Índice
- Apresentação
- Original, mas nem Tanto
- Qumran: a Encruzilhada das Versões
- Septuaginta: em Busca da “Vorlage”
- Versões Latinas: Tardias, mas com Valor
- O Original: as Dificuldades da Crítica Textual
- Para saber mais
Apresentação
Na busca de textos de maior “autoridade”, procura-se sempre promover sua base escrita e demolir a do adversário. A perda dos manuscritos originais joga uma verdadeira névoa sobre como foi a redação original e seu verdadeiros e profundo significado. Mudanças, acréscimos e mutilações pios, erros de transcrição são fatos presentes neste verdadeiro processo de investigação que é a reconstituição. Um subproduto desta pesquisa é a desconstrução de verdadeiros mitos que permeiam o imaginário de exegetas de plantão. A saber:
- Somente a Bíblia hebraica é fiel ao original. O resto está sujeito a erros de traduções de deturpações;
- A Septuaginta (LXX) é uma tradução mal feita, mutilada e corrompida do texto hebraico. Ou seja, um lixo;
- A vulgata é uma tradução de tradução, portanto é pior ainda;
- Da Vetus Latina, nem se fala.
Para começo de conversa, seria mais correto usar o termo “versão” no lugar de tradução, pois nem sempre um livro é uma tradução pura e simples de outro. Ao contrário do que muitos pensam, A LXX não é uma tradução do texto hebraico que conhecemos, nem a Vulgata é uma tradução dela. Bem, vamos por partes.
Original, mas nem Tanto
Todos os textos hebraicos modernos se baseiam em um trabalho iniciado após a destruição do templo de Jerusalém e continuado ao longo da Idade Média por sábios judeus conhecidos por “massoretas”, daí o nome “texto massorético” (TM). Fizeram a tarefa de fixar o texto consonantal existente em diversos manuscritos (as vogais não são grafadas) e adicionar um sistema de pontuações e acentos sobre as letras para indicar a pronúncia que, até então, era passada pela tradição oral. Tem grande autoridade, mas não é possível precisar até que ponto são fiéis a um suposto texto original. Já no século II d.C, existiam diferenças entre vários manuscritos, além erros de copistas ou modificações de amanuenses (cf. [Barrera, IV.1, p. 439ss]). A maioria, porém, são fragmentos de dimensões reduzidas que tinham escapado a um processo de fixação já em andamento. Um complicador a mais para os pesquisadores é o antigo hábito as comunidades judias de queimar ou enterrar seus manuscritos velhos assim que chegavam cópias novas. Como resultado, faltam manuscritos de grande porte dos mais antigos. O mais velho dos manuscritos em que se baseiam a maioria das bíblias impressas modernas é o códice de S.Petersburgo, do século X, distando cerca de 1500 anos de seus supostos originais. Como manuscritos recentes podem preservar textos antigos fielmente e levando em conta que o trabalho dos massoretas foi bem metódico, mais o fato de a fixação do texto consonantal ser bem mais antiga que a do vocálico, pode-se retroceder a tradição destes sábios a até 500 anos após a redação da maioria do Antigo Testamento (AT). Antes disto, havia a possibilidade de flutuação no texto, suspeita confirmada pela descoberta dos Manuscritos do Mar Morto (Qumran). Antes deles, as únicas evidências de grande porte que se tinha de modificações do texto hebraico pré-massorético eram o pentateuco samaritano (PS) e a LXX que eram vistos com certa ressalva por serem testemunhos indiretos, quer na datação recente das cópias do PS ou no fato da língua ser diferente na LXX (o grego). Com Qumran, foi patente que houve uma evolução do cânon. Por exemplo, O livro de Jeremias é cerca treze por cento menor que o do TM. Fato parecido ocorre na LXX. O Pentateuco, apesar de sua grande estabilidade textual, permite disparidade grandes como Dt32,43. Este trecho é mais breve que o da LXX, mas o manuscrito qumrânico 4QDtq conserva o texto mais amplo, refletindo a versão grega:
TM | LXX/4QDtq |
---|---|
Aclamai, nações, a seu povo, porque ele vingará o sangue e expiará |
Aclamai, céus, a seu povo, e fazei cair diante dele todos os deuses porque ele vingará o sangue de seus filhos, devolverá a vingança contra seus adversários e lhes dará o troco, |
Fonte [Barrera, IV.1, p.448]
Disparidades antes tidas como má tradução ou adulteração proposital se tornaram apenas indício de fontes distintas. Vale lembrar, porém, que nem sempre Qumran destoa do TM, muito pelo contrário, indica muitas vezes fixação adiantada do texto.
