O Fascínio das Autoridades (27/05/23)

Índice

O Fim de um Monopólio

Eis um monopólio difícil de acabar.

Em 2008, a revista História Viva inaugurou sua série “Grandes Temas” com o fascículo “Jesus – O Homem e Seu Tempo”. A última página – Livros sobre Jesus – dedicava-se a pequenas resenhas de leituras complementares ao leitor. Uma delas é esta:
Sabedoria do Evangelho, de Carlos Torres Pastorino (Editora Sabedoria, 8 vol.). Tradução e comentário das recentes edições críticas dos antigos manuscritos. Farta documentação. Orientação espírita.

Desconheço a vida dos autores desse último artigo para checar se há alguma predileção e isso não importa porque, justiça seja feita, há outro autores de diferentes orientações. Não deixo, porém, de matutar o que pode ter levado Pastorino a ser incluído, principalmente por uma obra que é muito mais apologia do que crítica textual. Uma razão pode jazer nas restrições que os autores impuseram a própria lista: livros em português e ainda disponíveis no mercado, mesmo que em sebos.

De fato, Pastorino foi pioneiro em trazer e traduzir textos gregos de qualidade ao público brasileiro. Em 1964, quando o primeiro volume de Sabedoria… foi lançado, o Concílio do Vaticano II ainda estava em andamento, a Neovulgata demoraria uns quinze anos para ficar pronta, e a maioria das Bíblias tupiniquins ainda tinha um Novo Testamento era tributário do infame Textus Receptus, de Erasmo de Rotterdam. Se eu fosse um estudante não dogmático de teologia, o material disponibilizado por Pastorino seria uma mão na roda. Pela mesma época, vale assinalar, era fundada a Ação Missionária Evangélica (1965), como uma dissidência com perfil pentecostal de igrejas da Convenção Batista Brasileira, posteriormente renomeada para Convenção Batista Nacional (1967). No ano em que a humanidade pousou na Lua, entrava em operação a ARPANet, com seus quatro primeiros computadores conseguindo se interconectar a grandes distâncias. Dois processos embrionários que se revelariam mais transformadores do que qualquer uma das “revoluções” daqueles turbulentos anos poderia imaginar.

Avançando no tempo… Depois de atingir cerca de 1.000 computadores em 1984, a ARPANet fechou suas atividades em 1990, mas não sem antes deixar sua tecnologia como herança para a rede da US National Science Fundation, criada em 1986. No ano seguinte, esta conseguia ligar 10.000 máquinas, saltando para 100.000 em 1990 e “impressionantes” 6,5 milhões em 1995, quando já se chamava Internet. Nesse mesmo ano, uma pequena “guerra religiosa” se instalou no Brasil, cujo gatilho foi o episódio do “chute na Santa” divulgado em horário nobre pela Rede Globo de televisão em seu embate com a Igreja Universal do Reino de Deus. Alguns de seu templos chegaram a ser apedrejados por papistas mais exaltados, mas uma coisa ficou patente: embora ainda fosse um país majoritariamente católico, essa identidade já não definia mais nosso povo com precisão.

A virada do século parecia promissora para a intelligentsia espírita: o dissidente católico e futuro confrade J.R. Chaves publicava A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência (1998), e em 2000 seria a vez de Celestino Severino da Silva lançar seu Analisando as Traduções Bíblicas. Ambas compilaram muito do que já se falava há tempos “na gringa” sobre teorias conspiratórias acerca da reencarnação no cristianismo primitivo e sua suposta supressão no século VI. Foram um prato cheio na curta e intensa Era de Ouro dos fóruns virtuais que se seguiu – tanto nos espíritas quanto nos evangélicos -, porém também foi a época em que os primeiros “ex-píritas” começaram a despontar nesse meio, como Júlio Siqueira, Carlos “ApodMan” Bella e este anjo caído que vos escreve (1).

Por volta de 2004, fui apresentado a Pastorino no saudoso fórum do Portal do Espírito (acho que pelo forista Paulo Neto) e em um debate em meu primeiro portal com Vítor Moura (então, ainda na ortodoxia). Reparei logo de cara ser um terreno novo, ao qual precisava estudar melhor. Tornei-me um costumaz visitante de uma das lojas da Sociedade Bíblica do Brasil em minha cidade, em busca de lançamentos de coubessem no bolso. Aos poucos, construí meu arsenal com edições críticas Bíblia (Vulgata Jeronimiana), ou do Antigo e Novo Testamento (Septuaginta de Rahlphs e Nestle-Aland, respectivamente), minhas primeiras gramáticas gregas e hebraicas, além de uma chave gramatical do NT. Na cada vez mais pujante internet, encontrei as ferramentas do StudyLight.Org, que me permitiram cruzar dados e analisar frequência e emprego de palavras de um modo impensável até a recente época analógica de pesquisa. A Perseus Digital Library ofertava o mesmo dicionário grego usado por Pastorino, com a vantagem de inúmeros hiperlinks para seus exemplos. Conheci, também, o portal alemão (com texto em inglês) New Testament Transcripts Prototype, da Universidade de Münster, que oferta a digitalização e aparato crítico de diversos manuscritos antigos do NT. Graças e a isso, foi possível este humilde leigo descobrir que alegações deste tipo:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

não se sustentam, pois ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto – o que é outra discussão (2)-, primeiramente esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. Em segundo lugar, no volume inicial de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:

  1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado (3);
  2. Alexandrino: idem;
  3. Vaticano: idem;
  4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
  5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
  6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

Definitivamente, seria impossível checar isso nos anos 60/70 do século XX caso não se fosse membro de um departamento de teologia de uma boa Universidade.

A Internet também trouxe as livrarias virtuais – notadamente a Amazon -, onde consegui livros de crítica textual mais especializados e gramáticas mais aprofundadas para consultas específicas. Na primeira década deste século e a metade da segunda, pude contar com um câmbio mais em conta e uma quantidade menor de responsabilidades pessoais para estudar e adquirir material. Coisas que já não me são mais possíveis. Mas, se você está começando agora, não desanime. O público evangélico cresceu tanto – puxado principalmente pelas denominações pentecostais – que surgiu um mercado para atender suas demandas, e muitos dos livros que tive de importar já têm edições nacionais em português, além de mais livros de domínio público terem sido disponibilizados de lá para cá (4). Hoje, pela própria força dos números, observo que começa a surgir uma elite intelectual evangélica, que daria bem mais trabalho aos apologistas da década de 2000.

O economista Steven Levitt conta em seu livro Freakonomics o interessante “causo” ocorrido nos anos 50 do século XX e protagonizado por um sujeito chamado Stetson Kennedy, que estava determinado a desbaratar a Ku Klux Klan. Ele se infiltrou nela, aprendeu todos os (ridículos) códigos, jargões e ritos da seita, só para vendê-los a emissoras de rádio interessadas em arranjar um novo adversário para ninguém menos que o Superman de sua programação infantil. Quando toda a subcultura da KKK passou a ser alvo de chacotas – feitas até por crianças -, o comparecimento as suas (não mais) secretas reuniões desabou, simplesmente.

Então Levitt faz um paralelo entre esse episódio na luta contra o racismo nos EUA com um fenômeno econômico do começo deste século: a perda do poder de pressão dos corretores de imóveis sobre seus potenciais clientes, graças à ampla disponibilidade de informações sobre casas, apartamentos e terrenos na Internet. Entre ambos, um denominador comum: o poder calcado no controle privilegiado de algum conhecimento. E suas próprias palavras:

Embora bastante diversos, todos esses crimes têm uma característica em comum: foram pecados de informação. A maioria envolveu um especialista, ou uma gangue deles, para introduzir informações falsas ou esconder informações verdadeiras. Em todos os casos os especialistas os especialistas buscavam manter a assimetria das informações tão assimétrica quanto possível.

(. . . )

Você acertou se concluiu que muitos especialistas usam contra você as informações que detêm. Eles dependem do fato de que você não as possui. Ou que fica de tal forma confuso diante da complexidade de operá-las que acaba não sabendo o que fazer com elas. Ou que, impressionado com a competência que demonstraram, não ouse desafiá-los. Se um médico lhe recomendar uma angioplastia – embora algumas pesquisas hoje em dia indiquem que a angioplastia é pouco eficaz na prevenção de infartes -, você provavelmente não suporá que ele esteja usando sua superioridade em termos de informação para conseguir uma boa grana para si próprio ou algum colega. Mas como explicou David, cardiologista do Southwestern Medical Center da Universidade do Texas, em Dalas, ao The New York Times, um médico pode ter os mesmos incentivos econômicos que tem um vendedor de carros, um agente funerário ou um administrador de fundos de investimentos: “Você é cirurgião-cardíaco e Joe Smith, o clínico local, lhe manda pacientes. Se começar a dizer a eles que o procedimento não é necessário, em pouco tempo Joe Smith deixará de mandar-lhe pacientes.”

Cap. II, pp. 72-3

* * *

Um problema óbvio que talvez o leitor esteja pensando é como separar o joio do trigo, neste mundo permeável por fakenews prontas para satisfazer nosso viés de confirmação? Afinal, um mesmo servidor que hospeda uma página educativa de astronomia pode também armazenar um portal terraplanista. Sugiro algumas pedras de toque a seguir.

A Carteirada Intelectual

Àquela altura do seriado, era só bravata.

Certa vez, em um dos poucos debates amistosos que tive, meu antagonista defendeu o livro Reencarnação: o Elo Perdido do Cristianismo com um elogio constante na capa, feito pelo escritor Brian Weiss:

Este é um livro extremamente importante, que apresenta uma verdade profunda, um livro que deverá abrir as mentes e remover os medos.

O problema é que Brian Weiss – autor de Muitas Vidas, muitos Mestres – é médico por formação, especializado em psiquiatria, e ficou famosos por seus relatos do que seriam vidas passadas de seus pacientes, acessadas por meio de regressão hipnótica. Se estivéssemos discutindo os alcances e limites da hipnose em si, tudo bem. Entanto, a proposta do livro de Prophet é uma pesquisa histórica de uma suposta crença da reencarnação entre os primeiros cristãos. Por mais famoso e competente que Weiss fosse em seu campo, sua opinião acerca do livro de Prophet não tem mais peso que a da maioria dos seus leitores. Ou seja, é a opinião de um fã, não de um historiador.

Esse é o exemplo mais pronto e acabado da falácia do “apelo à autoridade”, i.e., quando um especialista em determinado campo do conhecimento resolve dar “pitacos” fora dele. Maiores problemas surgem, porém, quando apologistas querem restringir a aplicação dessa falácia a apenas esse modelo, desconsiderando outras formas mais sutis de mal emprego da palavra de especialistas. Eis alguns:

  • Autoridade que não é autoridade nenhuma: o exemplo acima é bem ilustrativo desse tipo, i.e., uma autoridade de uma área dando pitaco em outra. Pode acontecer, também, de um generalista arrotar dados e fatos, sem o devido lastro de um real perito no tema (principalmente em matérias jornalísticas);
  • A dita autoridade é uma outsider, “ponto fora da curva” ou do estilo “lobo solitário”: o que não impede que ele realmente seja um especialista na área. Um exemplo clássico disso foi a defesa ferrenha do químico Linus Pauling – duas vezes ganhador do prêmio Nobel – de doses cavalares de vitamina C como santo remédio, capazes de prevenir de resfriados a tumores malignos.
  • O grupo ao qual se encontra a autoridade é minoritário: essa é um pouco capciosa. Qualquer ideia nova vai começar como minoritária. Agora, caso já tenha havido tempo para “o teste do tempo” e ela ainda não se tornou predominante, ou era uma tese mainstream e foi sendo abandonada, o problema deve estar na tese defendida. Um exemplo moderno é o aquecimento global antropogênico, que tinha boa oposição até o final do século XX e, agora, está se consolidando (5). Seus negacionistas o fazem mais por paixões políticas que científicas. Um erro estratégico ao se realizar debates com esse tipo de grupo é colocar um representante de cada lado, dando a ilusão de que ambos estariam em pé de igualdade. Mais útil seria ressaltar a diferença de pesos entre as produções científicas de cada lado dentro do tema;
  • A autoridade está defasada: do instante que uma tese é concebida na mente do pesquisador, ela já começa a envelhecer. Há aquelas que envelhecem bem, no sentido que o cerne de seus princípios permanece válido, e outras muito mal, i.e., têm seu princípio fundamental demolido. Por exemplo, a tese de que a Septuaginta é uma tradução ruim do texto hebraico ruiu com publicação dos Manuscritos do Mar Morto, que revelaram ser ela uma janela para versões do texto hebraico hoje perdidas.
  • O viés da autoridade: como já disse alhures, viés é como sotaque, ou seja, se alguém não tem sotaque/viés é por que o sotaque/viés dele é igual ao teu. A questão é se autoridade consegue ir além de suas próprias crenças ante da evidência dos fatos.
  • A autoridade é corporativista: um certo conselho de classe de profissionais de saúde, ao estourar uma pandemia, mantém-se impassivo quanto ao membros seus que administram coquetéis de remédios de eficácia não comprovada contra o novo patógeno. Aliás, há décadas esse conselho chancela um tipo de tratamento baseado em ultradiluições de princípios ativos para além o limite de Avogadro, e que nunca tiveram desempenho melhor que placebos em teses controlados.

Vejamos, então, como o espiritismo kardecista fez (e vem fazendo) uso e abuso das autoridades constituídas e das que ele mesmo constituiu, empurrando goela abaixo de seus adeptos.

Meu Mentor é mais Forte que o Teu

-Eu sou o codificador da Terceira Revelação!
-Desculpe-me, “terceira o quê”?
-Terceira revelação!
-Quem te disse isso?
-O senhor mesmo, há quase 2.000 anos …
-Ha, ha, ha! Vai nessa!

A autoridade-mor à qual todos os espíritas ortodoxos recorrem tem nome e sobrenome: Hippolyte Léon Denizard Rivail ou, para os íntimos, Allan Kardec. Isso por si só já é um bocado problemático, pois o cânon kardecista não é um todo coerente, i.e., dá para usar Kardec contra Kardec (6). Fora as diferenças entre a primeira e a segunda Edição de O Livro dos Espíritos, é possível notar uma progressiva mudança ao longo dos anos 60 do século XIX:

  • Progressiva aceitação da teoria da evolução biológica;
  • Progressiva cristianização;
  • Progressiva centralização em torno de si mesmo.

Assim, ao se mencionar Kardec, há mister de avaliar em qual etapa se encontra seu pensamento. Para não dar uma de “la garantía soy yo!”, Kardec propôs se fiar no que viria a ser chamado de “Consenso Universal dos Espíritos” (ou Controle…). Em suas palavras:

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
ESE, Introdução (7).

Porém existem três sérios problemas com ele:

  1. Não é Consenso (ou controle): Dada as flagrantes contradições tanto dentro da trajetória da codificação como fora dela. Por exemplo, Kardec sempre teve como pedra no sapato a ausência do conceito de reencarnação no espiritualismo anglo-saxão, algo capaz de fazer desmoronar todo o sistema que criou(8). A catolização do espiritismo tupiniquim ao longo de século XX só fez complicar essa situação em outras direções (9);
  2. Não é Universal: Será que se a codificação tivesse sido compilada em Istambul (então ainda chamada Constantinopla) ou no Cairo não teríamos um “Corão segundo o Espiritismo“, que teria vindo como a “Quarta Revelação” a complementar os ensinamentos do Profeta? Em outras palavras, a codificação é europeia e cristã demais para ser considerada como “Universal”. Uma concordância entre culturas bem mais díspares afastaria o risco de médiuns estarem, na verdade, reproduzindo seus e conceitos e preconceitos. Por outro lado, a discordância aponta para essa direção;
  3. Nem dever ser de espíritos muitas das vezes: É difícil considerar São Luis e Erasto como sendo espíritos evoluídos quando falam coisas nada apropriadas dos negros africanos ou dos nativos americanos(10), estando mais para preconceitos bem terrenos vigentes na época. Flammarion, posteriormente, declararia que a Uranografia Geral, ditada pelo espírito de ninguém menos que Galileu Galilei, (A Gênese) como tendo sido um caso de animismo, em que colocara ideias próprias, ou melhor, do que acreditava na época (11).

Allan Kardec aparentava ter uma confiança excessiva de ser um missionário imbuído de uma missão dada pelo “Alto”:

Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica. Participa da revelação divina, porque foi providencial o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos fundamentais da Doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje os homens estão aptos a compreendê-las. Participa da revelação científica, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas sim ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a Doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega, porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que o homem estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem.

A Gênese, cap. I, item 13. Grifos itálicos no original.

De fato, ele não procurou ostensivamente pelos fenômenos espirituais, sendo inicialmente um cético. Após abraçar a missão do “Espírito da Verdade”, o grosso da elaboração ficou a cargo … dele mesmo! Ou melhor, foi dele a versão do espiritismo da Sociedade Paris.Uma questão premente, antes de qualquer sistematização, era separar o “joio do trigo”, o que teria origem “divina” dos preconceitos terrenos. Nisso a força dos números revelou-se um tanto traiçoeira. Repare a força da evidência da reencarnação:

Não é aqui o lugar de explicar esses fatos; somente um estudo seguido e perseverante pode dá-los a compreender; nosso fim era somente refutar a ideia de que essa doutrina [da reencarnação] é a tradução do nosso pensamento. Temos, ainda, uma outra refutação a opor: é que não somente a nós ela foi ensinada; foi, também, ensinada em muitos outros lugares, na França e no estrangeiro: na Alemanha, na Holanda, na Rússia, etc., e isso antes mesmo da publicação de O Livro dos Espíritos. Acrescentamos, ainda, que, desde que nos entregamos ao estudo do Espiritismo, obtivemos comunicações através de mais de cinquenta médiuns escreventes, falantes, videntes, etc., mais ou menos esclarecidos, de inteligência normal mais ou menos limitada, alguns até mesmo completamente analfabetos e, em consequência, absolutamente estranhos às matérias filosóficas; não obstante, em nenhum caso os Espíritos se desmentiram sobre essa questão. Dá-se o mesmo em todos os círculos que conhecemos, onde tal princípio é confessado. Bem sabemos que esse argumento não é irretorquível, razão por que não insistiremos mais a não ser pelo raciocínio.

RE, novembro, 1858, artigo “Pluralidade de existências corpóreas”

Ainda bem que no tema reencarnação ele não pegou médiuns de Inglaterra ou dos EUA. O número de 50 impressiona, mas é superado pelo de outro tema:

Quanto à aplicação que podemos fazer de nosso raciocínio aos diferentes globos de nosso turbilhão planetário, só temos o ensino dos Espíritos; ora, para os que só admitem provas palpáveis é positivo que sua assertiva, a esse respeito, não tenha a certeza da experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos, confiantes, as descrições que os viajantes nos fazem de países que jamais vimos? Se só devêssemos crer no que vemos, creríamos em pouca coisa. O que aqui dá certo valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos quanto aos pontos principais. Para nós, que temos testemunhado essas comunicações centenas de vezes, que as temos apreciado em seus mínimos detalhes, que lhes investigamos os pontos fracos e fortes, que observamos as similitudes e as contradições, nelas encontramos todos os caracteres da probabilidade; contudo, não as damos senão como inventário e a título de ensinamentos, de que cada um será livre para dar a importância que julgar conveniente.

RE, março 1858, “Júpiter e alguns outros Mundos”

Neste caso, “por centenas de vezes” comunicações foram feitas confirmando a presença de extraterrestres me nosso sistema solar. Pode ser a palavra “centenas” uma força de expressão apontando que haveria “perdido a conta”. Podemos dizer que, por volta da mesma época (ca. 1858), as pluralidades de existências corpóreas e de mundos habitados tinham uma quantidade de testemunhos mediúnicos similar. Após mais de 150 anos, o panorama é:

  • Extraterrestres: diversos exoplanetas (i.e., planetas fora de nosso sistema solar) têm sido descobertos, aumentando a chance de existir vida inteligente no Universo, além da Terra. Porém ninguém espera encontrar nada além de micróbios em nossos irmãos do sistema solar. Quem se dispuser a ler o artigo da RE de março/1858 vai descobrir que já havia descrença quanto a isso naquela época, à qual Kardec tenta contrapor com hipóteses ad hoc para salvar as aparências, como a possibilidade de uma rarefeita (e por isso indetectável) atmosfera lunar ou a presença de seres extremófilos em Saturno ou Mercúrio. A partir da segunda metade de século XX, as sondas espaciais vêm jogado baldes e mais baldes de água fria nessas pretensões. E ainda há espíritas que não largam esse osso;
  • Reencarnação: os trabalhos de Ian Stevenson foram sugestivos na existência desse fenômeno, porém estão longe de confirmar o que ela ocorra nos termos espíritas (universal e compulsória a todos o seres, iniciando a partir da concepção, sempre progressiva, karma, etc.).

Enfim, os resultados nulos no primeiro e ainda muito magros no segundo item.

Se quantidade não foi o bastante, a qualidade também deixou a desejar. A autoridade alegada da Revelação Espírita não se encontra apenas nos números, mas na autoridade ser guiada pelo “Espírito da Verdade”, o consolador prometido por Jesus em (um dos) seu(s) discursos de despedida no Evangelho de João:

Consolador prometido.

3. Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: — O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. — Porém, o Consolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que vos tenho dito. (S. João, 14:15 a 17 e 26.)

4. Jesus promete outro consolador: o Espírito de Verdade, que o mundo ainda não conhece, por não estar maduro para o compreender, consolador que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para relembrar o que o Cristo há dito. Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que este disse foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas. Advertiu o Cristo: “Ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem, finalmente, trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores.

Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V.

(Em Construção)

Para saber mais

– Navega, Sergio; Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Publicações Intellwise, 1a. Ed, 2005 (pp.147-8).

– Salmon, Wesley C.; Lógica, Zahar Editores, 1963 (pp. 88 – 93).

Notas

(1) Não teria sido tão mais fácil, para os apologistas espíritas se, simplesmente, não existíssemos mais? Se Chico Xavier relatou que Emmanuel estava autorizado a desencarná-lo caso se recusasse a prosseguir psicografando livros para além da quantidade originalmente estipulada (uma atitude digna de mafioso), então nos mandar para o Umbral mais cedo seria fácil, não? Ou será que nossa missão na Terra é justamente ser “do contra”? Tenho uma opinião bem parcimoniosa sobre isso: somos uma “inevitabilidade prática”, i.e., enquanto as contradições do Espiritismo kardecista persistirem sem tratamento, cedo ou tarde algum adepto se dará conta delas, não ouvirá eco em seus questionamentos e pulará fora. Alguns fazendo estrondo. Tanto que vieram outros dissidentes ex-apologistas na esteira, como Vítor Moura – com uma ajudinha nossa – e Felipe Morel, este de forma totalmente independente.

(2) Com já disse em outras partes, há duas versões para o “discurso de despedida” de Jesus no Evangelho de João, que foram entremeadas na redação final. Em uma (Jo 13-14 e 18) a identificação do Paracleto com o Espíritos Santo ocorre (Jo 14:26) e na outra (caps. 15-17), não. Concordo que a forma apositiva como “Espírito Santo” aparece Jo 14:26 pode sugerir um enxerto, porém não encontramos um documento antigo de João em que ela não apareça. Se foi uma interpolação, ela pode ter ocorrido no próprio autógrafo do Evangelho ou na fonte dessa versão do discurso. Assim, novas descobertas no campo da paleografia do NT são necessárias para elucidar a questão. O que se pode dizer, com mais certeza, é que Jo 14:26 é uma “pedra no sapato” dos espíritas que advogam Jesus ser o Espírito da Verdade, o Paracleto prometido. O que os espíritas não se mancam é que, embora as falas do Evangelho de João sejam atribuídas a Jesus, a maioria delas não são consideradas pelos pesquisadores como originárias de seus lábios. Inclusive os longos discursos de despedida (e outros) desse evangelho que, ao contrário das parábolas e aforismos dos seus irmãos sinópticos, dificilmente seriam memorizáveis de cor pelos primeiríssimos cristãos, majoritariamente analfabetos. Pois é, muito arranca-rabo já ocorreu internamente por coisas que sequer uma “fé racionada” deveria considerar como verídicas.

(3) Uma coisa que este portal também oferece são as diversas camadas de “correções” feitas por mãos posteriores. Isso ocorreu com o Códice Sinaítico nesta passagem. Mas calma: em todas as camadas, το πνευμα το αγιον pode ser encontrado.

(4) Poderia citar os dois dicionários (um grego/francês e outro sânscrito/inglês) utilizados por Carlos Torres Pastorino e mencionados no artigo anterior. Menciono, também, o magistral Documenta Catholica Omnia, que tanto usei em minhas análises sobre Orígenes.

(5) A Revista Veja, editora Abril, lançou em 9 de outubro de 1991 a edição 1.203, intitulada “O Planeta Resiste – A ciência derruba o mito da catástrofe ecológica inevitável”. Um show de ecoceticismo e um dos maiores desserviços feitos pelo jornalismo brasileiro à Ciência. Excetuando o buraco na camada de ozônio – que foi considerado um problema real – o resto foi um vexame atrás do outro. A extinção das espécies seria um “mal reparável”, pois a evolução se encarregaria de criar nova. Ok, pena que isso leva milhões de anos. Aquecimento global? Teria mais a ver com as explosões solares que pela ação humana. Aliás, a natureza seria muito mais poluidora que nós.
Justiça seja feita, outras edições mais responsáveis vieram depois – como a nº 1.696- “A Vingança Da Natureza” -, porém muito estrago já havia sido feito.

(6) A briga entre os adeptos da identificação do Espírito da Verdade como Jesus e os que combatem essa tese que o diga.

(7) Cf. “Controle Universal dos Espíritos”, RE, abril 1861

Em Profissão de fé espírita americana (RE, abril de 1869), Kardec faz um paralelo entre os artigos da profissão de dos espíritas norte-americanos e pontos que ele já havia levantado em seus próprios trabalhos. Até aí, tudo bem. O problema maior surge na seguinte observação que faz, mais perto do final do artigo:

Ambos reconhecem o progresso indefinido da alma como a lei essencial do futuro; ambos admitem a pluralidade das existências sucessivas em mundos mais ou menos avançados; a única diferença consiste em que o Espiritismo europeu admite essa pluralidade de existências sobre a Terra até que o Espírito tenha adquirido o grau de adiantamento intelectual e moral que comporte este globo, depois do que ele o deixa por outros mundos, onde adquire novas qualidades e novos conhecimentos. De acordo sobre a ideia principal eles não diferem, pois, senão sobre um dos modos de aplicação. É que isso pode ser lá uma causa de antagonismo entre pessoas que perseguem um grande objetivo humanitário?

Em instante algum da profissão de fé americana isso pode ser inferido. O Codificador viu o que queria ver em prol de um suposto “consenso” entre amplos os lados do Atlântico.

(9)Em ESE, capítulo XXII, Allan Kardec tratou da questão do divórcio. Transcrevo integralmente suas palavras:

O divórcio é lei humana que tem por objeto separar legalmente o que já, de fato, está separado. Não é contrário à Lei de Deus, pois que apenas reforma o que os homens hão feito e só é aplicável nos casos em que não se levou em conta a Lei divina. Se fosse contrário a essa lei, a própria Igreja seria obrigada a considerar prevaricadores aqueles de seus chefes que, por autoridade própria e em nome da religião, hão imposto o divórcio em mais de uma ocasião. E dupla seria aí a prevaricação, porque, nesses casos, o divórcio há objetivado unicamente interesses materiais, e não a satisfação da lei de amor.

Nem mesmo Jesus consagrou a indissolubilidade absoluta do casamento. Não disse Ele: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés permitiu despedísseis vossas mulheres”? Isso significa que, já ao tempo de Moisés, não sendo a afeição mútua a única determinante do casamento, a separação podia tornar-se necessária. Acrescenta, porém: “no princípio, não foi assim”, isto é, na origem da Humanidade, quando os homens ainda não estavam pervertidos pelo egoísmo e pelo orgulho e viviam segundo a Lei de Deus, as uniões, derivando da simpatia, e não da vaidade ou da ambição, nenhum ensejo davam ao repúdio.

