embora mais devagar, por causa da evolução do meio ambiente em que seus redatores vivem e da língua que falam (26). O hebraico pode, sim, ter sobrevivido nas isoladas colinas ao sul da Judeia (27), mas para as maiores aglomerações, evidências apontam para uma quarta opção de língua vernacular.

    4. Aramaico: Ao contrário do latim e o grego, o aramaico contava para os falantes de hebraico com a vantagem de pertencer à mesma família de línguas – a semítico-ocidental -, e a similaridade entre esses dois era comparável com a que existe entre as atuais línguas neolatinas. Isso, sem dúvida, ajudou o aramaico a suplantar o hebraico, fincando sua presença, inclusive, nos mais tardios livros que viriam a constituir o Antigo Testamento: metade do livro de Daniel está escrito nessa língua (Dn 2:4b–7:28) e trechos longos Esdras, também (4:8–6:18 e 7:12–26). Por fim, sua escrita “quadrada” substituiu a variante do alfabeto fenício usada antes do Exílio.

      Fora dos textos bíblicos, a evidência das inscrições monumentais, lapidares (ossários) e de correspondências aponta para uma predominância do aramaico sobre o hebraico em antigas áreas de preponderância semita na Judeia do primeiro século e adjacências (28). O aramaico, portanto, deve ter sido o idioma de uso mais corrente entre o povo de Jerusalém e ainda mais no da Galileia. Se Jesus desejou que sua mensagem alcançasse o maior número de pessoas, então deve ter se valido deste idioma. Nos evangelhos, várias palavras de origem aramaica – como Abba (Mc 14:26, “Pai”) ou Rabôni (“Mestre”, Jo 20:16) – aparecem com uma explanação de sentido para seus leitores gregos, além do grito de Jesus (Mt 27:46) na crucificação – “Eli, Eli, lema sabachthani?(29), cuja última palavra está indiscutivelmente em aramaico (30). Embora não se possa garantir historicidade nas falas em que ocorrem esses aramaísmos, ao menos os evangelistas procuraram apresentar Jesus como um falante de aramaico.

    Ainda que o aramaico fosse a primeira opção de Jesus, teria sido possível que ele pregasse em outras línguas? Bem, tudo dependeria de seus interlocutores e do quanto ele dominava o idioma deles. Dentro das sinagogas, o uso do hebraico poderia ser válido, supondo um Jesus instruído formalmente na Torá. A conversação em alguns episódios das narrativas evangélicas – como a cura do servo de um centurião (Mt 8:5-13 e Lc 7:1-10) e o diálogo com Pilatos -, caso verídicos, teriam sido em grego pelo fato de um dos interlocutores ser totalmente alienígena à cultura local. Entretanto, que não se descarte a hipótese de que tenha havido um intérprete no meio, suprimido pela tradição que chegou aos evangelistas (31). No caso da conversa com Nicodemos, temos dois semitas falando ambiente indeterminado. Nada indica que essa conversa se deu em grego ou algum nicho em que a adoção do hebraico fosse presumida. Assim, o duplo sentido de novo/do alto seria inválido por não ser possível de ser reproduzido em aramaico, certo? Talvez se esteja procurando a resposta nos locais errados.
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    Buscando-se apenas onde há luz

    Vela na escuridão

    – Estou procurando por minha moeda de 25 centavos que deixei cair.
    – Você a deixou cair aqui?
    – Não, deixei cair duas quadras rua abaixo.
    – Então por que está procurando por ela aqui?
    – Porque aqui a luz é melhor.

    (Mutt and Jeff, 1942)

    Na questão dos manuscritos originais dos evangelhos (autógrafos), temos, ao menos provisoriamente, uma certeza e uma grande dúvida: todas as cópias mais antigas disponíveis estão em grego e não se sabe se seriam, na verdade, reproduções de traduções feitas a partir de originais em aramaico. É possível, também, que os evangelhos tenham sido redigidos já em grego, porém baseados em fontes aramaicas. Eusébio de Cesareia, em A História Eclesiástica (livro V, XXXIX, 16), cita uma observação feita pelo um antigo escritor cristão e bispo de Hierápolis, Papias (32), acerca da redação de Mateus: “Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.” Teriam sido essas sentenças uma primeira redação dos ditos de Q e depois algum anônimo juntou com a narrativa de Marcos que, segundo o próprio Papias (idem, XXXIX, 15) “foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito“, dando origem ao atual evangelho de Mateus? Possivelmente, conforme a hipótese quádrupla da origem dos sinópticos, mas como Marcos teria sido bilíngue e já se tentavam traduzir as “sentenças de Mateus”, essa junção já poderia ter ocorrido diretamente em grego. A dobradinha Lucas/Atos, com sua dedicatória a Teófilo e um enfoque da migração do cristianismo dos judeus para o mundo, certamente foi escrita em grego. Quanto ao Evangelho de João, as dúvidas são ainda maiores a respeito de um possível original semita seu ou de parte dele. A tensão retratada entre cristãos e judeus aliada à virtual ausência dos saduceus e dos zelotas em seu texto sugerem uma redação após 70 d.C., quando fariseus e nazarenos entraram em rota de colisão e diáspora se acelerou. Seu mais antigo exemplar – o diminuto papiro P52 – é datado em cerca de 125 d.C., já com um texto em grego. Pela análise de seu texto, cogita-se a existência de certas fontes empregadas por seu anônimo redator (o hino do prólogo, um evangelho de sinais, uma coletânea de discursos e uma narrativa da paixão), mas não há como lhes garantir uma origem aramaica. Entretanto, há quem aposte nessa tese.

    James David Audlin é um de seus principais advogados e, embora seja algo ainda bem controverso, ele teve uma interessante sacada quanto à inviabilidade de uma palavra aramaica como o mesmo duplo sentido da grega anothen: na verdade, o duplo sentido existente em aramaico era outro – similar, mas não idêntico – e anothen foi a tentativa de um tradutor grego de simulá-lo. Para saber qual seria essa palavra, Audlin se vale da Peshitta, a versão da Bíblia escrita em siríaco (o dialeto aramaico da Síria), que fornece em Jo 3:3 a palavra ܪܝܫ (riysh), que pode significar “cabeça”, “princípio”, “principal”. Eis alguns usos seus no Novo Testamento siríaco:

    • Cabeça (1 Cor 12:21)
    • Pedra angular (lit. “cabeça da esquina” ou “principal da esquina”, Mc 12:10, Lc 20:17, At 4:11, I Pd 2:6 e Ef 2:20)
    • Princípio, começo (Mc 1:1 e Jo 1:1)
    • Primeiro (Col 2:16 – referindo-se à primeira lua nova do mês)
    • Ponta (Lc 16:24)
    • Extremidade (Mc 13:27)
    • Chefe, líder (Mt 9:34, Lc 8:41, Ef 2:2)

    Do jeito que riysh está preposicionada e prefixada no diálogo com Nicodemos (men d’riysh, literalmente, “(a partir )do começo”, ela forma uma expressão muito similar à italiana da capo, podendo significar realmente “de novo” – como indiscutivelmente ela aparece em Gl 4:9,19 ou II Cor 3:1 -, porém também poderia ser entendida como “(a partir) do topo”, i.e, “de Deus”. É um raciocínio interessante e mataria a questão se não fosse por um pormenor: em nenhum outro lugar do Novo Testamento men d’riysh é usada indubitavelmente para indicar um lugar superior. Portanto, Audlin pode estar “forçando a barra” e impondo a um idiomático um significado que nunca teve. Como já expliquei em outro lugar, não basta um dicionário para validar uma tradução, pois quem define o significado de uma palavra é quem a usa. Dicionários apenas correm atrás.

    Por outro lado, um dos livros do Novo Testamento em que a Peshitta traz esse idiomático duas vezes no mesmo capítulo, com um contexto bem revelador:

    Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos,
    I Pedro 1:3

    (…)

    Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro;
    Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre.
    I Pedro 1:22-3

    O anônimo autor de I Pedro advogava uma regeneração moral por meio do Espírito e, provavelmente o tradutor da Peshitta identificou isso em Jo 3:3. De fato, não é preciso um jogo de palavras para produzir um duplo sentido que confundisse Nicodemos. Ele não estava sozinho.

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    Dois passos além: os Primeiros Apologistas

    Catacumba cristã

    Na segunda metade do segundo século, o cristianismo se fragmentava em várias facções. Alguns, como os seguidores de Marcião, desejavam romper com o passado judaico da religião, pois julgavam o Pai de Jesus tão diferente do Javé dos patriarcas, que atribuíram ao último um status muito inferior e indigno. Baseando-se em princípio semelhante, grupos esotéricos o tratavam como um demiurgo inferior a aprisionar as almas humanas nos corpos terrenos; e, munidos de sofisticadas alegorias, compuseram complexos sistemas para explanar a catástrofe cósmica que levou inúmeras centelhas divinas a caírem nas garras desse demiurgo, assim como para designar Jesus como um enviado do deus bom com a missão de levar o conhecimento (gnose) necessário para que elas se libertassem e retornassem ao domínio celeste. No outro extremo, persistiam comunidades de judeus cristãos, a advogar que a circuncisão era fundamental para sinalizar a aliança com o Criador, cuja Lei fora dada a Moisés e magnificamente cumprida pelo Nazareno.

    No meio de campo, diversas comunidades se organizavam na busca por um grande compromisso: achavam que era possível ser bom cristão sem se converter ao judaísmo, ao mesmo tempo que louvavam a Escritura por ele legada. Lançavam mão de alegorias para Justificar passagens embaraçosas contidas nela, além justificar Jesus como Messias prometido -, mas paravam por aí. O deus de Abraão era o mesmo deles, do qual se julgavam filhos por adoção. Eis o grupo que viria a constituir a ortodoxia moderna, embora isso ainda incerto àquela época. Na luta por corações e mentes, esse grupo contou com seu próprio exército intelectual a justificar seu ponto de vista sobre os demais. No que tange ao batismo alguns nomes se destacam:

    • Teófilo de Antioquia (? – ca. 186 d.C.): focou na defesa contra as críticas pagãs. Em seu tratado direcionado a elas, considerou o batismo como um propiciador da renovação da vida moral, espelhando a narrativa bíblica da criação do mundo:

      No quinto dia foram criados os animais que procedem das águas, pelas quais e nas quais se mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem seria capaz de enumerar sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas espécies? Além disso, o que foi criado das águas por Deus foi abençoado por ele, para que isso servisse de prova sobre o que os homens deveriam receber: penitência e remissão dos pecados através da água e banho de regeneração [λουτρου παλιγγενεσιας], todos os que se aproximam da verdade, renascem e recebem a bênção de Deus.

      II Livro a Autólico, cap. XVI. Texto grego em Patrologia Graeca, Migne, Vol. VI, col. 1.078

    • Irineu de Lião (ca. 130 — 202): mais conhecido por sua obra Contra as Heresias, em que lança veemente ataque aos gnósticos, escreveu, também, um pequeno tratado que pode seu considerado um catecismo para adultos ou uma síntese de sua obra mais famosa. Nele deixa bem claro seu entendimento quanto ao papel do batismo:

      Assim, pois, por temer coisa semelhante [impiedade por meio da heresia], devemos manter inalterada a regra da fé e cumprir os mandamentos de Deus, crendo n’Ele, temendo-O como Senhor e amando-O como Pai. Portanto, um comportamento deste estilo é uma conquista da fé, pois, como diz Isaías: “Se não creres, não compreendereis” (Is. 7,9). A fé nos é concedida pela verdade, pois a fé se fundamenta na verdade. De fato, cremos o que realmente é e como é; e crendo no que realmente é e como sempre foi, mantemos firme nossa adesão. Pois bem: posto que a fé sustenta nossa salvação, é necessário prestar-lhe muita atenção para obter uma inteligência autêntica da realidade. A fé é que nos faz procurar tudo isso, como nos transmitiu os Presbíteros, discípulos dos apóstolos. Em primeiro lugar, a fé nos convida insistentemente a relembrar que recebemos o batismo para o perdão dos pecados em nome de Deus Pai e em nome de Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, e [em nome] do Espírito Santo de Deus; que o batismo é o selo da vida eterna, o novo nascimento de Deus, de modo tal que não somos mais filhos de homens mortais, mas do Deus eterno e indefectível; que o Eterno e Indefectível é Deus, acima de todas as criaturas, e que cada coisa, seja qual for a sua espécie, está submetida a Ele; e tudo o que foi a Ele submetido foi por Ele criado. Deus, portanto, não exerce seu poder e soberania sobre o que pertence aos outros, mas sobre o que lhe é próprio. E tudo é de Deus. Com efeito, Deus é onipotente e tudo provém d’Ele.