Em resumo: o TM está escrito na mesma língua do original. Só que não podemos dizer com precisão o quanto ele tem do original.
Qumran: a Encruzilhada das Versões
Na antiga biblioteca da comunidade essênia de Qumran foi encontrada uma multitude de manuscritos de liturgia comunal, comentários, literatura apocalíptica e a mais antiga coletânea de texto hebraicos da Bíblia, antecedendo em cerca de um milênio os melhores manuscritos massoréticos. Esta descoberta (1947) revelou uma pluralidade de textos no período intertestamentário que já era suspeitada antes de sua descoberta. Na antiga comunidade do Mar Morto, tradições textuais distintas coexistiam lado a lado, evidenciando uma época em que padronização do TM ainda não havia se imposto. O especialista Emanuel Tov dividiu em cinco grupos
- Textos escritos nas práticas de Qumran: revelam o estilo de ortografia, morfologia e práticas escriturais de uma escola provavelmente pertencente à própria comunidade. Em gera, aborda o texto bíblico de forma livre, com muitas adaptações (por exemplo, às mudanças gramaticais que o hebraico sofrera [Barrera]), correções e até erros. Alguns textos são transcrições de proto-massoréticos (grupo 2), mas a maioria foi transcrita de textos de identidade própria (grupo 5). Corresponde à cerca de 20% dos textos;
- Protomassoréticos: possuem quadro consonantal similar ao TM, porém até um milênio mais antigos que os códices medievais da Masorah. Não possuem nenhuma característica especial além da concordância com o TM;
- Pré-Samaritanos: estes textos refletem características do Pentateuco Samaritano, porém sem as adaptações ideológicas vindas posteriormente. Este grupo também abrange textos não-samaritanos que comportam um comum e exclusivo caráter textual. A principal característica é a preponderância de leituras de harmonização. Corresponde a cerca de 15% dos textos;
- Textos próximos a fonte hebraica da LXX: Não há um texto em Qumran que seja “exatamente” igual a “vorlage” da LXX em toda a sua extensão. Alguns, porém, são muito próximos à LXX, seja no arranjo dos versos e extensão. Certos textos, como 4QSama, possuem proximidade com a LXX (e a recensão luciânica), mas também exibem características próprias que o levam a ser classificados no grupo 5. O grupo 4 abrange certa de 5% dos textos;
- Textos não-alinhados: textos que não são exclusivamente próximos de nenhuma tradições consideradas acima são, portanto, considerados independentes. Eles concordam algumas vezes com o TM contra outros textos ou com o PS e/ou LXX, mas discordam destes em outros trechos. Ademais, contem, também, leituras que não pertencem a nenhum outro texto ou grupo. É uma característica importante quando se tenta determinar a amplitude textual à época do Segundo Templo.
Qumran contribuiu em muito para o conhecimento acerca do texto bíblico nos tempos de Jesus. Até sua descoberta em 1947, o estudiosos baseavam suas análises principalmente em manuscritos medievais. O testemunho de Qumran enriqueceu nosso conhecimento nestas áreas:
- Leituras anteriormente desconhecidas nos ajudaram a conhecer melhor muitos detalhes dos textos bíblicos. Entretanto, apesar de antigos, os manuscritos do Mar Morto ainda estão muito longe de quando os textos originais foram definidos;
- A variedade textual refletida nos cinco grupos acima provém um bom panorama da condição do texto bíblico no período intertestamentário;
- Os manuscritos fornecem indiretamente informação sobre a cópia de textos e sua transmissão durante esse período;
- A confiabilidade das antigas traduções, especialmente a LXX, é fortalecida pelos textos qumrânicos. Ela é uma importante fonte de pesquisa, mas, por estar em grego, sua matriz hebraica tem de ser reconstituída a partir dessa língua. A recomposição de tantos detalhes é agora embasada pela descoberta de leituras idênticas em hebraico. Vide o exemplo de Dt 32:43 no tópico acima.