Vai mais longe: especifica o caso em que pode dar-se o repúdio, o de adultério. Ora, não existe adultério onde reina sincera afeição recíproca. É verdade que Ele proíbe ao homem desposar a mulher repudiada; mas cumpre se tenham em vista os costumes e o caráter dos homens daquela época. A lei moisaica, nesse caso, prescrevia a lapidação. Querendo abolir um uso bárbaro, precisou de uma penalidade que o substituísse e a encontrou no opróbrio que adviria da proibição de um segundo casamento. Era, de certo modo, uma lei civil substituída por outra lei civil, mas que, como todas as leis dessa natureza, tinha de passar pela prova do tempo.

Palavras razoáveis, não? Por outro lado, um padre e muitos pastores hodiernos sentiriam calafrios com essa leitura. Com certeza foi um episódios em que Kardec se mostrou à frente do tempo. Contudo, entretanto, todavia, no século XX, no “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, desenvolveu-se a ideia de que os cônjuges de casamentos estão em resgate de outras vidas … e um divórcio apenas atrasa a “quitação das dívidas”, levando a novo matrimônio na vida seguinte. O escritor espírita Richard Simonetti, em Atravessando a Rua, conto 39 (“Compromisso não cumprido”), narra uma desventura de Dona Flausina que – apesar de ter sido exemplar mãe, profissional e trabalhadora da seara espírita – não conseguira se acertar com seu problemático marido em vida, tendo apenas o “suportado” em vez de se “harmonizar” com ele realmente. Afinal, muitos desajustes dele na última vida seriam reflexo de influências dela em anteriores.

Na conclusão do autor:

No entanto, aqueles que atravessam o casamento a “ranger de dentes”, como se submetidos a intolerável prisão, forçosamente reencontrarão o cônjuge em novas experiências matrimoniais, presos um ao outro por algemas de ressentimentos, mágoa, avessão…

Somente quando formados por flores de amizade os elos do casamento, desfrutarão os cônjuges a liberdade de decidir se seguirão juntos nos caminhos do porvir.

Espero que exista uma terceira opção para vítimas de feminicídio…

Enquanto as outras duas grandes religiões abraamicas têm o divórcio aceito e codificado (ainda que com viés machista), o cristianismo e seus derivados (o espiritismo “chiquista” entre entre eles) o têm entalado na garganta. É como se o antigo “que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19:6-9) não admitisse a exegese “o que Deus realmente uniu, ninguém é capaz de separar“. Em meus tempos de mocidade espírita, quando estudamos “Atravessando a Rua” em nossa programação de férias, discutimos e achamos válido o divórcio em caso de violência doméstica. Hoje, com bem mais vivência, constato que, se uma relação já se deteriorou a esse ponto, pode ser tarde demais para um término indolor.

A ideia de que todo o casamento é a continuação de uma relação passada (seja harmoniosa ou cármica) esbarra em um problema: como conheceremos (e nos uniremos) gente nova?. Se, porventura, um “relacionamento inédito” se tornar “turbulento”, não seria mais razoável o divórcio enquanto os cônjuges ainda possuem um mínimo de respeito um pelo outro?

Ademais, em outro livro – “Encontros e Desencontros”, cap. XXVIII, “Aprendendo com os Próprios Erros” -, Simonetti narra a aflição de um pai, já no mundo espiritual, ao saber que sua filha casou às pressas com um homem que não estava no “planejamento” original em razão de uma gravidez inesperada. Como, então, nós do lado de cá saberemos se uma união vigente foi planejada ou não? Por que uma comunicação mediúnica assim o disse? Por temer o famoso “vai quê”?

(10) Vide RE, agosto de 1864, artigo Destruição dos aborígenes do México para as falas dúbias de Erasto e a edição de junho de 1859, artigo O Negro Pai César é feita a evocação de um recém-falecido ex-escravo norte-americano (i.e., desencarnou já como liberto), traficado do continente africano aos quinze anos. Conforme a segue a inquirição prossegue, somos informados que ele fora branco em encarnações prévias, deixara de ser negro ao desencarnar, e tinha um “autopreconceito” com sua última encarnação:

8. Considerais a brancura como uma superioridade?
Resp. – Sim, visto ter sido desprezado como negro.

9. [A São Luís.] – A raça negra é de fato uma raça inferior?
Resp. – A raça negra desaparecerá da Terra. Foi feita para uma latitude diversa da vossa.

Racismos à parte, essa previsão está simplesmente errada, pois, no instante em que redijo e mais de 160 anos após a resposta acima, a África subsaariana está em franca expansão demográfica. Sem contar os membros da “diáspora negra” pelo mundo.

(11) Ver Forças Psíquicas Misteriosas, cap. II.

Abrindo a Boceta de Pandora: Pastorino e a Falácia Etimológica

Confessa: Pensou naquilo, hein?

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Em Busca das Origens


“Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. “


Que diria o “Bruxo do Cosme Velho”, se soubesse que esse trecho do sétimo capítulo de Dom Casmurro soaria tão estranho cem anos depois do lançamento? Se meu leitor de hoje consegue depreender o que ocorreu com a antes inocente palavra “boceta”, não terá dificuldade em entender a minha crítica a seguinte passagem de Sabedoria do Evangelho”, por Carlos Torres Pastorino. E sem maldade alguma.

INSTRUÇÕES AOS EMISSÁRIOS – PARTE I

(Ano 30 A. D. ou 783 A. U . C. – Janeiro – Fevereiro)

Mat. 10:5-15 Marc. 6:7 -11 Luc. 9:1-5
5. A estes doze (veja vol. 2) enviou Jesus, dando-lhes estas instruções: ‘Não ireis pelas estradas dos gentios, nem entrareis nas cidades dos samaritanos,

6. mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel.

7. Pondo-vos a caminho, pregai dizendo “está próximo o reino dos céus”.

8. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os espíritos desencarnados; de graça recebestes, de graça dai 9. Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de bronze em vossas cinturas;

10. nem de alforge para a jornada, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão, pois é digno o operário de seu sustento.

11. Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, indagai quem nela é digno; e aí ficai até vos retirardes.

12. Ao entrardes na casa, saudai-a

13. e se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; mas se o não for, torne para vós vossa paz.

14. E se alguém vos não receber nem ouvir vossas palavras ao sairdes daquela casa ou daquela cidade, sacudi o pó de vossos pés.

15. Em verdade vos digo, que no dia do carma haverá menor rigor para a terra de Sodoma e de Gomorta, do que para aquela cidade”
7. E chamou a si os doze e começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes autoridade sobre os espíritos atrasados,

8. e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto um só bordão; nem alforge, nem pão, nem dinheiro na cintura;

9. mas que fossem calçados de sandálias e que não vestissem duas túnicas.

10. Disse mais a eles: “Em qualquer casa onde entrardes, permanecei ali até que vos retireis do lugar.

11. E se algum (lugar) não vos receber, nem vos ouvir saindo dali sacudi o pó da sola de vossos pés em testemunho contra eles”.

1. Convocando a si os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os espíritos desencarnados e para curarem doenças,

2. e enviou-os a pregar o reino de Deus e a curar.

3. E disse-lhes: “Nada leveis para o caminho, nem bordão, nem alforge, nem pão, nem prata, nem tenhais duas túnicas.

4. Em qualquer casa em que entrardes, nela ficai e dali partireis.

5. E qualquer (local) que vos não receber, ao sair da cidade, sacudi o pó de vossos pés, em testemunho contra eles.
(…)

A memória do cataclismo de Sodoma e Gomorra permanecia viva, e era julgado como o mais terrível castigo da impiedade. Pois menos rigor haveria para essas cidades, que para aquela que não recebesse os enviados do Mestre.

No entanto, a permanência em cada localidade devia ser curta. A tradição da época, registrada da Didachê (11:1) prescreve um dia ou, no máximo, dois, acrescentando que “aquele que permanecer três dias é falso profeta”.

O “dia do carma” (krisis) não se refere ao “juízo final”, mas à colheita do resultado das ações feita por meio da frequência vibratória de cada um: de acordo com as ondas básicas (tônica) de cada ser, será ele atraído para este ou para aquele local, tal como as ondas hertzianas que penetram no aparelho de rádio-receptor de acordo com a sintonia em que este se encontra.

Se as ações forem na linha do bem (na direção do Espírito) a colheita será alegria e paz; se forem no sentido do mal (matéria ou satanás) o resultado colhido (carma) será dores e sofrimentos. Essa triagem, essa “separação” (Krísis) é exatamente o carma automático, pois a Lei já estabeleceu tudo de antemão, e não é necessário que ninguém faça julgamentos. A humanidade de hoje não precisa mais dessas figurações infantis: já está madura para receber a verdade sem distorções. Então, de acordo com o carma será o estado de espírito dos seres, vibratoriamente separados segundo suas tônicas.

JULGAMENTO

Há um verbo grego (krínó) que é sistematicamente traduzido nas edições correntes por JULGAR; e seu substantivo (krísis) é sempre transladado por JULGAMENTO ou JUÍZO.

Estudemos esses termos, que são de capital importância na compreensão do ensino de Jesus.

O verbo KRÍNÔ apresenta os sentidos básicos de: separar, fazer triagem, escolher, decidir, resolver e, por analogia e extensão, julgar.

O substantivo KRÍSIS exprime fundamentalmente: ação, separação, triagero, escolha, o resultado da ação de escolher, decisão, donde, por analogia e extensão, julgamento, ou juízo.

Analisemos, agora o sentido etimológico, que também importa. Foram consultados: “Émile Boisacq, Dictionnaire Étimologique de la Langue Grecque, 4.ª edição, Heidelberg, 1950″; Liddell & Scott, Greek-English Dictionary“, Oxford, 1897”; e “Sir Monier Monier-Williams, A Sanskrit-English Dictionary , Oxford, 1960”, pág. 258 e 300.

KRÍNÔ e KRÍSIS (assim como o latim CERNO) vêm da raiz sânscrita KRI, que significa: agir, fazer, causar, elaborar, construir, escolher, etc.

Dessa mesma raiz KRI deriva o substantivo sânscrito KARMA, que exprime: ação, realização, efeito, resultado da ação escolhida, escolha, e cujo sentido é perfeitamente compreendido pelos estudiosos do espiritualismo, ou seja: CARMA é a consequência (boa ou má) de uma ação (boa ou má) que a criatura tenha realizado por sua livre escolha.

Verificamos, pois, que traduzir sistematicamente KRÍNÔ e KRÍSIS por “julgar” e “julgamento” (sentidos analógicos e extensivos) é, em muitos casos, forçar o sentido e até desvirtuá-lo totalmente.

EXEMPLOS – “O Pai a ninguém julga, mas deu todo julgamento ao Filho” (João, 5:22) só formaria sentido se aceitássemos um deus pessoal, sentado num trono (como Salomão) a proferir sentenças, embora de grande sabedoria. Aliás, muita gente imagina exatamente uma cena assim … Sabemos, porém, que isso jamais pode dar-se com o Ser Absoluto e Impessoal que é O Pensamento Criador e Sustentador dos universos, transcendente a tudo e a todos, mas imanente em todos e em tudo, pois que constitui a essência última de todos os seres e de todas as coisas.

Apliquemos a tradução lógica (não a “analógica”) e vejamos: “O Pai a ninguém escolhe, mas deixa toda escolha ao filho”. Aí o sentido procede: justamente por ser imanente em todos, o Pai Impessoal a ninguém escolhe, porque a todos, “bons e maus, justos e injustos” (cfr. Mat. 5:45), santos e criminosos, dá as mesmas oportunidades, a mesma quantidade de amor e, liberdade absoluta do livre-arbítrio. Mas “toda escolha é dada ao filho”, isto é, ao ser humano, “filho de Deus” que, com seu livre-arbítrio, escolhe o caminho que quer, arcando depois com as consequências, na “época do carma” (no “dia do juízo”, que pretende traduzir exatamente a palavra krisis). No caso de Jesus, Ele podia afirmar, em continuação: “e minha escolha é justa, porque não busco a minha vontade, mas a vontade de quem me enviou” (João, 5:30), isto é, o Pai que é representado em nós pelo Cristo Interno, pelo Logos em nós .

Se nesse trecho traduzíramos KRÍNÔ por “julgar”, haveria frontal contradição com os seguintes textos:

  1. João, 8:15-16: “vós julgais segundo a carne (as aparências); eu a ninguém julgo. Mas se eu julgo alguém, é verdadeiro meu julgamento, por que não estou só, mas eu, e o Pai que me enviou”. Afinal, é o Pai que julga? ou deu o julgamento ao filho? E como o filho não julga ninguém? Não seria possível compreender-se. Substitua-se, porém, nesse passo, a tradução analógica pela lógica, e o sentido se torna claro, óbvio, compreensível: “vós escolheis segundo a carne (as aparências); eu não escolho ninguém; mas, se escolho alguém, é verdadeira minha escolha, porque não estou só, mas eu, e o Pai que me enviou”.

  2. João, 12: 47: “Se alguém me ouve as palavras e não confia, eu não o julgo, pois não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo”. Afinal o julgamento é do filho ou do Pai? Se “todo o julgamento foi dado ao filho”, como diz o filho que “não veio para julgar”? Então, compreendemos que realmente, há uma diferença entre os dois textos, e que, neste último passo, krínô tem, de fato, o sentido analógico de “julgar”. Aqui é mesmo JULGAR como naquele outro passo de Lucas (5:37): “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados”.

No trecho que aqui comentamos, compreendemos perfeitamente que não pode haver um “dia do juízo”, interpretação que deu margem à invenção de um “juízo particular” e de um “juízo universal”, quando “o mundo terminaria”. Esses absurdos anticientíficos e antilógicos não mais podem ser aceitos hoje. Não haverá “fim do mundo”, pois no máximo poderá ocorrer um “fim de ciclo”, que coincide com o movimento pendular do eixo do planeta, cada 26.000 ou 28.000 anos. No entanto, há comprovadamente a época da “colheita de resultado de nossas ações” a cada término de existência terrena, ou seja, “o dia do carma”, assim como, a cada fim de ciclo, haverá uma triagem (separação) de acordo com as vibrações de cada um. Portanto, a melhor tradução do trecho, em termos atuais, para compreendermos o que Jesus ensinou, é exatamente “o dia do carma”, isto é, “o dia da colheita (krísis) dos resultados de nossas ações, boas ou más”.

Isto porque, a cada pessoa ou coletividade, “será dado segundo suas obras” (cfr. Mat. 16:27; Rom. 2:6; 2 Cor. 5:10 e 11:15; 1 Pe. 1:17: Apoc. 2:23 e 22:12; e outros semelhantes).

Pastorino, Sabedoria do Evangelho, Vol. III, 1964.

* * *

Deixe-me ver se captei: se, em sua origem, a raiz de uma palavra for afim de um sentido reencarnacionista, então ela deve ser traduzida com esse viés, pouco importando séculos de evolução linguística.

Ok, só que não.

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Quando o Passado NÃO condena: a Falácia Genética

Primeiros colonizadores britânicos da Austrália rumam esperançosos à nova pátria.

“O Brasil fracassou porque foi colonizado pelos portugueses e não pelos ingleses.”

“Somos uma mistura de índios indolentes com brancos degredados e negros escravizados. Não tem como dar certo.”

Aposto que algum dos leitores já ouviu alguma das frases acima (ou algo do mesmo quilate) e, o pior, inconscientemente aquiesceu com a cabeça. Mas será que há mesmo uma verdade autoevidente nesses dois lugares-comuns? Teria sido melhor que o governo de Maurício de Nassau perdurasse ou a França Antártica de Villegaignon tivesse prosperado? Ucronia pode ser um exercício interessante, até divertido, diria eu; mas há boas chances de o resultado dessa linha alternativa da História não ser animador: poderíamos ter sido um grande Suriname ao norte e um mega Senegal ao Sul. O fato de termos nos tornado uma colônia de exploração tem mais a ver com a geografia do que a metrópole em questão. Vide a diferenças entre as colônias do Norte e do Sul dos EUA, que levariam esse país à Guerra Civil menos de um século após a independência delas.

A pergunta que fica, então, é até que ponto nosso passado explica o presente? Certo que uma nação recém-independente ainda está sobre grande impacto da administração da ex-metrópole, mas o quanto isso permanece válido à medida que o tempo passa? A Índia, para começar, já está há 75 anos livre do jugo britânico e, embora tenha feito grandes progressos no século XXI, continua longe do padrão de desenvolvimento social que os europeus ocidentais. Questões como superpopulação, corrupção e nepotismo ainda são grandes entraves a serem vencidos por lá. Vamos para o continente sul-americano: Brasil e Argentina, por algum tempo, se saíram melhor que as antigas metrópoles, antes de suas administrações desandarem. Não esqueçamos da Coreia do Sul, que já foi, junto com sua irmã do norte, colônia japonesa. Entretanto, Seul já superou Tóquio em muitos aspectos, ao passo que Pyongyang patina num comunismo anacrônico.

O passado tem seu peso? Sem dúvida! Será que ele dá a última palavra? Às vezes, caso um ranço dele persista fortemente no entorno de um país, uma sociedade ou um indivíduo. Em grande parte das situações, por outro lado, atribuir poderes divinos ao que aconteceu numa cada vez mais profunda “noite dos tempos” é apenas um atalho preguiçoso – a falácia genética -, que nos impede de ir atrás de razões bem mais recentes e imediatas para problemas atuais.

Enfim, tal como um indivíduo de meia-idade que ainda culpa seus pais por não ter tomado rumo na vida, uma hora chega-se ao ponto em que a culpa dos antigos opressores começa a ser substituída pelos erros cometidos pelas escolhas dos habitantes locais. O Brasil não dá certo por ter sido uma terra de índios “indolentes”, portugueses degradados e africanos escravizados? Não vou entrar no mérito, mas Austrália começou como uma colônia penal, literalmente. O que cada extremo do globo fez com os seus libertos é que foi diferente…

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Campo Minado: na Ponta da Língua, mas não em sua Base

O Demolidor (1993): tão despretensioso quanto profético.

Quem já se entendia como gente em meados dos anos 90 do século XX pôde assistir a uma impressionante mudança cultural ocorrida dentro de uma única geração: a ascensão do “politicamente correto”. Antes de me tacar pedra, já digo sou a favor de mudanças de postura que tornem ambientes sociais e de trabalho mais salutares para grupos historicamente marginalizados. E justamente por isso lamento a caricatura que o movimento tem se tornado ao servir mais como ferramenta de ostentação de virtude própria e linchamento moral de desafetos, em vez de uma genuína consideração pelo próximo.

A lista de palavras “proibidas” só tem crescido, na medida que qualquer alegação de “termo agressivo” é acriticamente aceita. Ninguém deseja estar do lado “errado” e sofrer as consequências. Parece justo e razoável evitar de usar as palavras “judiar” e “denegrir”, visto que seus radicais facilmente identificáveis são “judeu” e “negro”, respectivamente, além de elas possuírem substitutas equivalentes, como “maltratar” e “macular”. Agora, vejamos o caso da palavra “histérico(a)”: alega-se que seu radical vem do grego hystéra (útero), o que é verdade, e até o começo do século XX era associado a doenças mentais tidas como tipicamente femininas. O problema é que (i) o termo hoje é utilizado para descrever comportamentos destemperados de homens, também, e (ii) será que alguém leigo saberia a relação de histérico com útero sem consultar um dicionário?

Há outras palavras que “etimologia engajada” (1) gostaria de banir e que talvez já tenham vindo à mente do leitor do começo desta terceira década do século XXI, ou de alguém que, no futuro, estude esta época. Ainda que você seja um militante sincero ou um hipócrita em busca de status moral, pelo próprio bem de sua causa (ou para não dar vexame), atente para não cometer uma variante da falácia genética mencionada acima: a falácia etimológica, i.e., a alegação que significado original de uma palavra (ou de seus radicais) determina o uso dela nos dias de hoje.

Línguas evoluem constantemente, sejam se modificando, crescendo, diversificando, hibridizando e, sim, extinguindo. Tudo numa dinâmica que guarda interessantes paralelos com a evolução biológica. Uma delas é que mudanças discretas podem até ser percebidas no prazo de uma geração de humanos, ao passo que mudanças mais profundas podem demandas um tempo maior que a mais memoriosa cabeça consiga guardar. Não foi à toa que coloquei “boceta” no título deste artigo. Além de ser uma isca para o leitor – capaz de atrair até os mais pudicos – ela é um exemplo perfeito de mudança semântica documentado. Originalmente, esta palavra designava uma pequena caixa com alguma ornamentação, cujo usos podiam ir desde guardar joias de mulheres ou o rapé dos homens.

Para quem nunca viu: isto é uma boceta!

Como ela também era usada para as damas guardarem “seus tesouros” a associação com a vulva começou a ocorrer. Na virada do século XIX para o XX já devia estar bem estabelecido o trocadilho, que o diga a música “A Boceta de Rapé” (1905), de Mário Pinheiro, que usa e abusa do duplo sentido:

É coisa boa devera
Num tabaco, fino pó
Quando tiro assim
Com o dedo da boceta de vovó
Fico triste, fico mudo
Fico mesmo que faz dó
Quando aparece raspada

Pelo visto, safadeza não foi invenção da contracultura. Com o tempo o sentido original caiu em desuso (até porque o consumo de rapé saiu de moda), restando apenas o sexual.

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Um Apelo à Antiguidade

Etimologia, explanando superficialmente, é o ramo da Linguística focado no estudo da evolução das palavras; retrocedendo, se possível, até sua versão original em uma antiga língua-mãe. Já o “significado” de uma palavra é o seu emprego corrente ou em determinado período histórico, atestado por testemunhos da época. A falácia etimológica é uma irmã da falácia genética, consistindo na impostura intelectual de achar que o verdadeiro (e “válido”) significado de uma palavra é o seu sentido original.

Quando Pastorino diz “analisemos, agora o sentido etimológico, que também importa“, declara algo um tanto discutível, pois o sentido original de uma palavra pode ser irrelevante caso já tenha sido esquecido há muito tempo. Qualquer estudante de inglês em nível médio já conhece as arapucas do “falsos cognatos”, i.e., palavras parecidas entre dois idiomas, mas com sentidos totalmente diferentes, como compasso e compass (2):

Para abalizar seu ponto de vista, Pastorino se valeu de três dicionários. Na época da publicação de Sabedoria …, eles estavam disponíveis apenas em bibliotecas de especialistas ou universidades. Felizmente, a Internet democratizou o conhecimento e, hoje, o grande público pode ver o que realmente dizem:

  • Liddell & Scott, Greek-English Dictionary: talvez o melhor dicionário de grego clássico para uma língua moderna a possuir uma versão em formato wiki. Em seu verbete κρίνω aparecem os significados básicos de “separar”, “escolher”, “selecionar”; porém a quantidade de exemplos para “extensões” – como “decidir uma disputa”, “decidir em favo”, “ajuizar”, “julgar”,”estimar” – é tamanha que fica difícil comprar a ideia de usá-las nos evangelhos seja desvirtuar totalmente o sentido. Por sua vez, κρίσις, como derivado de κρίνω, é apresentado primeiramente como “separação”, “distinção” (poucos exemplos), para em seguida exibir vários exemplos como “escolha”, “eleição”, “julgamento”, “julgamento em corte”, condenação”. Não aparece, contudo, um sentido como “ação”, que o aproximaria da raiz sânscrita kṛi;

  • Dictionnaire Étimologique de la Langue Grecque: em suas páginas 518 e 519 tratam do verbete κρίνω, ao passo que κρίσις não possui um verbete próprio, sendo apresentado como derivado de κρίνω. Aqui a ênfase em significados no sentido de “separação”,”escolha” ou “discernimento” é maior, o que pode explicar o viés de Pastorino. Por sua natureza etimológica, o dicionário procura apresentar vários correlatos de cada verbete com o que seriam seus cognatos em outras línguas indo-europeias antigas, sendo feita a correlação com a latina cerno. No caso do sânscrito, chama atenção que o paralelo é feito com ava-skara-h -“dejetos”-, i.e, algo que “convém ficar separado/apartado”;

  • A Sanskrit-English Dictionary: embora seja a edição (ou impressão), de 1899, a numeração das páginas bate com a fornecida por Pastorino. As páginas 258 e 259 tratam de karman, ao passo que 300 e, principalmente, 301 tratam da raiz kṛi, trazendo um dado curioso: os cognatos apresentados para latim são (3) creo (4) e ceremonia, já para o grego são κραίνω (5) e κρόνος (6).

Ou seja, pelas próprias fontes que Pastorino usa, não é possível afirmar que κρίνω derive da raiz sânscrita kṛi. Para começo de conversa, o grego e o sânscrito se originaram, paralelamente, do proto-indo-europeu (PIE): um hipotético ancestral comum a diversas línguas europeias, iranianas e indianas falado há cerca de 5.000 anos nas estepes russas. Ou essas palavras gregas teriam uma raiz indo-europeia comum ou o grego teria importado a raiz sânscrita de algum modo. Dado que κρίνω pode ser encontrado em obras tão antigas como a Odisseia (cf. Liddell & Scott), não foram as conquistas de Alexandre que a trouxeram para a orla do Mar Egeu. Quanto à segunda hipótese, ela não se sustenta: na reconstituição feita do PEI, κρίνω e karma têm raízes distintas. E ainda que possuíssem a mesma raiz, suas evoluções semânticas poderiam ter sido divergentes (7).

Segundo The American Heritage Dictionary, a palavra inglesa crisis (“crise”) é oriunda da grega κρίσις, que, por sua vez, tem krei- (peneirar, separar, dividir) por raiz PIE. A palavra karma, para esse mesmo dicionário, possui a raiz PIE kwer- (fazer, preparar, construir). O Wikitionary corrobora essas informações (8).

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Sobrevivendo ao Campo Minado


Soldados cavando.

– Sargento, encontrei um significado ideal pr’aquela nossa tradução!
– Ô bizonho! Não mexe nisso, que é bomba!

Deve ser tentador para um palestrante, escritor ou articulista espírita (para ser justo, de qualquer credo) realizar a exegese de uma determinada passagem de um livro sagrado a partir de uma palavra-chave, cujo significado que (lhe) é mais conveniente está atestado em dicionário. O resultado final terá com o cheiro doce de erudição, porém pode muito bem não passar de uma tradução “à moda da casa” e “ao gosto do freguês”, capaz de fazer o, em geral, ignoto autor se revirar na tumba.

É preciso ter sempre em mente que, por mais ranço que um texto em uma língua morta possua, houve uma época quando enamorados a usavam para trocar juras de amor, os comerciantes para fechar seus negócios, as crianças para dar ação às suas brincadeiras, os torcedores para aclamar/xingar seus favoritos, e os fiéis louvavam ou blasfemavam os deuses com ela. Sim, um dia esses idiomas estiveram vivos. E, mesmo com todo o analfabetismo reinante, esses escritores sabiam que seus textos seriam lidos em voz alta em algum templo, sinagoga ou catacumba por algum afortunado letrado (9). Assim, Paulo de Tarso queria ser compreendido no mundo helênico do primeiro século da Era Comum, não por Homero e, muito menos, pelos gregos atuais.