      Demonstração [ou Exposição] da Pregação Apostólica, cap. III

    • Justino, o Mártir (ca. 100 – ca. 165 d.c.): em sua Apologia do cristianismo endereçada ao imperador Antonino Pio é feita uma descrição do ritual do batismo:

      Explicaremos agora de que modo, depois de renovados por Jesus Cristo, nos consagramos a Deus, para que não aconteça que, omitindo nesse ponto, demos a impressão de proceder um pouco maliciosamente em nossa exposição. Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos, em primeiro lugar, para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração, como que também nós fomos regenerados, eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. É assim que Cristo disse: “Se não nascerdes de novo, não entrareis no Reino dos Céus” (cf. Jo 3:3,4). É evidente para todos que, uma vez nascidos, não é possível entrar de novo no seio de nossas mães. Também o profeta Isaías, como citamos anteriormente, disse como fugiram dos pecados aqueles que antes pecaram e agora se arrependem. Eis o que ele disse: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai as maldades de vossas almas e aprendei a fazer o bem, julgai o órfão e fazei justiça à viúva; então vinde e conversemos, diz o Senhor. Se vossos pecados forem como púrpura, eu os tornarei brancos como a lã; se forem como o escarlate, eu os alvejarei como a neve. Se não me escutardes, a espada vos devorará, porque assim falou o Senhor” (cf. Is 1:16-20). A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepende de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo; e aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. Com efeito, ninguém é capaz de dar um nome ao Deus inefável; se alguém se atrevesse a dizer que esse nome existe, sofreria a mais vergonhosa loucura. Esse banho chama-se iluminação, para dar a entender que são iluminados os que se aprendem estas coisas. O iluminado se lava também em nome de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, e no nome do Espírito Santo, que, por meio dos profetas, nos anunciou previamente tudo o que se refere a Jesus.

      Apologia, Vol. I, cap. LXI

    Alguém deve estar se perguntando o que esse autores mais tardios teriam a dizer da opinião cristã original? Bem, diria eu que se encontram numa situação em que não são antigos o bastante para que seu ensino seja, acima de qualquer dúvida, chamado de apostólico. Na segundo metade do século II – onde se situa a datação de suas obras – aquilo que viríamos a chamar de Igreja já se organizava institucional e doutrinariamente. Por outro lado, antecedem bem o famigerado Concílio de Niceia. Mais ainda o II Concílio de Constantinopla, que teria expurgado a reencarnação do cristianismo, segundo conspiracionistas de plantão. Vale lembrar que Justino já foi tido por crente na reencarnação por espíritas/espiritualistas e a palavra grega palingênese, que é recorrentemente traduzida por espíritas como “reencarnação”, aparece na pena de Teófilo de Antioquia com um sentido que incomodaria a muitos dos apologistas espíritas. Pois é: sempre quando convier a patrística será usada em prol de teses estapafúrdias de doutrinas modernas; quando não o for, as idiossincrasias dos primeiros teólogos serão assinaladas para constranger os cristãos ortodoxos modernos.

    Se você ainda está cismado com esses textos da patrística pré-nicena, então vejamos se o próprio texto do Evangelho de João tem mais algum segredo para revelar.

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    Um Padrão Oculto nos Diálogos de João

    Ícone de João Evangelista com o Prólogo de Seu Evangelho

    (…)

    Depois que a reencarnação foi retirada do cristianismo pelo imperador Justiniano, no Concílio Ecumênico de Constantinopla (553), houve nele uma reviravolta. Os dogmas, que começaram a surgir em 325, no concílio de Niceia, passaram a ser a base do ensino cristão. A Bíblia passou a ter outras interpretações e seus textos foram adaptados às novas doutrinas, que provocavam acaloradas polêmicas entre os teólogos.

    Realmente, é famosa a passagem reencarnacionista da visita de Nicodemos a Jesus (João 3: 3). Ela se refere de modo claro e contundente à reencarnação, fenômeno esse já largamente comprovado por milhares de biblistas e cientistas de várias religiões ou mesmo sem religião.

    Mas os teólogos, não todos, e cristãos fundamentalistas ainda querem interpretar o nascer “de novo” ou “do alto” (“anothen”) como sendo da água (líquido amniótico) do batismo, mas o texto joanino nada tem a ver com esse ritual que muito respeitamos: “…Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (João 3: 3). E, para deixar a questão mais clara, Jesus acentuou para Nicodemos: “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito”. “Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo” (João 3: 6 e 7).
    Esse assunto nada mesmo tem a ver com a água do batismo, mas com o nascer de novo do espírito (conversão ou mudança espiritual radical de vida para melhor) e com o nascer também “de novo” ou “do alto” da (na) carne, ou seja, dos pais, o que é nova vida ou nova reencarnação. Isso é tão verdade que Nicodemos até perguntou a Jesus: “…Como pode um homem nascer sendo velho? Pode, porventura, voltar a entrar no ventre materno e nascer segunda vez?” (João 3: 4). Essa pergunta demonstra-nos que o assunto entre os dois não tem nada mesmo a ver com o batismo.

    (…)

    Nicodemos tinha conhecimento da reencarnação. Daí Jesus ter-lhe dito: “Tu és mestre em Israel, e não compreendes essas coisas?” (João 3: 10). Realmente, os judeus sábios e cabalistas aceitavam as várias vidas terrenas do espírito.

    Para mim, Nicodemos, simplesmente, deu uma de bobo para poder ouvir de Jesus mais e melhores esclarecimentos sobre a reencarnação!

    José Reis Chaves, Só se chega à salvação nascendo “de novo” do espírito e da carne , em coluna semanal do jornal O Tempo, 11/05/2015.

    Deixando de lado as bobagens quanto ao II Concílio de Constantinoplado início do texto – que já discuti à exaustão em outras partes – e as especulações espíritas quanto ao “nascer de novo” – vistas aqui mesmo mais acima -, resgatei esse texto de um velho conhecido, principalmente pela última frase “Nicodemos, simplesmente, deu uma de bobo para poder ouvir de Jesus mais e melhores esclarecimentos sobre a reencarnação!” De fato, imaginar um Nicodemos dando uma de sonso ou de desentendido faz pleno sentido numa interpretação reencarnacionista da passagem, pois, do contrário, haveria uma admissão tácita de que a reencarnação não era tão difundida assim entre os judeus da época, a ponto de um “mestre” ser ignorante quanto a ela. A questão é: será possível presumir isso de alguma forma ou se está extraindo no texto mais do que ele pode oferecer? Aposto nesta última, pois, não somente Nicodemos, mas uma série de interlocutores de Jesus no Evangelho de João aparentam sofrer uma ignorância que precisa ser corrigida pelo Verbo de Deus. Mais tecnicamente falando, observa-se ao longo desse evangelho o padrão ambiguidade/mal-entendido/elucidação nos diálogos de Jesus. Eis alguns exemplos:

    Jo 2:19-22 Jo 4:10-5 Jo 6:33-5
    Ambiguidade Jesus respondeu, e disse-lhes: Derribai este templo, e em três dias o levantarei. Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo.
    Mal-entendido Disseram, pois, os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu o levantarás em três dias? Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva?
    És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado?
    Disseram-lhe, pois: Senhor, dá-nos sempre desse pão.
    Elucidação Mas ele falava do templo do seu corpo. Quando, pois, ressuscitou dentre os mortos, os seus discípulos lembraram-se de que lhes dissera isto; e creram na Escritura, e na palavra que Jesus tinha dito. Jesus respondeu, e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede;
    Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.
    E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.

    Outros exemplos são encontrados em Jo 4:32ss, 8:31ss, 8:38ss, 11:11ss, 11:23ss, 13:8ss, 14:4ss, 14:7ss, 14:21ss e 16:16ss. Ah, claro, a conversa com Nicodemos (Jo 3:33ss) também se enquadra nesse padrão. Pouca diferença faz se o Jesus histórico empregou essa técnica ou foi um recurso estilístico do evangelista, pois o resultado é o mesmo: os interlocutores de Jesus, nesse evangelho, não se faziam de bobos; eles eram bobos, mesmo. Um dado disponibilizado por estudiosos acadêmicos da Bíblia. Ou seja, pelos biblistas de verdade.

    [topo]

    Outras Águas

    Crucifixão sobre o 
crânio de Adão

    Crucifixão, por Carlo Crivelli (1485)

    Gostaria de tratar, agora, de uma tradição cristã que não tem exatamente a ver com o batismo, mas trata de um tema importante para os primeiros cristãos: o relação entre o primeiro Adão e o Segundo (Jesus) por meio de um instrumento: a “água da vida”, i.e., o sangue de Jesus. Comecemos por uma apresentação dessa tradição num estágio já bem desenvolvido e dele partir em busca de suas origens

    Capítulo XLI
    (…)
    Depois dessa prece de ambos, Adão se pôs a orar em voz alta perante Deus, e disse:

    10 “ó Senhor, quando eu estava no jardim e via a água que corria sob a Árvore da Vida, meu coração não desejava, nem meu corpo precisava beber dela; nem eu conhecia a sede, pois estava vivo; e em condição superior à de agora.”

    11 “De maneira que para viver eu não necessitava de nenhum Alimento da Vida, nem bebia da Água da Vida.”

    12 “Mas agora, ó Deus, eu estou morto; minha carne esta ressequida pela sede. Dai-me Água da Vida para que possa dela beber e viver.”

    13 “Por Vossa misericórdia ó Deus, salvai-me desses flagelos e provações, e levai-me para outra terra diferente desta, que não me permitis habitar no Vosso jardim.”

    Capítulo XLII

    1 Então veio a Palavra Deus a Adão e disse-lhe:

    2 “ó Adão, quanto ao que tu dizes: Levai-me para uma terra onde haja descanso, não é outra terra diferente desta mas é o reino do céu, o único lugar onde há descanso.”

    3 “Mas tu não podes nele entrar no momento presente mas apenas depois do teu julgamento feito e cumprido.”

    4 “Então far-te-ei subir ao reino do céu, a ti e à tua descendência justa; e dar-te-ei ti e a eles o descanso que pedes presentemente.”

    5 “E se dizes: Dai-me Água da Vida para que eu dela possa beber e viver, isto não pode ser hoje, mas no dia que eu descer ao inferno, quebrar os portões de bronze esmagar os reinos de ferro.”

    6 “Então, por misericórdia salvarei tua alma e a alma justos para dar-lhes descanso em Meu jardim. E isto será quando o mundo chegar ao fim.

    7 “E, novamente, conquanto a Água da Vida que buscas não te seja concedida hoje, te será dada no dia em que Eu derramar Meu sangue sobre tua cabeça na terra do Gólgota.”

    8 “Pois Meu sangue será para ti a Água da Vida, e não somente para ti, mas para todos da tua descendência que acreditarem em Mim; para que seja para eles o descanso eterno.”

    (…)
    Primeiro livro de Adão e Eva, fonte: [Tricca, vol. II] (33).

    A narrativa do primeiro livro da Bíblia é extremamente sucinta da criação do mundo até o dilúvio, o que despertaria a curiosidade sobre os pormenores da odisseia dos primeiros humanos, segundo a mitologia hebraica. No período intertestamentário, essa curiosidade foi saciada por diversas obras destinadas a tapas as lacunas, como Jubileus (bastante popular em Qumran) e o Livro de Adão e Eva. Datado do primeiro século da Era Cristã, esse último desenvolve temas como o motivo da queda dos demônios, a identificação da serpente com Satanás e pormenores sobre as descendências de Caim e de Sete. Cogita-se a existência de um original hebraico hoje perdido, sobrevivendo em diversas versões em outros idiomas, como grego (também chamado equivocadamente de Apocalipse de Moisés), latim (também chamado, A Vida de Adão e Eva), armênio, eslavônico, árabe e etíope. Nesta última, expandida e mais tardia versão – já eivada de interpolações com referências e simbolismos cristãos – é apresentada a história de Adão ter sido sepultado no Gólgota. Nenhuma referência ao sangue de Jesus pode ser encontrada nas versões latina e grega. Contudo, alusões a “fontes vitais” alternativas também são feitas nas versões mais antigas:

    1. Em Vida, quando Adão já se encontra à beira da morte, padecendo de dores por todo o corpo, ele faz um último pedido a Eva:

      Levante e vá com meu filho Sete às regiões do Paraíso, e ponham pó sobre suas cabeças, e prostrem-se ao chão, e chorem ante a visão de Deus. Talvez ele tenha piedade e envie seu anjo à árvore de sua misericórdia, da qual flui o óleo da vida, e lhes dará um pouco dele, com o qual me ungirão, para que eu tenha repouso destas dores pelas quais estou me esvaindo.”

      Cap XXXVII. Fonte:[Charlesworth, p. 272]

      E assim fizeram, mas o Altíssimo foi irredutível:

      Mas quando já tinham orado e suplicado por horas, eis que lhes aparece o anjo Miguel a dizer: “Fui enviado a vocês pelo Senhor, fui posto pelo Senhor sobre os corpos dos homens. Digo a você, Sete, homem de Deus, não choramingue, orando e pedindo pelo óleo da árvore da misericórdia para ungir seu pai Adão em razão das dores de seu corpo.

      Em verdade te digo que de modo algum será capaz de tomar dele, a não ser nos últimos dias.

      Mas você, Sete, vá até seu pai Adão, pois o tempo de vida dele está completo. A contar de agora, em seis dias sua alma deixará o corpo; e, assim que ela partir, você verá grandes maravilhas no céu e na terra, e nas luzes do céu.