Septuaginta: em Busca da “Vorlage”
A versão dos “setenta” ou Septuaginta (LXX) data do século III a.C. Foi feita por sábios da comunidade judaica de Alexandria no Egito, a pedido de Ptolomeu Filadelfo. Diz-se que setenta ( ou setenta e dois) eruditos se isolaram em cabanas separadas e só saíram após setenta dias, quando concluíram juntos trabalhos de tradução idênticos. Nada verossímil, mas a lenda ficou. Parece que só o Pentateuco foi incluído no projeto original, sendo os demais livros do Antigo Testamento adicionados posteriormente. A rigor, poder-se-ia afirmar que o que se conhece por LXX “não existe”. O que se tem é a chamada “tradição dos setenta”, um conjunto dos mais textos do AT mais antigos escritos em grego koiné, a então língua franca do mediterrâneo oriental, anteriores traduções subsequentes. Foi feita por diversos autores, que variavam em estilo e grau de liberdade na tradução. Ela não foi estática, teve desenvolvimento complexo, sofrendo com erros de copistas e revisões. Duas famosas reavaliações (ou retraduções) foram as feitas por Áquila, discípulo de Rabbi Akiva, e a hexapla do teólogo Orígenes. Uma das hipóteses de reconstituição segue no quadro abaixo:
Extraído de An Invitation to the Septuagint
Por ser uma tradução, o valor da LXX como fonte de crítica textual era extremamente subestimado. Quando Léon Denis, no segundo capítulo de seu Cristianismo e Espiritismo, escreveu: “Mas já desvirtuado pela versão dos Setenta, o Antigo Testamento não refletia, nos últimos séculos antes da vinda de Cristo, mais que uma vaga intuição das verdades superiores”; estava apenas reproduzindo um pensamento corrente da época. Porém, reviravolta profunda se deu com a já mencionada descoberta dos Manuscritos do Mar Morto. Diversos paralelos entre ambas as coletâneas frente ao TM revalorizaram o testemunho da versão grega. Surgiu uma nova vertente entre os historiadores que atribui a origem da LXX a uma antiga versão hebraica, agora perdida. Seria possível reconstituir este original judeu da LXX (Hebrew Vorlage) a partir do que se tem hoje? Karen Jobs e Moisés Silva fizeram uma interessante analogia no capítulo 6 de seu An Invitation…
Talvez uma simples ilustração ajudará a esclarecer a natureza do desafio. Estações de tratamento de água deveriam prover uma água que fosse 100% pura, mas isto não é factível. O obstáculo, contudo, não é razão para parar de se tratá-la ou considerar a tarefa de importância secundária. Desde que sejamos capaz de determinar níveis exequíveis e seguros de contaminação, é certo e necessário fazer deles a nossa meta.
Isto não quer dizer que se deva usar a Vorlage como pura e simples corretora do TM, pois esta também contém corrupções e o TM tem de ser usado para corrigi-la. Mais amplamente, os quatro “pesos-pesados” da pesquisa exegética da atualidade – MT, LXX. Qumran e PS – tem cada um o valor na reconstituição de um possível ancestral comum; tal como biólogos trabalham fósseis na reconstituição filogenética de sua evolução. J. Barrera assim descreveu o desafio da restauração:
Um texto reconstituído criticamente pode ser, e é muitas vezes, mais autêntico , quer dizer, está mais próximo do original que um texto documentado. A reconstituição de textos envolve problemas similares aos da restauração artística: qual “Sistina” é mais verdadeira e seria reconhecida por Michelangelo como própria, a que contemplávamos até alguns anos atrás, enegrecida pela tempo, ou a que hoje se oferece, remoçada de colorido?
A crítica de épocas passadas pecou no desprezo pelo tardio e tradicional (= o “massorético”), pelo canônico e confessional. Uma grande parte da crítica atual peca, ao contrário, pelo abandono da diacronia, por não querer enfrentar o desafio do original e da distância que media entre o original e o tradicional. Justamente esta distância é, contudo, o fator movente de todo processo hermenêutico, que permitiu libertar os textos do acúmulo de séculos para deixá-los contar sua própria história.