Concordo que um pouco de “sentimento” e “tato” se faz necessário na hora de executar uma tradução, e que o risco de algo particular adentrar o texto vertido é constante. Ainda assim, há uma pedra de toque sempre capaz de ajudar chamada contexto, do de maior relevância para o de menor:

  • A fonte da passagem em questão: não apenas o entorno da citação analisada, mas todo o espectro de conotações que a palavra tem o longo do livro. Ao se observar não apenas a árvore, mas toda a floresta permite também identificar os temas de que ele trata. Se ele tiver um perfil apocalipsista – como Marcos e Paulo -, então traduções com viés reencarnacionista não fazem o menor sentido;
  • Outras obras do mesmo autor: aí se cai na que questão verdadeira autoria dos textos bíblicas, o que pode ser problemático. Ficando no Novo Testamento, por exemplo, pode-se agrupar Lucas e Atos, João e I João, e as genuínas cartas paulinas;
  • Outras obras da mesma época: como Marcos e a mais antigas cartas paulinas;
  • Outras obras do mesmo testamento: com certas ressalvas. Cronologicamente, ocorreu uma progressiva separação do judaísmo e adaptação do cristianismo para se tornar uma religião de longo prazo. Isso se refletiu na criação de um jargão cristão próprio, que é um dos contrastes entre as cartas reconhecidamente autênticas de Paulo e as pseudopaulinas;
  • Obras de outro testamento, porém no mesmo idioma: notadamente a Septuaginta, de onde os autores do Novo Testamento buscavam suas citações;
  • Obras extrabíblicas da mesma época: que podem ser pseudoepígrafas ou até mesmo literatura pagã. Por vezes são o único recurso que sobra para palavras de uso raro, como a batida e rebatida palingenesia;
  • Todo o espectro de conotações: ou seja, pegar um dicionário em busca do melhor sentido para a palavra.

Suspeite, portanto, quando alguém pular direto para a última opção com uma palavra de uso recorrente dentro da própria obra ou literatura afim, com direito a análise etimológica.

Deixando claro que não sou contra o uso de dicionários, muito pelo contrário. O que digo é que o grosso do desempate entre os diversos significados que trazem para um verbete não reside neles, mas no uso que os antigos falantes davam. Bons dicionários são fundamentais para a identificação de polissemia, sinonímia e homonímia. Talvez um futuro estudioso do futebol brasileiro do século XX se valha de um dicionário etimológico da língua de Camões para determinar que certa cidade do Estado do Rio de Janeiro nada tinha de libidinosa.

cartão postal do distrito de Pau Grande.

Que foi? É só o letreiro de boas vindas do distrito de Pau Grande, na cidade de Magé – RJ, terra natal de Mané Garrincha (10). Pois é, a evolução dos idiomas nunca cessa.

(Índice)

Notas

(1) Ganha um manual de uso das “três conchas” quem acertar o nome do primeiro apologista a usar minha crítica aos excessos do “politicamente correto” contra mim mesmo. Dica: deve ser o mais hipócrita.

(2) Este mesmo exemplo produziu algo constrangedor na História das traduções literárias em terras tupiniquins:

O que dói é que a própria capa da edição em língua inglesa dava a dica.

(3) Por praxe, os dicionários gregos e latinos apresentam os verbos pela primeira pessoa do singular do presente do indicativo.

(4) Produzir, fazer crescer, engendrar, fazer nascer / nomear, eleger, indicar / causar, ocasionar. Deu origem ao nosso “criar”.

(5) Acabar, realizar, cumprir / mandar, governar / chegar ao termo.

(6) Liddell & Scott trata como uma variante de Khronos (um deus grego primordial, pai de Zeus, Hades e Posêidon), “era de ouro”, ou um apelido para “caduco” (dotard, old fool). O Wiktionary cogita a possibilidade de esse nome divino ser um derivado de κραίνω, na acepção de “comandar”/”governar”.

(7)Um exemplo disso são a portuguesa atualmente e a inglesa actually. Neste caso em particular, as palavras são cognatos genuínos, originários do latim actualis (“ativo”) e, com o tempo, derivaram significados diferentes em cada língua.

(8) Verifique os verbetes para κρίνω e कर्मन् (karma).

(9) Da Epístola aos Colossenses:

E, uma vez lida esta epístola perante vós, providenciai por que seja também lida na igreja dos laodicenses; e a dos de Laodiceia, lede-a igualmente perante vós.

v. 4:16
Quanto à Epístola aos Laodicenses, ninguém sabe, ninguém viu… é mais uma das obras citadas/mencionadas na Bíblia que não entraram nela.

(10) Caso tenhas chegado até aqui, sua poupança astral foi debitada em 1.000 (“hum” mil) bônus-hora, por teres lido e absorvido esse monte de sacanagem, ainda que inconscientemente. Caso ela tenha negativado, serás enviado ao pior lugar do Umbral e “de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil” (Mt 5:26).

(Índice)

Para saber mais

– Carson, D.A.; Exegetical Fallacies, Baker Academic, 1996.

– Ferreira, António Gomes; Dicionário de Latim – Português , Porto Editora.

– Isidro Pereira, S.J.; Dicionário Grego – Português e Português – Grego, Livraria Apostolado da Imprensa, 8a. ed., Braga, 1998.

– Rezende, Antônio Martinez de & Bianchet, Sandra Braga; Dicionário do Latim Essencial, Tessitura/Crisálida, 2005.

(Índice)

O Carro na Frente dos Bois (revisitado)

Você está fazendo isso errado!

A palavra Palingenesia aparece duas vezes no Novo Testamento (Tito 3:4-5 e Mt 19:28), sendo comumente traduzida por comentaristas espíritas como “reencarnação”. Carlos Torres Pastorino pode até não ter sido o autor dessa tradução “à moda da casa”, mas, sem dúvida, foi um de seus divulgadores pelas terras tupiniquins. Na série Sabedoria do Evangelho, ela aparece pelo menos duas vezes:

Paulo interpreta assim esse ensinamento de Jesus: “Mas quando apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens, não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação , e pelo renascimento de um espírito santo” (Tit.3:4-5). As palavras utilizadas são bastante claras e insofismáveis: lavatório (lavar com água; λουτρον da reencarnação: παλιγγενεσια que é o termo técnico da reencarnação entre os gregos; pelo renascimento (anaxinóseos) isto È, um novo nascimento). Paulo, pois, diz que Deus nos salvou não porque o tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da palingenésia (isto é, da reencarnação) a qual é um “lavatório” (de água) e um “renascimento” do espírito.

Volume II, p. 5

Temos que assinalar a expressão en têi paliggenesíai, “na reencarnação”, termo familiar aos pitagóricos e estoicos, para exprimir o que chamamos hoje, ainda, de reencarnação: o renascimento na matéria do espírito imortal; com ele também era designada outrora a “transformação do mundo”, nos passos evolutivos que o planeta vai conquistando através dos milênios. Flávio [Josefo] emprega a palavra para exprimir a restauração de Israel, sentido provavelmente corrente na época, entre os israelitas, o que fez que os discípulos pensassem que Jesus vinha operar essa restauração; e isso quiçá tenha provocado o pedido de Tiago e de João (Marc. 10:35) logo a seguir. Philon de Alexandria usa essa palavra para designar o renascimento do planeta após o dilúvio. E Paulo de Tarso (Tito, 3:5) com o sentido material de reencarnação e o sentido espiritual de nascimento na individualidade ou transição do psiquismo ao espírito, tendo como resultado o surgir do “homem novo”

(. . .)

Essa frase consolida a interpretação de “palingenesia” dada por Flávio Josefo: a restauração do reino de Israel, tornando a dividi-lo em doze tribos soberanas, cada uma das quais seria governada por um dos doze discípulos. Os Apocalipses (cfr. 4.º Esdras 7:75) falam na renovação messiânica do mundo, “quando o Todo-Poderoso vier renovar Sua criação”. Mas embora se acreditasse que o Messias julgaria o mundo (cfr. Mat. 25:31ss), neste trecho é dito que o julgamento seria feito pelos doze, a exemplo dos “juízes” de Israel (como os “sufetas” de Cartago). Já Paulo fala que “os santos julgarão o mundo” (l.ª Cor. 6:2).

Volume VI, p. 86

Na primeira versão, há apenas uma menção ao sentido de reencarnação que a palavra palingenesia pode assumir e uma atribuição a Paulo de Tarso desse uso. Poderíamos questionar isso duas forma: a primeira seria, em razão da apocalipcista natureza da mensagem de Paulo, não haveria tempo para uma salvação por um longo ciclo de reencarnações; e, em segundo lugar, o sofisticado “plano de salvação” descrito pormenorizadamente em sua Carta aos Romanos foca no sacrifício de Jesus, não deixando espaço para ela.

Já no volume sexto de Sabedoria…, somos apresentados a mais uma acepção de palingenesia: “restauração”, “renovação”, porém aplicada a países e ou ao Cosmo. Ficam, então as perguntas: “por que não para pessoas, também?”, “haveria outros sentidos de palingenesia omitidos por Pastorino a seus leitores?”. Como já disse alhures, quem define o sentido de uma palavra não é um dicionário, e muito menos seu tradutor, mas quem a usa(va). Assim, deixo abaixo linkado o artigo original, em que, embora não cite Pastorino explicitamente, discorro sobre o emprego desse palavra grega por um de seus herdeiros, lançando mão do que a literatura clássica grega tem a nos oferecer. Com vocês:

Palingenesia:

Colocando o carro na frente dos bois

(Original)

Vinde Espírito Santo! – Um Artigo sobre o Artigo Grego (Rascunho)

Pomba

Índice

O Consolador Prometido Redux

 

Retomando um trecho do Evangelho Segundo o espiritismo, tratado em outro artigo, com as seguintes palavras de Kardec:

3 – Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito da Verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. Mas vós o conhecereis, porque ele ficará convosco e estará em vós. – Mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. (João, XIV: 15 a 17 e 26)

4 – Jesus promete outro consolador: é o Espírito da Verdade, que o mundo ainda não conhece, pois que não está suficientemente maduro para compreendê-lo, e que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para fazer lembrar o que Cristo disse. Se, pois, o Espírito da Verdade deve vir mais tarde, ensinar todas as coisas, é que o Cristo não pode dizer tudo. Se ele vem fazer lembrar o que o Cristo disse, é que o seu ensino foi esquecido ou mal compreendido.

O Espiritismo vem, no tempo assinalado, cumprir a promessa do Cristo: o Espírito da Verdade preside ao seu estabelecimento. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas, fazendo compreender o que o Cristo só disse em parábolas. O Cristo disse: “que ouçam os que têm ouvidos para ouvir”. O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porque ele fala sem figuras e alegorias. Levanta o véu propositalmente lançado sobre certos mistérios, e vem, por fim, trazer uma suprema consolação aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, ao dar uma causa justa e um objetivo útil a todas as dores.

(…)

Assim realiza o Espiritismo o que Jesus disse do consolador prometido: conhecimento das coisas, que faz o homem saber de onde vem, para onde vai e porque está na Terra, lembrança dos verdadeiros princípios da lei de Deus, e consolação pela fé e pela esperança.

O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VI.

A ideia básica acima, calcada em Jo 14:26, pode ser (e foi) utilizada por qualquer grupo que alegue ter com o consolador prometido. Três coisas eles possuem em comum:

  1. Mais de cem anos de distância da morte de Jesus (dando tempo para o “esquecer”);
  2. Ideias alienígenas (afinal, “toda as coisas” pode ser qualquer coisa);
  3. Uma boa dose de pretensão (afinal, eu que sou a terceira revelação, não os outros).

O corolário óbvio dessa postura é a rejeição da tradição cristã ortodoxa de considerar a descida do Espírito Santo em forma de “línguas de fogo” sobre apóstolos, no dia de Pentecostes (At 2), como cumprimento da profecia de João. No caso espírita, em particular, dois outros artifícios são usados:

  1. Jogos semânticos com a palavra “espírito”: consiste em equipará-la com o sentido espiritualista moderno de “alma” ou, mais tecnicamente, espírito + perispírito. Com isso, o episódio se aproxima de um manifestação mediúnica. Para se tornar uma de vez, falta a…
  2. Indeterminação do “espírito santo”: com letra minúscula, mesmo. Baseados em certa norma gramatical grega, apologistas espíritas alegam que se não houver um artigo (definido) antes de um substantivo, esse deve ser traduzido sem artigo ou com um artigo indefinido. Assim, os apóstolos teriam recebido “um espírito santo” qualquer em At 2:4 (και επλησθησαν απαντες πνευματος αγιου).

Ambas fazem parte de um não declarado programa para apresentar o cristianismo primevo como protoespiritualismo. Caso o entendimento que os judeus intertestamentários e dos primeiros cristão não coincidir com o proposto, então terá sido apenas mais um caso de anacronismo disseminado no movimento. Para tirar a prova real, será preciso mergulhar nos testemunhos do passado e, para tanto, o texto bíblico não será o bastante.

[topo]

De Onde sopra o Espírito

 

Vegeta quebrando o kiômetro

– Vegeta, qual o nível de “espírito” desse cara ?!
– Mais de 9.000

Os fãs do anime Dragon Ball Z identificarão imediatamente a cena clássica mostrada acima, com a diferença de que, no original, a palavra usada para expressar o “poder vital” que os personagens extravasavam em suas pancadarias era o termo chinês ki, cujo sentido, grosso modo, corresponde também ao prana dos hindus. Para os ouvidos ocidentais modernos, acostumados a associar tratar a palavra “espírito” como um sinônimo para “alma”, esse trocadilho, além de sem graça, pode ter soado forçado, estranho. Contudo, um antigo hebreu não o acharia tão apelativo assim, pois, deixando de lado os socos e chutes, foi aproximadamente esse o significado na última conversa entre Elias e Eliseu:

Sucedeu que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim.
2 Re 2:9

A palavra “espírito” (pneuma em grego e rouach) literalmente significa “sopro”, “vento” e não necessariamente denota a consciência individual, mas o princípio que nos anima (Gn 7:22, Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7, o que não é panteísmo), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10). Já a expressão “Espírito Santo”, no Antigo Testamento, aparece apenas em três ocasiões:

  1. Sl 50(51 Heb.):11: “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu Espírito Santo”;
  2. e no já mencionado Is 63:10: “Mas eles foram rebeldes, e contristaram o seu Espírito Santo; por isso se lhes tornou em inimigo, e ele mesmo pelejou contra eles.” e
  3. no versículo seguinte: “Todavia se lembrou dos dias da antiguidade, de Moisés, e do seu povo, dizendo: Onde está agora o que os fez subir do mar com os pastores do seu rebanho? Onde está o que pôs no meio deles o seu Espírito Santo?”

E em todas ela é apenas outra maneira de referir ao próprio Javé. A tradição dos LXX traduziu a expressão como το πνευμα το αγιον, porém as paráfrases dos Targumim ora mudaram a expressão para “espírito de profecia“, usando-a recorrentemente em outros versículos, ora usaram “espírito santo” onde o massorético traz apenas “espírito” ou nem isso:

Êxodo (pseudo-Jônatas)

  • Ex 33:16 “Pois como se saberá que encontrei misericórdia perante ti, eu e teu povo, a não ser que sua Shekinah fale conosco e maravilhas sejam realizadas por nós quando retirares o espírito de profecia das nações e falar no Espírito Santo a mim e a teu povo, de modo que nos tornamos diferentes de todos os povos que estão sobre a face da Terra?”

Salmos:

  • 22:27 “O humilde comerá e se saciará; os que buscam o Senhor cantarão louvores em Sua presença; o espírito de profecia residirá nos pensamentos de seus corações para sempre.”
  • 45:3 “Vossa beleza, ó Rei Messias, é maior que a dos filhos dos homens; o espírito de profecia foi posto nos vossos lábios, porque o Senhor vos abençoou para sempre.”
  • 46:1 “Para louvar pelos filhos de Coré (cf. Nm 16), quando seu pai lhes foi oculto por meio do espírito de profecia, mas ele se salvaram e recitaram este cântico.”
  • 49:16 “Davi disse no espírito de profecia: ‘Na verdade, Deus redimirá minha alma do julgamento de Geema, pois me ensinará sua Torá para sempre’.”
  • 51:11 “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu espírito santo de profecia.”
  • 51:14 “Traga de volta vossa Torá para mim, para exultar em sua redenção; e que o espírito de profecia me ampare.”
  • 68:34 Ao que senta em seu trono no céu dos céus; no princípio ele, por seu comando, deu através de sua voz o espírito de profecia aos profetas.

Isaías

  • 40:13 “Quem direcionou o Espírito Santo na boca de todos os profetas? Não e o Senhor? Ele faz conhecer as palavras de Sua vontade aos justos, aos servos de Seu Verbo.”
  • 42:1 “Eis meu servo, a quem trago, meu escolhido em quem se compraz, quanto a meu Verbo, porei meu Espírito Santo sobre ele; Ele revelará meu julgamento às nações.”
  • 44:3 “Assim como as águas são despejadas sobre a terra sedenta e são postas a fluir sobre a terra seca, assim darei meu Espírito Santo aos seus filhos, e minhas bênçãos aos filhos dos filhos.”
  • 59:21 “Quanto a mim, esta é minha aliança com eles, diz o Senhor, meu Espírito Santo, que esta sobre você e as palavras de minha profecia que pus em tua boca, e não deixaram tua boca, nem as de teus filhos, nem as dos filhos dos filhos, diz o Senhor, desde agora para todo os sempre.”
  • 63:10 “Mas eles foram rebeldes contra o verbo de seus profetas e blasfemaram, e Seu Verbo se tornou inimigo deles, e travou guerra contra eles.”
  • 63:11 “E teve compaixão pela glória de seu nome, por causa da lembrança de Sua bondade de outrora, dos poderosos feitos que fez pelas mãos de de Moisés por seu povo; para que os gentios não dissessem: “Onde está agora o que os fez subir do mar? Onde está O que os guiou pelo deserto, como um pastor e seu rebanho? Onde está o que fez o verbo de Seus santos profetas residir entre eles?”

Em várias passagens das tradições targúmicas, o Espírito Santo (rouach haqqodesh) é tido como Javé comunicando-se diretamente sua vontade ao homem. É um dom concedido exclusivamente à Israel, após a entrega da Torá, e, em outras tantas, é semanticamente afim de “espírito de profecia” num sentido de um poder a guiar os homens a Deus, ao louvor e à profecia. Uma e outra expressão costumam vir acompanhadas de “Shekinah” (presença divina), “Dibbera” e “Memra” (ambas comparáveis a “Verbo”, “Palavra”), ressaltando o aspecto de interação comunicativa (Cf. [McNamara, cap. XI, 1]). Às vezes, “Espírito Santo” parece personificado, mas não cabe que aqui a enxergá-lo como a terceira hipóstase da Trindade, que nunca teve lugar no judaísmo.

Não é apenas nos targumim que se encontra um incremento no uso de “Espírito Santo”. Nos manuscritos deixados pela seita essênia nas cavernas de Qumran, ele não está apenas inspirando, mas também confortando:

  • Preceito de Damasco II:12 “Ele sabia dos acontecimentos que lhes adviriam por todos os anos infinitos. E em todos, Ele criou para Si homens que tinham um nome, para que um remanescente pudesse permanecer na terra, e para que a face da terra pudesse ser preenchida com sua descendência. E Ele lhes revelou Seu Espírito Santo por intermédio de Seus consagrados, e proclamou (lhes) a verdade. Mas aqueles a quem odiava, Ele os descaminhou.”
  • Hino de Ação de Graças (1QH): VII Agradeço a Ti, ó Senhor, por me apoiares com Tua força.

    Derramaste Teu Espírito Santo sobre mim para que eu não tropece.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) IX: Tu me alimentaste com a verdade infalível;

    Tu me deliciaste com Teu Espírito Santo

    e [abriste meu coração] até o dia de hoje.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) XIII: Eu, o Mestre, conheço-Te, ó meu Deus, pelo espírito que tu me deste,

    e pelo Teu Espírito Santo eu obedeci fielmente Teu conselho maravilhoso.

    No mistério da Tua sabedoria Tu me abriste o conhecimento, e em Tua misericórdia

    [Tu me descerraste] a fonte de Teu poder.

  • Hino de Ação de Graças (1QH) XIV E eu sei pelo entendimento que vem de Ti

    que em Tua bondade para com [as cinzas,

    Tu derramaste] teu Espírito Santo[sobre mim]

    para que eu chegasse mais perto de entender-Te.

  • Preceito da Comunidade (1QS) IV: Deus então purificará cada ato do homem com Sua verdade; Ele irá sutilizar a estrutura humana, desarraigando todo o espírito de falsidade dos grilhões da carne. Ele irá limpá-lo de todos os atos iníquos, com o espírito de santidade; qual água purificadora, irá derramar sobre ele o espírito da verdade (para limpá-lo) de toda a abominação e falsidade.
  • Preceito da Comunidade (1QS) IX: Quando estes se tornam membros da Comunidade de Israel de acordo com estes preceitos, deverão estabelecer o espírito de santidade em consonância com a verdade eterna. Deverão expiar a culpa pela rebelião e pelos pecados de infidelidade, para que possam obter a bondade para a Terra, sem a carne dos holocaustos e a gordura do sacrifício. E a oração oferecida da forma certa será como uma aceitável fragrância de retidão, e a conduta perfeita, como uma prazerosa oferenda de boa vontade.

Assinale-se a presença na seita essênia de um forte dualismo entre luz e trevas, limpeza e impureza, verdade e falsidade. Tais oposições não eram desconhecidas entre os primeiros cristãos, como o conceito dos “Dois Caminhos” encontrado em Barnabé e, notadamente, na Didaquê. Dos canônicos, chegou-nos uma pequena amostra disso na carta I João, quando seu autor alertou sobre os ensinos de um certo grupo de dissidentes daquela comunidade:

Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;(…) Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro.
I Jo 4:2,6

Isso não quer dizer que os autores de João, Barnabé e da Didaquê tenham sido essênios. O mais provável é que beberam água da mesma fonte: a cultura judaica intertestamentária, na qual o dualismo e conceitos de “espírito”, “santidade” e “verdade” estavam em voga [cf. Bauckham]. E embora João contenha passagens que hoje seriam tidas simplesmente como antijudaicas, como será discutido mais adiante, sua origem ainda é mais judaica que helênica. E, para tanto, não é preciso apelar para o canônico bíblico ou o esotérico de essênio, pois a literatura deuterocanônica e pseudoepígrafa dá sua cota de usos para esses termos que, curiosamente, está mais perto do que hoje chamaríamos de pentecostalismo que do espiritualismo:

  • Sb 7:21-6 “Tudo sei, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou! Nela, há um espírito inteligentes, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, imaculado, amigo do bem, agudo, incoercível, benfazejo, amigo dos homens, firme, sereno, tudo podendo, tudo abrangendo, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é um eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se introduz. Pois ela é um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua bondade.”
  • Sb 9:17 “Quem conhecerá tua vontade, se não lhe dás Sabedoria enviando dos céus teu santo espírito?”
  • Salmos de Salomão 17:37 “E ele [o rei] não enfraquecerá naqueles dias, graças a seu Deus, pois Deus o fará poderoso pelo Espírito Santo e sábio pelo conselho do entendimento, com poder e justiça.”
  • José e Azenate 19:11 “Então José estendeu suas mãos e abraçou a Azenate, e Azenate a José, e se beijaram por um longo tempo, e ambos viveram de novo no espírito de ambos. E José beijou Azenate e lhe deu o espírito da vida, então, na segunda vez, lhe deu o espírito de sabedoria, e na terceira vez beijou a suavemente e lhe deu o espírito de verdade.”
  • Livro dos Jubileus 25:12-5 “E [Rebeca] disse: “Bem dito seja o Senhor Deus, e que Seu nome santo seja bem dito para todo o sempre, que me deu Jacó como um filho puro e descendência santa; porque ele é Teu, e Tua será sua descendência continuamente e por todas as gerações para sempre. Abençoe-o, oh Senhor, e coloque em minha boca as bênçãos de justiça [verdadeira bênção], para que eu possa abençoá-lo.”E naquela hora, quando o espírito de justiça [espírito de verdade] desceu na boca dela, ela colocou ambas as mãos sobre a cabeça de Jacó e disse:”Bendito sejas tu, Senhor da justiça e Deus das eras. Que Ele te abençoe (Jacó) além de todas as gerações dos homens.
    Que Ele te de, meu filho, o caminho da justiça, e revele justiça a tua descendência. E que Ele faça de teus filhos muitos durante tua vida, e que eles surjam de acordo com os meses do ano. E que os filhos deles se tornem muitos e muito além das estrelas do céu, e que seu número seja maior que o da areia do mar.”
  • Daniel 13:45 (A História de Susana) “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel.”

A importância desses paralelos encontrados em textos religiosos já do fim da Antiguidade é eles tapam parte do fosso existente entre os canônicos do Antigo e do Novo Testamentos, a começar pelo grande incremento de aparições da expressão Espíritos Santo nos dois livros atribuídos a Lucas, em especial Atos. Nesse, após Pentecostes, Pedro faz menção à profecia de Joel ao notar que o Espírito Santo recebido não foi exclusivo dos apóstolos, nem dos judeus:

E Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto.

Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: “Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel [Jl 2:28-32]:
‘E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, Que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, Os vossos jovens terão visões, E os vossos velhos sonharão sonhos; e também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima, no céu; E sinais em baixo na terra, Sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor; e acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.'”

Atos 2:10-21

Seria a graça divina se espalhando para todas as nações a partir dos judeus, bem conforme a proposta de Lucas em suas duas obras. Três aspectos, contudo, diferem o “Espírito Santo” do nascente cristianismo de seus correspondentes judaicos: o primeiro é crença que a era messiânica, de certa forma, já começara e, segundo, o Espírito estaria fortemente vinculado à pessoa de Jesus. Por último, o ele seria uma espécie de promessa para a glória da consumação final [cf. Bruce, p. 55].
[topo]

Se é qualquer Espírito, então não é Espírito Santo Algum

 

Matemática absurda

Com um “zero infinito”, tudo é possível

Primeiramente, melhor se inteirar da opinião de dois autores espíritas, recorrentemente repassadas:

Como cada pessoa tinha e tem um Espírito Santo ou alma, no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão “Espírito Santo”, não se encontra o artigo definido grego “ho” (“o”), pois quando esse original foi escrito, os teólogos ainda não tinham instituído o Espírito Santo e a Santíssima Trindade, à qual Ele pertence. Por isso, não se dizia “o Espírito Santo”, referindo-se àquele definido e único da Santíssima Trindade, já que Ele não existia naquela época. Como vimos, só mais tarde o Espírito Santo e a Santíssima Trindade foram criados.

Destarte, quando na Bíblia, em Português, temos essa expressão Espírito Santo, o artigo Dele deve ser o indefinido “um” e não o definido “o”, para que a tradução seja fiel ao original grego: “um Espírito Santo de alguém”. Mas, infelizmente, todas as traduções foram adaptadas à nova doutrina do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e passaram a usar, erroneamente, a expressão “o Espírito Santo”, quando o certo é “um Espírito Santo”, a que a Bíblia se referia antes da instituição do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e como está no original grego.

Fui repetitivo na explicação desse assunto, propositalmente, para que as pessoas de menos instrução possam também entendê-lo bem. E procurei ser também simples e claro o mais possível na exposição do assunto. E é por isso que deixei também para explicar, somente agora, uma outra faceta desse assunto.

No Grego não há o artigo indefinido “um”. Já o artigo definido “o” (“ho”) existe, e ele aparece normalmente. E, destarte, se no texto original grego se dissesse “o Espírito Santo”, essa expressão ficaria assim: “ho Pneuma Hagion” ou “ho Hagion Pneuma” (o Espírito Santo ou o Santo Espírito”). Acontece que os textos originais gregos vêm sempre sem o artigo definido “ho”, a saber: Pneuma Hagion, pelo que nunca podemos colocar nas traduções para o Português o artigo definido “o”, mas o indefinido “um”, que não aparece em Grego porque, como dissemos, ele não existe em Grego. Mas, como no Português, ele existe, temos que colocá-lo quando aparece a expressão Espírito Santo, ficando, pois, assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”.

Para complicar ainda mais as coisas, o Latim já não tem nem o artigo definido “o” nem o indefinido “um”. Por isso, na Vulgata, só aparece a expressão Espírito Santo assim: Sanctus Spiritus ou Spiritus Sanctus, mas no Português eles existem, e, portanto, temos que colocá-los, quando for o caso.

Sintetizando essa questão, dizemos que a expressão em Grego Pneuma Hagion deve ser traduzida corretamente para o Português assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”, tradução que só estaria certa, se nos textos gregos originais bíblicos ela fosse assim: “ho Pneuma Hagion”. E a Vulgata complicou mais as coisas, pois, como foi dito, o Latim não tem nenhum tipo de artigo, nem o definido nem o indefinido. Mas em Português eles existem. E temos que ser fiéis ao original grego, cujo sentido “um Espírito Santo” e não “o Espírito Santo”.

