E quanto aos essênios?

Carvernas onde foram encontrados os manuscritos do Mar Morto.

As Cavernas de Qumran: a Arca de Noé dos manuscritos essênios.

Vamos supor que você faça uma viagem ao extremo oriente e visite um templo budista. Fica admirado com a sinceridade do voto de pobreza dos monges, as vestimentas despojadas e características, suas cabeças raspadas, seu trabalho social, horas gastas em estudos doutrinários, hierarquia interna, atitudes contemplativas e meditação. Voltando aqui para o ocidente, é interpelado por um colega seu que é totalmente ignorante quanto aos hábitos fora de sua cultura. Sabendo que seu colega é católico, ou tenha algum conhecimento sobre o catolicismo, manda-lhe uma comparação com algo que mais familiar: “os monges budistas vivem como os frades franciscanos”.

Obviamente, foram ignoradas diferenças enormes: meditar não é orar (se bem que o efeito cerebral parece ser semelhante), a coroinha dos franciscanos não chega a ser uma cabeça totalmente pelada, os budistas não prestam contas ao Vaticano e, principalmente, o conceito de vida única não condiz com os ciclos de renascimento. Visto que a intenção foi apenas ilustrar, até que não foi nada de mais.

Seria perigoso, com tão pouca informação, deduzir as crenças budistas usando os franciscanos como referencial. Então, por que extrapolar que a seita dos essênios do século I acreditavam em reencarnação a partir de uma frase tão curta:

Estes homens [os essênios] levam o mesmo estilo de vida daqueles a quem os gregos chamam de pitagóricos.

Josefo, Antiguidades Judaicas, XV, cap.10.

Isto quer dizer que eles viviam em comunidades religiosas e reclusas, se assemelhando ao estilo de vida dos pitagóricos; ou que eles também professavam suas crenças na reencarnação? Ou melhor: na metempsicose, com a possibilidade de uma alma humana habitar um corpo animal.

No Preceito da Guerra (1QM II,1), há uma alusão a sacrifícios rituais: “Os sacerdotes-chefes ministrarão durante o sacrifício diário diante de Deus…” foram encontrados 26 depósitos de ossos de diversos animais em Qumran. Seria estranho se eles acreditassem em metempsicose e matassem animais, coisa que os pitagóricos evitavam. Mesmo para a alimentação. Vamos obter mais informação, então. Na continuação da mesma frase de Josefo em Ant. XV, 10; ele diz: “dos quais discursarei mais plenamente em outro lugar.” E aqui está esse “outro lugar”:

A doutrina dos essênios é esta: que todas as coisas são melhor atribuídas a Deus. Ensinam a imortalidade das almas, e consideram que as recompensas da retidão são zelosamente adquiridas com esforço, e quando enviam o que dedicaram a Deus para o templo, não oferecem sacrifícios porque têm mais pura lustração por conta própria; razão pela qual são excluídos do pátio comunitário do templo, mas oferecem sacrifícios por si mesmos; embora seu estilo de vida seja melhor que o dos outros homens; e eles se entregam inteiramente ao zelo da atividade econômica. Também merece nossa admiração o quanto eles excedem todos os homens que se entregam a virtude, e isto em correção e em tal grau que nunca apareceu entre qualquer grupo de homens, quer gregos, quer bárbaros; não, não for pouco tempo, visto que isto tem durado bastante entre eles. Tal fica demonstrado pela sua instituição, que nada sofrerá para impedi-los de ter todas as coisas em comum; de forma que o rico não desfrute mais de suas fortuna do que aquele que nada tem. Há cerca de quatro mil homens que vivem desta forma, que nem se casam, nem desejam manter servos; pensando que a última tenta os homens a serem injustos e a primeira dá espaço a disputas domésticas; mas como eles vivem por conta própria, ensinam um para o outro. Também indicam certos administradores para receber os lucros de suas rendas e dos frutos da terra; tal qual bons homens e sacerdotes, que aprontam seu trigo e alimento para eles. Não se diferem nenhum deles dos outros essênios em seus estilo de vida, mas se assemelham aos dacas, que são chamados polistas (citadinos*).

Antiguidade judaicas, livro XVIII, cap I
(*) Os dacas eram membros de uma seita pitagórica. Pouco se sabe quanto ao ramo dos polistas, se realmente viviam de forma monástica ou nas cidades, como o próprio nome diz.