[Barrera, IV.1, p. 462]
Um exemplo interessante de como “testemunhos indiretos” podem acabar tendo um valor inesperado pelo fato de terem se tornado únicos: O discurso original que Albert Einstein pronunciou em alemão por ocasião da entrega do Nobel de física de 1921 se perdeu. Por coincidência, naquela época encontrava na universidade de Kioto, Japão, onde fez o mesmo discurso, só que desta vez ele foi anotado por um discípulo nipônico que o publicou, mais tarde, em japonês. Este texto foi traduzido para o inglês em 1982 (Physics today 8, 1982) e desta versão inglesa que se fez a tradução para o alemão (1983). Certo que a forma deve estar diferente do original, mas a importância do conteúdo vale a atenção. O mesmo pode se dizer de versões latinas e gregas preservam um texto hebraico diferente do tradicional massorético. Os originais se perderam e estas traduções se tornaram a única fonte para traçar formas antigas do texto bíblico.
Independente da apologia, o desprezo do tradutor espírita Severino Celestino da Silva pelo antigo e não hebraico pode ser uma fraqueza de sua obra. Só dá valor ao texto grego ou latino na medida em que (pensa que) ele o confirma no TM. Lembra da dobradinha ex 20:5, 34:7? Em seu Analisando as Traduções Bíblicas, ele desconsidera todo a importância de crítica textual da LXX, para não dizer que até a deprecia:
O talmude comenta que “o dia da tradução foi tão doloroso quanto o dia em que o bezerro de Ouro foi construído, pois a Torá não poderia ser acuradamente traduzida’. Alguns rabinos disseram que ‘as trevas cobriram a terra por três dias”, quando a LXX (Setenta ou Septuaginta) foi escrita”[grifos do autor]
Analisando…, cap II, p.44
Opiniões feitas por homens de fé e não por verdadeiros historiadores críticos, numa época em que o judaísmo já estava em rixa com o cristianismo, que adotara a LXX, são um tanto suspeitas. Como o próprio Severino C. da Silva observou, o famoso filósofo e teólogo Fílon defendeu a “inspiração” desta versão. Conversa de detrator? Não, pois gente gabaritada e insuspeita também concorda comigo nesse aspecto e, ao contrário de pesquisas ao estilo recorte/cole, dá referências precisas:
O abandono da LXX. Os primeiros cristãos muito naturalmente escolheram a LXX como sua Sagrada Escritura e fonte para textos adicionais, visto que grego era sua língua. Como resultado, a LXX influenciou-os não apenas pelo conteúdo da tradução em gera, mas também por sua terminologia. O frequente uso da LXX levou os judeus a se dissociarem dela e a começar novas traduções. À luz disso, deve-se ver as crítica a LXX em Sof. 1.7: “Certa vez cinco anciãos escreveram a Torá em grego para o Rei Ptolomeu e tal dia foi tão agourento para Israel como o dia em que o bezerro de ouro foi feito, já que a Torá não poderia ser traduzida acuradamente”.
[Tov, cap. II, p. 143]
A referência que Tov dá vem de Massekhet Soferim, membro de um conjunto de tratados da literatura rabínica conhecido como “pequenos tratados” que é editados junto com o Talmude babilônico (sim, convém a boa pesquisa dizer qual talmude é) por sua estrutura semelhante, porém Tov e mais alguns não os consideram parte do cânon talmúdico. Além disso, possíveis fontes talmúdicas negativas podem ser confrontadas com outras injunções (só que, desta vez, diretas) do mesmo livro:
[Tov, cap. II]
Não há nenhuma diferença entre os Livros Sagrados e Thephelin e Mezuzoth, exceto que o primeiro citado pode ser escrito em qualquer linguagem, mas o último em caracteres assírios, apenas. Rabi Simeon b. Gamaliel diz: “A permissão para escrever os Livros Sagrados foi limitada à língua grega, somente.”
(…)
Disse R. Judas: “Os sábios permitiram escrever em grego apenas o Pentateuco, mas nada além. E isto também foi permitido somente por causa do que aconteceu ao rei Ptolomeu, como se segue: ocorreu ao rei Ptolomeu de trazer setenta e dois anciãos de Jerusalém e colocou-os em setenta e dois recintos separados, não os informando do propósito pelo qual ele os trouxera. E em seguida ele entrou em cada um delas e lhes disse: Traduza-me a Torá de Moisés de cor. E o Sagrado, louvado O seja, enviou ao coração de cada um conselhos, e todos eles concordaram em ter uma só inspiração (mind) e mudaram conforme o seguinte:(…)
Fonte: Talmude Babilônico – Tratado Megilla, cap. I
e vem uma sequência de diferenças entre o TM e a LXX.