E sobre o João Batista, temos um texto do anjo anunciador do seu nascimento: “…já desde o ventre de sua mãe, será cheio de um Espírito Santo”(Lucas 1,15). Esse Espírito Santo é o próprio espírito de João Batista. Portanto a tradução “do Espírito Santo” está errada. Aliás, como já vimos, segundo uma corrente de teólogos europeus, quando a Bíblia fala em anjo, ela se refere a espíritos iluminados de pessoas falecidas (padre François Brune, “Os Mortos nos Falam”).

E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada.

E, na verdade, quer se refira à expressão “o Espírito Santo da Trindade”, ao “um Espírito Santo de alguém” ou ao “o Espírito Santo de determinada pessoa definida, por exemplo:“o Espírito Santo de Daniel”, a expressão “Espírito Santo” representa o conjunto de todos os espíritos, estejam eles no Mundo Espiritual ou no Mundo Físico.

Mais um exemplo: “Onde está o que pôs nele o seu Espírito Santo?” (Isaias 63,11). Aqui está certo o artigo definido “o”, porque está definindo uma pessoa, isto é, Moisés. Mas, como se vê, não se trata também do Espírito Santo da Trindade.

Chaves, José Reis; A Face Oculta das Religiões, ebm, 2a. ed., 2006, cap. VII, pp. 142-4.

Parece que os exemplos foram escolhidos a dedo, até de Is 63:11 só foi citado o essencial. O resultado final é a diversificação o “espírito santo” de modo a deixar de ser um canal direto em Javé e os homens para uma multitude de intermediários ou enviados. Há outros questionamentos a se fazer, mas, antes, será apresentado outro autor:

Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).

– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,

Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.

– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.

No movimento espírita, Pastorino está para língua grega assim como Severino Celestino da Silva está para o hebraico: são as fontes mais utilizadas para argumentos, digamos, de “autoridade” para calar qualquer debatedor. O problema é quando a destreza intelectual dos espíritas não consegue ir além do que suas fontes “clássicas” têm a oferecer e mesmo quando são indivíduos treinados – como foi o caso de Pastorino – isso não os impede de ver o que gostariam com o ferramental auferido nos bancos acadêmicos, nem os autoriza a ser a última palavra em seus campos de estudo.

Por ora, teço duas críticas:

  • Pastorino refuta J.R. Chaves: O próprio Pastorino catalogou 30 ocasiões em que pneuma hagion aparece com o artigo somente nos evangelhos, além de outras 29 para apenas pneuma (Idem, vol. V, p. 98). Assim, a principal premissa de J.R. Chaves – “no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão ‘Espírito Santo’, não se encontra o artigo definido grego” – é falsa. Justiça seja feita, ele reconheceu o erro publicamente em um artigo de sua coluna do jornal O Tempo, fazendo menção a Pastorino. Só não ficou claro se o autor folheara alguma Bíblia em grego antes disso;
  • Pastorino demonstra pouco rigor: ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto (tanto que não o computou), esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. No primeiro volume de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:
    1. Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado;
    2. Alexandrino: idem;
    3. Vaticano: idem;
    4. Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
    5. Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
    6. Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.

    Sendo assim, os principais documentos por ele apontados não o corroboram. Alguém poderá alegar que os documentos foram adulterados por escribas. Tudo bem, mas será dele o ônus da prova. Se quer saber, detectou-se, sim, uma alteração no códice Sinaítico quanto a disposição entre “o Espírito Santo” e o verbo “enviará”, mas a expressão sempre esteve lá. Outros dirão que esses códices, embora antigos, ainda assim são dos século IV e V, contemporâneos, portanto, à questão ariana e aos primeiros Concílios Ecumênicos. Haveria, ao menos teoricamente, uma motivação para que fosse alterados para consolidar a doutrina da Trindade… Ok, só não se esqueça dos papiros P66 e P75, ambos datados do começo do século III, bem antes dessas disputas, e “cheios d’O Espírito Santo” em Jo 14:26.

Vamos destrinchar isso melhor?

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Artigo Grego: a Sofisticação da Simplicidade

 

Os artigos gregos do nominativo singular

O artigo integra as dez classes gramaticais que conhecemos, definindo-se como o termo que antepõe o substantivo para determiná-lo ou indeterminá-lo, indicando, também, o gênero (masculino/feminino) e o número (singular/plural).

Fonte: Brasil Escola.

De tão corriqueiro é provável que um falante do português não imagine sua comunicação diárias sem usar artigos. Muitos outros seres humanos, por outro lado, viveram muito bem sem eles – como os antigos romanos – e outros ainda vivem, como os russos e outros povos eslavos. “Ora, mas como eles conseguem evitar ambiguidade?”. Simples: o artigo é um marcador da definição ou indefinição de um substantivo, mas não é o único instrumento para se conseguir isso. Pronomes demonstrativos e possessivos também delimitam elementos, assim como pronomes indefinidos e numerais cardinais podem indeterminá-los. O latim, por exemplo, não tinha “oficialmente” artigos, mas as principais línguas neolatinas criaram os definidos a partir dos demonstrativos ille, illa e illud, e os indefinidos dos numerais unus, una e unum. Não houve, contudo, esse desenvolvimento no russo. Há, também, outro importante marcador da (in)definição de um substantivo: o contexto. Se os interlocutores já sabem a que estão se referindo ou se estão falando de forma genérica, então artigos são dispensáveis. Portanto, vamos ressaltar o primeiro ponto:

I – Artigos são úteis para a clareza da comunicação, mas não são indispensáveis a ela.

Como outros pesos-pesados da família de línguas indo-europeia não possuíam ou possuem artigos (como o sânscrito), cogita-se que o proto indo-europeu – a hipotética “mãe” dos idiomas dessa família – também não os possuía. Não obstante, diversas de suas descendentes desenvolveram artigos de forma independente, numa espécie de “evolução convergente” linguística. O antigo anglo-saxão (ca. 400 d.C), à moda de seus contemporâneos dialetos românicos usava demonstrativos como artigos definidos. De um deles veio o moderno artigo inglês the, que é invariável (i.e., sem gênero ou número). Apesar das similaridades quanto à origem e de sua simplicidade, quem já teve contato com esse idioma a um nível intermediário sabe que o artigo definido inglês esconde algumas armadilhas para os lusófonos. Por exemplo, é comum o inglês omitir o artigo quando a palavra é plural (ou um coletivo) e de sentido genérico, que o diga a American Standard Version em I Co 1:22 “Seeing that Jews ask for signs, and Greeks seek after wisdom“, ou substantivos abstratos como em Rm 6:23 “For the wages of sin is death“. Anglófonos também não usam artigo definido antes de nomes de pessoas – o que é corrente em português-, nem de pronomes possessivos (opcional para nós).

Embora a língua inglesa não seja o assunto aqui, por ela ser um pouco familiar a um potencial número de leitores, tomei-a como amostra para o segundo ponto:

II – O fato de um língua também possuir determinada classe gramatical, de forma alguma significa que ela é usada exatamente da mesma maneira que na sua.

Por sua origem, muitas vezes, de demonstrativos, nem sempre a função do artigo definido é meramente “individualizar”, pois há várias formas de isso ser feito (cf. [Wallace, pp. 216-25]). Assim, o artigo definido pode ser uma combinação de:

  • Identificador: destaca um elemento dos demais do conjunto. Ex: “Onde está a chave que te dei ontem?”
  • Anafórico: Faz referência a algo previamente dito. É possível, que quando ocorra pela primeira vez, a palavra esteja sem artigo ou com artigo indefinido para depois ser referenciada pelo artigo definido. Ex: “Às quatro horas, um sujeito alto de terno claro chegou às dependências da sede. Duas horas depois, o sujeito caminhava pelos corredores do quinto andar.”
  • Catafórico: quase o oposto do anafórico. Neste caso, o substantivo leva o artigo para indicar que alguma coisa extra sobre ele será dita. Ex: “Eis a principal meta: baixar os índices de violência.”
  • Dêitico: indica alguém ou alguma coisa próximo aos interlocutores no momento. Ex.: “A carta que está segurando”.
  • Par Excellence: expressão francesa que ressalta a identificação do substantivo articulado como o melhor de sua classe. Na Idade Média, por exemplo, Aristóteles era chamado de “O Filósofo” (Ille Philosophus) pelos eruditos.
  • Monádico: ressalta o substantivo que o segue como único de sua classe. Ex.: “o Sol”, “o salvador do mundo”.
  • De conhecimento: similar ao par excellence, mas usado com personagens não tão famosos assim, mas facilmente identificáveis aos público presente. Ex.: “Atenção turma, chegou o professor.”

Em sentido contrário, é possível, sim, que o artigo definido generalize em vez de individualizar. Isso se dá quando o substantivo associado a ele passa a representar toda uma classe de seres, como na clássica frase atribuída a Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Ainda existe uma outra capacidade do artigo definido: a personalizar substantivos abstratos. Com eles, pode-se tratar conceitos como se fosse, digamos, entes quase palpáveis. Ex. “a justiça tarda, mas não falha.”

Pode-se reparar, pelos exemplos, que muitas dessas propriedades não precisariam imperiosamente de artigos definidos. Demonstrativos poderiam agir como dêiticos, catafóricos e anafóricos. Monádicos poderiam dispensar complementos, por serem únicos, e o contexto já poderia indicar a quem ou o quê nos referimos. Plurais podem simbolizar classes inteiras, como o inglês faz opcionalmente. Portanto:

III – Compreender os usos e funções do artigo permite vislumbrar como poderiam ser dispensados.

O artigo definido grego também descende de demonstrativos e já podia ser rastreado nas obras de Homero, no VIII século a.C. (cf. [Robertson, XVI, pp. 754-5]), já tendo atingido pleno desenvolvimento, no dialeto ático, já obras de Platão. Não perdeu, contudo, um certo “quê” de demonstrativo, ainda que não fosse mais capaz de estabelecer, como esses, as relações de proximidade entre o substantivo a ele associado e os interlocutores. Sua função seria a de um “indicador” a apontar para atenção do ouvinte deveria se voltar (id., p. 756 e [Wallace, p. 208]).

IV – A principal força do artigo definido grego está em assinalar coisas, chamando atenção para elas

O leitor já deve ter reparado, nos diferentes exemplos e citações acima, em formas diferente para o artigo definido grego usado antes “Espírito Santo”. Já que a palavra não muda nem de gênero, nem de número, por que, então, existem formas discrepantes como ‘ο e το? A resposta é que, para a língua grego, será necessário fazer um pequeno adendo à definição de artigo dada no início deste tópico: o artigo não apenas indica o gênero e o número de um substantivos, mas também a função que ele desempenha na oração. Ainda que o artigo não esteja presente, no grego – assim como no latim, no sânscrito e no moderno alemão -, substantivos (e adjetivos) recebem afixos que assinalam o seu caso, i.e, sua função sintática. Estima-se que o proto indo-europeu possuía um sistema de oito casos (todos registrados no sânscrito), dos quais o grego antigo preservou cinco:

  • Nominativo: quando representa o papel de sujeito da oração ou de predicativo, em caso de verbos de ligação;
  • Acusativo: objeto direto;
  • Dativo: objeto indireto;
  • Vocativo: chamamento;
  • Genitivo: indica posse de um ente por outro.
Singular Plural Tradução
Nom. ἄνθρωπος ἄνθρωποι homem(ns)
Gen. ἀνθρώπου ἀνθρώπων de homem(ns)
Dat. ἀνθρώπῳ ἀνθρώποις a homem(ns)
Acus. ἄνθρωπον ἀνθρώπους homem(ns)
Voc. ἄνθρωπε ἄνθρωποι ó homem(ns)

Quadro de inflexões para anthropos (homem, humano), da primeira declinação.

O genitivo, auxiliado por preposições, absorveu as função original do caso ablativo de indicar a origem de um movimento ou um destacamento, ou, como no ablativo latino, fazer as vezes de uma adjunto adverbial. O dativo, também associado a preposições, assumiu o papel dos casos locativo (indicando local ou época em que uma ação de desenrola) e o instrumental (o “como” uma ação foi feita). Os grupos de palavras com um padrão flexional similar são chamados de declinações e o grego possui três, com diversos subtipos.

O artigo definido acompanha o substantivo a ele associado em gênero, número e caso, conforme o esquema a seguir:

Singular Plural
Caso \ Gênero Masculino Feminino Neutro Masculino Feminino Neutro
Nom. τό οἱ αἱ τά
Gen. τοῦ τῆς τοῦ τῶν τῶν τῶν
Dat. τῷ τῇ τῷ τοῖς ταῖς τοῖς
Acus. τόν τήν τό τούς τάς τά

Façam-se algumas observações: primeiramente, o artigo definido não é utilizado com o vocativo. Em segundo, tanto na tabela imediatamente acima como na anterior, foi utilizado um sistema de escrita desenvolvido ao longo da Idade Média. Nos tempos bíblicos não havia letras minúsculas, sinais diacríticos (vulgo “acentos”) e nem o “iota subscrito”, sendo que esses dois últimos, por praticidade, serão por vezes omitidos a partir daqui. Por último, ressalte-se que pneuma é um substantivo neutro – gênero desconhecido em nossa língua -, logo, no nominativo, pede “το” como artigo, em vez de “ὁ” (transliterado para ho), como aparece em alguns autores (espiritualistas ou não). Portanto,

V – O artigo definido grego concorda com as palavras a ele associadas, levando em conta alguns critérios inexistentes no idioma português.

Como substantivos geralmente vêm acompanhados de adjetivos, cada língua desenvolveu sua própria forma de lidar com a relação entre eles (e com os artigos associado, por extensão). Em inglês, os adjetivos são invariáveis e vêm antes do substantivo. Em português, eles concordam com o substantivo e, via de regra, vão após ele. Em grego, eles podem vir tanto antes como, porém com mudanças de significados, conforme o artigo definido se posicione entre eles. Há duas formas classificadas desse relacionamento: a posição atributiva do adjetivo e a predicativa, descritas abaixo:

Forma Exemplo Tradução
Atributiva ὁ ἁγαθὸς λόγος a boa palavra
ὁ λόγος ὁ ἁγαθὸς
Predicativa ὁ λόγος ἁγαθὸς a palavra é boa
ἁγαθὸς ὁ λόγος

Em relação às formas atributivas, é comum em gramáticas gregas ressaltar-se que a primeira coloca a ênfase no adjetivo, ao passo que a segunda passaria a ideia de um aposto como “a palavra, a boa” em oposição a outras “palavras não tão boas”. Entretanto, às vezes os redatores duas construções de forma intercambiável, como na expressão “ao terceiro dia” encontrada na segunda forma em Lc 18:33 (τη ημερα τη τριτη) e na primeira em Lc 24:7 (τη τριτη ημερα). De qualquer modo, ambas são traduzidas do mesmo modo, afinal a segunda forma não tem equivalente em português. Já as predicativas se caracterizam estruturalmente pela ausência de um artigo definido antes do adjetivo e semanticamente pela existência implícita de um verbo de ligação, que deve ser acrescentado na tradução. Se há implicações na disposição do adjetivo para “espírito santo”, é algo a se avaliar mais adiante, por ora:

VI – A disposição entre o adjetivo e o substantivo (além do artigo) em grego se dá comumente em estruturas sintáticas desconhecidas no português. As devidas adaptações são necessárias durante a tradução.

Talvez algum leitor esteja se perguntando “essas regras também valem para o artigo indefinido, não?”. A língua grega também desenvolveu o artigo indefinido a partir de numerais, como a nossa, porém isso ainda não estava claro ao século I d.C., na koiné popular do Novo Testamento. Tecnicamente, ainda não havia o artigo indefinido, portanto αγαθος λογος e λογος αγαθος podem significar tanto “uma boa palavra” (atributivo) quanto “uma palavra é boa” (predicativo), ficando a cargo do contexto a distinção do melhor sentido. Entretanto, por vezes, os autores do Novo Testamento usavam os numerais εις (“um”, ex.: Mt 8:19 και προσελθων εις γραμματευς), μια (“uma”) e εν (“um”, neutro) ou o pronome indefinido τις (“um certo”, ex.: Lc 10:25 και ιδου νομικος τις ανεστη) como artigos indefinidos, mas ainda não constituíam uma classe gramatical separada.

VII – O grego bíblico não possuía o artigo indefinido como classe gramatical plena, o que não significa que não possuísse alternativas. Doravante, ao se mencionar o “artigo grego”, subentenda-se o definido.

Então alguém deve estar pensando (ou já tem a resposta pronta) “Ah! Se há artigo, a palavra é definida. Se não há, então ela é indefinida, devendo ser traduzida sem artigo ou com o artigo indefinido português“. Se tudo fosse tão simples assim – como gostariam espiritualistas e testemunhas de Jeová – até não haveria o que discutir. Só que não. Se você realmente entendeu tudo o que está escrito acima, chegará à seguinte conclusão:

VIII – Em grego bíblico, se uma palavra é precedida de artigo, então a ideia envolvida é definida. Do contrário, ela pode ser definida ou não!

Melhor dar uma explicação pormenorizada, com exemplos da própria Escritura.
[topo]

A Presença dos Ausentes


 

Um coração feito de artigos

O grego só tem o artigo definido, que é um antigo demonstrativo, anafórico, e se usa sempre que há necessidade de definir um nome, isto é, de articular, que é função anafórica.

Na medida em que o artigo é um αρθρον, juntura, articulação, a ausência dele exprime a ausência da articulação e por isso exprime a indefinição.

Coloca-se o artigo sempre antes do nome, de quem assume o gênero,o número e o caso, porque, na verdade, ele é um adjunto adnominal.

[Murachco, p. 19]

Tudo o que a elogiada gramática grega de Murachco traz sobre o artigo cabe em uma única página, colocada no segundo volume, que é dedicado a exercícios. A parte teórica, constante no primeiro volume, sequer toca nele. A gramática de Antônio Freire, veterana entre os estudantes lusófonos, trata um pouco mais do tema, porém não muito. Caso tudo sobre o artigo grego se restringisse ao que trazem, seria necessário dar crédito às teses dos eruditos espiritualistas (e da Watch Tower).

Surpreso fiquei ao deparar com o colossal The Doctrine of the Greek Article, de Middleton, uma obra oitocentista um bocado confessional como as dos autores de critico, mas com o mérito de demonstrar quanto “pano para manga” o assunto poderia render. Gramáticos no Novo Testamento posteriores, e de ênfase mais técnica, dedicaram capítulos inteiros ao artigo (Robertson), quando não dois (Wallace). Recentemente, Ronald Peters tentou reunir tudo que já foi dito sobre o assunto num arcabouço teórico coerente. Ainda é cedo, contudo, para avaliar o impacto de sua proposta.

De fato, caso se fosse levar a ferro e fogo essa simplista regra gramatical, no melhor estilo one size fits all, efeitos estranhos surgiriam durante a tradução. Tome o exemplo do prólogo de João (Jo 1:1):

Eν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος

O que, literalmente, seria:

Em (um) princípio era o Verbo, e o Verbo estava com o Deus, e o Verbo era Deus.

Sinceramente, não deve ter sido essa a intenção do evangelista.

Quando estão lá, mas não aqui


Como dito antes, o artigo marca a definição do substantivo a ele associado, o que não significa que haja uma correspondência biunívoca com o seu equivalente da língua portuguesa. Muitas vezes, uma estrutura articular (i.e, com artigo) aparece em circunstâncias que nosso idioma dispensaria, carecendo, então, de uma explicação. Eis um apanhado que algumas situações:

  1. A segunda posição atributiva: não é difícil encontrar quem faça um bicho de sete cabeças dela, alegando que το πνευμα το αγιον deveria sempre vir como “o espírito, o santo”, mas a maioria das vezes ela pouco significa em termos teológicos, como:

    οταν ελθη εν τη δοξη του πατρος αυτου μετα των αγγελων των αγιων

    quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.

    Mc 8:38

  2. Junto a possessivos: uma estrutura desconhecida no inglês e no espanhol, frequente no português, é praticamente obrigatória no grego:

    εκτεινας την χειρα ηψατο αυτου
    estendeu (a) sua mão

    Mc 1:41

  3. Com genitivos: quando o substantivo principal é seguido por outro no genitivo, ou ambos possuem ou carecem de artigo

    ειδεν το πνευμα του θεου καταβαινον ωσει περιστεραν
    viu o Espírito de Deus descendo como pomba

    Mt 3:16

    por outro lado:

    ει δε εγω εν πνευματι θεου εκβαλλω τα δαιμονια
    Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus,

    Mateus 12:28

    Caberia “por (um) espírito de (um) deus”? Se o couber, II Co 6:7 ficaria um tanto estranho: “numa palavra duma verdade, num poder de (um) deus…”

  4. Com demonstrativos: o uso de pronomes demonstrativos na segunda posição predicativa cria um estrutura desconhecida me português e, diria, até estranha para seus falantes e os de línguas que também dispensam o artigo nesse caso (espanhol, inglês, etc.):

    και επι ταυτη τη πετρα
    e sobre esta pedra

    Mt 16:18

  5. Com indeclináveis: os tradutores gregos e latinos da Escritura tiveram um problema sério ao lidar com nomes próprio hebraicos, pois eles, via de regra, não se encaixavam em nenhuma das classes de declinação que conheciam. Uma opção era transliterá-los para algo mais familiar, já o mais famoso tradutor latino,Jerônimo, tomou uma decisão radical: não os declinava e deixava ao leitor a tarefa de identificar seu caso do contexto. Por vezes os autores do Novo Testamento não declinavam nomes próprios, mas, para facilitar a vida do leitor, deixavam um artigo marcando o caso em que a palavra se encontrava.

    ει δε υμεις χριστου αρα του αβρααμ σπερμα εστε

    se sois de Cristo, então sois semente de Abraão.

    Gl 3:29

    O testemunho dos manuscritos traz um caso interessante:

    πλησιον του χωριου ο εδωκεν ιακωβ [τω] ιωσηφ τω υιω αυτου
    junto da herdade que Jacó tinha dado a seu filho José.

    Jo 4:5

    O papiro P66 e os códices Vaticano e Sinaítico trazem o artigo de dativo τω antes do nome de José (Iωσηφ), porém o códice Alexandrino e a maioria dos demais manuscritos, não. Mesmo sem o artigo é possível, sim, identificar o caso em que o nome “José” se encontra pelas palavras que seguem a ele (claramente no dativo), porém a presença do artigo antes dele facilita a leitura. E não tem implicação semântica ou teológica alguma.

  6. Como um relativo em orações com função de genitivo ou preposicionadas, o artigo acaba por fazer as vezes do que seria um pronome relativo no português:

    πατερ ημων ο εν τοις ουρανοις
    Pai nosso que estás nos céus

    Mt 6:9

    Mas se preferir “Pai nosso, o nos céus”, seja feliz (paciência)!

  7. Discernindo o sujeito de seu predicativo: tanto um como outro acabam sendo assinalados pelo mesmo caso, o que pode gerar ambiguidade às vezes. Para sanar isso, o artigo era posto junto ao sujeito da oração:

    πατερα ιδιον ελεγεν τον θεον
    dizia que Deus era seu próprio Pai

    Jo 5:18

    κυριος γαρ εστιν και του σαββατου ο υιος του ανθρωπου
    Porque o Filho do homem até do sábado é Senhor

    Mt 12:8

Esta lista não exaustiva oferece uma amostra de situações em que o modo de pensar de nossa língua não corresponde exatamente ao do grego bíblico. Entretanto, a problemática principal se dá quando o substantivo não possui artigo. Poderia ele ainda assim transmitir uma ideia ou conceito definido, delimitado?

Quando não estão lá, mas podem estar aqui


Caso a regra simplista quanto ao uso (e desuso) do artigo grego fosse absoluta, então seria trivial indicar o uso dele em substantivos cuja identidade é sabidamente determinada. Contudo, não é difícil achar contraexemplos para tal pressuposto:

GÁLATAS 3:21-6

Grego Tradução (João F. de Almeida Revisada)
21. ο ουν νομος κατα των επαγγελιων του θεου μη γενοιτο ει γαρ εδοθη νομος ο δυναμενος ζωοποιησαι οντως αν εκ νομου ην η δικαιοσυνη
22. αλλα συνεκλεισεν η γραφη τα παντα υπο αμαρτιαν ινα η επαγγελια εκ πιστεως ιησου χριστου δοθη τοις πιστευουσιν
23. προ του δε ελθειν την πιστιν υπο νομον εφρουρουμεθα συγκεκλεισμενοι εις την μελλουσαν πιστιν αποκαλυφθηναι
24. ωστε ο νομος παιδαγωγος ημων γεγονεν εις χριστον ινα εκ πιστεως δικαιωθωμεν
25. ελθουσης δε της πιστεως ουκετι υπο παιδαγωγον εσμεν
26. παντες γαρ υιοι θεου εστε δια της πιστεως εν χριστω ιησου
21. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei.
22. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
23. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar.
24. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados.
25. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio.
26. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus.

As palavras πιστις (“fé”) e νομος (“lei”) aparecem várias vezes em estruturas articulares e anartras (i.e., sem artigo) quase adjacentes. Conhecendo-se o tema de Gálatas é fácil identificar que se referem à fé em Jesus e à lei mosaica e apenas uma das instâncias anartras de νομος sugere indefinição (uma lei qualquer). Talvez, como já foi sugerido por gramáticos, o artigo grego “pegue” e ressalte a definição de um substantivo ao invés dar-lhe uma. Assim, ao se defrontar com um substantivo anartro, há de se perguntar não se ele é indefinido ou não, mas se a ideia que porta o é.

Basicamente, um substantivo anartro três tipos distintos de “caráter”: indefinido, qualitativo e definido. Não são estanques, mas formam um contínuo do mais genérico ao mais específico. Em algumas circunstâncias o caráter qualitativo pode estar mais perto do indefinido, em outras, do definido.

Gradações do caráter de um nome anartro

O carácter de um substantivo anartro.

  • Indefinido: o substantivo representa um elemento de uma classe sem especificar qual é. Traduz-se, em geral, com o artigo indefinido português.

    Caráter Indefinido

    O esquema do caráter indefinido.

    Por exemplo:

    ερχεται γυνη εκ της σαμαρειας αντλησαι υδωρ
    Veio uma mulher de Samaria tirar água.

    Jo 4:7

  • Qualitativo: indica a pertinência a uma determinada classe, implicando na posse das qualidades inerentes a ela, sem realçar sua individualidade. Traduz-se, em português, sem artigo ou com um artigo indicador de classe (como em “o homem é um animal racional”).

    Caráter qualitativo

    Esquema do caráter qualitativo.

    Exemplos:

    οτι ο θεος αγαπη εστιν
    Porque Deus é amor.

    I Jo 4:8

    ει εξεστιν ανδρι γυναικα απολυσαι
    se é lícito a[o] homem repudiar [sua] mulher.

    Mc 10:2

    Em I Jo 4:8, o substantivo Deus não é “um amor”, no sentido que existam outros, nem “o amor”, como se fosse um sentimento, mas se enfatiza que “amar” é uma qualidade que lhe é inerente. Já Mc 10:2 carrega mais no aspeto de pertinência a um conjunto ou classe. A Sociedade Bíblia Britânica traduz o versículo por “um homem repudiar sua mulher”, o que tem sentido análogo, pois não se faz referência a determinada pessoa não identificada (como no caso da mulher samaritana de Jo 4:7), mas a qualquer membro do gênero masculino.

  • Definido: permite que um elemento específico de uma classe seja identificado, quer seja pelo contexto ou alguma particularidade gramatical. Não há uma regra sistemática para isso, porém algumas linhas gerais podem ser traçadas:

    Caráter qualitativo

    Esquema do caráter definido.

    1. Substantivos próprios: são definidos por natureza. É comum serem anartros na primeira aparição na narrativa, mas receberem um artigo anafórico nas seguintes.