Fica patente, aqui, que os essênios criam na imortalidade da alma, mas sem a ressurreição farisaica no fim dos tempos. A semelhança com os pitagóricos é quanto ao seu estilo de vida, não com as suas crenças. A atitude de Josefo foi a de usar comparações a para auxiliar seu público helênico de leitores, como explica [Vermes, cap. III]:

Segundo Josefo, eles adotaram um conceito de imortalidade claramente helenístico, sustentando que a carne é uma prisão da qual a alma indestrutível dos justos escapa para um êxtase infinito, “num lugar além do oceano”, depois de sua libertação final (1) (Guerra Judaica, II, 8).

A ressurreição, que significa o retorno do espírito ao corpo material, não pode assim fazer parte deste esquema.

Os manuscritos nada ajudaram neste particular, até recentemente. Encontramos afirmações tais como “Içai uma bandeira, ó vós que jazeis no pó! Ó corpos roídos pelos vermes, erguei um estandarte…!” (1QH VI, 34-5; cf. XI, 10-14), o que pode ter uma conotação de ressurreição corporal. Por outro lado, a linguagem poética pode ser apenas alegórica. Há mais informações sobre a imortalidade distinta da ressurreição. Elas confirmam a descrição de Josefo, embora – o que não é de surpreender – sem qualquer coloração tipicamente helenística (sem dúvida introduzida por ele para agradar a seus leitores gregos).

Outro texto importante de Qumran, “O preceito da comunidade” (1QS), cap. IV, assim descreve:

O julgamento divino de todos que caminham com este espírito será a saúde, uma vida longa em grande paz, e abundância, junto com todas as bênçãos eternas e alegrias infinitas numa vida sem fim, uma coroa de glória e uma vestimenta majestosa de luz infinda

Mas os caminhos do espírito da falsidade são estes: ganância e negligência na busca da retidão, maldade e mentiras, arrogância e orgulho, hipocrisia e engano, crueldade e mal abundantes, mau humor e muita insensatez e descarada insolência, atos abomináveis (cometidos) com espírito de luxúria, e conduta lasciva a serviço da impureza, uma língua blasfema, cegueira do olho e surdez o ouvido, cerviz dura, dureza de coração, assim caminha, assim caminha este homem para as sendas das trevas e do logro.

E o julgamento de todo aquele que caminha com este espírito trará incontáveis flagelos por intermédio dos anjos destruidores, maldição eterna por causa da ira vingativa de Deus, tormento eterno e desgraça infinita junto com a extinção vergonhosa do fogo das regiões escuras. Todas as suas gerações futuras decorrerão em tristes lamentações e amarga miséria, e em calamidades tenebrosas até que sejam todas destruídas, sem deixar rastro ou sobreviventes.

Fica nítida a crença em redenção e danação eternas, bem como uma crença das gerações seguintes pagando pelo pecado das outras. Curiosamente, os essênios poderiam ter um ponto em comum com os fariseus:

A liberação dos manuscritos em 1991 revelou, todavia, um texto poético, usualmente chamado de “fragmento da Ressurreição” (4Q521) que, fazendo eco com Isaías LXI, 1, descreve Deus na idade do Messias curando e revivendo os mortos. Se este poema for uma composição essênia, pode-se dizer que um dos 813 manuscritos de Qumran definitivamente comprova a crença da seita na ressurreição do corpo.

[Vermes, cap. III]:

E por falar em fariseus, é bom que se diga que os essênios não foram a única seita judaica da qual Josefo fez paralelos com a cultura grega:

Quando tinha eu cerca de dezesseis anos, tive a ideia de provar das diversas seitas que existiam entre nós. Havia três delas, a dos fariseus, os saduceus e a dos essências, como frequentemente lhes disse. Pensava que me familiarizando com todas elas, poderia escolher a melhor. Então me entreguei às asperezas, e me submeti a grandes dificuldades, e passei por todas elas. Nem mesmo me contentei em experimentar apenas dessas três, pois quando tomei ciência daquele cujo nome era Bano, que vivia no deserto, e não usava outra vestimenta senão o que crescia sobre as árvores, e não tinha outro alimento senão o que crescesse por conta própria, e se banhava em água fria frequentemente, tanto de dia como de noite, a fim de se purificar. Eu o imitei nessas coisas e fiquei com ele três anos. Então, quando tinha realizado os meus intentos, voltei para a cidade, estando agora dezenove anos de idade , e comecei a me conduzir conforme as regras da seita dos fariseus, que é aparentada à seita dos estoicos, como os gregos os chamam.