      Cap. XL – XLIII, [Idem, p. 274]

    2. Já em “Apocalipse de Moisés”, o pedido é feito pelo próprio Adão, por ocasião de sua queda:

      E o Senhor se virou para Adão e lhe disse: “De agora em diante não permitirei que fique no Paraíso.” E Adão respondeu e disse: “Senhor, dê-me da árvore da vida para que eu possa comer antes de ser expulso” Então o Senhor falou a Adão: “Agora não tomará dela, visto que foi determinado ao querubim e à espada flamejante que anda ao redor para guardá-la por sua causa, a fim de que não possa provar dela e se tornar imortal para sempre, mas que tenha de entrar em conflito com o inimigo que foi posto dentro de você. Mas, após sair do Paraíso, caso se guarde de todo o mal, preferindo a morte a ele, por ocasião da ressurreição eu o erguerei de novo, e então lhe será dado da árvore da vida, e você será imortal para sempre.

      Cap. XXVIII, [Idem, p. 285]

    Outro livro a trazer a história do sepultamento de Adão no Gólgota é A Caverna dos Tesouros, que é tradicionalmente atribuído a Efrém da Síria (séc. IV), embora cogite-se ter sido redigido no século VI por algum seguidor dele. Compartilha muito das lendas apresentadas na versão etíope da história de Adão e Eva (talvez tendo bebido das mesmas fontes) e, em sua terceira parte, relata que um dos filhos de de Noé – Sem – teria levado o corpo de Adão (também transportado na Arca) para o monte Gólgota.

    Por escrito, essa tradição pode ser rastreada até Orígenes (ca. 184 – ca. 254) que, em seu comentário a Mateus, atribui-a aos judeus, sem deixar de lhe dar um toque cristão:

    Sobre o lugar da caveira, chegou-nos a tradição dos hebreus de que o corpo de Adão foi enterrado lá, a fim de que “como todos morrem em Adão” tanto Adão será ressuscitado e “em Cristo todos serão vivificados” [Cf. I Cor 15:22].

    Comentário sobre o Evangelho de Mateus, tomo XXVII, cap. XXXIII, em Patrologia Graeca vol. XIII, col. 1777, nota 89

    A partir daí surge uma série de controvérsias. Primeiramente, essa alegação persiste apenas no texto grego remanescente desse comentário (cf. nota 89 de PG XIII), ficando em aberto houve uma tradução relapsa, uma manipulação/lacuna na transmissão textual – seja da versão latina ou de manuscrito grego que lhe deu origem -, e até mesmo uma glosa incorporada no corpo principal. Segundo, há uma divergência com outra obra da patrística (34) que atribui do nome “Gólgota” (35) a uma peculiar topografia do terreno, à semelhança de um crânio. Por último, a tradição judaica dá como sepulcro de Adão (e Eva) a Gruta de Macpela, em Hebron (36), junto a outros patriarcas e sua esposas.

    Há quem proponha que Orígenes se baseou não numa tradição rabínica antiga e esquecida, mas em fontes judaico-cristãs contemporâneas e acessíveis a ele, algo no mínimo controverso (37). Jerônimo de Estridão, que, à semelhança de Orígenes, passou parte da vida na Palestina, lançou uma luz de como pode ter sido essa tradição repassada, a partir da Carta aos Efésios:

    Bem, então, para apresentar algo ainda mais surpreendente, devemos retroceder a tempos ainda mais remotos. A tradição diz que nessa cidade, não, nesse exato lugar, Adão viveu e morreu. O lugar onde nosso Senhor foi crucificado é chamado Calvário, porque o crânio do homem primitivo foi enterrado lá. Então aconteceu que o segundo Adão, que é o sangue de Cristo, quando caiu da cruz, lavou os pecados do protoplasto [primeiro ser formado] enterrado, o primeiro Adão, e assim as palavras do apóstolo foram cumpridas: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Ef 5:14).

    Epístola 46, para Marcela, em nome de Paula e Eustóquio.

    Nesta carta, datada de 386 d.C., Jerônimo tenta convencer sua interlocutora a se mudar para a Terra Santa, tal como ele e seus dois companheiros tinham acabado de fazer. Ela estava relutante devido à crença de a região se tornara amaldiçoada após a morte de Jesus. Jerônimo, então, tenta desfazer essa imagem relatando os encantos do lugar. A redenção de Adão pelo sangue no Calvário é apenas uma delas. Contudo, Jerônimo parece ter mudado de opinião mais tarde e, em seu próprio Comentário sobre Mateus, considerou essa história uma lenda sem fundamento, repetindo, curiosamente, a mesma passagem de Efésios:

    Eu ouvi que alguém explicou que o “lugar da caveira” é o lugar onde Adão está enterrado e a razão pela qual ele é assim denominado é porque a cabeça do antigo homem jaz ali. Relacionam isso ao que o apóstolo disse: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Ef 5:14). Essa interpretação é atrativa e tranquilizante aos ouvidos do povo, mas não é verdade. Afinal, do lado de fora da cidade e fora do portão há locais em que as cabeças dos condenados são cortadas. É aí onde tomam o nome de “da caveira” (Calvariae); ou seja, isso se refere às caveiras dos decapitados. Mas a razão pela qual o Senhor foi crucificado ali era para que, onde outrora havia sido um sítio de condenados, lá fosse erguido o estandarte do martírio; e da mesma forma como ele se fez maldição por nós (cf. Gl 3:13) sobre a cruz, e foi açoitado e crucificado, assim ele é crucificado como se um homem culpado entre os culpados para a salvação. Mas caso alguém deseje alegar que a razão pela qual o Senhor foi lá crucificado era para que seu sangue escorresse abaixo sobre a tumba de Adão, perguntar-lhe-emos por que os outros ladrões também foram crucificados no mesmo lugar. Do qual aparenta que Calvário significa não a tumba do primeiro homem, mas o “lugar dos decapitados”. Assim, onde o pecado abunda, a graça superabunda (cf. Rm 5:20). Mas no livro de Josué, filho de Nave [Num], lemos que Adão foi sepultado próximo a Hebron e Arba (cf. Js 14:15, Vulg.).

    Comentário sobre Mateus, 27.33

    Bem, algum adepto da crença do sepultamento de Adão no Calvário poderia alegar por que o nome do monte não estaria no plural “das Caveiras” (Calvariarum), já que haveria uma fartura de cabeças por lá. Nesse caso, a tese da semelhança da topografia local com um crânio seria mais apropriada. Ademais, a tradução que Jerônimo fez em Js 14:15 está provavelmente errada e a Bíblia não dá indicação alguma sobre o local do sepulcro de Adão (38). Por outro lado, Jerônimo deixa nas entrelinhas que a tradição rabínica de Hebron como o endereço final dos restos mortais do primeiro homem já existia na passagem do século IV para o V, tendo-a possivelmente tomado dos judeus com os quais convivera (39). Contudo, há pelo menos uma tradição judaica mais antiga que contraria isso, embora não o estabeleça explicitamente em Jerusalém (40). Seria possível, pois, que a tradução recebida por Orígenes tenha sido mais antiga e foi depois alterada pelos judeus depois que círculos (judaico-)cristãos se apropriarem dela? Caso o tenha sido, não foi o único episódio do gênero (41).

    O que pode ser dito com alguma certeza é que a partir do século IV difundiu-se a crença do primeiro Adão sendo redimido, literalmente, pelo sangue do segundo, que lhe foi derramado (42). Tanto que não difícil encontrar pintura da cena da crucifixão em que um crânio jaz ao pé da cruz de Jesus. De certa forma, o próprio Evangelho de João pode ter sido um catalisador dessa difusão, em particular por esta passagem

    Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água.

    Jo 19:33,4 (Edição Ave Maria)

    Sangue e água, justamente os símbolos constantes em dois sacramentos da Igreja – eucaristia e batismo – jorrando sobre o solo. Isso não passou despercebido pelos comentaristas dos evangelhos da Antiguidade, em especial um que viria a ter destaque no Espiritismo séculos depois:

    Uma palavra sugestiva foi usada pela evangelista, sem dizer que teve Seu lado perfurado (43), ou ferido, ou outra coisa do gênero, mas “aberto”; para que, desse modo, em certo sentido, o portal da vida possa ser deixado aberto, a parti de onde têm fluído os sacramentos da Igreja, sem os quais não há entrada para vida que é a verdadeira vida. Esse sangue foi derramado para a remissão dos pecados; essa água é a que preenche o cálice doador de saúde, e supre ao mesmo tempo a pia batismal e a água para beber. Isso foi anunciado, de antemão, quando se ordenou a Noé fazer um porta na lateral da Arca (Gn 6:16), por onde puderam entrar os animais que não estavam destinados a perecer no dilúvio, e pela qual a Igreja foi prefigurada. Por causa disso, a primeira mulher foi formada da lateral do homem quando adormecido (Gn 2:22) e foi chamada Vida e a mãe de todos os viventes (Gn 3:20). Em verdade, isso apontou para um grande bem, anterior ao grande mail da transgressão (assim no disfarce de alguém jazendo adormecido): este segundo Adão tombou Sua cabeça e caiu adormecido na cruz, para que uma esposa pudesse ser formada para Ele a partir do que fluiu da lateral do adormecido. Oh morte, pela qual os mortos se reguem outra vez para a vida! O que pode ser mais puro que tal sangue? O que pode dar mais saúde que tal ferida?

    Agostinho de Hipona, Tratados sobre o Evangelho de João, nº 120 (Jo 19:31-20:9)

    Daí para a reabilitação de Adão no Calvário é um pequeno pulo. Afinal, como os elementos disponíveis nas já consolidadas Escrituras e literatura patrística, tudo colorava para uma valoração do poder dos sacramentos – em especial o batismo – no imaginário cristão.

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    Balanço Final

    Uma balança e seus pratos com os respectivos pesos, em equilíbrio

    Inspirado numa padronização proposta pelo “Jesus Seminar”, usarei a seguinte nomenclatura para um apanhado de tudo que foi discutido:

    1. Altamente provável: chance de certeza de 75 a 100%;
    2. Provável: chance de certeza de 50 a 74%;
    3. Possível: chance de certeza de 25 a 49%;
    4. Improvável: chance de certeza de 0 a 24%;

    Atentando que não faço parte de tal Seminário, nem realizei nenhuma votação, calco-me na bibliografia apresentada aqui e em outras partes do portal:

    • O batismo já era um ritual iniciático das primeiras comunidades cristãs: altamente provável. Isso é multiplamente atestado na literatura neotestamentária, dos primórdios da patrística, e a dos gnósticos;

    • O batismo era um ritual pagão apropriado pelos cristãos: improvável. partindo do Antigo Testamento e prosseguindo pelas literaturas intertestamentária, sectária e neotestamentária; há um crescente desenvolvimento de rituais de purificação por meio da água rumo ao chamado ao arrependimento de João Batista. Como a adoção desse batismo pelas primeiras comunidades cristãos é quase certa, não houve necessidade, nem tempo de se importar uma prática gentia. Como a água é associada comumente às ideias de limpeza e pureza, outras culturas desenvolveram rituais similares independentemente;

    • Jesus pode não ter dado tanto valor ao batismo quanto João Batista: possível. Embora tenha sido discípulo do Batista, Jesus demonstrou ter diferenças com relação ao mestre no que dizia respeito à vivência da fé: João era mais ascético, ao passo que seu discípulo bem mais mundano. Uma diferença oriunda da forma como viam a chegada do Reino de Deus. João tinha urgência chamar o povo para o arrependimento antes que ele chegasse, o que não tardaria. Já para Jesus, o Reino já havia chegado com seu próprio ministério, então por que não comemorar (cf. Wilkinson, cap. V)? Jesus não se opôs ao jejum (Mt 6:16-8), mas ele tampouco aparentou ser entusiasta dele (cf. Mc 2:18-20, Mt 9:14-5, Lc 5:33-5; Lc 18:11-13; e Mt 11:18,9; Lc 7:33-6). Da mesma forma, Jesus ia aos pecadores em vez de chamar para viessem até ele em arrependimento e, portanto, batizarem-se. A própria complementação posta em Jo 4:2 indica a delegação de uma tarefa que não julgava ser tão crucial assim. Com a morte de Jesus e o adiamento do Reino para sua segunda vinda, o batismo e ascetismo retornaram como formas de preparação;

    • Nicodemos é um personagem histórico: possível. Flávio Josefo (Guerra Judaica, II, cap. XVII) fala de um membro do grupo pacifista por ocasião da primeira Revolta Judaica chamado Gorion ben Nicodemos e o Talmud babilônico (Taanit, 19b) fala de um Nicodemos [Nakdimon] ben Gorion, que teria sido riquíssimo (e milagroso) cidadão de Jerusalém na época do Segundo Templo. É possível, então, que estejamos diante de um caso de uma família proeminente em que o neto herdou o nome do avô (Gorion – Nicodemos – Gorion);

    • Nicodemos e Jesus conversaram: possível . Óbvio que, em João, pode se tratar de outro Nicodemos, porém há certos indícios que parecem forçar essa identificação: se em Jo 3:1-21 é apresentado como mestre da religião, em outras duas passagens ele é membro do Sinédrio (Jo 7:50ss) e uma pessoa bem rica, capaz de contribuir com “quase cem arráteis de um composto de mirra e aloés” (Jo 19:39) para o funeral de Jesus. Em nenhum registro, porém, Nicodemos assume abertamente sua simpatia por ele. O mais provável é que o evangelista tenha tentado correlacionar Jesus a uma figura importante do judaísmo do Segundo Templo, como uma forma de alfinetar os judeus que expulsaram sua comunidade da Sinagoga. Tanto que, convenientemente, o encontro dos dois teria sido à noite, livre de qualquer testemunha não-cristã;

    • Supondo ter ocorrido a conversa, seu registro foi bem documentado em Jo 3:1-21: improvável. Parábolas e aforismos têm boas chances de serem transmitidos oralmente com poucas modificações antes de serem registrados, pois são de fácil memorização e com mensagem direta. Provavelmente foram repetidos mais de uma vez durante o ministério de Jesus. Já os longos discursos abundantes em João são duvidosos quanto à fidelidade, ainda mais passados pelo menos 60 anos desde a morte de Jesus. Que o digam as as duas versões da despedida dele. Não há razão plausível para pensar que a inesperada conversa noturna com Nicodemos foi registrada taquigraficamente na única ocasião em que supostamente ocorreu;

    • A conversa teria se dado em grego: improvável. A língua vernacular da maior parte da Judeia da época era o aramaico. Se Jesus teve algum conhecimento nessa língua, deve ter sido um “grego de contato” sem chegar à profundidade literária apresentada no discurso transcrito. Nicodemos poderia ter maiores chances se ser instruído formalmente no idioma, porém por que ele iniciaria uma conversa com um homem do povo justamente nela?