      παυλον διελθοντα τα ανωτερικα μερη ελθειν εις εφεσον
      Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso

      At 19:1

      Mais adiante

      και επιθεντος αυτοις του παυλου τας χειρας ηλθεν το πνευμα το αγιον επ αυτους
      E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo

      At 19:6

    2. regido por preposição: é comum anartros substantivos após uma preposição terem sentido definido.

      ερχομενον απ’ αγρου
      vindo do campo

      Mc 15:21 (compare com Lc 17:7 εκ του αγρου)

      διελθων δια μεσου αυτων
      passando pelo meio deles

      Lc 4:30

      εν σαρκι γαρ περιπατουντες ου κατα σαρκα στρατευομεθα
      Porque, andando na carne, não militamos segundo a carne.

      2 Cor 10:3

      οτι ουκ εγκαταλειψεις την ψυχην μου εις αδου
      Pois não deixarás a minha alma no inferno [Hades]

      At 2:27

      Vale ressaltar que um substantivo anartro preposicionado não tem necessariamente de ser definido, como em Jo 4:27

      οτι μετα γυναικος ελαλει
      que estivesse falando com uma mulher

    3. Com palavras no genitivo: Já foi mencionado anteriormente que, em construções genitivas, tanto o nome que a encabeça quanto o que está no caso genitivo virão com ou sem o artigo, um postulado conhecido desde a Antiguidade como Regra de Apolônio . Um corolário dessa regra, proposto já nos tempos recentes, afirma que, geralmente, quando as palavras dessas construções são anartras, ambas possuem o mesmo caráter semântico. Assim, haveriam majoritariamente pares definido-definido, qualitativo-qualitativo e indefinido-indefinido. Em seguida, viriam pares que elas se distanciam por um grau (ex., D-Q) e mais raramente aquelas que se distanciam por dois (D-I e I-D). Eis alguns exemplos que pares anartros D-D que obedecem ao corolário:

      και πυλαι αδου ου κατισχυσουσιν αυτης
      e as portas do Hades [inferno] não prevalecerão contra ela

      Mt 16:18

      ου δυνασθε ποτηριον κυριου πινειν και ποτηριον δαιμονιων ου δυνασθε τραπεζης κυριου μετεχειν και τραπεζης δαιμονιων
      Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.

      I Co 10:21

      και εδωκεν αυτω διαθηκην περιτομης
      E deu-lhe a aliança da circuncisão.

      At 7:8

    4. construções genitivas preposicionadas: juntam-se as forças dos dois casos anteriores:

      το δε καθισαι εκ δεξιων μου και εξ ευωνυμων μου ουκ εστιν εμον δουναι
      mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me pertence dá-lo

      Mt 20:23

      περι ελπιδος και αναστασεως νεκρων εγω κρινομαι
      no tocante à esperança e ressurreição dos mortos sou julgado.

      At 23:6

      κλητος αποστολος αφωρισμενος εις ευαγγελιον θεου
      chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus

      Rm 1:1

      και παρα καιρον ηλικιας
      mesmo além do tempo da idade

      Hb 11:11

    5. Começo de livros e seções: podem vir sem artigo, por já serem definidos o bastante:

      Ευαγγελιον κατα Μαρκον
      O Evangelho segundo Marcos

      βιβλος γενεσεως ιησου χριστου
      Livro da geração de Jesus Cristo

      Mt 1:1

      Fato curioso ocorre na abertura da Primeira Epístola de Pedro, pois não há um artigo sequer.

      I Pe 1:1,2

      Grego Tradução (João F. de Almeida Revisada)
      1. πετρος αποστολος ιησου χριστου εκλεκτοις παρεπιδημοις διασπορας ποντου γαλατιας καππαδοκιας ασιας και βιθυνιας

      2. κατα προγνωσιν θεου πατρος εν αγιασμω πνευματος εις υπακοην και ραντισμον αιματος ιησου χριστου χαρις υμιν και ειρηνη πληθυνθειη

      1. Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia;

      2. Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.

    6. palavras aos pares ou em sequências: Muitas vezes, palavras de sentido definido ou qualitativo aparecerem anartras quando mencionadas em duplas.

      και αναπαυσιν ουκ εχουσιν ημερας και νυκτος
      e não descansam nem de dia nem de noite

      Ap 4:8

      Ou “não descansam dia e noite”, mais literalmente. Um idiomático anartro também é viável em português. Outros exemplo:

      και γαρ ειπερ εισιν λεγομενοι θεοι ειτε εν ουρανω ειτε επι [της] γης
      Pois ainda que há os que se chamam deuses, quer no céu quer na terra

      (O artigo de γης – “terra” – aparece ou não dependendo da variante textual)

      1 Cor 8:5

      τω ετοιμως εχοντι κριναι ζωντας και νεκρους
      o que está pronto para julgar os vivos e os mortos

      1 Pe 4:5

      Agora, exemplos de longas listagens:

      ειτε παυλος ειτε απολλως ειτε κηφας ειτε κοσμος ειτε ζωη ειτε θανατος ειτε ενεστωτα ειτε μελλοντα
      Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro.

      1 Cor 3:22

      πανηγυρει και εκκλησια πρωτοτοκων εν ουρανοις απογεγραμμενων και κριτη θεω παντων και πνευμασιν δικαιων τετελειωμενων
      À universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados;

      Hb 12:23

      É comum em pares ou sequências de palavras de mesma classe e caso unidas pelo conectivo και (“e”), quando a primeira delas recebe artigo, as demais o dispensarem. Um exemplo clássico:

      τοις δε δειλοις και απιστοις και εβδελυγμενοις και φονευσιν και πορνοις και φαρμακοις και ειδωλολατραις και πασιν τοις ψευδεσιν το μερος αυτων εν τη λιμνη τη καιομενη πυρι και θειω
      Mas quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicários, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre

      Ap 21:8

    7. numerais ordinais: Em grego, o ordinal já era considerado definido o bastante por si só muitas vezes. Ressalte-se que, nos tempos antigos, usavam-se ordinais para expressões de tempo.

      αυτη [η] απογραφη πρωτη εγενετο ηγεμονευοντος της συριας κυρηνιου
      Este foi o primeiro recenseamento que se fez no tempo em que Quirino era governador da Síria.

      Lc 2:2 (nota: textos bizantinos trazem απογραφη (“censo”) articular.)

      ην δε ωρα τριτη και εσταυρωσαν αυτον
      Era a hora terceira, quando o crucificaram.

      Mc 15:25

      ητις εστιν εντολη πρωτη εν επαγγελια
      que é o primeiro mandamento com promessa

      Ef 6:2

    8. predicativo do sujeito: já foi dito anteriormente que o artigo grego é usado como um marcador para o sujeito de um verbo de ligação. Uma consequência é a omissão, muitas vezes, do artigo para o predicativo, que pode ter um caráter definido, qualitativo ou indefinido. Em 1931, Ernest Cadman Colwell defendeu sua tese de doutorado – “O Caráter do Grego do Evangelhos de João” – e, em sua pesquisa, descobriu uma regra para o uso do artigo que de foi publicada à parte em 1933 e ficaria conhecida posteriormente como “Regra de Colwell”:

      “Os substantivos de predicado definido que precedem o verbo geralmente carecem de artigo (…) um predicativo nominativo que preceda o verbo não pode ser traduzido como um substantivo indefinido ou ‘qualitativo’ unicamente por causa da ausência do artigo; se o contexto sugere que o predicado é definido, ele deve ser traduzido como um substantivo definido.”

      Uma posterior análise de Philip B. Harner que apenas em 20% dos casos, o predicado pré-verbal é definido e quase sempre nos demais 80% ele é qualitativo. Exemplos do primeiro caso:

      [ει] βασιλευς ισραηλ εστιν καταβατω νυν απο του σταυρου
      [Se] é o Rei de Israel, desça agora da cruz

      Mt 27:42

      ου γαρ επαισχυνομαι το ευαγγελιον δυναμις γαρ θεου εστιν εις σωτηριαν παντι τω πιστευοντι
      Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê

      Rm 1:16

      ο λογος γαρ ο του σταυρου τοις μεν απολλυμενοις μωρια εστιν τοις δε σωζομενοις ημιν δυναμις θεου εστιν
      Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.

      I Co 1:18 (no caso, um predicativo qualitativo e outro definido pré verbais num mesmo versículo)

      και αυτος ιλασμος εστιν περι των αμαρτιων ημων
      Ele é a propiciação pelos nossos pecados

      I Jo 2:2

    9. com substantivos monádicos: substantivos únicos de sua espécie em muitas ocasiões recebem um artigo que lhes ressalta a exclusividade (ex: “cordeiro de Deus” em Jo 1:29). Por outro lado, em outras o dispensam, muito bem, obrigado:

      ηλιου δε ανατειλαντος εκαυματισθη
      mas, vindo o Sol, queimou-se

      Mt 13:6

      αλλη δοξα ηλιου και αλλη δοξα σεληνης και αλλη δοξα αστερων αστηρ γαρ αστερος διαφερει εν δοξη
      Uma é a glória do Sol, e outra a glória da Lua, e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela.

      I Co 15:41

      ουρανοι ησαν εκπαλαι και γη εξ υδατος και δι υδατος συνεστωσα
      já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste.

      II Pe 3:5 (compare com Mt 5:18)

    10. monádicos preposicionados: combinação de dois dos casos anteriores:

      ο δε υπομεινας εις τελος ουτος σωθησεται
      mas aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.

      Mt 24:13 (afinal, só existe um “final”)

      εν αρχη ην ο λογος
      no princípio era o Verbo.

      Jo 1:1 (porque, “em princípio”, existe apenas um “princípio”)

      εξ ου πασα πατρια εν ουρανοις και επι γης ονομαζεται
      Do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome

      Ef 3:15 (aqui também poderia ser o caso de palavras em par)

    11. substantivos genéricos: estando na fronteira entre o qualitativo e o definido, os substantivos que representam classes não precisam necessariamente de artigo. Quando traduzidos levam um artigo definido ou até mesmo um indefinido, conforme o caso.

      κριτης τις ην (…) ανθρωπον μη εντρεπομενος
      Havia um certo juiz (…) que não respeitava o homem

      Lc 18:2

      που σοφος; που γραμματευς;
      onde está o sábio? onde o erudito?

      I Co 1:20

      η γυνη δε δοξα ανδρος εστιν
      mas a mulher é a glória do marido

      I Co 11:7 (aqui tem-se um substantivo genérico articular ao lado de outro anartro)

* * *

Por ora, esta lista não exaustiva basta para deixar claro que a simples ausência do artigo grego não implica que as traduções para o português devam ser anartras também ou com o artigo indefinido. Se alguém vier a clamar essa regra fajuta, na melhor das hipóteses será um desinformado e, na pior, agirá por má fé, tendo a própria Escritura que se apropria louva por contraprova.

[topo]

As Faces do Espírito

Os Dons do Espírito

3. (…) Os arianos, tendo mal entendido a presença encarnada do Verbo e as coisas que foram ditas em consequência disso, tomaram delas uma desculpa para sua heresia e foram condenados como inimigos de Deus e por falar coisas que são, na verdade, improdutivas e terrenas (cf Jo 3:12,31). Mas de onde foste enganado? De quem ouviste tal erro? De que modo caíste nisso: “Lemos”, dizem eles, “no profeta Amós (Am 4:13, LXX), onde Deus diz: ‘Eu sou o que faz trovão e cria espírito e declara ao homem seu Cristo, que faz aurora e escuridão, que ascende aos altos lugares da Terra. O Senhor Deus onipotente é seu nome.’ Por isso cremos nos arianos quando disseram que o Espírito Santo é uma criatura.” Assim lês a passagem em Amós. (…) Simplesmente por ouvir a palavra “espírito” supuseste que o Espírito Santos fosse chamado de criatura. (…) Mas o texto não dá indicação alguma do Espírito Santo; apenas fala de espírito. Por que, então, embora haja na Escritura uma grande diferença no uso da palavra e o texto possa ser interpretado num sentido ortodoxo, tu – quer pelo amor à disputa ou por ter sido envenenado pela presa da serpente ariana – supões que o Espírito Santo seja referenciado em Amós? Só que não pode esquecer de considerá-lo como um criatura.

4. Diz-nos, então, se há alguma passagem na divina Escritura onde o Espírito Santo é encontrado simplesmente referenciado como “espírito” sem o acréscimo de “de Deus”, ou “do Pai”, ou “meu”, ou “de Cristo” ele próprio, e “do Filho”, ou “de mim” (i.e., de Deus), ou com o artigo, de modo que é chamado não meramente de “espírito”, mas de “o Espírito”, ou o mesmíssimo termo “Espírito Santo” ou Parácleto, ou “da Verdade” (i.e., do Filho que diz: “Eu sou a Verdade”), que, justamente porque ouviu a palavra “espírito”, toma-la como se fosse o Espírito Santo? Deixe de fora, por enquanto, os caso em que pessoas que já receberam o Espírito Santo são mencionadas novamente e os lugares onde os leitores, tendo previamente sabido dele, não são ignorantes sobre quem estão ouvindo quando ele é mencionado outra vez, pela forma de repetição ou lembrete, meramente como “o Espírito”, nesses casos também é geralmente usado com o artigo. Sumarizando, a não ser que o artigo esteja presente ou o supracitado acréscimo, isso não pode se referir ao Espírito Santo.

Atanásio, Carta ao bispo Serapion. Fonte: [Shapland, epístola I.3-4, pp. 66-70]

Assim falou Atanásio, bispo de Alexandria e campeão do partido Trintário durante o auge da controvérsia ariana, numa correspondência cuja datação estimada se situa entre 356 e 361 d.C., o que seria o período seu terceiro exílio [Shapland, p. 16]. Esse talvez seja o mais antigo relato sobre a importância do artigo (e do contexto) sobre as questões da pneumatologia, i.e., a doutrina teológica do Espírito Santo. Note que Atanásio, no trecho acima, fala da distinção entre “(um) espírito”/”o Espírito”, embora também considere como a favor de seu ponto de vista construções anartras de “espírito santo” (ex. Jo 20:22 na epístola I. 6) ou articulares que autores espiritualistas já usaram em tempos recentes (Dn 13:45, ep. I.5, p.71). De qualquer maneira, o entendimento de Atanásio já está próximo ao da corrente ortodoxia cristã e seria corroborado no I Concílio de Constantinopla em 381 d.C., cerca de oito anos após sua morte. Será, portanto, necessário analisar criteriosamente a literatura cristã pré-nicena e a intertestamentária para identificar como esse entendimento surgiu e evoluiu.

No Novo Testamento, basicamente, estas são as formas em que pneuma (“espírito”) aparece:

  • Pneuma
  • To Pneuma
  • Pneuma Hagion
  • To Pneuma to Hagion
  • To Hagion Pneuma

Vejamos as circunstâncias em que cada uma aparece, especialmente em Lucas, Atos e João: os livros em que esse conceito é crucial.

Pneuma x To Pneuma


Não há nenhuma “bala de prata” para se discernir se pneuma significa um espírito qualquer ou o “Espírito de Deus” ou o “Santo”. De certo, a ausência de artigo abre espaço para a generalização (cf. Lc 24:37), mas sua presença não basta para definir de quem espírito é, caso o artigo seja anafórico ou de classe (como até Atanásio admitiu). A solução é extrair mais informações do contexto.

Por exemplo, no texto de Amós posto acima, intui-se que seu autor falava de fenômenos da natureza, devendo a melhor tradução para pneuma ser “vento”, algo talvez desprovido de qualquer divindade ou espiritualidade, aliás, na literatura greco-romana, essa palavra poderia ter significados ainda mais mundanos:

Algumas vezes ambos são removidos pelos mesmos [remédios] – por exemplo, sempre que a dor ocorre devido ao pneuma flatulento e ao espessamento da parte. Sob essas circunstâncias, o uso dos agentes que são moderadamente aquecedores é adequado; i.e., os que também chamamos de relaxante, e que simultaneamente rarefazem o que ficara denso no corpo, afinam o pneuma flatulento, e dispersam o que já ocorreu de inflamação.

Fonte: Galeno, Method of Medicine, Vol III, XIII.6, Loeb Classical Library, p.349

Quem diria pneuma associado a gases pútridos em um manual de medicina da Antiguidade…

Na verdade, como qualquer pessoa que já trabalhou em traduções (e não simplesmente transcreveu as alheias) sabe, não importa a língua, nem a palavra escolhida: não existirá nenhum equivalente completo para a dada palavra em sua língua materna. Haverá, sim, um conjunto de palavras cujo emprego se sobrepõe ao dela. Quanto mais, digamos, “concreta” ela for, menor esse conjunto e maior a sobreposição serão e o inverso se dá com as mais abstratas. Como é o caso de pneuma:

Vários significados de pneuma

Lista não exaustiva dos diversos significados de pneuma, do mais concreto ao mais abstrato, em sentido anti-horário.

Boa parte dos embates teológicos surge quando um grupo centra-se em um significado e desconsidera ou invalida a possibilidade de outros que são adotados por rivais. Quanto mais simbólica a mensagem, pior:

O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

Jo 3:6-8

Uma dúvida que se pode levantar é se esse artigo utilizado é definidor de um indivíduo ou de uma classe. O Evangelho segundo o Espiritismo (cap. IV) adotou o segundo entendimento ao considerar o conjunto de versículos acima como uma das provas de reencarnação na Bíblia, fazendo de “o espírito” um genérico para o “espírito humano”. Nas palavras do próprio Allan Kardec:

“O Espírito sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, é uma passagem que se pode entender pelo Espírito de Deus que dá a vida a quem quer, ou pela alma do homem. Nesta última acepção, a seqüência: “mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, significa que não se sabe o que foi nem o que será o Espírito. Se, pelo contrário, o Espírito, ou alma, fosse criado com o corpo, saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso, esta passagem é a consagração do principio da preexistência da alma, e por conseguinte da pluralidade das existências.

ESE IV.9

Há um pormenor que ficou de fora – “e ouves a sua voz” – o espírito não necessariamente existe exclusivamente para dar vida. A inspiração profética e de adoração também era tida como uma de suas capacidades, como visto acima, caso sua origem fosse divina. Assim, esse renascimento teria outro significado e poderia ser obtido numa mesma existência humana. Qual seria o sentido do evangelista ou, ao menos, de seus primeiros leitores? Há de se retornar a essa questão mais adiante.

Quando o contexto é menos simbólico, é mais fácil identificar a quem pneuma se refere:

Este [Apolo] era instruído no caminho do Senhor e, fervoroso de espírito [ζεων τω πνευματι], falava e ensinava diligentemente as coisas do Senhor, conhecendo somente o batismo de João.

At 18:25

Somos informados que Apolo ainda não recebera um batismo cristão (i.e., pelo Espírito Santo), o que só ocorreria em At 19:6, quando experimentou fenômenos semelhantes aos vivenciados pelos apóstolos em Pentecostes. Assim, provavelmente o fervor era do espírito dele mesmo. As traduções portuguesas, inclusive, tornam anartra uma expressão articular em grego, o que até se adequa melhor a esse entendimento.

Quanto a pneuma que vem de fora:

E logo o Espírito o impeliu para o deserto.

Mc 1:12

Essa é uma referência ao pneuma recebido por Jesus em forma de pomba dois versículos antes, também em forma articular. Pode ser Espírito Santo (como Lucas faz em Lc 3:22) ou o “Espírito de Deus”, mas com certeza não é o espírito de Jesus, uma assombração ou um coletivo.

A adição de algum complemento a pneuma – como “de Deus” ou “imundo” – pode esclarecer quanto à origem dele, por outro lado é ainda insuficiente quanto a sua individualidade. Nisso, o adjetivo hagion (“santo”), quando associado a pneuma, merece atenção especial.

Pneuma Hagion x To Pneuma to Hagion


Uma regra muito difundida entre os meios mais, digamos, confessionais alega que:

Quanto ao uso do artigo junto a Pneuma Hagion, quando se trata da individualidade pessoal do Espírito Santo como tal, é articulado; quando se focaliza a operação, os dons e manifestações, é anartro.

Que ficou conhecida com “Regra de Middleton”, em homenagem ao autor de The Doctrine of Article e o primeiro a propor essa regra (cf. pp. 125-6). Eis alguns exemplos em que ela se encaixa bem:

  • Espírito Santo como indivíduo (articular):
    • Mt 12:32 (…) mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado(…)
    • Lc 3:22 E o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba(…)
    • Jo 14:26 Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome(…)
  • Espírito Santo como manifestação ou dom (anartro):
    • Mc 1:8 Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
    • Lc 1:67 E Zacarias, seu pai, foi cheio do Espírito Santo, e profetizou, dizendo:
    • II Tm 1:14 Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós.

Como quase toda regra, essa também está também está sujeita a exceções e “senões”. Primeiramente, há várias construções articulares no Novo Testamento em que Pneuma Hagion, na verdade, leva um artigo anafórico referente a uma primeira menção anartra, como Lc 2:25 e o subsequente versículo. Em situação oposta, há casos em que Pneuma Hagion é anartro, mas a ideia que porta sugere referência a um indivíduo, como em Rm 15:13: “para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo” (εις το περισσευειν υμας εν τη ελπιδι εν δυναμει πνευματος αγιου), que pode muito bem se enquadrar no caso de uma supracitado de uma construção genitiva preposicionada.

O argumento utilizado por Middleton para essa separação foi bem simples: “embora o próprio Espírito seja apenas um, suas influências e operações podem ser muitas” (p. 126). Esse relacionamento “um para muitos” se ajusta bem àquele entendimento de Pneuma Hagion com uma espécie de poder, substância ou canal de comunicação de origem única (divina, no caso) que, por sua vez, ramifica-se por diversos humanos. Expressões anartras em grego como “cheio do Espírito Santo”, “batizar com o Espírito Santo (e com fogo)” ou “ter/estar com o Espírito Santo sobre si” remetem a essa noção. Às vezes, contudo, a dicotomia poder-substância X indivíduo fica um tanto pastosa. É o que acontece no livro de Atos, quando “dar o Espírito Santo” – por uma postura ativa de Deus – é articular (cf. At 5:32 e 15:8), por outro lado “receber o Espírito Santo” – em atitude passiva dos homens – é anartro (cf. At 8:15, 17, 19). O versículo At 5:32 chama atenção:

E nós somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem.

O Espírito Santo é dado/recebido como uma substância ou poder, mas testemunha como se um indivíduo fosse. Juntando-se esse versículo com aquele em que Pneuma Hagion aparece como passível de sofrer blasfêmia (Lc 12:10), fica difícil cogitar que a comunidade lucana tomasse Pneuma Hagion como uma alma desencarnada qualquer, uma falange de espíritos ou alma de cada membro.

To Hagion Pneuma


A articulação de Pneuma Hagion na primeira forma atributiva é uma característica marcante dos livros cuja autoria é tradicionalmente dada a Lucas, que possui a maioria de suas ocorrências. A saber:

  • mas ao que blasfemar contra o Espírito Santo não lhe será perdoado (Lc 12:10)
  • Porque na mesma hora vos ensinará o Espírito Santo o que vos convenha falar. (Lc 12:12)
  • Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós;(…) (At 1:8)
  • e recebereis o dom do Espírito Santo; (At 2:38)
  • e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com ousadia a palavra de Deus. (At 4:31)
  • andando no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo. (At 9:31)
  • maravilharam-se de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. (At 10:45)
  • E assim estes, enviados pelo Espírito Santo,(…) (At 13:4)
  • foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia (At 16:6)

Outras ocorrências

  • batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; (Mt 28:19)
  • Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,(…) (I Co 6:19)

Embora o quadro seja mais nebuloso, é possível cogitar um fundo comum a esses: esse pequeno punhado de versículos tem em comum a presença de uma relação entre Espírito Santo e os humanos. A inversão propiciada por To Hagion Pneuma realçaria o caráter de santidade do Espírito, por ser oriundo de Deus, em sua interação com os mortais, quer seja diretamente (blasfêmia, instrução, impedimento) ou concedendo-lhes dádivas (dom, virtude, consolação) ou recebendo-as deles (templo). A única exceção talvez seja At 4:31, que traz Pneuma Hagion anartro na maioria dos códices bizantinos. Uma hipótese mencionada por [Read-Heimerdinge, cap.V, p. 1666, nota] sugere um uso anafórico do artigo (Pneuma Hagion já fora citado em At 4:8), mas o redator, por questão estilística, teria preferido a primeira forma atributiva para poupar um artigo numa sentença em que já são muito usados junto a outros substantivos.

* * *

Em resumo: grosso modo, Pneuma Hagion se centra no aspecto, digamos, substancial do Espírito Santo, To Pneuma to Hagion no individual e To Hagion Pneuma no relacional. Há exceções e imprecisões, sim, que poderiam muitas vezes ser sanadas casos os antigos houvessem deixado alguma pista de como enxergavam o “espírito”.

E eles deixaram.

[topo]

Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ

PNA HAGION

Nomen Sacrum de To Pneuma to Hagion em Jo 14:26 no Códice Sinaítico.

MANUSCRITOS
Os primeiros exemplares do Novo Testamento eram copiados em papiros (espécie de papel) , material frágil e facilmente deteriorável. Mais tarde passaram a ser escritos em pergaminho (pele de carneiro) , tornando-se mais resistentes e duradouros.

Os manuscritos eram grafados em letras “capitais” ou “unciais” (ou seja, maiúsculas). Só a partir do 8º século passaram a ser escritos em “cursivo”, ou letras minúsculas.

Fonte: Pastorino, Carlos, Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. I, p 3.

COPISTAS
Os encarregados de copiar os manuscritos chamavam-se “copistas” ou “escribas”. Mas nem sempre conheciam bem a língua, sendo apenas bons desenhistas das letras. Pior ainda se tinham conhecimento da língua, porque então se arvoravam a “emendar” o texto, para conformá-lo a seus conhecimentos. Não havia sinais gráficos para separação de orações, e as próprias palavras eram copiadas de seguida, sem intervalo, para poupar o pergaminho que era muito caro. Dai os recursos empregados, como:

ABREVIATURAS
ou reunião de várias letras numa SIGLA, por exemplo: pq, para exprimir porque. Algumas abreviaturas eram perigosas, como: OC, que significa “aquele que”. Mas se houvesse um pequenino sinal no meio do O, fazendo dele um “theta”, passaria a significar “Deus”, (cfr. I Tim. 3:16).

Fonte: Idem, p. 4.

* * *

ESPÍRITO
Vamos aproveitar para esclarecer a distinção que fazemos das diversas acepções da palavra ESPÍRITO. Ora o escrevemos entre aspas e com inicial minúscula: o “espírito”, e queremos então referir-nos ao termo comum de espírito desencarnado, isto é, ao espírito da criatura que ainda está preso à personalidade, com um rótulo, ou seja, um NOME: por exemplo, o “espírito” de João, o “espírito” de Antônio, etc . Doutras vezes escrevemos a palavra com inicial maiúscula: o Espírito, e com isso significamos a individualidade, ou seja, o trio superior composto de Centelha Divina, Mente e Espírito, mas sem nome, não sujeito a tempo e espaço. Então, quando o Espírito se prende à personalidade, passa a ser o “espírito” de uma criatura humana, encarnada ou desencarnada. O Espírito é o que está em contato com o Eu Profundo, enquanto o “espírito” está em contato com o “eu” pequeno, que tem um nome. Somos forçados a fazer estas distinções para que as ideias fiquem bem claras. Além desses, temos o “Espírito” de Deus, ou o “Espírito” Santo, que é a manifestação cósmica da Divindade, também chamado o Cristo Cósmico, de que todos somos uma partícula, um reflexo; em nós, o Cristo é denominado “Cristo Interno” ou Centelha Divina, e é a manifestação divina em cada um de nós. Não se pense, entretanto, que a reunião de todas as Centelhas divinas ou “mônadas” das criaturas forme o Cristo Cósmico. Não! Ele está imanente (dentro de todos nós), mas é INFINITO e, portanto, é transcendente a todos, porque existe ALÉM de todos infinitamente. O mergulho de que falamos exprime, em primeiro lugar, o ENCONTRO do “espírito” (personalístico) com o seu próprio Espírito (individualidade), e depois disso, em segundo lugar, a absorção do Espírito no mais recôndito de seu EU profundo, ou seja, a UNIFICAÇÃO do Espírito com o Cristo Interno, com sua consequente INTEGRAÇÃO com o Cristo Cósmico.