Flávio Josefo, Autobiografia, segundo parágrafo

Nem por isso cabe se considerar os fariseus como uma versão judaica dos estoicos ou será que até isso irão apelar? O que Josefo queria passar a seus leitores originais é que os essênios estariam mais para um grupo monástico e místico, ao passo que os fariseus continuavam integrados à sociedade e com um perfil mais racionalista.

Notas:

(1) Transcrevendo o texto completo:

Pois sua doutrina é esta: que os corpos são corruptíveis e que a matéria de que são feitos não é permanente; mas que as almas são imortais e continuam para sempre; e que vieram do mais sutil ar e são unidas a seus corpos como a uma prisão, a que foram arrastadas por um espécie de atração natural; mas quando são libertadas dos laços da carne, então elas, como libertas de um longo cativeiro, regozijam-se e ascendem. E isso é como as opiniões dos gregos, que boas almas têm suas moradas além do oceano, numa região que não é oprimida nem pelas tempestades de chuva ou neve, nem com calor intenso, mas esse tal lugar é refrescado por uma suave brisa de um vento do oeste, que sopra perpetuamente do oceano; ao passo que designam para as almas más um antro escuro e tempestuoso, cheio de castigos incessantes. E de fato os gregos aparentam-me seguir a mesma noção, quando designam as ilhas dos abençoados para seus bravos homens, a quem chamam de heróis e semideuses; e para as almas dos iníquos, a região dos ímpios, no Hades, onde suas fábulas relatam que certas pessoas, tais como Sísifo, e Tântalo, e Ixíon, e Títio, são punidos; que está assentada sobre essa primeira suposição, que as almas são imortais; e daí são reunidas as exortações à virtude e dissuasões da iniquidade; pelas quais bons homens são aperfeiçoados na conduta de sua vida através da esperança de terem uma recompensa após suas mortes; e pelas quais a veementes inclinações dos maus ao vício são restringidas através do medo e da expectativa em que se encontram de que, apesar encobrirem nesta vida, devam sofrer castigo imortal após suas mortes. Essas são as doutrinas divinas dos essênios sobre a alma, que lançam uma irresistível isca para os que uma vez que tiveram uma amostra de sua filosofia.

Guerras, livro II, cap. VIII

Para saber mais:

– Vermes, Geza: Os Manuscritos do Mar Morto, Ed. Mercuryo.

– Flusser, David; O Judaísmo e as origens do cristianismo, vol. I, ed. Imago.

Flávio Josefo e a Crença dos Fariseus

Flávio Josefo

Retrato hipotético de Josefo, da tradução inglesa de William Whiston.

O historiador judeu Flávio Josefo, cuja obra data da segunda metade do século I, muitas vezes é apontado como alguém que registrou a crença da reencarnação entre os fariseus (1). Até mesmo o verbete metempsychosis da Catholic Encyclopedia lhe atribui tal relato, provavelmente baseada na seguinte passagem:

Eles [os fariseus] também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de revivificar-se e viver novamente (2); (…)

Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap I

É preciso ter em mente que Josefo é um judeu escrevendo para um público helenizado e, portanto, explica suas crenças por meio de empréstimos da cultura e do vocabulário gregos. Assim, uma análise mais aprofundada do uso que Josefo dá às palavras, com paralelos a outras fontes judaicas e pagãs de sua época, revela sutilezas que apontam para uma direção bem diferente daquela que os reencarnacionistas gostariam. Josefo, na passagem acima, usa o verbo αναβιοω, que pode ser traduzido por “voltar à vida”, “reviver”, “ressuscitar” (3). Este verbo aparece em mais duas ocasiões em “Antiguidades Judaicas”:

  1. A ressurreição do filho da viúva feita por Elias:

    Agora esta mulher, de quem falamos antes, que amparara o profeta, quando seu filho caiu doente até que entregou o espírito e aparentou estar morto, veio ao profeta chorando, e batendo contra seu peito com suas mãos, e exclamando tamanhas expressões conforme suas paixões lhe ditavam, e reclamou a ele que viera censurá-la por seus pecados, que por causa disto seu filho estava morto. Mas ele a mandou ter bom ânimo e dar-lhe seu filho, a fim de que devolvesse a ela novamente vivo. Quando ela lhe entregou seu filho, ele o levou para um quarto de cima, onde estava hospedado, e deitou-o sobre a cama, e clamou a Deus, e disse que Deus não agira bem em recompensar a mulher que o hospedara e amparara tomando-lhe o filho; e orou para Ele enviasse novamente a alma da criança para dentro dela, e a trouxesse à vida novamente. Por conseguinte, Deus teve pena da mãe e estava desejoso por gratificar o profeta, que não poderia parecer ter vindo a ela para lhe fazer mal, e a criança, além de toda expectativa, voltou à vida outra vez [ανεβιωσεν]. Então a mãe foi grata ao profeta e ficou nitidamente contente que Deus conversasse com ele.

    Antiguidades Judaicas, livro VIII, cap 13

  2. Com relação ao fim do cativeiro de Babilônia e a volta para Israel:

    Então eles fizeram seus juramentos a Deus e ofereceram os sacrifícios que foram tradicionais no tempo antigo; quanto a isto me refiro à reconstrução de sua cidade e ao reviver [αναβιουσης] de antigas práticas de sua adoração.

    Antiguidades Judaicas, livro XI, cap 1

Nenhuma dessas citações permite o entendimento de “reencarnar”, aliás, os exemplos obtidos na literatura grega e pagã vão contra essa suposição. Até mesmo Platão, um crente na transmigração de almas, usava este verbo no sentido de “ressuscitar” (4):

Sócrates — Não é a história de Alcino que te vou contar, mas a de um homem valoroso: Er, filho de Armênio, originário de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto. Levaram-no para casa, a fim de o enterrarem, mas, ao décimo segundo dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou. Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha visto no além. (…)

A República, livro X.

Continuando em outras obras de Josefo.

Mas então quanto às duas ordens anteriormente mencionadas, os fariseus são aqueles estimados por sua habilidade na exata explicação de suas leis e introduzem a primeira seita. Estes atribuem tudo ao destino [ou providência] e a Deus, e embora deixe que o agir de forma correta ou o contrário esteja principalmente nas mãos dos homens, apesar de o destino, de fato, cooperar com cada ação. Dizem que todas as almas são incorruptíveis, mas que as almas dos bons homens apenas são movidas para outros corpos, – porém as almas dos maus são sujeitas ao castigo eterno. Mas os saduceus são os que compõem a segunda seita, e excluem inteiramente o destino, e supõem que Deus não está interessado se o que fazemos ou deixamos de fazer é mau; e dizem que o bom ou mal agir está na escolha dos homens, e que um ou outro, portanto, pertence a todos, que podem agir como bem entenderem. Também excluem a crença na duração imortal da alma, e nos castigos e recompensas no Hades.

Guerra Judaica, livro II, cap. VIII

Ademais, nossa lei ordena justamente que escravos que fogem de seus senhores deverão ser punidos, apesar de que os senhores dos quais eles fugiram tenham sido cruéis com eles. E nos atreveremos a fugir de Deus, que é o melhor de todos os senhores, e não sermos culpados de impiedade? Não sabes que os que partem desta vida conforme a lei da natureza e pagam a dívida que foi adquirida de Deus, quando ele, que no-la emprestou, fica prazeroso em pedi-la de volta, gozam de eterno renome; que suas casas e suas posteridades estão asseguradas, que suas almas são puras e obedientes e obtêm o mais sagrado lugar do paraíso, de onde, nos ciclos dos tempos [περιτροπης αιωνων], eles são novamente postos em corpos puros; enquanto as almas daqueles cujas mãos agiram desvairadamente contra si mesmos são recebidos nos lugares mais sombrios do Hades, onde Deus, que é o Pai deles, pune quem comente ofensa contra qualquer uma destas na sua posteridade? Por esta razão Deus odeia tais atos [de suicídio] e o crime é punido pelo nosso mais sábio legislador. (…)