    • A língua original do Evangelho de João é a grega: provável. As cópias mais antigas desse evangelhos estão em grego, inclusive um fragmento de papiro datado de 125 da Era Comum. A Peshitta é tida como uma versão, e não o original. Contudo, permanece uma corrente de estudiosos a defender que houve um substrato em aramaico sobre o qual o evangelista se baseou e ele ainda estaria acessível por meio de supostos aramaicismos dispersos pelo texto;

  • Existe um trocadilho com a palavra grega anothen usada em Jo 3:3: provável. O cerne da conversa está no mal entendido de Nicodemos e sua correção por Jesus. Argumentos alegando que Nicodemos de fez de bobo para testar Jesus enxergam a árvore, mas não a floresta: por todo esse evangelho o padrão “declaração/mal-entendido/clarificação” se repete. Não haveria por que ser diferente apenas nessa conversa. Seria possível um mal-entendido sem a ambiguidade de anothen? Sim, embora já não fique tão marcado;

  • Tal trocadilho – “alto”/”de novo” – existiria em aramaico: improvável. Pela maioria dos autores que vi, a resposta é não. Isso, porém, tem sido usado por alguns para negar a possibilidade da tradução de anothen como “do alto”, como se o texto tivesse obrigatoriamente que refletir uma tradução literal de uma conversa em aramaico que ninguém registrou. A possibilidade de que o episódio não seja verídico, ou possua um registro impreciso, assusta muitos crentes, mas não precisa ser assim: o longo discurso de Jo 3:1-21 pertence ao domínio da Fé, não da História. Portanto, sua redação pode ainda ter sido inspirada por ensinamentos genuínos de Jesus, ainda que dispersos num contexto fabricado para os propósitos teológicos da comunidade joanina;

  • Também existiria um duplo sentido em aramaico, porém de forma distinta do grego: possível. Caso a tese de James David Audlin se mostre viável, poderíamos até subir a nota para “provável”. Mas até lá ou sua rejeição final, melhor deixá-la em estado suspenso;

  • O cerne da conversa com Nicodemos é o batismo cristão: provável. Fiar-se apenas no uso das palavras “água” e “espírito” torna o entendimento dessa passagem um teste de figuras de Rorschach: elas podem ser o que você quiser, mas o que disser revelará algo sobre ti. Para tentar reduzir um pouco a parcialidade do leitor e acrescentar alguma objetividade à análise da questão, vislumbres devem vir de informações auferidas das evidências internas do Evangelho de João, da comunidade joanina (i.e., das cartas atribuídas a João) e de outras fontes do cristianismo primevo. Com o enfoque da crise reinante na comunidade joanina – tendo de lidar com a rejeição da sinagoga e cismas internos (cf. I João) -, seu evangelho veio para consolar os rejeitados e prover coerência interna. Retomarei, então, uma linha de raciocínio anteriormente apresentada.

    A identificação feita em João 14:26 entre o Consolador e o Espírito Santo durante o discurso de despedida tem, sim, o aspecto de um enxerto no texto do discurso, seja pela apositiva como aparece e por sua ausência no “segundo” discurso de despedida (Jo cap. 15-17), contudo discordo de Pastorino de que tenha sido um acréscimo taridio. Pelo contrário: todos os mais antigos manuscritos trazem essa leitura. Minha hipótese é que o acréscimo já foi feito pelo redator do evangelho (a quem chamarei por praticidade de João) ou por um dos primeiros copistas. A razão para essa pressa em associar o Paracleto ao Espírito Santo pode estar relacionada à dissidência interna sofrida pela comunidade e descrita de forma parcial na Primeira Carta de João. Não é possível saber exatamente em que os dissidente discordavam dos que permaneceram na comunidade, contudo, pelas admoestações feitas pelo autor de I João, temos indícios de que professavam uma cristologia docetista e origem dessa tese estaria em questões quanto à pneumatologia professada pelos contendedores. Quando seu autor fala:

    Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo.

    Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;

    E todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que já agora está no mundo.

    1 Jo 4:1-3

    Ao que parece, os dissidentes constituíram seu próprio movimento profético, atingindo uma amplitude grande demais até para aquela quase mística comunidade. Nesse contexto, um espírito foi “designado como autoritativo” – o Espírito Santo – e que lhes ensinaria “todas as coisas“, e os lembraria “de tudo quanto” lhes fora dito (Jo 14:26). E nesse afã de asseverar uma opinião “ortodoxa” na comunidade, os símbolos sacramentais são definidos:

    Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?

    Este é aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só pela água, mas pela água e pelo sangue.

    E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.

    Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam.

    Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é este, que de seu Filho testificou.

    I Jo 5:5-9

    O sangue é tradicionalmente relacionado ao sacrifício de Jesus para a propiciação dos pecados (Jo 4:9-10). Ele e seu complemento – o corpo – aparecem no longo discurso do sexto capítulo (Jo 6:25-58), que define a fórmula eucarística ausente, nesse evangelho, nos discursos da Última Ceia. Fica intuído, pois, que os dissidentes também rejeitavam esse papel Jesus como “cordeiro pascal”. Os outros dois símbolos – a água e o Espírito – aparecem na conversa com Nicodemos e a ênfase dada para ambos remete a possíveis questionamentos quanto ao modus operandi da iniciação pelo batismo – pela água, pelo Espírito ou pelos dois? -, numa confusão levemente assinalada em Atos. Mesmo o trecho mais enigmático dessa conversa:

    O vento [espírito] sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

    Jo 3:8

    Ganha outro enfoque se visto à luz dos conflitos internos da comunidade: ao deixar para o Espírito a decisão quanto ao seu próprio destino, estar-se-ia retirando dos dissidentes uma apropriação dele.

    Então, dentro desse contexto social da comunidade joanina, a conversa com Nicodemos fica muito mais clara se entendida como uma regulamentação e defesa de um rito de iniciação contra opiniões divergentes.

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E a História se Repete

A Circuncisão de Jesus - por Giovanni Bellini

– Pode não.
– Peraí, Jesus foi circuncidado!
– Já disse que NÃO PODE!!!
(Circuncisão, de Giovanni Bellini)

Depois, passados catorze anos, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também comigo Tito.

E subi por uma revelação, e lhes expus o evangelho, que prego entre os gentios, e particularmente aos que estavam em estima; para que de maneira alguma não corresse ou não tivesse corrido em vão.

Mas nem ainda Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se;

E isto por causa dos falsos irmãos que se intrometeram, e secretamente entraram a espiar a nossa liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos porem em servidão;

Aos quais nem ainda por uma hora cedemos com sujeição, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vós.

E, quanto àqueles que pareciam ser alguma coisa (quais tenham sido noutro tempo, não se me dá; Deus não aceita a aparência do homem), esses, digo, que pareciam ser alguma coisa, nada me comunicaram;

Antes, pelo contrário, quando viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão (Porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão, esse operou também em mim com eficácia para com os gentios),

E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas, a graça que me havia sido dada, deram-nos as destras, em comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão;

Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com diligência.

Gl 2:1-10

Com essas palavras Paulo de Tarso demonstrou seu aborrecimento quando soube que certas comunidades por ele fundadas haviam recebido a visita de outros missionários, cuja mensagem era um tanto diferente da sua, em especial no que diz respeito a práticas judaicas. Como viria a desenvolver melhor em sua Carta aos Romanos, Paulo não apenas achava que Jesus tinha suplantado a Lei mosaica, como a própria Lei seria, ironicamente, um empecilho à salvação; pois não seria possível segui-la à risca. Por outro lado, esses professores, digamos, “judaizantes” tinham um ponto bem forte a favor, pelo menos, da circuncisão: era o sinal da “aliança eterna” entre Abraão e Deus (Gen 17:1-14) e, portanto, deveria continuar valendo, não é? Bem, Paulo conseguiu convencer que ela seria dispensável para os “filhos por adoção” de Deus e, graças a isso, o cristianismo se livrou de uma barreira em seu caminho para o mundo greco-romano, que não via a circuncisão com bom olhos.

Um efeito inevitável disso, porém, foi catalisar a separação entre judaísmo e cristianismo, afinal desprezou-se justamente o principal ritual de iniciação do primeiro em prol de um novo: o batismo. Pode-se até discutir se Jesus, em seu ministério, teria dado alguma ênfase ou não à prática do batismo (44), mas não se pode duvidar que passou a ser tratada como rito de ingresso na comunidade cristã pouco após a crucifixão, pois diversas fontes do primeiro e segundo séculos da Era Comum atestam isso, inclusive gnósticas. Talvez tenha havido contendas entre os adeptos do “batismo de água” e os do “batismo de espírito”, mas a opinião de consenso que o autor de João buscou foi a da necessidade de ambos. O recebimento dos dons do Espírito por ocasião do batismo cristão o distinguia particularmente daquele de simples arrependimento professado por João, sem contar que a fórmula enunciada durante o rito envolvia, inicialmente, o nome de Jesus e, a partir do segundo século, também o Pai e o Espírito Santo.

De certa forma, uma das pretensas terceiras revelações, em tempos modernos, vem tentando algo bem similar ao negar o valor histórico do rito de iniciação da segunda revelação:

Interpretação Cristã Católica

Renascer da água ocorre com o ser que passa pela água do batismo. O Batismo, na verdade, foi um rito de iniciação egípcia e grega, em que somente algumas pessoas tinham acesso aos mistérios das comunidades religiosas daquele tempo e que a Igreja se apropriou, mas com outro significado, passando a ser um dos seus sacramentos. Os filhos que Deus enviou para cada família foram adotados por Ele para sua família pelo ritual do batismo, que os levou a vida divina.

E do espírito: é a infusão do Espírito Santo que conduz e dirige a Igreja e também dá direção a vida daqueles que foram batizados.

Interpretação Cristã Protestante

Renascer protestante: é a mesma dos católicos.
(…)

Faria, Paulo César de; Espiritismo para Leigos, Alta Books, 2016, cap. XIV, p.231

Sabe-se que (parte d)o judaísmo pós-exílio importou alguns conceitos novos de seu cativeiro, como a crença na ressurreição, entretanto não há indícios de que o ritual praticado pelo Imersor fosse uma importação de algum povo vizinho. Pelo contrário: a literatura judaica – seja clássica, intertestamentária ou sectária – sugere um desenvolvimento autóctone do ritual. Já o Novo Testamento descreve em suas linhas a adoção do batismo desde o princípio das atividades missionárias dos apóstolos, bem como as questões surgidas entre as primeiras comunidades cristãs quanto à forma correta de ministrá-la (por meio de água, Espírito ou ambos?), em nada indicando ter havido a adoção pronta de um ritual estrangeiro, o que provavelmente deixaria menos margem a dúvidas.

Ao dizer que o batismo não remonta aos primeiros cristãos e interpretar textos bíblicos sobre ele de forma diversa, o movimento espírita tenta tirar do cristianismo tradicional um item de prestígio que não tem condições de reclamar como seu. De certa forma, a história se repete, porém, no futuro, não há o menor risco de que uma “quarta revelação” faça o mesmo com o espiritismo, pelo simples fato de inexistir no espiritismo um ritual de iniciação. Para ser mais claro, não há ritual algum para ser atacado. Isso, obviamente, dá-lhe robustez contra adversários, porém a um preço que se manifesta em situações um tanto … esdrúxulas: de um lado há pessoas que colaboram anos a fio em centros espíritas que ainda “não se consideram espíritas o bastante”; do outro, gente que apenas é fã de literatura mediúnica e já se declara espírita de carteirinha.