Com isto fica claro que, para alguns talmudistas, a língua grega gozava de autoridade teológica, ao menos até a destruição do segundo Templo ( cerca de 70 d.C). R. Judas, inclusive, sustenta a versão lendária da origem da LXX. De fato, porém, a versão dos setenta começou a cair em descrédito com o os judeus tempos depois; como um reflexo da apropriação que os cristãos fizeram dela. De início, foram criadas novas traduções extremamente literais, como a de Áquila, que resultava em um grego muitas vezes esdrúxulo, ininteligível para quem desconhece o hebraico. Por fim, o dia de festa que era o aniversário da tradução da Torá tornou-se um dia de luto, devido aos danos que ela causou ao judaísmo (Megillat Ta’anit 13, segundo [Barrera, pág. 150]).
Tanto a LXX quanto suas revisões foram trabalhos feitos por judeus e para judeus; gente que se empenhou em verter as peculiaridade de uma língua para outra. Áquila, por exemplo, reproduziu o neogilismo da primeira palavra do Gêneses – Beréshit (No princípio), fusão de preposição be com o substantivo réshit (começo, princípio, parte inicial) – com um novo neologismo grego: Entête (En tête). A alegação, portanto, de que o valor exegético da versão hebraica foi irremediavelmente perdido na tradução é fraca e não muito defendida por estudiosos:
A denominada “escola das religiões” prestou grande atenção a este transvase de expressões e conceitos da Bíblia hebraica para a grega, segunda uma linha de estudo desenvolvida por G.Betram e aplicada no novo Dicionário teológico do Novo Testamento(…). É evidente , por ex., a repugnância dos tradutores em admitir expressões gregas que tivessem ressonância pagã. A antiga tradução latina mostra um similar rechaço. A palavra hebraica “torah” é traduzida correntemente pelo termo grego “nómos”. Todavia o conceito hebraico de “lei” é muito mais amplo que o expresso pelo termo grego; uma equivalência mais apropriada poderia ser “didakhê”, “ensino”, que é justamente o título de um importante escrito cristão dos primeiros tempos. A eleição de “nómos” pôde conduzir a interpretações excessivamente legalistas ou nomistas da lei hebraica e inclusive do própria judaísmo como um todo.
É preciso, contudo, recordar as críticas de J. Barr ao citado dicionário teológico do NT, no sentido que há de se desconfiar, em princípio, dos saltos demasiado rápidos para conclusões teológicas, desprovidas de base linguística suficiente. Assim, por ex., Bertram desenvolvia as supostas implicações teológicas da versão do epíteto divino hebraico “šadday” (“o onipotente”) para o grego “ho hikanós”. Na realidade, todavia, o tradutor grego não fez mais que interpretar etimologicamente o termo “šadday” como “še-day” (“o que é suficiente”). A versão grega representa uma forma helenizada da Bíblia Hebraica, porém realizada por e para judeus e à maneira judaica. A tradução das Escrituras em grego judaizou a koiné em maior medida do que helenizou o judaísmo. Carregou de ressonâncias tipicamente israelitas termos até então de sentido profano e pagão(…)
Barrera, Bíblia Judaica…, parte III, cap III.
Versões Latinas: Tardias, mas com Valor
Durante o império romano, o grego foi a língua dominante no cenário cultural do Império Romano, sendo a língua franca do oriente e das classes abastadas do ocidente. Até mesmo as classes mais pobres romanas travaram com ela através de muitos escravos importados do oriente. Importantes escritores cristãos do ocidente como Clemente de Roma, Hipólito, Irineu e Hermas também escreveram neste língua. Exceção talvez feita ao norte-africano Tertuliano, que era capaz de se expressar tanto em grego como em latim. Apesar de não haver indícios do uso do latim no culto sinagogal da África Romana, algumas comunidades judaicas da época deste escritor falavam seguramente o latim. Pode-se supor que versão latina do Pentateuco tenha tido efetivamente origem judaica.