Guerra Judaica, livro III, cap VIII

Além disso, se alguém engana outro nas medidas e pesos ou faz transação e venda desonesta a fim de enganar outrem, se rouba os bens de outrem, e leva o que nunca guardou; todos estes têm punições os aguardando; não daquelas reservadas para os de outras nações, mas mais severas. E quanto a tentativas de comportamento injusto aos pais ou de impiedade contra Deus, ainda que não realmente concretizados, os agressores são destruídos imediatamente. Porém, a recompensa para os que vivem exatamente de acordo com as leis não é prata ou outro; não é uma grinalda de ramos de oliveira nova, nem qualquer semelhante sinal de aprovação; mas todo bom homem que tenha sua própria consciência dando testemunho se si mesmo, e pela virtude do espírito profético de nosso legislador, e a firme segurança que o próprio Deus propicia tais, ele crê que Deus fez esta dádiva àqueles que observam estas leis, ainda que sejam obrigados a prontamente morrer por elas, que eles retornarão à existência e, num determinado ciclo [περιτροπης] das coisas, receberão uma vida melhor do que a que gozaram. Nem eu me arriscaria em escrever assim agora não fosse bem conhecido por todos pelas nossas ações que muitos de nosso povo decidiram várias vezes resistir a qualquer sofrimento, em vez de falar uma palavra contra a lei.

Contra Apião, livro II

As duas primeiras passagens chamam atenção por assinalar que apenas os justos teriam uma nova vida. Os maus permaneceriam em castigo eterno, sendo que, na quarta passagem, os que ofenderam a Deus e aos pais seriam eliminados. Seria estranho um tipo de reencarnação em que apenas os bons retornassem à vida, quando justamente os ímpios têm mais o que resgatar. Na terceira passagem, em que Josefo explana porque era melhor se entregar aos romanos do que cometer suicídio, deixa transparecer a ideia de “corpo puro” por ocasião da ressurreição, e faz uma breve alusão castigos hereditários. O mais interessante é o caráter do “corpo puro” atribuído por Josefo. As versões inglesas muitas vertem por “pure” ou “chaste”, o que talvez oculte um significado alternativo do original grego ‘αγνος – “sagrado, santo, consagrado”. No Corpus Flavianum, esta palavra aparece apenas mais quatro vezes além desta, todas em Antiguidades Judaicas:

Esta novilha foi sacrificada pelo sumo sacerdote e seu sangue aspergido com o dedo dele sete vezes perante o tabernáculo de Deus; depois disto, toda a novilha é queimada naquele estado, junto com sua pele e entranhas; e atiraram madeira de cedro, e hissopo, e lã escarlate no meio do fogo; então um homem ‘αγνος ajuntou todas as suas cinzas e as pôs em local perfeitamente limpo.
Livro IV. Cap IV, 6

E certamente esta legislação é cheia de sabedoria oculta e totalmente irrepreensível, como sendo a legislação de Deus; razão pela qual é, como Hecateus de Abdera diz, que os poetas e historiadores não fazem menção dela, nem dos homens que levam suas vidas de acordo com ela, visto que é uma ‘αγνης lei.
XII, II, 6

Havia um grande portão através do qual os que eram ‘αγνοι entravam, junto com suas esposas; mas a parte mais interior do templo naquele portão não era permitia às mulheres.
XV, XI, 5

Mas a nação dos Samaritanos não escapou sem tumulto. O homem que os incitou a isto foi aquele que pensou que o ato de mentir é uma de pequenas consequências, e imaginou cada coisa para que a multidão pudesse ser agradada; então os conclamou a se ajuntar no Monte Gerizim, que lhes é respeitado como a ‘αγνοτατον (*) de todas as montanhas…

XVIII, IV, 1.
(*) superlativo: a mais sagrada

Em cada uma delas, ‘αγνος é usado para dar um caráter distintivo de santidade/sacralidade e/ou pureza, logo Josefo estava falando de um corpo santo ou sagrado para uma vida melhor. Tanto este corpo especial se faz necessário, pois, caso fosse um normal (ainda que sadio), não poderia ser um prêmio aos justos, já que nas próprias palavras de Josefo: “(…), pois é verdade que a alma, por estar unida ao corpo, fica sujeita a misérias, e não é outra vez liberta disso senão pela morte (…)” (Contra Apion, II, 25). Esta forma de retorno à vida atribuída aos fariseus por Josefo guarda similaridades com o que se chamaria “ressurreição”, na literatura rabínica e doutrina neotestamentária do ex-fariseu Paulo de Tarso. Tanto Guerra Judaica III, VIII, e Contra Apion, II, possuem a expressão “ciclo(s) dos tempos, das coisas”. Apesar de a tradução inglesa whistoniana colocar “ciclos” (plural) em “Guerra..”, em ambas as passagens o original grego é εν/εχ περιτροπης, i.e., uma expressão singular. O historiador Steve Mason, em sua obra Flavius Josephus: on the Pharisees, assim comenta o uso flaviano do vocabulário grego:

Portanto o uso de περιτροπη, περιτρεπω, e εχ περιτροπης em Josefo e outra literatura grega permite tanto a ideia de “revolução contínua” e a de “transformação súbita, inversão, ou sucessão”. Mas o εχ περιτροπης de Josefo envolve o αιωνες. Apesar de αιων poder significar períodos de variável comprimento, de um período de vida a uma época, ele praticamente sempre tem o sentido de um concebível, determinado período de tempo. E esta observação parece suportar a ideia de sucessão ou mudança para εχ περιτροπης, em vez de uma “revolução contínua”: não que todos os éons de alguma forma façam um ciclo simultaneamente, mas sim que quanto uma era chega ao fim, a próxima começa. Eu proponho, portanto, a tradução: “na sucessão (ou mudança) das eras”

p. 168

Expressão análoga em Guerra Judaica VI, cap. V, onde narra a destruição do segundo templo:

Então Tito recuou para dentro da torre Antônia e decidiu tomar de assalto o Templo no dia seguinte, no começo da manhã, com todo o seu exército, e acampar em torno da Santa Casa; mas, com relação a esta Casa, Deus tinha determinado a muito tempo condená-la ao fogo; e agora que o dia fatal chegara, de acordo com o ciclo dos tempo [χρονων περιοδιος]: era o décimo dia do mês de Lous, [Av], sobre o qual ela fora anteriormente queimada pelo rei de Babilônia.(…)

Esta data concorda com Jr 52:12 e discorda de 2 Rs 25:8 (que seria o sétimo dia), o que importa é que Josefo lança e ideia de a destruição do segundo templo já estar definida para um plano “de acordo com o ciclo dos tempos”, sendo uma passagem (trágica) para o povo judeu.

Esta é uma última, porém suspeita, passagem de Josefo:

Este é o discurso sobre o Hades, onde as almas de todos os homens estão confinadas até a época adequada, que Deus determinou, quando ele fará a ressurreição de todos os homens dos mortos, não obtendo a transmigração de almas de um corpo para outro, mas erguendo novamente aqueles mesmos corpos, que vós gregos, vendo serem dissolvidos, não acreditam [em sua ressurreição]. Mas aprendei a não descrer dela; pois embora acreditais que a alma é criada de acordo com a Doutrina de Platão, e apesar de ser feita imortal por Deus,(…), não sejai incrédulos; mas acreditai que Deus é capaz, quando ergueu para a vida aquele corpo que foi feito como um composto dos mesmos elementos, de fazê-lo imortal; já que não se deve dizer que Deus é capaz de realizar algumas coisas e incapaz de outras. Temos, pois, acreditado que o corpo se erguerá novamente; mesmo que esteja dissolvido, ele não pereceu; pois a terra recebeu seus vestígios e preservou-os; e embora eles sejam como semente e estejam misturados aos solo mais fértil, florescem, e o que foi semeado na verdade foi grão nu, mas ao poderoso som do Senhor o Criador, germinará e será erguido numa condição revestida e gloriosa, ainda que tenha sido dissolvido e misturado [com a terra]. (…) Mas no que se refere aos injustos, eles receberão seus corpos não transformados, não libertos de suas doenças e desequilíbrios, nem feitos gloriosos, mas com as mesmas doenças de quando morreram; e assim como eles estavam em sua descrença, assim estarão quando forem acuradamente julgados. (…)

Discurso aos gregos sobre o Hades

Note que aqui há uma contradição com as passagens anteriores, agora com uma ressurreição universal, sendo a dos maus para o juízo, um tanto em contradição com os extratos anteriores. O “Discurso aos gregos…” merece uma ressalva: atualmente duvida-se que ele tenha sido realmente uma obra de Josefo.