Tomando o simbolismo – entendido aqui como a capacidade de criar um universo interior e externá-lo por meio de símbolo, marcos, ritos, etc. – como um aspecto fundamental da natureza da natureza humana, então essa aparente robustez do Espiritismo tem um preço ainda mais alto do que meros casos pitorescos: a perda do sentimento de transcendência, tão comum nas vertentes da Segunda Revelação. Entenda bem: não estou dizendo que “a inteligência suprema e causa primária de todas as coisas” também não seja um modelo de divindade transcendente, a questão é como um fiel espírita se conecta com essa transcendência para partilhar do sobre-humano. Uma sessão de estudos do Livro dos Espíritos pode ser tão útil como as atividades cotidianas de escovar os dentes, cortas as unhas, lavar a roupa, pagar as contas, etc. e poderá ser tão transformadora do ser quanto elas. Por outro lado, um evangélico pode passar a noite inteira ouvindo platitudes numa vigília e sair de lá se sentindo realmente “Filho de Deus” e num sentido muitíssimo íntimo de filiação. Não digo que uma vivência religiosa seja melhor que a outro, até porque isso é uma escolha individual. Apenas, como observador externo, tenho a impressão de ser maior o número de indivíduos a preferir transcendência à racionalidade. Foi um preço que a fé racionada teve que pagar.

Por outro lado, nada impede que a religiosidade transcendente seja inserida no meio espírita. Seria mais um tropicalização de uma doutrina europeia. Nada contra de minha parte, só não garanto que o ortodoxos do movimento fiquem de boas com isso.

[topo]

Notas

(1) Segundo [Finkelstein & Slberman, IV, p. 169]:

Hoje, como no passado, as pessoas demonstram sua etnia de muitas maneiras diferentes: na língua que falam, na religião, no modo de vestir, nas práticas funerárias e nos elaborados tabus dietéticos. A simples cultura material deixada pelos pastores e fazendeiros das montanhas, que se tornaram os primeiros israelitas, não oferece nenhuma indicação precisa de seu dialeto, de seus rituais religiosos, de seus costumes ou de suas práticas fúnebres. Mas descobriu-se detalhe muito importante sobre seus hábitos dietéticos; os ossos recuperados nas escavações de pequenas vilas israelitas antigas nas regiões montanhosas diferem daqueles dos assentamentos em outras partes do país num aspecto significativo: não foram encontrados ossos de porcos. Os conjuntos de ossos de antigos assentamentos nas regiões montanhosas continham remanescentes de porcos, e condição idêntica ocorre para os assentamentos posteriores da mesma região, na pós-Idade do Ferro. No entanto, ao longo da Idade do Ferro – a era das monarquias israelitas – os porcos não eram cozidos e comidos, ou mesmo criados, nas regiões montanhosas. A informação comparativa de assentamentos do mesmo período – a Idade do Ferro I – na costa filisteia mostra número surpreendentemente grande de ossos de porcos entre ossos de animais que foram recuperados. Embora os antigos israelitas não comessem porcos, sabe-se que os filisteus comiam (pelo que podemos dizer de informações pouco detalhadas), do mesmo modo que os amonitas e moabitas a leste do Jordão.

A proibição ao porco não pode ser explicada apenas por razões ambientais ou econômicas. De fato, pode ser a única pista disponível para uma identidade específica, partilhada entre os aldeões das regiões montanhosas a oeste do Jordão. Talvez os proto-israelitas tenham parado de comer porco só porque as pessoas que os cercavam – seus adversários – assim o faziam e eles tenham começado a se perceber diferentes. Práticas culinárias e costumes dietéticos distintos são duas maneiras pelas quais são formadas fronteiras étnicas. O monoteísmo e as tradições do Êxodo e da Aliança parece que vieram mais tarde. Na metade do milênio antes de o texto bíblico ser composto, os israelistas, com suas leis detalhadas e regras dietéticas, escolheram – por razões que não estão absolutamente claras – não comer porco. Fazendo o mesmo, os judeus modernos estão dando continuidade à prática arqueológica documentada mais antiga do povo de Israel.

Tal como a língua, as práticas de higiene também não deixaram vestígios arqueológicos, embora também pudessem facilmente constituir mais uma “fronteira étnica”. [voltar]

(2) Em Antiguidades Judaicas, livro VIII, cap. III.

Ele [Salomão] também fez dez grandes tanques redondos de latão, que eram os próprios lavatórios, cada qual contendo quarenta batos [1 bato ~ 32 litros], pois tinham quatro côvados de altura e suas bordas distavam o mesmo tanto uma da outra. Também dispôs esses lavatórios sobre dez bases chamadas “Mechnoth”, e colocou cinco dos lavatórios no lado esquerdo do templo, que é o lado em direção ao vento setentrional, e igual número no lado direito, na direção sul, porém voltados em direção ao leste; na mesma direção [leste] ele também colocou o mar, então, designou o mar para a lavagem das mãos e pés dos sacerdotes, quando eles adentravam o templo e tinham de subir ao altar, mas os lavatórios para a limpeza das entranhas dos animais a serem queimadas em oferendas, junto com as patas deles.

O texto é muito parecido com II Cr 4:2-8, mas na Bíblia somos informados apenas que os sacerdotes se lavavam e não especificamente “pés e mãos” como informa Josefo. [voltar]

(3) Exemplos:

Que se traga já um pouco de água, e lavai os vossos pés, e recostai-vos debaixo desta árvore;
Gn 18:4

E disse: Eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos, em casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os vossos pés; e de madrugada vos levantareis e ireis vosso caminho. E eles disseram: Não, antes na rua passaremos a noite.
Gn 19:2

Então veio aquele homem à casa, e desataram os camelos, e deram palha e pasto aos camelos, e água para lavar os pés dele, e os pés dos homens que estavam com ele.
Gn 24:32

Depois levou os homens à casa de José, e deu-lhes água, e lavaram os seus pés; também deu pasto aos seus jumentos.
Gn 43:24

E levou-o à sua casa, e deu pasto aos jumentos; e, lavando-se os pés, comeram e beberam.
Jz 9:21

Então ela se levantou, e se inclinou com o rosto em terra, e disse: Eis que a tua serva servirá de criada para lavar os pés dos criados de meu senhor.
I Sm 25:41

Vale lembrar a passagem dos evangelhos (Lc 7:36-50; Mt 11:28-30) em que Jesus é convidado para jantar por um fariseu e tem os pés ungidos pelas lágrimas de uma pecadora e secos por seus cabelos, enquanto o dono da casa sequer lhe ofereceu água para a lavagem. [voltar]

(4) Cf. [Lawrence, cap. IV, p. 153] e [Flusser, cap. III, pp. 69-71]. [voltar]

(5) Pelo texto de II Macabeus não é possível saber em que consistia tal purificação “segundo o costume”. Para uma discussão sobre hipóteses, ver [Lawrence, cap. III, pp. 62-4]. [voltar]

(6) A Carta de Aristeias traz a lendária história da origem da Septuaginta, ou melhor, da tradução do Pentateuco para o idioma grego. O faraó Ptolomeu Filadelfo (285- 247 a.C.) teria solicitado a 72 sábios judeus de Alexandria a tradução da Torá para o grego koiné, a fim de incluí-la em sua famosa biblioteca. O trabalho, curiosamente, teria sido concluído em exatos 72 dias. [voltar]

(7) Nome também transliterado por Azenate e, ainda, Asenate. Pouca informação sobre ela há no cânon bíblico (cf. Gn 41:45,50-2), o que abriu espaço para amplo trabalho criativo extrabíblico. [voltar]

(8) Cf. [Asheri, cap. XLV, pp. 267-9]. O livro de Judite relata o ato de conversão de Aquior apenas como sendo a circuncisão (Jd 14:6), talvez evidenciando uma diversidade de culto entre os judeus da diáspora ou omitindo a lavagem ritual por considerá-la, para os homens, apenas como uma prévia da circuncisão. No século II da Era Comum, o Talmude babilônico já equiparava ambos os rituais em importância:

[Mas] todos concordam que ablução ritual sem circuncisão é efetiva, mas discordam apenas quanto a circuncisão sem ablução.

Yevamot 49a

[voltar]

(9) Nos manuscritos de Josefo que chegaram até nós, teria sido feita uma referência a Jesus nesse mesmo livro XVIII de Antiguidades…:

Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na verdade se pode chamá-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e de incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.

Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. III

Também conhecido como Testimonium Flavianum, essa passagem é polêmica por possuir forte cheiro de fraude: como poderia um judeu alinhado com os fariseus chamar Jesus de “Cristo”, considerá-lo “mais do que um homem” e crer em sua ressurreição? Para não descartar totalmente essa passagem, há propostas de que ela seria genuína, porém sofreu enxertos cristãos [Meier, cap. III, pp67-77]. Uma tentativa de reconstituição seria “descristianizá-la” para algo como:

Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.

Já a passagem de João Batista é mais crível justamente por não ser “cristã demais”. [voltar]

(10) Apesar da possibilidade de o “João Batista Histórico” realmente aguardar alguém maior que ele, como dito em Mc 1:7 e no meio de Mt 3:11/Lc 3:16, não está muito claro que ele esperasse um batismo diferente, como os evangelistas escreverem em Mc 1:8 e ao fim de Mt 3:11/Lc 3:16. À primeira vista, texto aparenta ser extraído apenas de Marcos e copiado nos outros dois sinópticos, conforme a hipótese da origem quádrupla, contudo podemos estar diante de um caso de múltipla atestação de Marcos e Q. Repare a diferença:

(…) ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo (Mc 1:8)

(…) ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mt 3:11/Lc 3:16)

É possível que os redatores de Lucas e Mateus tenham se deparado com a seguinte leitura em Q: “ele vos batizará com fogo” e daí feito independentemente uma harmonização com Marcos gerando um versículo híbrido em seus respectivos evangelhos (cf. [Tatum, cap. XIII, pp. 128-31]).

A Fonte Q é uma hipótese poderosa e explicativa, mas sofre de um problema sério: não temos nenhum exemplar de Q disponível e – caso ela tenha sido uma tradição oral – talvez nunca venhamos a ter um. Portanto, é possível (embora improvável) que ele contivesse a forma mais longa da passagem. O que a hipótese pode indicar com alguma certeza é existência dessa fala atribuída a João Batista já no período pré-literário, i.e., após a morte de Jesus e antes da redação dos evangelhos. [voltar]

(11) Nos dois principais manuscritos antigos de Marcos – os códices Sinaítico e Vaticano -, os doze últimos versículos estão ausentes. Além disso, há uma mudança abrupta no estilo e palavreado (em grego) que dão praticamente certeza de eles foram um acréscimo posterior. As dúvidas estão entre determinar seu o final original foi perdido, ou se o encerramento abrupto em Mc 16:8 foi o pretendido. Há argumentos fortes para uma e outra opção. Para a hipótese do “final perdido”, vide [Metzger, cap. VIII, pp. 226-9] e, depois, contraste-a com a defesa de um de seus alunos do “final abrupto” em [Ehrman (2006), cap. II, pp. 75-8]. [voltar]

(12) Cf. [Willker, pp.636-8] para pormenores dessa passagem difícil. [voltar]

(13) Sobre outros paralelos que Lucas fez, ver [Ehrman (2008), cap. X, p. 148, box 10.4]. [voltar]

(14) Sobre os modelos de salvação usados por Paulo de Tarso em Romanos, ver [Ehrman (2008), cap. XXII, pp. 361-7]. [voltar]

(15) A edição brasileira da Paulus não dá referência alguma sobre a origem da citação. A edição em língua inglesa de Philip Schaff referencia a passagem a Sofonias 3:19. Como qualquer um pode conferir, a semelhança é vaga, sugerindo uma paráfrase bem grande feita pelo autor da carta ao recorrer à memória.

(16) Vale o mesmo que a nota anterior, porém em relação ao versículo Ez 47:12. [voltar]

(17) Eusébio de Cesareia, em seu História Eclesiástica, assim defende a adoção de O Pastor:

Mas, como ocorre que o mesmo apóstolo, nas despedidas finais da carta aos Romanos [Rm 16:14], menciona, junto com outros, a Hermas – de quem se diz que é o livro O Pastor -, deve-se saber que alguns também rechaçam este livro e que por causa deles não se pode contá-lo entre os admitidos; por outro lado, outros julgam-no muito necessário, especialmente para os que precisam de uma introdução elementar. Por esta razão sabemos que foi lido publicamente nas igrejas e comprovamos que alguns escritores dos mais antigos fizeram uso dele.