O termo Vetus latina (Antiga Latina) não se refere a uma tradução única e completa da Bíblia, porém a um conjunto de traduções anteriores à Vulgata de Jerônimo (final séc. IV). É possível que alguns estágios sejam posteriores a Jerônimo. Apesar da falta de método unificado de tradução que a poria em desvantagem frente à Vulgata, a Vetus Latina (VL) possui qualidades que a Vulgata não pode oferecer. Em termos linguísticos, a VL foi escrita no vernáculo popular, já mostrando os inúmeros vulgarismos de um latim em plena evolução para o romance, ao passo que a Vulgata, apesar de sua linguagem bem despretensiosa, é gramaticalmente correta. Como crítica textual, ela tem um efeito similar às mais antigas da tradição da LXX: reflete muitas vezes um texto grego do século II, anterior a recensão de Orígenes e de Luciano. Isso supõe um texto muito antigo que goza, portanto, de um considerável valor textual. Por exemplo, o Livro de Jó latino e copta refletem uma forma textual grega mais antiga, da qual não restou manuscritos; A VL do livro de Ester é a único testemunho de outra forma textual grega perdida, com similaridades chamativas com o qumrânico 4QprotoEster, em aramaico.
Apesar destas qualidades, a falta de padronização dos textos da VL, somado a corrupções de cristãos latinos que se achavam capazes de “corrigir” o texto grego com seus conhecimentos, começaram a irritar, a ponto de Agostinho de Hipona se queixar parecer haver tantas versões latinas quanto códices. Neste quadro, entra em cena o erudito Jerônimo que, atendendo a uma encomenda feita pelo papa Dâmaso por volta de 382, iniciou o trabalho o trabalho de retradução do NT. Sua tarefa seria o embrião da versão divulgada ou “Vulgata”.
Quanto a validade do NT da vulgata, Leon Denis atribuiu estas palavras a Jerônimo em seu prefácio à tradução dos evangelhos:
De uma velha obra me obrigais a fazer uma nova. Quereis que de alguma sorte me coloque como árbitro entre exemplares da Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego (…)
Cristianismo e Espiritismo, cap II
E o texto prossegue com um relato de Jerônimo quanto ao seu receio de que algum leitor pense que ele adulterara o texto, por ele se diferir do que ele está acostumado. O fato de ser uma profunda revisão a torna ruim ou venalmente forjada? Denis ainda insere depreciação nos adjetivos: “corrigida, aumentada e modificada”. Modificar faz parte de qualquer trabalho de correção. Isto só seria grave se as modificações totalmente inventadas, sem nenhuma base grega ou latina. Em outras ocasiões Jerônimo se coloca mais confiante como “revisor” do NT, tal como em sua carta CXII a Agostinho, cap VI ( ou LXXV na numeração deste último): “E já que aprovas meus trabalhos na revisão da tradução do Novo Testamento, como dizes(…)”; ou a carta LXXI, 5 a Lucínio: “Eu restaurei o NT à autoridade da forma grega original”. Denis continua a crítica alegando que as novas correções da Vulgata tiveram de ser feitas ao longo dos séculos. Não há nada de desqualificador nisto! O conhecimento se acumula com o tempo e ferramentas que Jerônimo não teve hoje estão disponíveis. Sem contar que várias cabeças analisando têm, juntas, mais potencial que a tarefa de “lobo solitário” dele.
Da obra de (Leite):
Foi, pois, o texto “exclusivo, oficial” da Igreja Católica, até o início do nosso século [século XX], quando, com o retorno ao estudo das línguas orientais, ressurgiu o desejo e necessidade de novas investigações para dirimir dúvidas em certos pontos.
Em 1907 Pio X confiou aos monges beneditinos o encargo de fazer os estudos preparatórios para uma nova edição da versão das escrituras. E com Pio XII começaram a aparecer livros litúrgicos com a nova tradução, feita segundo os preceitos de crítica científica e com recursos dos métodos modernos.
O trabalho foi concluído em 1987 (com exceção de 1-2 Mac, ainda em andamento), com o título de “Neo-Vulgata”.
A tradução AT feita por Jerônimo foi um trabalho posterior, iniciado por volta de 392. À exceção dos livros da Gênese, Salmos, Tobias e Judite, Jerônimo se baseou em versões gregas de tradutores judeus, isto é, Áquila, Teodocião e Símaco. Tais versões já refletiam uma fonte hebraica bem próxima do TM medieval, com poucas alterações. A Gênese foi, na verdade, uma revisão da VL e os Salmos foram fundamentados na Hexapla de Orígenes. Jerônimo não se dedicou a Tobias e Judite que posteriormente foram importados da VL. Com isso, faz-se necessário distinguir entre a Vulgata e a “tradução jeronimiana”, que abarca apenas os livros que Jerônimo realmente traduziu e revisou.