Fonte: Idem, pp. 114-5

* * *

O Espírito Santo, do jeito que é, só foi instituído pela Igreja, oficialmente, no Concílio de Constantinopla (381). Paulo não O conheceu. E sua doutrina virou dogma justamente porque já era polêmica desde sua instituição. Ele, com os artigos definidos “ho” ou “tó” nos originais gregos bíblicos, pode significar Deus transcendente: o Santo Espírito, o santo dos santos, mas pode também ser uma referência à centelha divina ou Cristo interno, imanente, que habita em cada um de nós, a qual é classificada por Pietro Ubaldi, em “Grande Síntese”, como sendo o espírito hominal evoluído, já individualizado. E quando se trata do próprio Deus transcendente, santo Tomás de Aquino discorda de santo Agostinho, dizendo que o Espírito Santo deveria vir em primeiro lugar e não no terceiro, na ordem da Santíssima Trindade. Mas o Espírito Santo bíblico que mais aparece é geralmente o que se refere a um espírito humano desencarnado, não tendo, pois, o artigo definido no original grego nem o adjetivo “santo”, sendo, pois, a tradução correta para o português “um espírito”, como vimos acima.

– Chaves, J.R.; A confusão entre o espírito santo e os outros espíritos, em O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/03/09

Apresento duas versões de articulistas espíritas a respeito da natureza de Pneuma Hagion: ambas com um entendimento quase neognóstico do Espírito Santo (e emprestado da teosofia) que, de certa forma, espiritualiza o humano para humanizar o Espírito. Algum comentário a se fazer sobre elas? Nenhum além da identificação de seu pano de fundo filosófico. Não há como refutá-las, pois são perfeitamente coerentes com a teologia de seus crentes. Por outro lado, alguém de fora não tem a menor razão para acatá-las. Seus autores têm seus próprios critérios para decidir quando um espírito não é o Espírito e o que cada caso significa. Não trazem evidências de que seus critérios seriam os mesmos dos antigos cristãos, parecendo mais interpretações pesher, ou seja, releituras. Certo que a Trindade foi um desenvolvimento tardio, mas a sofisticada especulação que trazem não deve ter sido concebida por ou para uma massa iletrada e humilde. Pode-se ter a vontade criar um “túnel do tempo” e perguntar diretamente o que se pensava nas igrejas, digamos, do começo do século II de nossa Era, quando o evangelhos canônicos já estavam escritos. Embora isso não seja possível, algumas pistas eles deixaram para nós.

O próprio Pastorino já mencionara brevemente o uso de abreviaturas nos antigos manuscritos, até citando um caso de fraude. Como as abreviaturas eram feitas para as palavras mais frequentes, nada mais natural que as de cunho religioso fossem escolhidas e dessem origem ao que, em tempos modernos, seria designado como uma classe especial de abreviaturas: os nomina sacra (“nomes sagrados”).

Uma particularidade interessentante dos nomina sacra é que todos os manuscritos antigos possuem um conjunto mínimo deles, dando a entender que, se já não surgiram junto com os originais dos livros, começaram a ser utilizados bem cedo. Quatro nomes aparecem universalmente em todos os unciais na forma abreviada: “Senhor” (Κυριος), “Deus” (Θεος), “Jesus” (Ιησους) e “Cristo” (Χριστος). Conforme a datação dos manuscritos avança, outras palavras se juntam ao grupo, como “Pai” (Πατηρ), “Filho” (Υιος), “Cruz” (Cταυρος), “Israel” (Ισραηλ), “Céu” (Ουρανος), etc. Não havia uma regra única para as abreviaturas, mas, em geral, os copistas tomavam a primeira ou as duas primeiras letras, a última, e as sobrescreviam com um traço horizontal. Como a terminação de uma palavra variava conforme o caso em que se encontrasse, os nomina sacra também mudavam em concordância.

Uncial Nominativo Genitivo
Senhor ΚΥΡΙΟC ΚC ΚΥ
Deus ΘΕΟC ΘC ΘΥ
Jesus ΙΗCΟΥC ΙC ΙΥ
Cristo ΧΡΙCΤΟC ΧC ΧΥ
Espírito ΠΝΕΥΜΑ ΠΝΑ ΠΝC
Pai ΠΑΤΗΡ ΠΗΡ ΠΡC
Filho ΥΙΟC ΥC ΥΥ
Cruz CΤΑΥΡΟC CΤC CΤΥ
Israel ΙCΡΑΗΛ ΙΗΛ indeclinável
Céu ΟΥΡΑΝΟC ΟΥΝΟC ΟΥΝΟΥ

Lista não exaustiva de nomina sacra comuns em manuscritos do Novo Testamento. Não foram incluídas variantes como IHC para Jesus. Mais pormenores em [Comfort, cap. IV]

Como se enquadra Pneuma no histórico do emprego dos nomina sacra? Seu nomen sacrum ΠΝΑ se encontra presente nos mais antigos manuscritos que chegaram até nós contendo a palavra “espírito” denotando uma origem divina, dando a entender que seria tão antigo quanto os quatro primários e seria tranquilamente aceito como um quinto membro desse grupo se não fosse por duas anomalias [Comfort, cap. IV, pp. 231-41]:

  • O papiro P46 (c. 175-225, contém epístolas paulinas) deixa de aplicar o nomen sacrum para o espírito divino em dez circunstâncias que seriam comumente aceitas depois;
  • O Códice Vaticano, contemporâneo do igualmente famoso Sinaítico (séc. IV), não possui nomen sacrum para Pneuma.

Uma conciliação proposta é que P46 teria sido redigido numa época de transição, quando as abreviaturas para Pneuma ainda estavam se desenvolvendo e o Códice Vaticano seria uma reprodução de um manuscrito ainda mais antigo que P46. Com o material disponível atualmente, isso é apenas conjectura, não estando descartada a hipótese de o copista de P46 ter se descuidado. Por ora, pode-se afirmar que, se ΠΝΑ não for um nomen sacrum primário, ao menos é quase tão antigo quanto os desse grupo.

O impacto desse registro paleográfico é deixar claro que a personalização do Espírito Santo – representando um ente específico e não uma classe – se encontra presente desde o II século de nossa Era e duzentos anos antes do I Concílio de Constantinopla. Nos tempos modernos, esse caráter é assinalado pelas iniciais maiúsculas de “Espírito Santo”, o que levou autores espiritualistas a acusarem tal grafia de ser errônea e maliciosa por induzir à crença na Trindade. Uma alegação para isso era o fato de os antigos manuscritos unciais possuírem apenas letras maiúsculas, em geral em scripta continua, tendo sido as minúsculas adotadas pelos escribas já em tempos medievais, bem depois da vitória da ortodoxia. Isso é verdade, mas não toda a verdade: embora o registro escrito fosse bem mais precário, o antigos tinham, sim, seus meios para destacar o que lhes era relevante. Os nomina sacra constituíam um deles.

Em consequência, é possível estimar nuances interpretativas que os antigos copistas em relação aos textos que transcreviam e desfazer distorções, como esta:

J.R. Chaves, A Face…, p.144 E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada.
Transcrição do papiro P4 (Fonte) Papiro P4 em Lc 1:67

O escritor ignora o fato de Pneuma Hagion ser, aqui, uma construção genitiva e ter o caráter de um “poder” ou “substância” com que Zacarias é infundido. Isso poderia possibilitar um sentido definido mesmo como uma estrutura anartra. Já o nomen sacrum para pneuma encontrado em P4 – o mais antigo manuscrito atualmente conhecido de Lucas (ca. 175 – 225 d.C.) – assinala que seu copista entendia “Espírito Santo” como um nome próprio, garantindo para ele um sentindo definido.

Não são revelados apenas vislumbres de como “Espírito” era compreendido, mas também aspectos um pouco mais profundos de exegese. Por exemplo, relembrando o diálogo entre Jesus e Nicodemus, mais especificamente este versículo:

Jo 3:6
P66
(Fonte)
Papiro P66 em Jo 3:6
P75
(Fonte)
Papiro P75 em Jo 3:6

A última oração do versículo – και το γεγεννημενον εκ του πνευματος πνευμα εστιν (“e o que é nascido do espírito é espírito”) – é interpretada de forma diferente pelos copistas. O de P66 distinguiu o Espírito divino do humano, dando a entender que “o Espírito divino gera o espírito humano”. Essa é a interpretação da maioria das traduções modernas. Já o de P75, por sua vez, tratou os dois como divinos, sugerindo que “o que é gerado pelo Espírito também é divino”. A passagem, sem dúvida, permite mais de um entendimento, não havendo razão alguma para se considerar o viés reencarnacionista como o único possível, como fazem certos apologistas espíritas. Bem antes de Niceia, as opiniões eram outras…

foto de P66

Detalhe do papiro P66 em Jo 3:6, exibindo o nomem sacrum para pneuma em apenas uma das aparições dessa palavra no versículo. Extraído de Early Bible.

Há quem possa rejeitar o testemunho dos manuscritos alegando que foram copiados por devotos da proto-ortodoxia cristã, com uma linha de pensamento mais próxima da teologia vencedora. Afinal de contas, os evangelhos canônicos foram os que esse grupo abraçou. Isso é uma meia-verdade, pois há uma exceção entre eles: João. Com sua linguagem alegórica, a apresentação de Jesus como o Verbo divino encarnado como a missão fornecer um “conhecimento” (gnose, em grego) especial (cf. Jo 8:32) necessário à salvação, esse evangelho caiu nas graças das seitas gnósticas. Inclusive, sabe-se que o primeiro comentário feito a esse evangelho foi elaborado por um escritor gnóstico valentiano chamado Heracleão (ca. 175 d.C.). Infelizmente, essa obra está perdida, mas alguns extratos dela permanecem nos textos patrísticos. Orígenes – um proto-ortodoxo querido entre os espiritualistas – o menciona em um de seus próprios comentários, como a intenção de refutá-lo, de onde retiro as seguintes passagens:

E ele [Heracleão] expõe de seu próprio modo particular o fato de que o chicote foi feito de cordas por Jesus (Jo 2:15), que não o recebeu de outrem, quando diz que o chicote é uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo [της δυναμεως και ενεργειας του αγιον πνευματος] que expulsa os iníquos. E acrescenta que o chicote, a corda, o linho e todas essas tais coisas são uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro X, parágrafo 213. Cf. PG XIV, col. 368

Mas Heracleão supõe que a água do cântaro (cf. Jo 4:28) “é a disposição capaz de receber a vida e o pensamento de poder que é do Salvador. Ela o deixa com ele”, diz, “ou seja, ela tem um vaso desse com o Salvador, com o qual recebera a água vivente, e retornou ao mundo para anunciar a vinda do Cristo aos eleitos (cf. Jo 4:29), pois a alma é trazida ao Salvador por meio do Espírito e pelo Espírito [σια γαρ του πνευματος και υπο του πνευματος προσαγεται η ψυχη τω Σοτηρι].
(…)
Heracleão também interpretou a sentença “e saíram da cidade” (cf. Jo 4:30) como o abandono de seu antigo modo de vida, que era físico. E “vieram“, diz, “ao Salvador por meio da fé“.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro XIII, parágrafos 187 e 191. Cf. PG XIV, cols. 452-3

É bom atentar que cada extrato fala de um “espírito” diferente. Como bom valentiano, Heracleão deveria considerar do Espírito Santo um “aeon” – uma emanação da divindade primordial – a fazer par com outro, Jesus Cristo, na transmissão do conhecimento (gnose) a outros aeons. Esse mensageiro duplo teria se unido à parte humana de Jesus por ocasião de seu batismo, descendo em forma de pomba. Já o segundo “espírito” seria composto de uma substância própria do pleroma (domínio divino) encontrada no mundo material e comporia a “parte superior” de uma distinta classe de mortais chamada de “pneumáticos”: os únicos aptos a receber a plenitude da salvação, cujo espírito retornaria ao pleroma após a morte. Um grupo maior – os psíquicos – possuiria uma parte chama de “alma” (psyché), composta por uma substância intermediária entre o espírito e a matéria, também presente nos pneumáticos e que fora insuflada pelo Demiurgo criador do mundo material. Seus membros constituíam a parte não gnóstica da Igreja e teriam uma salvação mais modesta caso seguissem os mandamentos cristãos, permanecem suas almas nas regiões celestes mais externas. Por fim, viriam os hílicos (de hylé, “matéria”), onde estariam os pagãos, completamente materiais e desprovidos de salvação.

Qualquer semelhança entre essa sucinta descrição da soteriologia gnóstica e as ideias de Pastorino e Ubaldi sobre o Espírito Santo não deve ser mera coincidência, mas um afluxo de uma teologia antiga via a moderna teosofia. Tudo bem que pensassem assim, só se deveria alertar os leitores que elas descendem de um sistema que julgava o Espírito Santo divino – ainda que uma divindade secundária – e, como todos os sistemas gnósticos, era fruto de desenvolvimentos posteriores.

Tanto a personificação dos nomina sacra quanto a divinização gnóstica pertencem ao século II, para identificar o papel do Espírito Santo no cristianismo primevo, será preciso recorrer às fontes mais antigas da literatura cristãs.

[topo]

No Princípio era o Espírito

Luz estelar

Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus; porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós. E vós fostes feitos nossos imitadores, e do Senhor, recebendo a palavra em muita tribulação, com gozo do Espírito Santo.

I Ts 1:4-6

Essa é a mais antiga menção ao Espírito Santo no Novo Testamento. Ué, mas não se deveria começar pelos evangelhos? Aí que está uma problemática questão no estudo no Novo Testamento. Pela lógica, a mensagem vem antes de sua pregação, mas, na realidade, a segunda foi registrada antes da primeira! Afinal, Paulo de Tarso – o mais prolífico autor da Bíblia – redigiu I Tessalonicenses por volta de 49 d.C., enquanto que Marcos tem sua mais antiga datação estimada em 60 d.C. e João já no fim do primeiro século!

Portanto, convém começar a análise do Espírito Santo cristão por Paulo, ressaltando que isso gera seu próprio punhado de problemas: Paulo nunca conheceu Jesus em vida, sua cartas distam pelo menos vinte anos da crucifixão, seu ministério começou apenas três anos após sua conversão, depois de uma temporada de três anos na Arábia e em Damasco, voltou à Jerusalém e lá foi ter com os apóstolos Pedro e Tiago por breves 15 dias (Gl 1:11-18). A visão que teve de Jesus foi muito forte, segundo ele mesmo, a ponto de converter um perseguidor em pregador. Por outro lado, nada indica que tenha sido uma experiência longa o bastante para transmissão de um tratado teológico completo. Paulo também não ficou um longo tempo com os apóstolos para se servir de seu testemunho em primeira mão. Não sabemos também o que ele fez no ínterim de três anos, mas pode-se cogitar que esse tempo seria o bastante para se inteirar das tradições de Jesus que já circulavam, como implícito em I Co 15:3-8. Assim, Paulo traz os ensinamentos de uma cristandade que já não contava com a presença física de de Jesus, mas que podia se valer da ação de um ente especial – o Espírito – em sua ausência, enquanto aguardava esperançosamente um “fim dos tempos” tido como próximo. Embora cronologicamente arranhem o Jesus histórico, as cartas paulinas pouco falam de Jesus, pois elas foram escritas na urgência de problemas que afetavam as comunidades fundadas por ele. Por não serem o foco, os ensinamentos cristãos são mencionados, mas não detalhados, estando incluído neles a natureza do Espírito. Em lugar disso, aparecem instruções quanto à relação das comunidades para com ele, que servem de janela para a pneumatologia paulina.

Os evangelhos são mais tardios que Paulo e, embora repletos de ditos “atribuídos” ao próprio Jesus, estão longe de ser biografias do Nazareno. Na verdade, cada evangelista pertenceu a uma comunidade cristã diferente, com vivências e experiências distintas em relação à “boa nova”. Cada um tinha uma imagem de Jesus a passar voltada para as expectativas de sua comunidade e em muitos pontos inconciliáveis com as demais: não é possível adequar a mensagem pró-judaica de Mateus com o quase antissemitismo de João. Da mesma forma, não há de se esperar que cada grupo mantivesse a mesma relação com o Espírito, principalmente em seu papel após a morte de Jesus. De todos os quatro, apenas Lucas foi escrito por um membro de uma comunidade paulina e esse mesmo evangelho traz uma grata peculiaridade para entendimento do que representava o Espírito Santo para esse antigos grupo de cristãos.

Paulo: O Crescer do Espírito

Conversão de Paulo

A Conversão de São Paulo a Caminho de Damasco, por Caravaggio

Ao longo de suas viagens (ca. 46 – 60 d.C.), Paulo percorreu boa parte do mundo grego-romano, em especial os territórios da Grécia e da Ásia Menor (atual Turquia), por onde fundou comunidades cristãs nos centros urbanos de maior porte. Quando sentia que já formara um grupo minimamente consolidado, partia para outra cidade. O contato era mantido por cartas, pelas quais Paulo passava instruções, explanações e exortações no intuito de solucionar as crises que surgiam. Foi essa troca de correspondência que fez de Paulo o autor mais prolífico do Novo Testamento, senão da própria Bíblia, e o material que chegou até nós pode ser apenas uma “ponta de iceberg” dado que nele mesmo se encontram referências a outras cartas que não sobreviveram. Quando colocadas numa ordem mais cronológica (ainda que com boa margem de erro), em vez da em que tradicionalmente aparecem nos códices antigos e nas edições modernas, pode-se, grosso modo, notar uma progressiva elaboração do conceito do Espírito Santo e sua relação com as igrejas.

  • I Tessalonicenses: tida por alguns autores como a mais antiga carta (ca. 50 d.C.), ela mostra o Espírito Santo como um agente fundamental para “santificação” da comunidade, i.e., sua ação manteria os fiéis no caminho reto enquanto aguardavam o retorno de Jesus e a ressurreição de seus membros já falecidos:

    Finalmente, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus, que assim como recebestes de nós, de que maneira convém andar e agradar a Deus, assim andai, para que possais progredir cada vez mais. Porque vós bem sabeis que mandamentos vos temos dado pelo Senhor Jesus. Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da fornicação; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra; não na paixão da concupiscência, como os gentios, que não conhecem a Deus. Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos. Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a santificação. Portanto, quem despreza isto não despreza ao homem, mas sim a Deus, que nos deu também o seu Espírito Santo [το πνευμα αυτου το αγιον].

    I Ts 4:1-8

    De certa forma, o papel desse Espírito Santo de “santificação” se assemelha ao da pneumatologia de Qumran, ou até mesmo o do salmo 51. Paulo ainda não expõe uma perspectiva mais elabora quer por ela não existir ou pelo ensinamento relativamente enxuto repassado aos tessalonicenses (1 Ts 4:1 – 5:11). Há diferenças, contudo: sua ação confirma a pregação apostólica (cf. I Ts 1:5) e faz profecias jorrarem em um nível desconhecido na era pré-cristã, como sugerido numa exortação final:

    Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo. Retende o bem.

    I Ts 5:19-21

    De fato, é possível interpretar esse “espírito” como sendo como sendo o ânimo da própria da comunidade e as profecias como as contidas no Antigo Testamento a respeito da vinda de Jesus (pelo menos no modo entendido pelos cristãos), mas a forma como Paulo descreveu o uso e abuso do “Espírito” em outra e muito problemática comunidade sugere que não.

  • I Coríntios: se os tessalonicenses só davam alegrias a Paulo, o mesmo já não pode ser dito em relação aos membros da igreja de Corinto: a refeição eucarística era desorganizada, com alguns chegando mais cedo, fartando-se e nada deixando aos retardatários, havia rixas internas que ameaçavam parar no tribunal; uns provocavam escândalo por não ver nada de mais em consumir a carne oferecida a ídolos pagãos, outros por sua conduta sexual; no outro extremo, certos membros competiam em exibir grau mais elevado de santidade e espiritualidade ao ponto de atrapalhar as cerimônias quando começavam a “falar em línguas”. Enfim, uma considerável dose de caos. Por que, então, ele não orientou o responsável por essa igreja a restabelecer a ordem? É que não havia ainda tal figura, ao menos com o poder equiparável ao de um padre ou pastor moderno. Paulo fundara e organizara suas igrejas como comunidades carismáticas, do grego χαρισμα (“dom”), que continuariam a ser guiadas por intermédio do Espírito:

    E a minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder; para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo (seu) Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus [ει μη το πνευμα του θεου]. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus. As quais também falamos, não com palavras que a sabedoria humana ensina, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas espirituais com as espirituais. Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.

    I Co 2:4-16

    Aqui, Paulo faz uma distinção entre o Espírito Divino e o espírito humano e, embora use a mesma palavra para ambos, a conotação é diferente: o primeiro é uma espécie de poder a conectar os homens com a vontade divina adentrando no segundo, que pode ser um sinônimo para mente (nous) ou alma (psykhe). Com eles, o apóstolo alfineta os coríntios deixando nas entrelinhas que não seriam tão espiritualizados quanto pensavam, do contrário teriam sido corretamente instruídos pelo Espírito Santo e se comportariam de outra forma.

    E tal ação do Espírito não se daria da forma individualista de que uns se gabavam ser os escolhidos, muito pelo contrário: ela englobaria todos o fiéis e ai daquele que a perturbasse:

    Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo.

    I Co 3:16-17

    Aqui, ele se dirige aos inimigos internos, os que causam dissenção entre fiéis. Um pouco mais adiante, retorna a falar em “templo” , mas num sentido individual, referindo-se aos pecados carnais cometidos por alguns dos “santos de Corinto”:

    Fugi da fornicação. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que fornica peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é (o/um) templo do Espírito Santo, que habita em vós,[ναος του εν υμιν αγιου πνευματος] proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus.

    I Co 6:18-20

    A questão do templo como um coletivo ou como uma individualidade é sanada com o entendimento dos membros da Igreja como constituintes do “Corpo de Cristo”: uma estrutura social guiada pelo Espírito Santo capaz de manter a harmonia entre os fiéis até parúsia, quando os conflitos deixariam de existir. Paulo fala en passant nessa ideia em I Co 6:15 (“Vocês não sabem que os seus corpos são membros de Cristo?“), desenvolvendo-a plenamente em no capítulo XII, quando trata da questão dos “dons do Espírito”, assunto em que alguns coríntios se julgavam mais afortunados que outros. Ele lhes lembra que todos receberam, por ocasião do batismo, diferentes dons “pelo mesmo Espírito” (12:8) [κατα το αυτο πνευμα], alguns eram mais chamativo – como o a capacidade de falar em línguas ou de curar -, outros mais discretos – como a capacidade de ajudar ou administrar -, mas todos, tal como os órgãos do corpo, tinham sua importância e o “corpo” não funcionaria direito na falta de um deles. Em vez de invejar o dom alheio, cada um deveria se esmerar naquele que recebera e … amar! Não é à toa que o Hino ao Amor sucede esse capítulo, explicitando a inutilidade dos dons se desprovidos desse sentimento.

    Pode parecer estranho a um leitor moderno, ainda mais a um espiritualista, a preocupação com o corpo. Afinal, ele já não está , de antemão, fadado a perecer e apenas o espírito (humano) importa para o outro mundo? Ao contrário da noção popular comum de hoje – que apenas a alma é salva para uma existência desencorpada – Paulo, como ex-fariseu e um dos primeiros cristão, também cria que o corpo seria resgatado e sublimado. No penúltimo capítulo de I Coríntios, é descrito seu entendimento quanto à crença na ressurreição no fim dos tempos:

    Assim também a ressurreição dentre os mortos. Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará com vigor. Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.
    Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial. E agora digo isto, irmãos: que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória.

    I Co 15:42-54

    Esse trecho é muito utilizado por apologistas como prova de inexistência da ressurreição física, no contexto bíblico, interpretando como se fosse uma menção à humanidade desencarnada. Contudo, “o diabo está nos detalhes” nesse caso. Relendo esse trecho, constata-se que em nada ele é contra a ressurreição física. Na verdade, o que ele é contra é a ressurreição carnal. Isso não significa o descarte do corpo natural, como se alega entre autores espiritualistas, mas a transformação dele em corpo espiritual. Os versículos 15:51-54, geralmente omitidos por eles, deixam nítida a crença de Paulo num fim dos tempos próximo e, portanto, alguns dos fiéis sofreriam essa transformação ainda em vida. Ademais, há um anacronismo no modo de pensar espiritualista: nos tempos bíblicos não havia o fosso entre “matéria” e “espírito” como há, hoje, nas conotações em que essas palavras são usadas. Para os antigos, “espírito” podia ser um tipo de matéria tênue, talvez quintessênciada, mas ainda material. A transformação de carne em espírito não era tão absurda para eles. A ressurreição paulina também encontra paralelos em outras obras da literatura intertestamentária como I Enoque e II Baruque, que também narram a transformação dos corpos carnais dos eleitos em novos de natureza gloriosa, por ocasião da consumação final.

    Em suma, em I Coríntios Paulo explana a superação das diferenças entre “espírito” e “corpo”, estando o Espírito a serviço do Corpo por meio da inspiração e dos dons carismáticos. Isso remete ao papel dos Espíritos divinos em Qumran, com a diferença que, agora, todos os dons provêm de apenas um.

  • II Coríntios: Na verdade, II Coríntios não é uma carta, mas uma composição de duas ou mais cartas escritas por Paulo, editadas mais tardiamente por algum membro dessa comunidade. Pelo que sugere, Paulo visitou Corinto após o envio da primeira epístola e já encontrara certa animosidade (cf. 2:5-11, 13:2), mas os problemas não acabaram por aí: pouco antes de sua partida dessa visita (ou logo após), teriam chegado à comunidade outro grupo de pregadores cristãos, a quem Paulo deprecia chamando de “superalpótolos” (των υπερλιαν αποστολων – cf. 11:5), cuja mensagem alegava que os cristãos já gozariam de glória antes do fim dos tempos, o que era justamente um dos pontos combatidos por Paulo em I Coríntios. Os capítulos de 10 a 13 seriam de uma carta combatendo os “superapóstolos”. A comunidade deve ter mudado de opinião e acatado de novo as teses de Paulo, que teria escrito uma nova carta em tom congratulatório que corresponderia, salvo alguns trechos destoantes, à boa parte da redação entre o primeiro e o nono capítulo. Assim, cronologicamente, II Coríntios começaria pelo fim.

    No geral, Paulo mantém os mesmo pontos de sua pregação apocalíptica apresentada em I Coríntio. As principais alusões ao Espírito se encontram na primeira parte (cap. 1 a 9), com alguns desenvolvimentos interessantes em relação à epístola anterior.

    Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo [αλλα πνευματι θεου ζωντος], não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.E é por Cristo que temos tal confiança em Deus. Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento [aliança/pacto], não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.
    II Cor 3:1-6

    Aqui Paulo alfineta os “superapóstolos” que apresentavam suas credenciais como sendo a pertinência a Cristo (10:7, 11:23), sua origem judaica (11:22) e, principalmente, seus feitos espirituais, que comprovariam sua autoridade (5:12-4, 11:4 e 12:11-3). Paulo de nada disso precisava, pois sua prova de autoridade seria a própria existência dos cristão de Corinto, comunidade por ele fundada com o intermédio do Espírito de Deus. Numa alusão ao recebimento do decálogo (tábuas de pedra), a “boa nova” superaria a antiga Lei por estar gravada no coração, o que desenvolve mais adiante:

    E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória,
    Como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. Porque também o que foi glorificado nesta parte não foi glorificado, por causa desta excelente glória. Porque, se o que era transitório foi para glória, muito mais é em glória o que permanece. Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório. Mas os seus sentidos foram endurecidos; porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido; e até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará. Ora, o Senhor é o Espírito [ο δε κυριος το πνευμα εστιν]; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.
    II Co 3:7-18

    De certa forma, Paulo antecipa uma ideia que viria a desenvolver em outras epístolas: a transitividade da Lei Mosaica. Em alusão ao episódio descrito em Ex 34:28-35 – quando Moisés, após passar quarenta dias na presença de Deus e entalhando as tábuas, desceu do monte Sinai com o rosto radiante -, Paulo assevera que aquela glória era passageira: embora o motivo mais aparente e imediato de Moisés cobrir o rosto seria para não ofuscar os olhos de seu povo, Paulo interpreta que seria para que ninguém visse seu esplendor esvanecer, até que o reavivasse estando outra vez na presença de Deus. Analogamente, a validade da Lei seria passageira, ao contrário da perene do evangelho. E é justamente ao enaltecer esse novo tipo de glória que Paulo dá um passo ousado: equipara o Espírito a Deus. Ele faz algo similar ao que fez um anônimo judeu helênico com a Sabedoria Divina (Sb 8:22-35) ou que o Prólogo de João faria com o Verbo, estabelecendo que algo proveniente de Deus também seria divino, de algum modo. Não é a terceira Hipóstase Trinitária ainda, mas parte do fosso a separar uma substância especial do Divino foi tapado.

  • Gálatas: Algum tempo após a saída de Paulo dessa comunidade por ele criada, lá chegaram pregadores cristãos com uma mensagem da repassada pelo fundador. Segundo eles, para ser cristão era também preciso antes ser judeu, o implicava em adotar práticas como a circuncisão masculina. Isso despertou uma reação irada de Paulo que redigiu essa carta condenando veementemente a atuação desses mestres judaizantes entre os gentios. Por outro lado, no capítulo XVII de Gênesis, Javé estabeleceu a circuncisão como símbolo da aliança eterna entre Ele e Abraão e sua descendência. Se era “eterna” não deveria continuar a valer em sua época (e até o fim dos tempos)? Ciente desse embaraço, Paulo se justificou num dos versículos mais curtos e paradoxais da Bíblia: “Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus.” (Gl 2:19). Uma possibilidade para desmembrar esse raciocínio sintético seria que “pelo entendimento correto e pleno da lei, compreende-se sua falta de necessidade hoje em dia”. Na opinião de Paulo, simplesmente adotar a Lei seria algo problemático pois:

    Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.
    Gl 3:10

    Adotar um ou outro mandamento da Lei implicaria na necessidade de praticar todos e um deslize deixaria o fiel em erro perante Deus, levando à necessidade de um reparo mediante um sacrifício no Templo. Mas daí vem outra pergunta: se a Lei era cruel assim, porque o bondoso Deus a teria dado ao homens, aos hebreus mais especificamente?

    Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro. Ora, o medianeiro não o é de um só, mas Deus é um. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
    Gl 3:19-22

    A Lei seria algo provisório, digamos, para manter o povo “na linha”. O curioso é que dá a entender que um dos motivos de sua temporalidade seria o fato de ter sido transmitida por anjos (“medianeiros”), em vez de provir diretamente de Deus. Isso não está de acordo com o relato de Êxodo, nem com a tradição judaica posterior. Se Paulo falava de uma interpretação antiga e atualmente perdida ou de uma visão pessoal, está em aberto. De concreto, existe a postura de Paulo em encarar o judaísmo como uma crisálida de onde emergiria o cristianismo, mas que deveria ser descartada após cumprir seu papel.

    A justificação perante Deus não se daria pelas obras da Lei, mas por uma fé tal qual a de Abraão. No capítulo III, Paulo remete ao episódio relatado em Gn 22, quando Javé ordena a Abraão que sacrifique seu próprio filho Isaque em holocausto. Abraão cumpriria a ordem sem hesitar não fosse uma intervenção, no último instante, de um anjo, que trouxe a nova ordem para trocar o menino por um carneiro. Por ter passado com louvor nesse “teste de fidelidade”, declarou Deus a Abrão que “em tua descendência serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22:18, cf. Gl 3:8). A fé em Jesus, com o mesmo grau de fervor que a de Abraão, livraria da maldição da Lei, pois a morte de Jesus na cruz foi o sacrifício último capaz de redimir qualquer infração (Gl 3:13, cf. Dt 21:22). Os que cressem nesse sacrifício fariam, pois, uma oferta análoga a de Abraão. Daí Paulo faz outra inovação teológica: a descendência seria determinada não mais pela consanguinidade, mas pela fé em Cristo. Os gentios e judeus que aceitassem a fé em Jesus seriam os legítimos herdeiros de Abraão, continuadores, de fato, da linhagem de Isaque (Gl 3:26-9). Por outro lado, os judeus que se ativessem à Lei seriam os continuadores de Ismael, o filho bastardo com a escrava Agar (cf. Gl 4), e seriam “lançados fora” (cf. Gn 21) porque “de modo algum o filho da escrava herdará com o filho da livre (Gl 4:30).”

    No tributo que a Nova Aliança em Jesus faz à antiga, o Espírito viria como prova de filiação adotiva, tal como Javé adotara os antigos hebreus:

    Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho [το πνευμα του υιου], que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo.

    Gl 4:5-7

    Se isolada, essa passagem pode dar a entender que não há uma identificação entre o “Espírito de seu Filho” e o “Espírito Santo”. Entretanto, no capítulo precedente:

    Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito [το πνευμα] pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito [πνευματι], acabeis agora pela carne? Será em vão que tenhais padecido tanto? Se é que isso também foi em vão. Aquele, pois, que vos dá o Espírito [το πνευμα], e que opera maravilhas entre vós, o faz pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?
    Gl 3:2-5

    Que é o mesmo espírito carismático a conceder dons aos fiéis em outras cartas. Embora Paulo nunca descreva o batismo de Jesus, é provável que conhecesse a tradição da descida do Espírito Santo em Jesus e sua aclamação como Filho de Deus nesse episódio, dado que Lucas – que lhe é teologicamente afim – a preserva. Nesse caso, os crentes receberiam uma filiação de empréstimo do referido espírito. A associação entre o Espírito Santo e o Messias não era desconhecida no judaísmo (cf. Is 42:2), mas não fora antes usada como prova de filiação.

    Outra característica marcante do Espírito em Paulo é sua capacidade de também libertar da Lei por tornar desnecessário o temor às maldições para garantir a retidão dos crentes, pois lograria o mesmo de outro modo:

    Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais também uns aos outros. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, fornicação, impureza, lascívia, Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.

    Gl 5:13-22

    Se no judaísmo espíritos divinos já eram capazes de auxiliar no cumprimento da antiga Lei (cf. Sl 51, Qumran), aos cristãos o Espírito tornava-se fundamental para o mandamento básico do amor. Daí vem a questão: um homem faz o bem porque tem fé ou tem fé porque faz o bem? No entender de Paulo, o poder do Espírito, auferido pela fé, é que reformaria o caráter. A prática do bem seria um desdobramento natural em demonstração disso. Isso não significa que Paulo desprezasse o exercício do amor fraterno (cf. I Co 13), mas o condicionava o estabelecimento de um relacionamento de fé com Deus antes de sua prática sincera.

    A primazia da fé para a salvação é recorrente em Paulo e as questões que ela suscita até hoje geram polêmicas entre católicos, protestantes e espíritas.

  • Filipenses: Carta escrita por Paulo, durante uma estadia numa prisão, à comunidade por ele fundada na cidade de Filipos (cf. Atos 16), na Macedônia. Assim como II Coríntios, Filipenses também possui questões quanto à unicidade de seu conteúdo, bem como ordenação interna. A hipótese mais simples sugere que ela seja composta de duas cartas: a primeira, em ordem cronológica começaria a partir do capítulo III e teria um tom de alerta contra outros professores de viés judaizante – como os encontrados em Gálatas – e pela paz interna da comunidade, a começar pelas crentes Evódia e Síntique (Fp 4:2); a segunda carta, compreendida nos dois capítulos iniciais, tem um tom mais amenos, com agradecimentos e incentivos.

    Relativamente curta, a carta recapitula alguns pontos do apocalipticismo paulino: embora derroca do Mal tenha começado com o sacrifício de Jesus, a vitória definitiva ainda estava por vir. Até lá, os cristão ainda estariam sujeitos à ação das malignas, sempre a tentar prejudicá-los e/ou desviá-los da fé. As próprias prisões sofridas por Paulo seriam evidências disso. Cabiam às comunidades cristãs perseverança e solidariedade ante as adversidades.

    Há apenas uma menção importante quanto ao papel do Espírito na carta:

    Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo, e me regozijarei ainda. Porque sei que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo,

    Fp 1:18,19

    Ao contrário de Gálatas, não há possibilidade, usando-se apenas o conteúdo da carta, de se relacionar o “Espírito de Jesus” com alguma outra entidade separada. Aparenta ser a certeza de uma presença simbólica de Jesus como instrumento a auxiliar no consolo e na perseverança.

    Por outro lado, Filipenses apresenta em seu texto dois hinos (ou um só em duas partes) provavelmente entoados nessa comunidade:

    Hino de Descida
    (Fp 2:6-9)
    Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
    Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
    E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
    Hino de Ascensão
    (Fp 2:9-11)
    Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
    Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,
    E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.

    Uma visão cristológica sofisticada, já em vias da divinização de Jesus. Seu Espírito e o de Deus, portanto, aproximavam-se em excelência.

  • Romanos: como única carta remanescente de Paulo direcionada a uma comunidade que não fora criada por ele, Romanos possui a característica ímpar de ser onde ele desenvolve em profundidade temas de sua mensagem que apenas comenta ou relembra a seus prosélitos nas demais, afinal teve de explicar tudo do zero a quem não conhecera pessoalmente. Por esse motivo, um nome mais adequado para esta carta seria “Evangelho segundo Paulo”, pois é aqui que descreve em pormenores sua fé e a “boa nova” que tinha a repassar. Em sua apresentação, Paulo expõe um pequeno catecismo cristão, testemunho de uma tradição que antecederia a própria redação do Novo Testamento:

    Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade [κατα πνευμα αγιωσυνης], pela ressurreição dentre os mortos – Jesus Cristo nosso Senhor -, pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios, entre os quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo; a todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados para serdes santos: Graça a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

    Rm 1:1-7

    Nesse “cartão de visitas” em forma de credo condensado, Paulo usa um hebraísmo – “espírito de santidade” – em vez do simples adjetivo grego talvez por ser uma forma mais familiar aos fundadores daquela comunidade, além de reforçar sua apresentação como um cristão genuíno, não falso apóstolo a propagandear ideias alienígenas. Uma maneira de preparar terreno para expor sua própria visão a respeito da fé em Jesus: o papel central do martírio de Jesus e sua subsequente ressurreição na salvação da humanidade. Ou melhor, de todos aqueles que reconhecessem esse sacrifício e acreditassem em sua vitória sobre a morte.

    Há diferentes linhas de argumentação utilizadas por Paulo ao longo da carta. Uma das principais é o modelo judicial (cf. cap. 3 a 5): Deus seria uma espécie de legislador a regular como os humanos (judeus e gentios Rm 2:9-10) deveriam se portar. O problema é que ninguém, mas ninguém, consegue seguir suas leis, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). Como Deus também é juiz (3:9), a humanidade toda está condenada. A solução, segundo esse argumento, estaria em outra pessoa cumprir a punição por nós, aí que entra o valor do sacrifício de Jesus na cruz (3:24) como forma de cumprimento alternativo da pena, cuja aprovação divina estaria no fato de ele ter sido ressuscitado em seguida (4:24-5). Aos humanos caberia aceitar de bom grado esse sacrifício ofertado em seu lugar (3:27-8). Ao fim desse argumento, Paulo menciona o Espírito Santo como uma expressão do amor de Deus sobre a humanidade:

    Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo; pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus [η αγαπη του θεου] está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado [δια πνευματος αγιου του δοθεντος ημιν]. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor [αγαπην] para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.

    Rm 5:1-10

    A expressão pneuma hagion aparece em uma construção genitiva com a preposição δια e sua particular articulação remete ao caso em que o artigo serve, também, de pronome relativo. Nesta passagem, o Espírito Santo serve de veículo para o amor Deus chegar aos justificados pela fé. Não é a atração sensual de eros, nem a amizade de philia, mas o amor puro e desinteressado de agape mencionado em I Cor 13. Para a teologia paulina o ser humano não tem fé porque faz o bem, e sim faz o bem porque tem fé, uma fé em Jesus que o reconcilia com Deus.

    Outro argumento importante utilizado por Paulo foi o modelo participacionista. Enquanto o modelo visto acima explica a salvação por meios de termos “jurídicos”, este explica a salvação por meio de uma espécie de união com Jesus Cristo, que livra a humanidade das forças malignas. Bem que forças seriam essas?

    Como apocalipcista, Paulo acreditava num tipo de “dualismo brando”, em que haviam forças antagônicas a Deus regiam a Terra momentaneamente, até que Deus resolvesse intervir. Duas dessas formas cósmicas são de particular relevância: o Pecado e a Morte. Nisso as coisas começam a soar um tanto estranhas ao leitor moderno, para o qual “pecado” é algo ruim que alguém faz e “morte” é o cessar das funções vitais. No entanto, no primeiro século, tanto o ato quanto o fato eram produtos de entidades autônomas, que a todos controlavam. Começando pelo Pecado:

    • O pecado está no mundo (5:13);
    • O pecado governa as pessoas (5:21, 6:12);
    • As pessoas podem servir ao pecado (6:6);
    • Elas podem ser escravizadas pelo pecado (6:17);
    • Elas podem morrer ao pecar (6:11);
    • Elas podem ser libertas do pecado (6:18).

    O pecado, para Paulo, não é meramente algo que as pessoas fazem, mas sim um poder que as compele à prática do mal. Associado a ele, está outro poder maligno: a morte (6:21-3), que definitivamente afasta alguém de Deus. Ao ressuscitar, Jesus teria quebrado o jugo da morte e, por conseguinte, dos poderes com ela associados (6:9-10). Por meio do batismo, tomaríamos parte dessa vitória sobre a morte e nos reconciliaríamos com Deus (6:3-4).

    Então, qual seria o papel da Lei Judaica durante todos esses séculos? Não seria ela um instrumento para a salvação? Retomando uma ideia já apresentada em Gálatas com o auxílio, novamente, um modo de raciocínio judicial, Paulo crê a Lei era boa ao definir o que é certo ou errado, porém gerava um problema: crimes só existem se são tipificados e era isso que a Lei fazia:

    Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri.

    Rm 7:7-9

    Ou seja, a Lei conduziria à danação ao invés da salvação. Como a Lei só possuía vigência enquanto se estivesse vivo (Rm 7:1) era preciso morrer para Lei e renascer para outra coisa. Se carne, a parte do ser humano sujeita a pecado morrer em Cristo, a pessoa não estará mais sujeita aos desejos deles e a violar a Lei. Na oposição à carne, o Espírito teria um papel fundamental:

    Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E, se o Espírito [το πνευμα] daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dentre os mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita.

    Rm 8:1-11

    Principalmente ao fim dessa passagem, o “Espírito de Deus”, o “Espírito de Cristo” e “Cristo” são utilizados de forma intercambiável (o que não significa, exatamente, “identidade”). A humanidade, segundo Paulo, é salva por Cristo e em Cristo, sendo impossível não o ser caso não seja também pelo Espírito e no Espírito de Deus. Dado que “Deus” e “Jesus” receberam os primeiros nomina sacra é provável que a associação teológica entre os dois com o “Espírito” levou a criação de um nominum sacrum para ele, também. Afinal, passara a ter atributos sagrados, tidos como dignos de adoração, como o de ser o doador da vida, o agente principal da ressurreição dos mortos.

    Ambas ideias remetem a II Cor 3:1-18, quando os conceitos de “Espírito” e “Deus” se misturam e o primeiro é apresentado como “vivificador”. Nos versículos seguinte, Paulo nos apresenta mais uma ideia presente em outra carta:

    De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.

    Rm 8:12-17

    Paulo expõe uma versão embrionária da doutrina dos “Dois Caminhos” ao opor carne e espírito, morte e vida; estando o caminho correto balizado pela capacidade do Espírito de conceder um status de filiação com Deus, tal como defendera em Gl 4:5-7. É uma filiação “adotiva”, no sentido de que originalmente não seríamos filhos de Deus (apenas suas criaturas), mas auferiríamos essa condição por intermédio do Espírito, que preveniria uma vida sem a Lei da queda na iniquidade (cf. I Co 2:4-16). É bom ressaltar que, embora o a salvação tenha se iniciado com a ressurreição, de forma alguma seu processo está concluído: asperezas nesta vida ainda são esperadas antes do Fim dos Tempos, mas os “filhos de Deus” já não estariam mais sozinhos:

    Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos. E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.

    Rm 8:18-27

    Paulo faz novo uso do modo participativo ao declarar que alguma força externa à humanidade que a sujeitou “à vaidade” e outra força maior ainda a libertaria dessa escravidão. Acontece que tal processo ainda estaria inconcluso e o tempo das “primícias do Espírito” (i.e., o da ressurreição de Jesus), ainda seria de dores. Aí que entra uma impressionante inovação: o Espírito a interceder diretamente pela humanidade. No Antigo Testamento, o Rouach divino não tinha esse atributo personificado, sendo antes um instrumento que um agente autônomo. Tal tarefa cabia aos profetas, como Moisés ao afastar a iminente ira de Javé sobre os hebreus, após o episódio do bezerro de ouro (Ex 32:7-14, antropomorfismos à parte). Outros exemplos desse caso estão em Am 7:2, Jr 15:1, 18:20, etc. Já nos últimos livros da literatura bíblica, anjos começam a assumir esse papel, quer levando as orações dos fiéis a Deus (Tb 12:12), quer intercedendo eles mesmos (Zc 1:12). Agora, em Romanos, Paulo dá a responsabilidade de interceder e consolar ao Espírito, dando-lhe, assim, atributos pessoais. Isso não chega a ser exatamente uma surpresa, visto que se forças malignas – como o pecado e morte – são personificadas em Romanos, por que as benévolas não o poderiam, também? Vale assinalar que Jesus também aparece com a função de intercessor em Rm 8:34, o que poderia ser um reflexo da similitude entre os dois em 8:10-1, contudo há uma importante diferença: enquanto Jesus já “está à direita de Deus“, o outro intercessor atua na Terra. Assim, o Espírito Santo paulino se tornou uma espécie de prévia do Paracleto de João.

    Outra forma de atuação do Espírito junto ao homens se encontra na concessão dos chamados dons, que são relatados mais para a parte final da carta:

    Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria. O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem.

    Rm 12:4-9

    Embora nenhuma menção explícita seja feita ao Espírito Santo aqui, sabe-se da importância que Paulo dava a ele em I Cor 12, para a concessão dos referidos dons. Por fim:

    Ora o Deus de esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo [εν δυναμει πνευματος αγιου].

    Rm 15:13

    Que seja ministro de Jesus Cristo para os gentios, ministrando o evangelho de Deus, para que seja agradável a oferta dos gentios, santificada pelo Espírito Santo [εν πνευματι αγιω].

    v. 16

    Pelo poder dos sinais e prodígios, e pela virtude do Espírito [εν δυναμει πνευματος] de Deus; de maneira que desde Jerusalém, e arredores, até ao Ilírico, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo.

    v. 19

    E rogo-vos, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo [δια του κυριου ημων ιησου χριστου] e pelo amor do Espírito [και δια της αγαπης του πνευματος], que combatais comigo nas vossas orações por mim a Deus;

    v.30

    No penúltimo capítulo da carta (e último com algum conteúdo doutrinário), o Espírito aparece como um agente do tempo corrente (o ministério dos gentios) e do que está ainda por vir (daí a “esperança”), enquanto Jesus Cristo foi o principal personagem do ministério da circuncisão (v.8). Por fim, um apelo a ambos é feito, indicando que possuem importância similar, ainda que atuem em domínios diferentes.

* * *

Com Carta aos Romanos, chegamos à síntese da mensagem de Paulo, quando a “fé de Jesus” passa a se ladeada pela “fé em Cristo”. O abandono da Lei para a salvação foi, sem dúvida, um passo decisivo na separação entre judaísmo e cristianismo, mantendo o último as profecias apocalípticas do primeior. Curiosamente, Paulo é o grande ausente no Evangelho segundo o Espiritismo. Salvo a transcrição de “O Hino à Caridade” de I Coríntios 13 (cap XV do ESE) e mais alguns versículos do capítulo seguinte dessa carta – o que não permite de forma algum um panorama geral da mensagem de Paulo – nada mais é relacionado desse apóstolo. Em vez disso, centrou-se no lema “Fora da caridade não há salvação“, que retoma a moral dos sinópticos, mas rejeita a parte profética deles e a de Paulo (o fim dos tempos, a ressurreição da carne e a parúsia) para criar a sua própria (a Terceira Revelação). A consumação desse processo se deu com Léon Denis:

Com o seu sacrifício, dizem outros teólogos, Jesus “venceu o pecado e a morte, porque a morte é o salário do pecado e uma tremenda desordem na Criação(72) .

Entretanto, morre-se depois da vinda de Jesus, como antes dele se morria. A morte, considerada por certos
cristãos como consequência do pecado e punição do ser, é, todavia, uma lei natural e uma transformação necessária ao progresso e elevação da alma. Não pode ser elemento de desordem no Universo. Julgá-la por esse modo, não é insurgir-se contra a divina sabedoria?

É assim que, partindo de um ponto de vista errôneo, os homens da Igreja chegam às mais estranhas concepções. Quando afirmam que, por sua morte, Jesus se ofereceu a Deus em holocausto, para o resgate da Humanidade, não equivale isso a dizer, na opinião dos que creem na divindade do Cristo, que se ofereceu a si mesmo? E do que terá ele resgatado os homens? Não é das penas do inferno, pois que todos os dias nos repetem que os indivíduos que morrem em estado de pecado mortal são condenados às penas eternas.

A palavra pecado não exprime, em si mesma, senão uma ideia confusa. A violação da lei acarreta a cada ser um amesquinhamento moral, uma reação da consciência, que é uma causa de sofrimento íntimo e uma diminuição das percepções animais. Assim, o ser pune-se a si mesmo. Deus não intervém, porque Deus é infinito; nenhum ser seria capaz de lhe produzir o menor mal.

Se o sacrifício de Jesus resgatou os homens do pecado, porque, então, ainda os batizam? Essa redenção, em todo caso, não se pode estender senão unicamente aos cristãos, aos que têm conhecido e aceitado a doutrina do Nazareno. Teria ela, pois, excluído da sua esfera de ação a maior parte da Humanidade? Existem ainda hoje na Terra milhares, milhões de homens que vivem fora das igrejas cristãs, na ignorância das suas leis, privados desse ensino, sem cuja observância, dizem, “não há salvação”. Que pensar de opiniões tão opostas aos verdadeiros princípios de amor e justiça que regem os mundos?

Não, a missão do Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da Humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria capaz de resgatar ninguém. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da ignorância e do mal. Nada de exterior a nós poderia fazê-lo.
É o que os Espíritos, aos milhares, afirmam em todos os pontos do mundo. Das esferas de luz, onde tudo é serenidade e paz, desceu o Cristo às nossas obscuras e tormentosas regiões, para mostrar-nos o caminho que conduz a Deus: tal o seu sacrifício. A efusão de amor em que envolve os homens, sua identificação com eles, nas alegrias como nos sofrimentos, constituem a redenção que nos oferece e que somos livres de aceitar. Outros, antes dele, haviam induzido os povos ao caminho do bem e da verdade. Nenhum o fizera com a singular doçura, com a ternura penetrante que caracteriza o ensino de Jesus. Nenhum soube, como ele, ensinar a amar as virtudes modestas e escondidas. Nisso reside o poder, a grandeza moral do Evangelho, o elemento vital do Cristianismo, que sucumbe ao peso dos estranhos
dogmas de que o cumularam.

(72) De Pressensé, “Jesus Cristo, seu tempo, sua vida, sua obra”, pág. 654. Encontra-se essa opinião em muitos autores católicos.

Denis, Leon; Cristianismo e espiritismo, cap. VII

Não faço juízo juízo de valor quanto às palavras do “apóstolo do Espiritismo”, apenas constato, por sua rejeição explícita do cerne da mensagem paulina, que seu ministério foi um divisor de águas, marcando a separação definitiva entre o Espiritismo e a ortodoxia cristã.

Excetuando Filemom – que nada traz sobre o assunto – aqui se encerra a análise do papel do Espírito Santo nas cartas tidas por unanimidade como de autoria de Paulo. Nelas podemos constatar a passagem de uma “baixa pneumatologia” – com o Espírito Santo mais como uma ferramenta do poder divino – para uma “média/alta”, quando ele assume características pessoais e uma importância próxima a de Jesus. As peças seguintes da literatura cristã primitiva a serem redigidas, trariam o enfoque tanto de seus seguidores, como de seus rivais.

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A Disparidade Sinóptica

Vitral com os evangelistas dos sinópticos

Pela hipótese da origem quádrupla dos sinópticos, Marcos forneceu o fio narrativo para Mateus e Lucas. Estes, independentemente, acrescentaram ditos da Fonte Q e algum material próprio de cada um. Assim, o cerne do entendimento dos sinópticos quanto ao papel do Espírito Santo parte de Marcos e termina na forma como Luca e Mateus – a cada um a sua maneira – alteraram a visão inicial.

  • Marcos: o poder do Espírito: a primeira menção ao Espírito Santo ocorre logo na abertura deste evangelho, durante a pregação de João Batista:

    E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.

    Mc 1:7,8

    À primeira vista, esse texto viria a ser copiado nos outros dois sinópticos, conforme a hipótese da origem quádrupla, contudo podemos estar diante de um caso de múltipla atestação de Marcos e Q. Repare a diferença:

    (…) ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo (Mc 1:8)

    (…) ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mt 3:11/Lc 3:16)

    É possível que os redatores de Lucas e Mateus tenham se deparado com a seguinte leitura em Q: “ele vos batizará com fogo” e daí feito independentemente uma harmonização com Marcos gerando um versículo híbrido em seus respectivos evangelhos (cf. [Tatum, cap. XIII, pp. 128-31]).

(Em construção)
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Onde o Espírito fez a Curva

Árvore curvada

Será analisado, agora, um artigo de José Reis Chaves publica no jornal O Tempo (MG, 24/03/14). O tema é recorrente em sua coluna semanal e os equívocos neles contidos se repetem em outros artigos (cf.colunas de 10/11/14 e 14/12/15). Nada contra a pessoa desse autor, apenas um alerta aos incautos que um tema tão complexo não pode ser tratado de forma tão superficial. Eis o artigo:

Ainda falando do Espírito Santo verdadeiro conforme a Bíblia

Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!

E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).

E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.

Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo. E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica). Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano. Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo. Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28). O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo. Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.

Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”. E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo. Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.

Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.

E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples.

Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!
Com Celina Sobral e este colunista, o “Presença Espírita na Bíblia”, na TV Mundo Maior, por parabólica e internet, nas quintas-feiras, às 20h, e outros horários (grade da programação). Perguntas e sugestões: presenca@tvmundo maior.com.br.

Agora, algumas observações

Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!

Jesus não foi divinizado em Niceia, porque ela já havia sido divinizado muito antes! Pelo menos desde o Evangelho de João, com seu Verbo encarnado e o “Eu sou” (Jo 8:58), Jesus já era divino de alguma forma. O que Niceia discutiu era de que jeito era a divindade de Jesus. Mesmo a facção derrotada nesse concílio – os arianos – davam a Jesus status similar ao Pai e, embora não fosse coeterno com Ele, sua origem antecedia a criação. De maneira alguma o Cristo ariano se enquadraria na ideia de “espírito altamente evoluído” do kardecismo.

E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).

Tanto o Verbo enunciado no prólogo de João, quanto a Sabedoria cantada por Salomão provinham de Deus, partilhando, assim, de sua divindade de algum modo. O mesmo se deu com o Espírito Santo, o que o diferenciava dos demais espíritos. Ao longo de três século houve um processo de personificação e, depois, de equiparação entre ele, o Pai e Jesus. Vale, então, a mesma observação feita antes: os concílios não inventaram a Trindade, apenas deram chancela oficial a ideias que já existiam antes no cristianismo ortodoxo.