H.E., livro III, cap. III, parágrafo 6

Atualmente, considera-se a redação de O Pastor como sendo por volta de 150 d.C., portanto, pertencente a algum outro Hermas bem posterior. O outro documento – o Cânon Muratori diz este Hermas ter sido um irmão do papa Pio, cujo pontificado foi de 142 d.C. a 155. [voltar]

(18) Barnabé e Hermas aparecem, respectivamente, após o Apocalipse, sugerindo que estariam como uma espécie de “apêndice”. [voltar]

(19) A Segunda Epístola de Clemente aos Coríntios, outro documento de meados do segundo século, também se refere ao batismo como “selo”, algo que pode ser estabelecido pelo cruzamento de duas de suas passagens:

Pois assim também diz a Escritura em Ezequiel [Ez 14:14]: “Se Noé, Jó e Daniel ressuscitassem, não salvariam seus filhos em cativeiro.” Então, se homens tão eminentemente justos não são capazes, por sua justiça, de salvar filhos, como podemos esperar entrar na residência real de Deus a menos que mantenhamos nosso batismo santo e imaculado? Ou quem será nosso advogado, a menos que nos encontremos possuidores de obras de santidade e justiça?
Cap. VI

Pois eu digo a você que aquele que é fiel no que é mínimo é fiel também no muito. Isto é, então, o que Ele quer dizer: “Mantenha a carne santificada e o selo imaculado, para que recebam a vida eterna.
Cap. VIII

[voltar]
(20) Cf. [Ehrman (2008), cap. XII, p. 197, box 12.6]. [voltar]

(21) No caso, a ressuscitação de Lázaro. [voltar]

(22) Em Jo 10:6 diz-se que Jesus contou uma parábola, mas os versículo antecedentes desse capítulo se parecem mais com um aforismo seguido de sua explicação. [voltar]

(23) Do grego dokeo (“parecer”). Ou seja, para os dissidentes da ocasião, Jesus não teria tido um corpo físico verdadeiro, apenas aparentando estar na carne. [voltar]

(24) Ideia proposta por [Cullmann, cap. VII, pp. 119-22]. Tenho minhas ressalvas quanto a esse autor – especialmente sua visão do (judeo-)cristianismo esotérico como sendo o original credo cristão, em vez de uma elaboração posterior -, mas devo admitir que achei a tese “dois sacramentos distintos para o batismo” como uma interessante sacada. [voltar]

(25) Lista retirada de [Freire, parte III, cap III]. [voltar]

(26) Um exemplo disto seria o latim medieval, que passou progressivamente a adotar a estrutura sujeito-verbo-objeto, que é a comum nas línguas românicas originárias do latim vulgar. Não que essa estrutura fosse proibida na forma clássica, porém a antiga prosa latina preferia o modelo sujeito-objeto-verbo, tal como o japonês e o coreano modernos fazem. [voltar]

(27) Cf. [Poirier, p.66]. [voltar]

(28) Cf. [Porier, pp. 57-64] e [Meier, cap. IX, pp. 262-6]. [voltar]

(29) Ou “Eloi, Eloi, lama sabachthani?”, na vocalização feita em Mc 15:34. [voltar]

(30) Compare com o verbo utilizado em Sl 22:1 `azabhtâniy. [voltar]

(31) Nas palavras de [Meier, cap. IX, p. 266], “Numa região quadrilíngue, Jesus pode até ter sido um judeu trilíngue, mas provavelmente não seria um mestre trinlíngue“. [voltar]

(32) Tecnicamente, ele teria pertencido à terceira geração de cristãos: ouviu relatos dos que tiveram contato direto com os apóstolos. [voltar]

(33) Esta tardia versão também é conhecida como O Conflito de Adão e Eva com Satanás, e nem sempre é classificada junto aos pseudepígrafos mais antigos que estendem o livro do Gênesis, como Apocalipse de Moisés e A Vida de Adão e Eva. Está mais próxima, sim, de A Caverna dos Tesouros, da qual partilha inúmeras lendas. [voltar]

(34) O pseudo-Tertuliano Poemas contra os Marcionitas, livro II

Esta é a Igreja, mãe verdadeira de um povo vivente; nova carne da carne de Cristo, e um osso de seus ossos. Há um lugar chamado Gólgota – “crânio da cabeça” – assim denominado na antiga língua ancestral: aqui é o meio da Terra, aqui é o sinal da vitória; aqui, ensinaram nossos grandes anciões, encontrava-se sepultado o primeiro homem; aqui Cristo sofreu, com o sagrado sangue a terra se encharcou. Que o pó do velho Adão seja capaz, ao se amalgamar com o sangue de Cristo, de ser erguido pela vertente água da virtude

Para o original latino, clique aqui. A datação da é incerta, podendo ser, pela análise de fórmulas teológicas encontradas nela, pós-nicena. [voltar]

(35) Os evangelhos não são muito elucidativos quanto à questão:

Mateus 27:33: E, chegando ao lugar chamado Gólgota[Γολγοθα], que se diz: Lugar da Caveira[Κρανιου Τοπος],
Marcos 15:22: E levaram-no ao lugar do Gólgota [Γολγοθα], que se traduz por lugar da Caveira [Κρανιου Τοπος].
Lucas 23:33: E, quando chegaram ao lugar chamado a Caveira [Κρανιον], ali o crucificaram, e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda.
João 19:17: E, levando ele às costas a sua cruz, saiu para o lugar chamado Caveira [Κρανιου Τοπος]., que em hebraico se chama Gólgota [Γολγοθα],

[voltar]

(36) Existe uma base bíblica para sepultamento dos patriarcas a partir de Abraão e de suas esposas nessa gruta: Gn 23:9 (Sara), 25:9 (Abraão), 49:29-32 (Isaque, Rebeca, Lia e Jacó). Nada é dito, porém, a respeito de Noé ou Adão. [voltar]

(37) Cf. [Taylor, pp. 127 ss] a respeito das teses dos arqueólogos italianos Bellarmino Bagatti e Emmanuela Testa. Segundo a autora, Bagatti e Testa tomaram A Caverna dos Tesouros e O Livro de Adão e Eva como antigas fontes judaico-cristãs do segundo século. Contudo, ainda que tenham se valido de tradições antigas, as redações finais deles – as únicas disponíveis hoje – são tardias, sendo temerário atribuir-lhes a origem dessa tradição. Outra objeção é o estranho silêncio das fontes cristãs mais antigas, dentre elas Paulo de Tarso, que deu grande valor ao sacrifício expiatório de Jesus em sua teologia. [voltar]

(38)
Conforme o Massorético:

E antes o nome de Hebrom era Quiriate-Arba [cidade de Arba], porque Arba foi o maior homem [Adam, em hebraico] entre os anaquins. E a terra repousou da guerra.

Js 14:15

Entretanto, na Vulgata lê-se:

“O nome de Hebrom antes era chamado Quiriate-Arba, Adão [Adam], o maior entre os anaquins, foi sepultado lá e a terra repousou da guerra.”

Na LXX:

Mas antes o nome de Hebrom era Cidade de Arbok, a capital dos anaquins. E a terra repousou da guerra.

[voltar]

(39) Um dos mais antigos registros na literatura judaica sobre o sepultamento de Adão (e Eva) em Hebron, junto a outros patriarcas, está em Bereshit Rabbah 58:4, datando do século V e, portanto, (quase) contemporâneo a Jerônimo. [voltar]

(40) Seria o Livros dos Jubileus, capítulo IV, em que se relata que Adão foi sepultado “na terra de sua criação“, i.e. no Éden. [voltar]

(41) Dois casos em que judeus tiveram de entrar em disputa de tradições com outros grupos:

  1. Com os cristãos, quanto ao status de inspirada ou não da Septuaginta;
  2. Com os samaritanos, quanto ao local certo para a adoração a Javé – o Monte do Templo de Jerusalém ou o Monte Gerizim?

[voltar]
(42) Algumas outras citações patrísticas dessa crença:

  • Epifânio de Salamina (ca.310 – 403), em Panarion, 46.5, “Contra os tacianitas”:

    E, portanto, devemos nos surpreender que alguém [como Taciano] que saiba – como também encontrei na literatura – que nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado no Gólgota, nenhum outro lugar que aquele onde o corpo de Adão jaz enterrado. Pois após deixar o Paraíso, viver defronte a ele por um bom tempo e envelhecer, Adão posteriormente voltou e morreu nesse lugar – digo, Jerusalém -, e lá foi enterrado no sítio do Gólgota. Este é provavelmente o modo como o lugar – que significa “lugar de uma caveira”

    Confrontando-se com o Livro dos Jubileus, cap. IV, supõe-se que essa tradição estabelecia o Éden no sítio de Jerusalém.

  • João Crisóstomo (ca. 347 – 407), em Homilia 85 sobre o Evangelho de João, 19:16-8

    Saiu para o lugar chamado Caveira“. Alguns dizem que Adão morreu ali e ali jaz; e que Jesus, no lugar onde a morte reinara, lá também erigiu o troféu. Pois ele seguiu adiante carregando a Cruz como um troféu sobre a tirania da morte: e como os conquistadores fazem, assim carregou sobre Seus ombros o símbolo da vitória.

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(43) Excepcionalmente, utilizei a versão católica em vez da de João Ferreira de Almeida, porque esta, sendo baseada em manuscritos gregos, traz a leitura “perfurou” (do grego ενυξεν) em Jo 19:34. A Vulgata traz a leitura aperuit (“abriu”), provavelmente refletindo uma leitura grega ηνοιξεν (cf. At 9:40). [voltar]

(44) Cf. [Kelly, cap. VIII, pp. 193-4]. [voltar]

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Para saber mais

– Asheri, Michael; O Judaísmo Vivo, Imago, 1995.

– Charlesworth, James H.; The Old Testament Pseudepigrapha, vol. II,3a. ed., Hendrickson Publishers, 2013.

– Comfort, Philip; Encountering the Manuscripts, Broadman & Holdman Publishers, 2005.

– Cullmann, Oscar; Das Orignes do Evangelho à Formação da Teologia Cristã, Fonte Editorial, 2ª ed., 2004.

– Ehrman, Bart D.; O que Jesus disse? o que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, Prestígio, 2006

_________________; The New Testament – A Historical Introduction to the Early Christian Writings, Oxford University Press, 4ª ed, 2008.

– Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Novo Século, 1999.

– Finkelstein, Israel & Silberman, Neil Asher; A Bíblia não tinha Razão, A Girafa, 2003.

– Flusser, David; O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, vol. I, Imago, 2000.

– Freire, Antônio; Gramática grega, Ed. Martin Fontes, 1997.

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– Josefo, Flávio; The Works of Flavius Josephus, tradução inglesa de William Whiston acessado em 01/03/2017.

– Kelly, John Norman Davidson; Early Christian Doctrines, 4ª ed., Adam & Charles Black, Londres, 1968.

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– Meier, John P.; Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico, vol. I, Imago, 1993.

– Metzger, Bruce M.; The Text of the New Testament – Its transmission, Corruption and Restoration, Oxford University Press, 3ª ed., 1992.

– Murachco, Henrique ; Língua Grega, Ed. Vozes, 2ª ed., 2003.

– Pagels, Elaine; Além de toda crença: o Evangelho Desconhecido de Tomé, ed. Objetiva, 2004.

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Poirier, John C.; The Linguistic Situation in Jewish Palestine in Late Antiquity, Journal of Greco-Roman Christianity and Judaism, ed. 4 (2007), pp. 55-134.

– Tatum, W. Barnes; John the Baptist and Jesus – A Report of the Jesus Seminar, Polebridge Press, 1992

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– Wilkinson, Josepha Josephine; John the Baptist: A Life and Death, Kindle Edition, 2012.

– Willker, Wieland; A Textual Commentary on The Greek Gospels, vol. I – Matthew, 8ª ed., 2011.

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José Albo – Das Recompensas e dos Castigos

Índice

Vista da cidade de Tortosa

Tortosa, Espanha

Apresentação

Com a vitória na batalha de Las Navas de Tolosa (1212), os reinos cristãos assumiram a hegemonia militar na península ibérica e decretaram um agonizante declínio para al-Andalus – a civilização árabe da Europa continental. A preponderância do elemento cristão também marcou um progressivo cerceamento de Sefarad – a Espanha judaica que se desenvolveu ao fundo do domínio islâmico. Não que as coisas sempre estivessem às mil maravilhas para os judeus com os antigos senhores. Após um grande florescimento econômico e cultural sob a dinastia Omíada, seguida pelos fragmentados regentes taifas, sua comunidade sofreu um primeiro baque com a chegada dos místicos Almorávidas. Oriundos do Magreb, impuseram mão firme sob os taifas, detiveram o ímpeto do rei castelhano, porém trouxeram consigo uma intolerância até então desconhecida. A comunidade de Lucena, por exemplo, foi ameaçada com conversão forçada, o que conseguiu impedir mediante o pagamento de vultosa soma (1). Com diplomacia e serviços, os judeus voltaram a ser tolerados, ao menos até o poder passar às mãos dos Almôadas, uma nova e muito fundamentalista dinastia berbere. Com eles só havia um acordo: conversão ou morte. Muitos, junto com cristãos, emigraram atrás de algum reino mais tolerante, e outros tantos fingiram conversão. Dentre esses últimos estava a família do grande Maimônides, que reassumiu o judaísmo após sentir-se em segurança no Egito (2).