Em suma, três são as características do Corpus Flavianum quanto ao pós-morte farisaico que o distinguem de uma doutrina de “transmigração de almas” (5):

  1. A volta ao corpo é uma recompensa, não uma punição, regeneração, aprendizado ou missão. Em princípio, ela se daria apenas para os justos, tendo um paralelo flagrante com o pseudoepígrafo 2 Mc 7:9, 14
    Tu, celerado, nos tiras desta vida presente. Mas o Rei do mundo nos fará ressurgir para uma vida eterna [εις αιωνιον αναβιωσιν ζωης ημας αναστησει], a nós que morremos por suas leis (…)
    É desejável passar para a outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de um dia ser ressuscitado por ele. Mas a ti, ao contrário, não haverá ressurreição para a vida!
    ”;
  2. a natureza do corpo futuro é distinta daquela do corpo anterior;
  3. a volta à vida é um clímax a se dar num mundo vindouro, estabelecido pelo uso do singular na narrativa, não algo cíclico. A estadia no céu não é o ápice disto.

Na conclusão de Mason (6):

A forma de reencarnação atribuída aos fariseus por Josefo, portanto, suporta muitas similaridades com o que chamaríamos de ressurreição – uma doutrina farisaica bem atestada pela literatura rabínica e no Novo testamento. Uma leve dificuldade surge, talvez, com o uso de Josefo do adjetivo ‘ετερον [outro] para σομα [corpo], que parece conflitar com a costumeira ideia judaica de que na ressurreição os corpos dos mortos se reerguem. Não se deve, porém, ler demais nisso, já que Josefo deixa claro que o novo corpo será diferente do antigo com respeito a sua “santidade” (cf. ‘αγνος) uma visão compartilhada em certo grau pelo ex-fariseu Paulo (I Cor 15:35 ss). Em qualquer caso, não há nenhuma questão em Josefo quanto a repetidas mudanças de corpo humano (ou animal) para outro.

p. 169

Notas:

(1) De fato, as chances de haver confusão são grandes, se não fossem certos pormenores:

Josefo também afirma que os fariseus diferem dos saduceus nesse ponto, em duas das passagens em que ele apresenta o farisaísmo como uma espécie de escola filosófica grega, conhecida por seus leitores greco-romanos (G.J. 2.8.14 parágrafo 163; Ant. 18.1.3 § 14). Mais especificamente, os fariseus assumem a coloração dos estoicos. (cf. Vida § 12). Nessas duas passagens, Josefo diz claramente que os fariseus, diferentemente dos saduceus, acreditam na imortalidade da alma, em algum lugar de recompensa e castigo após a morte e – pelo menos em uma delas – na ressurreição do corpo (G.J 2.8.14 § 163, embora os leitores gentios de Josefo devam ter entendido que sua linguagem ambígua se referia à reencarnação) (n. 142).

[Meier, cap. XXVIII, p. 48]

Eis a nota 142, p. 102:

Ver Mason, Flavius Josephus on the Pharisees. 156-69. Na verdade, há apenas uma tênue linha entre certos conceitos de ressurreição dos corpos e de reencarnação. Contudo, a linha de pensamento em G.J. 2.8.25 § 163 (*) sugere uma passagem definitiva e de uma vez por todas da alma de uma pessoa boa para um novo corpo, como forma de recompensa eterna (em oposição ao “castigo eterno” que “os ímpios sofrem”). Isso é notavelmente diferente de pelo menos algumas ideias sobre reencarnação, que muitas vezes envolvem a possibilidade de se passar por uma longa sucessão de muitos corpos, como parte de um processo de purificação ou punição, enquanto se segue no objetivo desejado de existência incorpórea ou mesmo de total extinção da pessoa humana com sua consciência individual.

Não apenas os gentios de antigamente podiam confundir habeas corpus com corpus Christi, os espiritualistas de hoje, também. A diferença é que não o fazem mais por um equívoco ao identificar uma crença desconhecida com as suas próprias e, sim, para se municiarem em embates apologéticos.

(*) Observação: No texto da nota 142, a referência à Guerra dos Judeus parece ter sofrido um erro tipográfico.

(2) Na tradução de W. Whiston, “[the good souls] shall have power to revive and live again“, e em Feldman, “receive an easy passage to a new life“.