O valor da Vulgata está no fato de ela ser o amálgama de três tradições. Preserva a VL e suas qualidades, seja nos livros que não foram traduzidos, seja nos comentários de Jerônimo, que ainda a utilizava. Em seus salmos, conserva o testemunho grego do texto hexaplar agora perdido. Permite rastrear as leituras de Áquila e Símaco e, por elas, entender o estado do texto hebraico da época.
Houve um atrito, porém, entre Agostinho e Jerônimo quanto à tradução do AT. Agostinho dava o valor de “inspirado” ao texto grego:
“A meu ver, eu preferiria que nos suprisse com a tradução com versão grega das Escrituras canônicas conhecidas como o trabalho dos Setenta intérpretes. Pois se tua tradução começar a ser mais comumente lida em várias igrejas, será algo doloroso ter que, ao se ler a Escritura, surgirem diferenças entre as Igrejas latinas e gregas, especialmente vendo que a discrepância é facilmente condenada numa versão latina pela produção do original grego, que é uma língua bem amplamente conhecida; visto que, se qualquer um que ficado perturbado pela ocorrência de algo que ele não estava acostumado na tradução tomada do hebreu e alegar que a nova tradução está errada, será difícil, se não impossível, obter documentos hebraicos pelos a exceção da versão possa ser defendida. E quando forem encontrados, quem, tendo tantas autoridades em grego e latim, alegará: declarado estar errado? Além disso tudo, judeus, se consultados sobre o significado de um texto hebraico, podem dar uma opinião diferente da tua: neste caso será como se tua presença fosse indispensável, como sendo o único capaz de refutar seus pontos de vista, e seria um milagre encontrar alguém apto de atuar com árbitro entre tu e eles.
Agostinho de Hipona, Carta LXXI
Ou seja, já no século V, a LXX e o protomassorético haviam tomado caminhos divergentes. Severino Celestino da Silva traz um trecho da carta parecido, mas um tanto “reduzido”:
“A meu ver, eu preferia que tua antes nos interpretasse as Escrituras gregas canônicas que são atribuídas aos setenta intérpretes, pois se há discordância entre o latim das antigas versões e o grego da Setenta, pode-se ir verificar, mas se há dissonância entre o latim da nova versão e o texto da nova versão e o texto conhecido do público, como dar prova de sua exatidão?”
Silva, Analisando …, cap II
Tudo bem que, no fundo, os dois trechos dizem a mesma coisa; ou melhor, quase a mesma coisa. Severino C. da Silva reforça um equívoco ao afirmar que carta testifica “a inexistência de exatidão nas traduções bíblicas”. Nada mais errado. O que a carta escancara é que a fonte da LXX e do TM já tinham se tornado distintas. A exposição integral de Agostinho deixa claro que Jerônimo se baseou em intérpretes hebraicos (ainda que escritos em grego) e que os manuscritos deles já diferiam da matriz hebraica da LXX. Por isso, nem sempre um documento na língua original é garantidamente o original.
O Original: dificuldades da crítica textual
Apesar do otimismo de alguns autores, a crítica textual está longe de ser uma ciência exata. Muitos podem acusá-la até de muita subjetividade. Pode ser, pois suas metodologias não são precisas. De qualquer forma, são um jeito limitado de fazer as coisas que de outro modo seriam piores. Ruim com ela… Comparando diversos estudiosos, concluo que fazer uma declaração categórica de que determinado versículo está mal traduzido e/ou corrompido é algo um tanto temerário às vezes. Dou aqui um pequeno exemplo extraído de Gn 4:8:
E disse Caim a Abel, seu irmão. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.