Em um mundo islâmico cada vez mais hostil, os católicos reinos do norte pareciam ser mais aprazíveis. E, de fato, foram-no por algum tempo, até que o Islã deixou de ser uma ameaça séria na segunda metade do século XIII, limitando-se ao Reino de Granada, no extremo sul da península. Na falta de um adversário externo, a sociedade da reconquista se voltou paulatinamente contra os inimigos do “lado de dentro”, ou seja, os muçulmanos remanescentes e os judeus. Em Sevilha, por exemplo, as pregações do cônego Ferrand Martinez inflaram a população cristã local ao ponto de eclodir um pogrom em 1391, que se alastrou por outras cidades. Outras autoridades eclesiásticas tentaram conter os ânimos populares não por compaixão aos judeus, mas para extinguir as comunidades judaicas de uma forma mais sofisticada, buscando a apostasia de seus membros, como o dominicano Vicente Ferrer. Embora sua própria pregação acirrasse os ânimos dos populares contra os judeus, reprovava iniciativas individuais contra eles, pois sua linha de ação envolvia o aparato estatal. De início, atuou como eminência parda para que em, 1412, o rei João II de Castela lançasse o Edito de Valladolid, restringindo os judeus a guetos, determinando suas vestimentas e interditando-lhe diversos ofícios. Após tornar o cotidiano dos judeus um fardo, Ferrer se esmerou para que se envergonhassem de sua fé, tendo uma atuação relevante por ocasião do longo debate organizado pelo antipapa de Avignon (3) Bento XIII, na cidade de aragonesa de Tortosa, de fevereiro de 1413 a novembro de 1414. Foram convocados diversos rabinos, eruditos e clérigos a fim de debater questões teológicas, tais como: a possibilidade de provar o caráter messiânico de Jesus por meio do Talmude, o Pecado Original e as causas do Exílio.

A Disputa de Tortosa pode ter sido tudo, menos um debate genuíno e, sim, um circo armado para depreciar o judaísmo. As lideranças judaicas estavam em menor número e não tinham ampla liberdade para expor suas ideais, além de terem sido deslocadas de suas comunidades e não contarem mais com o apoio logístico delas para uma prolongada estadia. Enquanto isso, Ferrer e outros frades arrebanhavam prosélitos nas comunidades judias deixadas ao léu e expuseram alguns de seus convertidos durante sessões do “debate” (4).

Do lado judeu, merece um destaque especial o nome de José Albo, discípulo do importante filósofo Hasdai Crescas (ca. 1340 – 1410) e talvez último representante da filosofia racionalista judaica medieval; um gênero que contou com nomes do quilate de Saadia Gaon e Maimônides. A experiência em Tortosa deve tê-lo motivado a criar sua própria síntese racional da fé judaica, exposta em seu famoso livro Sefer ha-‘Ikkarim (“O Livro dos Princípios”). Lançando mão de argumentos filosóficos e citações rabínicas, Albo definiu a essência do judaísmo em três princípios (5):

  1. A existência de Deus;
  2. A revelação da Torá;
  3. Recompensa e castigo.

Ele dedicou grande parte de sua obra a questões acerca do pós-morte e, em um particular capítulo, ele expõe sua opinião quanto à crença cabalista da gilgul, a versão judaica da doutrina reencarnação surgida na Idade Média. Afinal, qual era ela?

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José Albo e o Destino da Alma


Poderia ter citado apenas o penúltimo parágrafo, mas preferi colocar todo o capítulo. Embora fique um pouco maçante, é uma oportunidade para acompanhar uma mente filosófica em ação.

* * *

Trataremos, agora, de recompensa e castigo, que constituem o terceiro dos princípios gerais da lei divina. Ele preenche o propósito pretendido por todas as leis. É verdade que aquele que serve por amor não se preocupa em nada com recompensas e castigos, não tendo outro propósito que seja o de cumprir o objeto de seu amor, como dizem os Rabis: “Não seja como os servos que servem seu mestre a fim de receberem compensações …“. Mas proíba o Céu que isso signifique não haver recompensa e castigo! A declaração acima simplesmente significa que aquele que serve Deus por amor não deve prontificar seu serviço pelo desejo de recompensa ou medo de castigo, embora creia que haja uma recompensa guardada para os que creem e temem Deus e pensam em Seu nome. Toda essa recompensa nada é para sua vista quando comparada com o propósito de cumprir a vontade do objeto de seu amor. Um serviço desse tipo conduz a recompensa e castigo máximos pretendidos em todas as leis.

Então, na medida que o propósito de uma lei divina é diferente daqueles das leis convencionais, como dissemos antes, estabelecemo-lo como um princípio da lei divina. Analisamos as possibilidades como se seguem: ou há recompensa e castigo ou não há. Se houver, ou são todos corporais e neste mundo, ou são todos espirituais e no outro mundo; ou existe tanto recompensa corporal neste mundo e espiritual no próximo mundo.

Consideramos que a opinião na questão da recompensa e do castigo esteja divida em quatro classes conforme as quatro possibilidades as quais a situação admite. Alguns creem não haver recompensa e castigo, seja corporal ou espiritual. Alguns creem haver tanto recompensa corporal e espiritual. Alguns creem haver recompensa corporal, mas nenhuma espiritual, e alguns creem haver recompensa espiritual, mas nenhuma corporal.

Esta diferença de opinião é baseada na divisão de opinião entre homens quanto à natureza da alma. Uns dizem que a alma humana não é superior a dos animais salvo que o homem tem mais astúcia que os outros animais em conceber meios e inventar artes necessários para organizar sua vida de forma completa, assim como no mundo animal alguns são superiores a outros neste respeito. Por essa razão, os que alegam essa opinião acham que não há recompensa ou castigo algum, seja corporal ou espiritual. Eles alegam que o homem é governado pelo acaso como os outros animais, dizendo respeito ao propósito divino meramente a preservação das espécies. Essa opinião recebeu seu “sopro da morte” dos filósofos, que dizem que a alma humana não pode ser comparada às dos animais. As últimas têm apenas conhecimento de particularidades, enquanto o homem tem conhecimento de universais. Além disso, o homem pode perceber algo quando ele não está mais presente aos sentidos, enquanto um animal não o pode. O homem, além disso, distingue entre sustância e acidente, e assim por diante, tudo isso mostra a grande diferença entre a alma humana e a alma animal. Por isso deve haver um propósito especial que é peculiar à alma humana, como explicamos anteriormente. Por isso, embora não haja perfeição espiritual alguma em animais, tal deve estar no homem. Os sábios judaicos também se opuseram a essa opinião e sustentaram que deve haver recompensa e castigo para o homem, seja espiritual no mundo vindouro, ou neste mundo por meio da divina providência, como explicamos quando tratamos da Providência.

A segunda opinião é que há recompensa e castigo, mas que é corporal e neste mundo. Alguns creem que a alma humana é superior a dos animais em razão de ter um poder racional por meio do qual o divino espírito é repartido ao homem e provê a ele conforme a superioridade de seu intelecto. Mas visto que essa superioridade é meramente uma capacidade ou preparação, ela sempre requer, dizem eles, um sujeito; e quando a união entre alma e corpo é rompida, a alma desaparece. Uma certa escola de filósofos erroneamente adota essa visão, dizendo que não podemos conceber qualquer perfeição da alma sem o corpo. Os zadoquitas (6) e os betusianos (7) adotavam essa visão. Acreditavam na Torá de Moisés e na Providência, mas alegavam, ao mesmo tempo, que recompensa e castigo eram apenas corporais e neste mundo, como é mencionado em Abot de-Rabbi Natan (8), e negavam qualquer recompensa espiritual após a morte. Eles aduzem como prova de sua opinião o fato de que na Lei de Moisés não há menção alguma de recompensa espiritual, mas apenas de prosperidade física. Adotaram essa opinião errônea porque pensavam que a alma humana fosse composta de várias faculdades, tais como nutrição, crescimento, sensação e razão. E como vimos que os demais poderes desaparecem quando a união entre a alma e o corpo é rompida, dizem eles que o poder de compreensão que ela tem irá também desaparecer junto com as concepções que já tiver; e, portanto, a alma humana cessa de existir como as almas dos animais, e morrerá como a outra.

Os grandes filósofos, contudo, refutaram essa opinião, dizendo que a variedade de atividades emanado de um agente não necessariamente prova multiplicidade na essência do agente, como explicamos acima. Nem o cessar da vida do corpo necessariamente prova o cessar da alma racional, não mais que o cessar do poder de crescimento, após os quarenta, torna necessário o cessar da alma. O corpo é um instrumento pelo qual algumas das atividades da alma se tornam visíveis. Por isso, quando o instrumento é destruído, apenas essas funções desaparecem, como a nutrição, o crescimento, a sensação. Mas não segue disso que a essência da alma deva desaparecer. Pois a existência da razão não é dependente do corpo como os outros poderes corporais. Pelo contrário, a razão se fortalece após a idade de quarenta, quando os poderes corporais enfraquecem. Além disso, a razão não é como os poderes corporais, pois ela pode se perceber bem como a seus instrumentos, o que não é o caso com os poderes corporais. Eles aduziram também outros argumentos fortes e irrefutáveis para mostrar que a alma humana não pode ser comparada com a alma de animais, mas não necessidade de discorrer sobre essa questão.

Como uma indicação do caráter errôneo dessa opinião, Maimônides disse, na introdução a seu comentário sobre Abot, que o termo “alma” em sua aplicação à alma do homem e a do animal é um homônimo. E apesar de vermos que as funções emanentes de uma são similares às da outra, não se segue disso que os respectivos agentes sejam similares em essência. A luz do Sol e a luz de uma lâmpada são similares no fato de que iluminam os lugares escuros, mas isso não significa que suas agências sejam similares. A luz do Sol é permanente e não se extingue, ela ilumina também onde o Sol não brilha; enquanto a lâmpada se extingue, não é permanente e ilumina apenas onde o raio atinge. Não procede, portanto, que em razão de a alma animal ser destruída, a alma humana também seja destruída e cesse de existir quando é separada do corpo, visto que admitem ser ela superior à alma animal. Quanto ao argumento com que os zadoquitas e betusianos aduzem em favor de sua visão a partir do fato de nenhuma menção ser feita na Lei de Moisés de recompensa espiritual, mas apenas de corporal, os fatos não são como dizem. A recompensa corporal é mencionada somente nos casos em que não há lugar para recompensa espiritual, e a recompensa espiritual é mencionada por alusão, por um motivo que explicaremos mais tarde, com a ajuda de Deus.

A terceira opinião é o inverso da segunda, e é adotada por alguns de nossos rabis, que dizem: não há recompensa para bons feitos neste mundo. Aduzem um argumento a partir da experiência. Um pai diz a seu filho: “Suba na torre e traga-me alguns pombos“. O filho sobre a torre, espanta a mamãe pombo e pega os filhotes e, em seu retorno, cai e morre. Onde está sua bondade e onde está a duração de seus dias? A resposta é a que está na promessa das Escrituras: “Que o bem te suceda” (Dt 12:28), e faz referência àquele mundo que é completamente bom; e a promessa, “para que prolongues os teus dias” (Dt 22:7) refere-se ao mundo que é totalmente longo (eterno). O mundo que é completamente bom e totalmente longo não é outro senão o mundo por vir após a morte, e a promessa faz referência à recompensa espiritual.

Esta opinião é também adotada por uma grande escola de filósofos e alguns doutos homens da Torá os seguem. Sua opinião é que o homem não possui nenhuma perfeição exceto após a morte, quando o intelecto é separado das coisas materiais e corporais. Isso se deve ao fato de que as coisas racionais serem escalonadas conforme seu grau de compreensão, o que compreende mais é superior ao que compreende menos. Portanto, visto que a superioridade do homem aos animais consiste em sua razão, sua perfeição deve ser um grau de excelência baseado apenas na inteligência. Pois se consistisse em uma coisa corporal que é comum entre ele e os animais, a perfeição e superioridade racional que lhe são dadas acima dos animais seria um castigo atormentador em vez de um grau de perfeição. Pois os animais, sendo vazios de razão e inteligência, não são perturbados pelo pensamento sobre o infortúnio que está destinado a vir sobre eles e não lastimam pelo conhecimento de que devem morrer, como faz o homem, nem antecipam na imaginação a dor que virá sobre eles, e não se preocupam com nada; ao passo que o homem sente tudo isso; fica preocupado e pesaroso por causa do mal que está destinado a vir sobre ele e vive em tristeza. De fato, quanto maior seu poder de compreensão, mais ele se lamenta pelo mal que está destinado a vir sobre ele. Por essa razão, dizem que não é provável que a perfeição a ser alcançada pela razão seja algo corporal em comum ao mais baixo dos animais, mas que deva ser algo que distinga o homem do animal – i.e., o intelecto – e não uma coisa corporal. Esta é a opinião do Filósofo (9) sobre o assunto. Embora ele negue a Providência, mesmo assim acredita que a alma do homem tenha uma perfeição após a morte, quando é separada do corpo. E muitos sábios da Torá seguem sua opinião.