(3) Do prefixo ανα (“para cima”, “de novo”, “de volta”) e βιοω (“vivo”). O portal Perseus traz dois dicionários com esse verbo: o de Henry George Liddell e Robert Scott e uma versão simplificada dele. No verbete do primeiro, somos informados de uma variante popular cuja primeira pessoa do singular do presente é αναβιωσκομαι e o léxico grego-português ao final do segundo volume da gramática de Murachco traz como significado, para essa variante, “ressuscito”.

(4) Mason reconhece o sentido de αναβιοω como sendo “ressuscitar”, dentro da obra josefiana (e inclusive 2 Macabeus 7:9), mas não aceita muito bem a evidência externa da literatura grega pagã. Questiono um pouco isto, pois há vasta evidência externa. Além do trecho de A República, de Platão, que relatei, há vários outros testemunhos disto, todos acessíveis no Portal Perseus, por exemplo: Hípias Maior e Fédon, de Platão; Descrição da Grécia, livro IV, cap. 19 e 26, de Pausânias; Discurso I, seção 125 de Andrócides, e outros (link alternativo para elas). Uma coisa, porém, concordo com ele, muitos judeus ou judeu-cristãos ao escreverem em grego tomavam empréstimos do paganismo para expressar características própria de sua religião, o que torna um erro querer que certas expressões tenham seu significado pagão em textos neotestamentários ou pseudoepígrafos. Voltarei a isto em Tito 3:5.

(5) Uma das principais traduções de Flávio Josefo para a língua inglesa são The Works of Flavius Josephus de William Whitson, que data de 1737 e tornou-se extremamente popular nos séculos XVIII e XIX e já é de domínio público. Contudo, seu estilo é arcaizante à la King James Bible, usou manuscritos tidos hoje como de má qualidade e privilegiou o estilo à precisão. No século XX, surgiram novas traduções, como as da Loeb Classical Library, feitas a partir de manuscritos melhores, com uma linguagem moderna e mais rigor, apesar do estilo seco e frio. Nas obras de Josefo dessa coleção bilíngue de clássicos greco-latinos, destaca-se o nome de Henry St. John Thackeray, que retraduziu boa parte das obras de Josefo, até sua morte em 1930. Thackeray, contudo, foi um dos divulgadores da ideia de que os fariseus eram crentes na metempsicose, um equívoco que um dos continuadores de seu trabalho apontou e corrigiu:

Thackeray, Selections [from Josephus], p. 159 dá uma referência cruzada para B.J. [Bellum Judaicum – “Guerra dos Judeus”] iii. 374 (“suas almas … são designadas ao mais santo lugar no céu, de onde, na revolução das eras, retornam para encontrar em corpos castos uma nova morada”), na qual Josefo discursa para seus homens sobre o mal do suicídio. Essa passagem em B.J. iii. 374, diz Thackeray, contém uma referência à metempsicose. Mas nossa passagem [Antiguidades Judaicas xviii. 3], a passagem em B.J. e aquela em Contra Ap. ii. 218, que Thackeray cita em sua nota sobre B.J. iii. 374, não se refere à metempsicose, que não era um princípio dos fariseus, mas à crença na ressurreição, que era uma doutrina central dos fariseus. Cf. 2 Mac vii.9, que emprega αναβιωσιν, o substantivo correspondente ao verbo αναβιοω (a palavra usada por Josefo em nossa passagem) em clara referência à ressurreição.

Feldman, Jewish Antiquities: Books XVIII – XIX, p.13

Ou seja, Mason não foi o único nem o primeiro a perceber o engano, dado que a primeira impressão da tradução de Feldman é de 1965.

(6)Mason considera a ressurreição um tipo de reencarnação que se dá uma única vez, o que tem até sentido.

Para saber mais

– Josefo, Flávio; Textos em inglês e grego do portal Perseus.

_____________; The Works of Flavius Josephus, as clássicas e já de domínio público traduções inglesas de William Whiston.

_____________; Jewish Antiquities: Books XVIII – XIX, tradução inglesa de Louis H. Feldman, Loeb Classical Library, Vol. 433, Harvard University Press, 2000.

– Mason, Steve; Flavius Josephus – on the Pharisees, Brill Academic Publishers, 2001, cap. VI, pags. 156-170.

– Meier, John P.; Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico, Vol. III, livro II, Imago, 2004.

– Murachco, Henrique; Língua Grega – Visão Semântica, Lógica, Orgânica e Funcional, Vol. II (Prática), Vozes.