Afinal, o que Caim disse a Abel? Fica claro a sensação de uma lacuna no texto. Trago quatro autores, cada um com uma opinião distinta:
- André Chouraqui, comenta este versículo (Volume No princípio de sua coleção A Bíblia) com a seguinte nota: “O texto não explicita o que é dito dor Caîn. Os tradutores que completam a frase apenas inventam por sua própria conta”;
- Jobes e Silva em seu An Invitation…<, cap. X, comentam: "A frase διελθμεν εις το πεδιον [vamos ao campo] não possui nenhuma correspondente no TM, mas é atestada no Pentateuco Samaritano, na Peshitta, e na Vulgata. Visto que o hebraico vayyo’mer normalmente introduz o que está sendo dito, muitos estudiosos alegam que o tradutor da Vorlage incluiu as palavras (consonantais) nlkh hsrh, que seria leitura original e que foi acidentalmente omitida numa tradição hebraica bem antiga. Alguns estudiosos assinalam, em resposta, que ao menos três outras passagens onde vayyo’mer é usado sem expressar noção do que é dito. (Ex. 19:25, 2 Cr 1:2 e 32:24 – apesar de não proverem paralelos exatos). Devemos, pois, deixar em aberta a possibilidade que, como uma leitura mais difícil, o TM seja considerado o original e que o tradutor grego (talvez confiando numa tradição antiga) introduziu a sentença para completar o significado”;
- Julio T. Barrera, em Bíblia judaica…, parte IV, cap. III: “O tradutor (do Targum Pseudo-Jônatas) introduziu um desenvolvimento teológico, convertendo Abel na figura do protomártir e Caim no protótipo do apóstata perseguidor dos justos. É possível que a frase ‘Vem, subamos ao campo’, não seja uma inserção ‘targúmica’, mas leitura de um texto hebraico antigo. Esta leitura, perdida no texto massorético, foi conservada em numerosos manuscritos hebraicos medievais e no Pentateuco Samaritano, e aparece refletida no texto da versão da LXX e nas versões Peshitta e Vulgata”
- Emanuel Tov, em Textual Critiscim…, cap. IV-C, ”[após citar uma comparação entre Gn 4:8 no TM e no PS] parece que no TM algumas palavras foram omitidas ( por be‘emsha` pasuq – ‘uma subdivisão no meio de um verso’) talvez as mesmas palavras com as do PS e versões – visto que TM realmente não declara o que Caim na verdade disse.”
Quatro autores distintos, cada um trazendo um pedaço de informação diferente. Curiosamente, aqui o elogiado Chouraqui possui o argumento mais fraco de todos, pois se baseia numa indevida primazia massorética. Mesmo as traduções possuem grande importância e o PS não pode ser considerado “exatamente” uma tradução. Jobes e Silva são mais conciliatórios e expõem um caso em que duas técnicas de crítica textual se opõem: a preferência pela leitura mais difícil (visto uma tendência dos copistas a harmonizar textos difíceis com doutrinas, outros textos mais fáceis ou sua própria intuição) contra a múltipla confirmação por documentos antigos. Barrera coloca mais crédito na múltipla confirmação das versões, sendo alguns documentos hebraicos corroboradores de sua opinião, e Tov lança uma hipótese para a origem da lacuna. A balança pende realmente a existência de uma lacuna no TM, apesar de isto não poder ser atestado de forma absoluta. Por isso quando alguém diz: “há um erro de tradução aqui”, é bom pensar duas vezes antes de ser tão categórico.
Comparação entre o texto massorético (à direita e pontuado) de Gn 4:8-9 com seu equivalente no Pentateuco Samaritano (à esquerda, não-pontuado e transcrito com caracteres hebraicos). Aqui está em evidência a lacuna presente no TM. Esta falta estava no original ou produzida por um acidente de cópia? Nem sempre é fácil estabelecer um juízo.
Para saber mais
– Abegg Jr., Martin, Flint, Peter & Ulrich Eugene – The Dead Sea Scrolls Bible- Harper San Francisco, 1ª ed.
– Barrera, Julio Trebolle – A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã- Editora Vozes, 2ª ed, 1999.
– Jobes, Karen H. & Silva, Moisés – An Invitation to the Septuagint- Paternoster / Baker Academic, 1ª ed.
– Leite, Thomaz Paula; Sabedoria da Bíblia, Ed. Cultrix
– Shoulson, Mark (organizador); The Torah: Jewish and Samaritan Versions Compared, 1ª ed. (editado pelo organizador)
– Tov, Emanuel; Textual Criticism of the Hebrew Bible, Fortress Press, 2ª ed. revisada, 2001.
– Notes on the Septuagint, acessado em 05/09/2016.
Nota: O livro de Barrera, “A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã” consta na bibliografia de “Analisando as Traduções Bíblicas”