Mas há uma dificuldade nesta explanação. Pois, apesar de esses argumentos serem uma sonora réplica à segunda opinião, eles ainda não provam que a perfeição do homem é após a morte. Pois, já que a perfeição e a permanência podem pertencer apenas a uma coisa racional, segundo alegam, e o poder racional no homem é meramente uma preparação ou capacidade, como podemos nós conceber sua sobrevivência ao corpo, já que a capacidade não pode existir por si mesma? A declaração em resposta a isso, i.e., o intelecto adquirido se torna uma substância por meio das abstrações, de modo que o intelecto e as abstrações se tornam idênticos, é ininteligível. Pois se a faculdade racional no homem é um poder hílico (material) cuja natureza é cessar de existir exceto por meio da atividade da compreensão, como pode tal atividade existir por si mesma? E como podemos concebê-la identificando a si mesma com o Intelecto Ativo? Tudo isso é muito improvável, como explicamos antes. Logo, alguns estudiosos dizem que a alma é uma substância espiritual, tendo existência independente e capacidade de compreensão. Ela não pode, por essa razão, deixar de existir, já que é uma substância independente e sente prazer de acordo com sua atividade de cognição. Mas isso também não está correto. Pois, mesmo embora a alma seja uma substância independente, ainda assim, visto que tem a capacidade de cognição, a perfeição dessa capacidade seria em vão se a alma não devesse alcançar essa cognição, e nem uma em mil atingiria a perfeição da alma e, possivelmente, nenhuma sequer, como explicamos acima; a não ser que digamos que a perfeição da cognição consiste em uma compreensão de axiomas. Mas, se assim for, o justo e o ímpio se nivelariam sobre o mesmo plano, uma ideia que nunca ocorreu a ninguém antes.

Parece-nos, portanto, que a opinião adequada e correta da Torá é que a alma é uma substância espiritual, tendo a capacidade para compreender o serviço de Deus e não meramente compreensão. Logo, quando uma pessoa atinge algum grau de compreensão do serviço de Deus, em razão de alcançar alguma ideia ou noção de Deus, seja ela grande ou pequena, ela imediatamente alcança algum grau de vida no mundo vindouro. Também dizem os rabis, ao comentar o versículo: “Uma semente o servirá” (Sl 22:30), a partir de quando as criancinhas merecem a vida futura? Dizem no nome de Rabi Meir: tão logo sejam capazes de dizer Amém, como está escrito: “Abri os portões, que a nação justa que mantém fidelidade (emunim) entre neles” (Is 26:2). Não se leia (10): “que mantém (shomer) fidelidade (emunim)“, mas: “que diga (she-omer) Améns (amenim)“. O significado disso se torna claro a partir de nossa explanação acima, i.e, que a perfeição da alma consiste em compreender o serviço de Deus, qualquer que seja ele; de modo que quando uma criança alcança a compreensão do serviço menos importante, a saber, dizer Amém a qualquer bênção, ela merece algum grau da vida futura. Isso está de acordo com o que escrevemos antes, i.e., que um homem pode alcançar um certo grau da vida futura pelo cumprimento de um preceito.

Da mesma forma que a alma é uma substância espiritual independente também é claro, do testemunho dos Rabis, que o mundo é mantido apenas pelo sopro da boca dos estudantes infantis. Disse Rab Papa a Abaie: “E quanto ao teu sopro e o meu?” Disse o último: “Você não pode comparar o sopro que está sem pecado ao que está com pecado.” Então, se a alma não é uma substância independente, como podem os estudantes infantis, que atingiram um grau muito pequeno de cognição, serem superiores a Abaie e Raba, que atingiram um grau muito alto, sem dúvida? A verdade é que um grau muito pequeno no serviço de Deus da parte de alguém que não esteja maculado por pecado vale muito mais que um alto grau de quem esteja maculado por pecado; pois a alma, sendo uma substância espiritual independente, depende desse grau de merecimento sobre a medida de sua pureza e sua adoração a Deus por cumprir os mandamentos. Esta é a razão porque Moisés ficou pesaroso por não poder entrar na terra [prometida] e efetivamente realizar os mandamentos. Ele não ficou pesaroso quanto a lograr ideias, pois não há dúvida que Moisés atingiu o grau em que poderia compreender por meio da compreensão, mas estava desejoso por executar os mandamentos na prática, i.e, o serviço divino com compreensão, o que dá à alma a perfeição e permanência, como explicamos antes.

Os Rabis discutem a questão de se a alma é em sua essência um poder hílico (material) ou uma substância independente. Por dois anos e meio, dizem-nos, as escolas de Shamai e Hilel (11) disputaram a questão de se era digno ao homem ter sido criado. Dizia uma: teria sido melhor para o homem não ter sido criado. A outra dizia: foi melhor para o homem ter sido criado do que não ter sido criado. Fizeram uma votação e decidiram que teria sido melhor se o homem não tivesse sido criado, mas já que foi criado, ele deve ser cuidadoso em sua conduta.

Então, parece-nos que o disse que foi melhor para o homem ter sido criado sustentava que a alma do homem é um poder hílico, como pensa o Filósofo. Logo, disse que foi melhor para ele ter sido criado, porque a existência é sempre melhor que a não existência, e pode-se subir a um grau de existência permanente pela atividade racional. Por outro lado, o que disse que teria sido melhor para o homem não ter sido criado, acreditava que a alma é uma substância espiritual independente. Logo, como um resultado da criação, a alma pode ser destruída ou severamente punida. Logo, disse ele, teria sido melhor se o homem não tivesse sido criado, i.e., que a alma não tivesse sido posta dentro do corpo humano. Salomão também disse: “Porém melhor que ambos é aquele que ainda não é” (Ecl 4:3). Então, se a alma fosse um poder hílico (material), como poderia ele falar sobre uma coisa não existente que é melhor que ambos [os viventes e os mortos]? Como pode a não existência ser melhor que a existência, visto que toda existência é boa, como a Bíblia testifica: “E Deus viu tudo que havia feito, e eis que era muito bom” (Gn 1:31)? Sem dúvida, portanto, sua opinião é que a alma é uma substância espiritual e não um poder material. E como esta é a opinião correta e a que está em concordância com a Torá, eles votaram e decidiram que seria melhor para o homem se ele não tivesse sido criado, e acrescentaram que ele deve ser cuidadoso em sua conduta, de modo que a alma não seja destruída ou punida.

Disso os Cabalistas derivaram a doutrina da transmigração. Visto que a opinião verdadeira é, conforme a Torá, – assim argumentam – que a alma não é um poder material, mas uma substância independente, como dissemos antes, então do mesmo modo que a substância espiritual entrou no corpo humano quando ele foi criado, é possível que, após ter funcionado em um corpo humano, retorne e viva em outro. Mas isso não é correto. A Sabedoria divina pôde, de fato, decretar que a substância espiritual, que por sua natureza não é um agente livre, devesse residir no corpo a fim de que se tornasse um agente livre no corpo, porque essa é sem dúvida uma valiosa qualidade que há nele. Tanto que, como foi dito pelos Rabis, os anjos cometeram um erro e quando Deus criou o homem, eles quiseram adorá-lo … Tudo porque ele era um agente livre e eles, não. Mesmo assim, por que deveria uma alma que já funcionou em um corpo humano e se tornou um agente livre retornar ao corpo outra vez? E por que deveria a gota seminal ter a capacidade de receber uma alma que já funcionou em um corpo, em vez de receber uma alma que ainda não funcionou em um corpo e não é um agente livre? Uma visão ainda menos provável é a dos que dizem que almas humanas são transmigradas para dentro de corpos de animais. Deus sabe.

A quarta opinião é a que alguma recompensa corporal neste mundo e alguma é espiritual no próximo mundo, após a morte. Esta é a opinião de nossa sagrada Torá, que faz promessas materiais específicas para os justos, como os patriarcas e outros, e também promessas espirituais apenas para a alma, castigo ou recompensa, como explicaremos com a ajuda de Deus. Essa também é a opinião de nossos Rabis em muitos lugares, e particularmente em Sifra (12), onde comentando a respeito do versículo em Deuteronômio, dizem: “Que teus dias sejam multiplicados” – neste mundo; “E os dias de teus filhos – nos tempos do Messias; “Como os dias dos céus acima da terra” – no mundo vindouro. É nítido disto que a Bíblia promete, para o cumprimento dos mandamentos, recompensa neste mundo e no próximo. Esta é uma declaração geral da opinião humana acerca da recompensa e do castigo a da opinião de nossa Torá sobre o assunto.

Fonte: O Livro dos Princípios, livro IV, cap. XXIX.
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Você está fazendo Isso Errado

Se você, mal lendo o texto acima, já se pôs a refutar José Albo, então sugiro que deixe de perder seu tempo, afinal quem disse que assino embaixo do que ele escreveu? Caso tenha saído em busca de algum figurão do judaísmo medieval que aceitasse a reencarnação, eu até te ajudo: Rabi Moshe ben Nachman – vulgo Ramban (13) ou Nachmânides -, um conterrâneo de Albo que vivera cerca de um século e meio antes dele. Contudo, ficar opondo uma autoridade a outra não passa de “carteirada intelectual”, algo muito útil em guerras ideológicas, mas contraproducente quando se busca a verdade dos fatos. Se aparecer com rabinos modernos, pior ainda, visto que os “fatos” em questão são históricos, não matéria da fé judaica atual.

Agora, se você tem alguma perspicácia, há de perceber uma mudança de postura entre o relato de Saadia Gaon (séc. X), em seu Livro das Crenças e Opiniões, tratado VI, quanto à infiltração de ideias reencarnacionistas no judaísmo e o comentário acima de Albo, escrito mais de quatro séculos depois. Enquanto o primeiro tem uma reação um tanto irada contra uma ideia que julga uma superstição de certas pessoas “que chamam a si mesmas de judias“, o segundo continua a considerar um grupo de adeptos dessa crença – os cabalistas – tão judeus quanto ele, embora equivocados.

Sugere-se, pois, uma progressiva difusão da noção judaica da reencarnação – a gilgul neshamot – partindo de uma crendice de populares para uma doutrina mais elaborada de sofisticados grupos místicos. O próximo passo seria sua difusão credenciada para outros nichos. Em suma, mais uma evidência da entrada tardia da reencarnação no judaísmo (14), algo não muito bem aceito pelos que supõem um judaísmo doutrinariamente estático desde os tempos de Jesus, de modo a lançarem mão de anacronismos para utilizarem a gilgul séculos antes de sua concepção.

(Em Construção)
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Notas

(1) Cf. [Johson, parte III, p. 186]. [voltar]

(2) Cf. [Lewis, cap. XVI, p. 396]. [voltar]

(3) De 1378 a 1417 vigorou na cristandade latina o “Grande Cisma do Ocidente”, quando dois papas – um na cidade francesa de Avignon e outro em Roma – disputavam a primazia, cada qual sendo reconhecido por reinos diferentes. A confusão aumentou em 1409, quando um concílio na cidade de Pisa quis revogar os dois e elegeu seu próprio papa. A unidade só foi restaurada com o Concílio Constança (1414) e a deposição de Bento XIII (1417). [voltar]

(4) Cf. [Johson, parte III, p. 231], [Attali, parte III, cap. V, pp. 254-7] e O Livro dos Princípios, introdução do editor. [voltar]

(5) Cf. [Bronner, cap. V, pp. 123-4]. [voltar]

(6) Outro nome para a seita intertestamentária dos saduceus. [voltar]

(7) Grupo afim dos saduceus, senão uma evolução ou cisma deles. [voltar]

(8) Os Pais segundo Rabi Natan, um dos “tratados menores” do Talmude. [voltar]

(9) Uma referência a Aristóteles, chamado na Idade Média de Ille Philosophus. [voltar]

(10) José Aldo vocaliza o texto hebraico consonantal de uma forma alternativa para obter o efeito que deseja. [voltar]

(11) As duas principais escolas farisaicas à época de Jesus. [voltar]

(12) Um midrashim, i.e., um conjunto de comentários sobre a Lei e o Velho testamento, no caso sobre Números e Deuteronômio. [voltar]

(13) Não confundir com Rambam, que é o acrônimo de Maimônides. [voltar]

(14) Segundo a Doutora Leila L. Bronner:

Reencarnação

A Reencarnação é conhecida em hebraico como gilgul, que significa “circularidade”. Pois a tradição do termo tem um significado especial: o de metempsicose, a transmigração da alma após a morte para outro corpo. A ideia de reencarnação, que é encontrada em tradições religiosas por todo mundo, não é original aos judeus. A tradição mística judaica, entretanto, reconfigurou e remodelou-a para se adequar ao judaísmo. A reencarnação foi um aporte muito tardio ao cenário de ideias judaicas. Nem a Bíblia – ou o Talmude, ou o Midrash – diz um mínimo sobre o assunto. Saadia rejeitou a doutrina como “loucura e confusão”. Nem um pouco falou Maimônides sobre ela. Mesmo assim, a reencarnação é frequentemente discutida na literatura judaica da Idade Média. Como observado antes, o conceito é primeiramente mencionado no Sefer ha-Bahir [O Livro da Iluminação], embora o termo gilgul não seja ainda usado para descrever o fenômeno.

[Bronner, cap. VI]

Vale ressaltar que, apesar de não haver menção à reencarnação na Bíblia e na literatura rabínica, nada impede que seus textos sofram uma releitura reencarnacionista, como apontou um irritado Saadia Gaon. [voltar]

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Para saber mais

– Attali, Jacques; Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo, Futura, 6ª ed., 2006.

– Bronner, Leila Leah; Journey to Heaven – Exploring Jewish Views of the Afterlife, Urim Publications, 2015.

– Johnson, Paul; História dos Judeus. 2ª ed., Imago, 1995.

– Lewis, David Levering; O Islã e a Formação da Europa – De 570 a 1215, Amarilys, 2010.

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