E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.

Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo.

Lendo os versículos no contexto (versão católica):

Mas revoltaram-se, ofenderam seu santo espírito, desde então tornou-se inimigo deles, e lhes fez guerra. Então se lembraram dos dias de outrora, de Moisés, seu servo.
Onde está aquele que tirou dos céus o pastor de seu rebanho? Onde está aquele que pôs nele seu santo espírito?
Aquele que à direita de Moisés atuou com o seu braço glorioso, e dividiu as águas diante dos seus para assegurar-se um renome eterno;
Is 63:10-12

“Aquele”, no caso, se refere ao próprio Deus, cujo o espírito santo foi ofendido pelos ímpios, o mesmo espírito que, anteriormente, fora posto em Moisés. Aqui não há o benefício da ambiguidade que aparece no exemplo seguinte:

E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica).

Vejamos o que diz esse versículo: “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel”. “História de Susana” é encontrada apenas na Septuaginta, e a alusão ao “espírito santo de Daniel”, mais especificamente na versão de Teodócio. A história descreve a chantagem sofrida pela jovem e casada Susana feita por dois anciãos que a viram se banhar no jardim. Como se recusou a ceder, foi por eles falsamente acusada de adultério e condenada à morte. No último instante, Deus agiu sobre Daniel, fazendo-o intervir para que os anciãos fossem interrogados em separado, foi quando se contradisseram nos pormenores. Após esse resumo, fica questão: o que foi despertado em Daniel foi o espírito santo dele mesmo ou o que estava nele (proveniente de Deus)? As duas leituras são possíveis. Ambrósio, bispo de Milão e contemporâneo de Jerônimo e Agostinho, optou pelo segunda alternativa:

Também Daniel, a menos que tivesse recebido o Espírito de Deus, nunca teria sido capaz de descobrir aquele adultério luxurioso, aquela mentira fraudulenta. Pois quando Susana, atingida pela conspiração dos anciãos, viu que a mente do povo estava conduzida pela consideração aos idosos, e destituída de toda ajuda, sozinha entre os homens, consciente de sua castidade ela orou a Deus para julgar; está escrito:”O Senhor ouviu a voz dela, quando era conduzida para a morte, e o o Senhor despertou o espírito santo de um jovem, cujo nome era Daniel”. E então, conforme a graça do Espírito Santo recebido por ele, descobriu a inconsistente evidência dos pérfidos, pois não foi por outra coisa senão a agência do poder divino que sua voz faria com que eles, cujos sentimentos íntimos eram ocultos, fossem conhecidos.

Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, livro III, cap. VI

Que não se desconsidere essa possibilidade, também. Prosseguindo

Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano.

É uma afirmação praticamente tautológica: com ou sem artigo definido, “Espírito Santo” sempre será um espírito qualquer, pois seria um circunlóquio para os seguidores de Deus e do Bem. Tal entendimento não contempla os casos em que a expressão parece designar uma pessoa (uma personificação do espírito divino) que não é nenhum dos presentes ou uma substância (o espírito divino sem personificação). O caráter substancial parece estar ausente da lógica do autor porque ele passa o entendimento equivocado que deve sempre haver um artigo (definido ou não), esquecendo a possibilidade de “Espírito Santo” ser anartro tanto em grego como em português.

O pior são os exemplos dados:

Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo.

Então, vejamos o original:

η ουκ οιδατε οτι το σωμα υμων ναος του εν υμιν αγιου πνευματος εστιν

O expressão “Espírito Santo” aparece articular na primeira forma atributiva, com o artigo concordando em gênero, número e caso. O que pode causar certa estranheza ao leitor de língua portuguesa é que entre os dois aparece εν υμιν (“em vós”), mas se deve lembrar que o grego, como língua sintética, não precisa seguir uma ordem fixa para os termos de uma oração.

Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28).

Em At 20:28, “Espírito Santo” aparece articular e, sem ser um uso anafórico do artigo, representa uma personificação. Logo, não é uma substância ou poder, nem um espírito genérico. Contudo, a leitura desse único versículo isoladamente pode dar a sensação de identidade entre Jesus e o Espírito Santo, porém isso não passa de observar a árvore e ignorar a floresta

E agora, eis que, ligado eu pelo espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que lá me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] de cidade em cidade me revela, dizendo que me esperam prisões e tribulações. Mas de nada faço questão, nem tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.
(…)
Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.
At 20:22-4,28

Pela história de Atos, Saulo – um fariseu perseguidor de cristãos – teve uma visão de Jesus durante seu trajeto para Damasco, e a partir daí mudou seu nome para Paulo, um incansável missionário cristão. Nesse mesmo livro, são várias as manifestações do Espírito Santo, seja com os cristãos que conheceram Jesus em vida (At 2:4-8) ou com prosélitos posteriores (At 19:1-7) e nenhuma delas é equiparada a uma manifestação de Jesus (que também apareceu a Ananias). Pelo contrário, o autor de Atos também deixa claro que Jesus e o Espírito Santo são distintos:

E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo [πνευματος αγιου].
At 9:17

Estando “Espírito Santo” com a forma anartra, pois é tratado como um espécie de substância ou poder a ser infundido. No caso de At 20:28, o Espírito Santo foi investido aos anciãos supervisores (bispos) da Igreja de Éfeso, parte de uma comunidade mais ampla e auferida pelo sacrifício do sangue de Jesus. Ou teria sido pelo de Deus? De fato, há mais de uma ambiguidade nesse versículo.

O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo.

Essa é uma alusão à fala de Jesus em seu (primeiro) discurso de despedida (Jo 14:26). Como há até hoje uma grande dúvida no movimento se Jesus é ou não o Espírito de Verdade, isso pode ter reforçado a confusão feita em At 20:28.

Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.

Meia-Verdade. Desde o século I, pelo menos, já havia a noção de o Espírito Santo possuir origem divina e partilhar de sua divindade, de algum modo. A plena equiparação do Espírito Santo ao Pai (e ao Filho) é que foi mais tardia. Houve falsificações trinitárias, sim, como o Parêntese Joanino, mas essa ideia de um Espírito Santo divino já existia antes de Niceia.

Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”.

Não sei quais os “originais” em questão que foram lidos. Existem edições críticas do Novo Testamento disponíveis ao público como o Nestle-Aland Novum Testamentum Graece e outras mais simples. Nenhuma delas sustenta “um espírito santo” para At 20:28 ou I Cor 6:19. Se o original é o Sabedoria do Evangelho de Pastorino, então fez-se uma leitura muito sui generis desse tradutor espírita, pois ele, como vimos, enumera onde “o Espírito Santo” aparece nos evangelhos.

E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo.

Essa besteira, em particular, vem desde os tempos de Léon Denis, repassada por gerações de espíritas. Eis sua versão original:

Essa palavra pneuma, traduziu-a S. Jerônimo como spiritus, reconhecendo, com os evangelistas, que há bons e maus Espíritos. A ideia de divinizar o Espírito não surgiu senão no século II. Foi somente depois da Vulgata que a palavra sanctus foi constantemente ligada à palavra spiritus, não conseguindo essa junção, na maioria dos casos, senão tornar o sentido mais obscuro e mesmo, às vezes, ininteligível. Os tradutores franceses dos livros canônicos foram ainda mais longe a esse respeito e contribuíram para desnaturar o sentido primitivo. Eis aqui um exemplo, entre outros muitos: lê-se em Lucas (cap. XI, texto grego)

10 – “Aquele que pede, recebe; o que procura acha; ao que bate se abrirá.” – 13. “Portanto, se bem que sejais maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, com muito mais forte razão vosso Pai enviará do céu “um bom espírito” àqueles que lho pedirem.”

As traduções francesas trazem o Espírito Santo. É um contra-senso. Na Vulgata, tradução latina do grego, está escrito Spiritum bonum, palavra por palavra, espírito bom. A Vulgata não fala absolutamente do Espírito Santo. O primitivo texto grego ainda é mais frisante, e nem douto modo poderia ser, pois que o Espírito Santo, como terceira pessoa da Trindade, não foi imaginado senão no fim do século II.

Léon Denis, Cristianismo e Espiritismo, Notas Complementares, nota n. 6

Agora, os fatos: Jerônimo sistematicamente usa Spiritus Sanctus ao longo de sua Vulgata. Em um versículo, ele utiliza Spiritus Bonus (Lc 11:13). Na maioria dos códices e papiros gregos – p75, Alexandrino, Sinaítico, Beza, etc. -, encontra-se a leitura “Espírito Santo”. Em alguns – P45 e códice Regius (L), por exemplo -, lê-se αγαθον (“bom”) nesse versículo e deve ter vindo daí a tradução de Jerônimo. Uma tradução francesa feita dos manuscritos gregos corretos nesse versículo explicaria a discrepância apontada pelo “apóstolo do espiritismo”. Até o infame Textus Receptus de Erasmo acerta nessa leitura.

Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.

Como visto logo acima, não há fundamento algum para essa teoria conspiratória da troca de “bom” por “santo”. É surpreendente que ela tenha durado tanto, quando ela poderia ser facilmente rechaçada por uma simples leitura da Vulgata, principalmente por aqueles que foram seminaristas. Quanto ao uso de maiúsculas, eles são apenas uma transposição para a grafia moderna dos antigos Nomina Sacra, que são anteriores aos Concílios.

Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.

Também consta na Escritura que um dos dons do Espírito Santo é o de discernir espíritos (cf. I Cor 12:10)! É perfeitamente possível, portanto, a existência de vários espíritos e apenas um deles ser o “Espírito Santo”, afinal “espírito” pode ter conotações diferentes para cada caso. Em vez de ficar no achismo de teologias modernas, vejamos o que documentos antigos falavam sobre o tema em pormenores:

“Agora escute”, disse ele, “sobre a fé. Existem dois mensageiros com o homem, o da justiça e o da maldade”.

“Então”, disse eu, “como posso reconhecer seus trabalhos, sendo que os dois anjos vivem comigo?”

“Escute”, disse ele, “e os entenda. O mensageiro da justiça é sensível, modesto, gentil e tranquilo. Quando este entrar em teu coração, ele imediatamente fala contigo sobre a justiça, a pureza, a santidade, sobre o contentamento, sobre cada ato justo e sobre cada virtude gloriosa. quando tudo isso entrar em teu coração, saberás que o mensageiro da justiça está contigo. Estes, então, são os trabalhos do anjo da justiça. Portanto, confie nele e em seus trabalhos. Agora observe os trabalhos do anjo da maldade. Primeiro de tudo, ele é irritado, maligno e frenético, e seus trabalhos são o mal, despedaçando os servidores de Deus. assim, quando este entrar em teu coração, o reconheça pelos seus trabalhos.”

“Mas Senhor”, disse eu, “eu não sei como reconhecê-lo”.

“Escute”, respondeu, “quando alguma explosão de algum nervosismo temperamental tomar posse de ti, reconheça que ele se encontra em ti. Então vêm o desejo do trabalho excessivo, bebidas e comidas extravagantes, muita bebedeira, e vários tipos de luxúrias desnecessárias, o desejo de mulheres, a ganância, a arrogâncias e a pretensiosidade, o que quer que lembre ou se assimile a estas coisas. Assim, quando estas coisas entrarem em teu coração, saberás que o anjo da maldade estará contigo. Reconhecendo, portanto, seus trabalhos, evite-o e não confie nele em nenhuma circunstância, pois seus trabalhos são malignos e prejudiciais aos servidores de Deus. Agora tens, então, o funcionamento dos dois mensageiros; entenda-os e confie no anjo da justiça. mas mantenha-se longe do anjo da iniquidade, porque seu ensinamento é o mal em todas perspectivas. Pois mesmo se houver uma pessoa de fé, e um pensamento deste anjo penetrar em seu coração, é inevitável que aquele homem ou mulher cometerá algum pecado. Todavia, temos uma pessoa extremamente pecadora, homem ou mulher, será necessário que este faça algo bom. Vês assim que é bom seguir o anjo da justiça e evitar o anjo da maldade. Este mandamento explica coisas sobre a fé para que possas confiar nos trabalhos do mensageiro da justiça, e para que, fazendo estes trabalhos, possas viver para Deus. Mas acredite que os trabalhos do mensageiro do mal são perigosos, para que não os fazendo, possas viver para Deus.”

Hermas, Carta do Pastor, VI Mandamento

A Carta (ou Evangelho) do Pastor foi escrita por volta de meados do II século e traz em seus primeiros capítulos a questão dos “Dois Caminhos” (cf. Mt 7:13,14 e Lc 12:23-5), um tema recorrente em obras do período, como a Didaqué e Epístola de Barnabé. No caso, explana como a influência angélica ou demoníaca poderia desviar os cristãos da retidão. Vale lembrar que essa obra trata o Espírito Santo como algo distinto desses dois tipos de seres espirituais, afinal ele era pré-existente e gerara “toda a criação” ([Hermas, Quinta Parábola]). A identificação dessas influências era crucial para o autor de I João, pois, conforme o conteúdo da epístola dá a entender, sua comunidade enfrentava um cisma, com alguns de seus membros a abandonando após adotarem uma espécie visão docetista quanto à natureza de Jesus.

E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples

Vejamos o que realmente o livro de Números tem a dizer :

E disse o Senhor a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, que sabes serem anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da congregação, e ali estejam contigo. Então eu descerei e ali falarei contigo, e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que tu não a leves sozinho.

(…)

E saiu Moisés, e falou as palavras do Senhor ao povo, e ajuntou setenta homens dos anciãos do povo e os pôs ao redor da tenda.
Então o Senhor desceu na nuvem, e lhe falou; e, tirando do espírito, que estava sobre ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; e aconteceu que, quando o espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas depois nunca mais.

Porém no arraial ficaram dois homens; o nome de um era Eldade, e do outro Medade; e repousou sobre eles o espírito (porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizavam no arraial.
Então correu um moço e anunciou a Moisés e disse: Eldade e Medade profetizam no arraial.
E Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus jovens escolhidos, respondeu e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-lho.
Porém, Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!

Nm 11:16-7, 24-9

Assim está escrito: “e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles”. Isso está muito mais próximo da ideia de espírito como uma “forma de poder” que foi, no episódio descrito, partilhada, do que consciências do além incorporando em mortais. Chamar Eldade, Medade ou os demais anciãos de “médiuns”, no sentido moderno da palavra, é focar-se na semelhanças do efeito produzido com o das incorporações mediúnicas e esquecer-se das diferenças entre as causas. A passagem de Efésios vai pelo mesmo caminho.

Por fim:

Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!

Que se reforme urgentemente a Intelligentsia espírita, pois a que está aí tem uma terrível tendência para olhar o passado com os olhos do (seu) presente e, assim, enxergar aquilo que quer ver. Que ao menos um dia ela abra algum exemplar da Septuaginta ou da Vulgata para conferir se as informações bombásticas que repassam se elevam ao menos um pouco acima do quilate de um boato.

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O Julgamento Final

O Juízo Final

Marten de Vos: O Juízo Final

Embora o assunto deste não tenha exatamente a ver com o Espírito Santo, gostaria de comentá-lo por envolver o uso do artigo grego. Trata-se de um recorrente versículo utilizado pelos cristãos tradicionais contra os argumentos em prol da reencarnação na Bíblia:

E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo. Assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam.

Hb 9:27-8

De tão batida, essa passagem já ganhou várias análises e tentativas de refutação por parte de apologistas. Eis uma tanto abrangente em seus comentários:

Esta passagem é a mais citada pelos opositores como prova de que a Reencarnação não existe.

No entanto, esta afirmativa de modo algum nega ou invalida o princípio da Reencarnação, pois realmente o nosso corpo (este que o nosso espírito anima agora) só morre uma vez. O corpo muda a cada Reencarnação, o espírito, no entanto, permanece o mesmo em vários corpos, que morrem a cada nova existência, até atingirem a perfeição.

Ressaltamos, ainda, que Paulo não disse que o “homem deve viver uma só vez”. Ele não poderia se opor ao nascer de novo já decretado por Cristo no seu diálogo com Nicodemos em João Capítulo 3. E também não se oporia ao Apocalipse, capítulo 2:11 e 20:6 (Veja capítulo XVII), onde Ele fala na “segunda morte”, o que nos obriga, automaticamente, a concluir sobre a necessidade de um “segundo nascimento”. Lembre ainda que Paulo diz que depois da morte vem “um julgamento” e não “o julgamento”, que seria único e para todos de uma vez. Conclui-se que Paulo fala de um julgamento após cada morte.

Na verdade, neste planeta quem só encarnou uma vez e necessitou morrer também uma só vez foi o Cristo que já não possuía débitos e tinha sua evolução espiritual totalmente atingida e é a quem Paulo se refere, realmente, nesta passagem. Nós, no entanto, devido aos nossos débitos e defeitos, necessitamos reencarnar e passar pela morte física muitas vezes. O Cristo neste planeta só encarnou uma vez e consequentemente só morreu uma vez.

Observe, ainda, no texto, Paulo afirmando que, depois da morte, vem um julgamento, estando de pleno acordo com o princípio da Reencarnação, como nos mostra a Doutrina Espírita. Após a desencarnação, vem o balanço do emprego que fizemos de nossa existência na última encarnação. Após este julgamento, vem a necessidade ou não de volta à vida material.

Veja no Evangelho de João 5:28-30, onde Jesus nos informa que há realmente um julgamento, após a morte, e que indica a necessidade de escolha de uma nova etapa.

Há ainda os que afirmam ser a morte física uma consequência do pecado, (I Cor. 15:56) o que acaba sendo uma incoerência, pois o Cristo não tinha pecado e no entanto morreu fisicamente.

É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.

Na verdade, a condição de morrer uma só vez é aplicada muito bem ao Cristo que não tinha erros e faltas a expiar, pois era um espírito com plenitude evolutiva. Quanto a nós, pobres criaturas em busca de um reencontro com Deus, temos, na verdade, que morrer e renascer muitas vezes.

Severino Celestino da Silva, Analisando as Traduções Bíblicas, 4ªed., cap. XXIII, pp. 315-6 (grifos no original).

Bem, primeiramente, vamos destrinchar o que é o livro Hebreus do Novo Testamento, qual sua mensagem, para daí entender qual era visão teológica de seu autor quanto a morte, em vez de ficar lhe imputando opiniões de outros livros bíblicos ou, pior, de religiões modernas. Embora seja comumente chamado de “Carta” ou “Epístola aos Hebreus”, ele carece da estrutura de uma carta a dar instruções sobre questões que aflijam a comunidade ou tecer agradecimentos. Em linhas gerais, ele começa como um tratado, evolui para uma sermão e só mais perto o fim se assemelha a uma carta. A autoria, é bom que se saiba, é desconhecida. A tradição cristã a atribui a Paulo, mas isso é posto em dúvida desde a Antiguidade e hoje há consenso de que ele não a escreveu. Assim, Hebreus é uma peça ímpar dentro no Novo Testamento, não cabendo a priori relacioná-la com as cartas de Paulo ou supostos livros que ele tenha lido.

O público para o qual Hebreus se destina se constituía de cristãos a sofrer algum tipo de perseguição (Hb 10:34-6) e, em razão disso, alguns estavam tentados a se converter (ou voltar) ao judaísmo, que gozava de proteção legal. Assim, seu anônimo autor admoesta seu público a permanecer firme na fé, pois o cristianismo seria o ápice de todas as realizações e promessas do judaísmo. Ameaças à parte, é feita uma série de comparações para justificar tal superioridade:

  • Cristo é superior aos profetas (Hb 1:1-3);

  • Cristo é superior aos anjos (Hb 1:4-11, 2:5-18);

  • Cristo é superior a Moisés (Hb 3:1-6);

  • Cristo é superior a Josué (Hb 4:1-11);

  • Cristo é superior ao sacerdócio judaico (Hb 4:14-5:10; 7:1-29);

  • Cristo é ministro de uma Aliança superior (Hb 8:1-13);

  • Cristo é ministro em um Tabernáculo superior (Hb 9:1-28);

  • Cristo constitui por si mesmo um sacrifício superior (Hb 10:1-18).

A passagem em questão se situa bem na fronteira entre os dois últimos itens. O tabernáculo em que Jesus ministrou era superior por estar no céu, em vez de sua contraparte terrena, feita por homens. Além disso, o sacrifício não foi feito com coisas terrenas, como o sangue de animais, mas com algo celestial: o próprio Jesus Cristo. A consequência dessa superioridade era que o sacrifício de Jesus foi único e redentor de uma vez por todas, ao passo que os dos sacerdotes precisam ser repetidos periodicamente. Nesse contraste entre ministérios é que a unicidade do sacrifício de Jesus foi comparada à da morte de cada indivíduo.

O questionamento principal do apologista é que, a rigor, o texto grego de Hb 9:27 não consta o artigo – μετα δε τουτο κρισις -, que seria literalmente traduzido por “e, após isto, (um) juízo”. Como já explanado, a presença do artigo estabelece a definição; em sua ausência, o substantivo pode ser definido ou não, e só contexto pode sanar a dúvida. Versões inglesas, como a American Standard Version, mantêm a palavra judgment anartra, indicando um caráter qualitativo para seus tradutores. Em português isso soaria um tanto estranho, pendido algum tipo de artigo. Qual empregar em “juízo” (κρισις) dependerá de como o autor de hebreus o quantificava. Uma pista foi dada alguns capítulos antes:

Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno [κριματος αιωνιου].

Hb 6:1,2

Embora aqui se use uma palavra diferente (κριμα), em ambos os versículos vale a tradução “julgamento”, “juízo” ou “condenação”. O chamativo, aqui, é o adjetivo que a acompanha – αιωνιος – que pode significar “eterno”, “para sempre”, “sem fim” ou “duradouro por uma era [αιων]”. O único significado que talvez permitisse um novo julgamento seria o último, ainda que numa era distinta. Vejamos, então, qual uso o anônimo autor de Hebreus lhe deu em outros versículos:

E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna [αιωνιου] salvação para todos os que lhe obedecem; (5:9)

Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna [αιωνιαν] redenção. (9:12)

E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna [αιωνιου]. (9:15)

Ora, o Deus de paz, que pelo sangue da aliança eterna [αιωνιου] tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, (13:20)

Dada a determinação do autor em mostrar a superioridade do cristianismo, fica difícil conceber a oferta de uma salvação/herança/aliança limitada no tempo; portanto, “eterno” é a melhor tradução para αιωνιος e, por conseguinte, ele também cria na danação eterna. O juízo seria único.

Outro apologista espírita, ao contrário de seu confradre, percebeu que as coisas não eram tão simples assim, em razão da vinculação o sacrifício de Jesus com a morte única:

A outra parte do homem morto é a do seu espírito imortal, que apenas se separa do seu corpo que morre, e vai para o mundo espiritual, onde descansa da vida do corpo terrena, enquanto que aguarda a volta a um novo corpo, formando, assim, um novo homem que está predestinado a, um dia, morrer novamente, mas como sempre, somente uma vez só. Depois da morte de cada homem, seu espírito passa por um julgamento para que vá colhendo temporariamente o que semeou. Mas esse julgamento não é definitivo, pois, no fim dos tempos, os espíritos terão o juízo final de suas faltas, nas várias reencarnações, com a simbólica separação do joio do trigo.

“E como todo homem está destinado a morrer uma só vez, depois do que haverá o julgamento, assim também Cristo se ofereceu uma só vez para tirar os pecados de muitos homens. Ele aparecerá uma segunda vez, sem relação alguma com o pecado aos que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hebreus 9: 27). O que o autor, muito ligado às ideias de sacrifícios do Velho Testamento, quer acentuar é que a única morte de Jesus na cruz, como a de todo homem, que é também uma só, foi tão importante como sacrifício de morte, que não há mais necessidade de outros sacrifícios de morte de mais nenhum outro ser para resgatar pecados como pensavam os judeus. O texto, como se vê, não tem mesmo nenhuma relação com a reencarnação, mas tão somente com a eficácia da morte única de Jesus para o resgate dos pecados.

J.R. Chaves; Hebreus 9:27 é um abuso de interpretação contra a reencarnação, Jornal O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/09/2013.

A memória do Segundo Templo e seus sacrifícios ainda estava fresca, portanto não há o que estranhar quanto aos paralelos. Deve-se concordar, contudo, que o texto bíblico não traga uma relação direta com a reencarnação, nem aparente que isso passasse pela cabeça de seu autor. Até porque não haveria tempo para reencarnar:

Se assim fosse, Cristo precisaria sofrer muitas vezes, desde o começo do mundo. Mas agora ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos [συντελεια των αιωνων], para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo.

Hb 9:26

Bem no versículo anterior ao famigerado hb 9:27, nosso desconhecido autor demonstra que acreditava viver já no fim dos tempos. A reencarnação não fazia parte de sua soteriologia. A constatação disso me obriga a revisar o apelo feito por Celestino:

É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.

Não dá para fazer uma análise pessoal, a menos que se queira produzir uma interpretação pesher, exatamente o que os dois apologistas fizeram. Caso se agisse de modo menos apologético e mais científico, pesquisariam a estrutura literária de Hebreus, quem era o público do autor, qual mensagem queria passar, de quais temas tratou, etc. Enfim, trariam de volta um pouco da pessoa do final do primeiro século da Era Comum, imersa numa expectativa apocalipsista, em vez de alguém que lhes é a própria imagem e semelhança.

Bem, se você está lendo isto aqui, então o mundo – tal como o conhecemos – não acabou ainda, e a ortodoxia cristã teve de lidar com o pós-morte até lá. Nesse aspecto, o cânon que se formou nos séculos II e III não está coerente. Cada seita produz a harmonização necessária para sua doutrina, que vai desde a desde o gozo ou sofrimento logo após a morte ou, conforme outras, uma hibernação até o Dia do Juízo, e até mesmo a aniquilação (“retorno ao pó”) enquanto não é chegada a hora da ressurreição. Tudo depende de um maior ou menor dualismo entre corpo e alma, embora em todas o veredicto já esteja dado após a morte. Apologistas espíritas lidam com tais discrepâncias para desconsiderar os que se valem de Hb 9:27. Por sua vez, a comunidade da Epístola ao Hebreus desconhecia esse cânon, tampouco tinha necessidade de harmonizações: para ela o tempo era curto.

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Notas


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Para Saber Mais



– Bauckham, Richard; The Qumran Community and the Gospel of John, em The Dead Sea Scrolls: The Dead Sea Scrolls Fifty Years After Their Discovery, ed. Lawrence H. Schiffman, Emanuel Tov and James C. VanderKam, Israel Exploration Society, Jerusalem 2000, p.105-115.

– Bruce, F. F; Holy Spirit in the Qumran Texts, Annual of Leeds University Oriental Society 6 (1966/68): 49-55.

– Comfort, Philip; Encountering the Manuscripts, Broadman & Holdman Publishers, 2005.

– McNamara, Martin; Targum and Testament Revisited, William B. Eerdmans Publishing Company, 2a. ediçfão, 2010.

– Murachco, Henrique;Língua Grega, II Volumes, Vozes, 2a. ed, 2002.

– Jewish Encyclopedia, Holy Espirit, acessado em 10/07/2014

– Porter, Stanley E.; Idioms of the Greek New Testament, Bloomsbury T&T Clark; 2a. ed., 1992

– Read-Heimerdinger, Jenny; The Bezan Text of Acts: A Contribution of Discourse Analysis to Textual Criticism, T & T Clark, 2002.

– Robertson, A.T.; A Grammar of the Greek New Testament – In the Light of Historical Research, Broadman Press, 1934.

– Shapland, C.R.B; As Cartas de Santo Atanásio acerca do Espírito Santo, The Epworth Press, 1951.

– Tatum, W. Barnes; John the Baptist and Jesus – A Report of the Jesus Seminar, Polebridge Press, 1992

– Wallace, Daniel B.; Greek Grammar beyond the Basics, Zondervan, 4a. edição, 1995.