Quanto pesa a Alma?

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O Sopro da Vida…

Minha alma

O salmo 19:8 é acusado de ter sofrido traduções fraudulentas no livro Analisando as Traduções Bíblicas, de Severino Celestino da Silva. Da versão literal hebraica:

O ensinamento (lei) de Javé é perfeito(a), faz voltar a alma (espírito)

Vamos por partes: A primeira questão seria quanto a palavra alma/espírito:

No entanto, na Bíblia de Jerusalém e na Bíblia Tradução Ecumênica, colocaram a palavra espírito (néfesh), como vida. Isto porque os tradutores se basearam em um dos significados gregos da palavra psyké (alma), que também pode significar “vida“, mas esta adaptação só pode ocorrer no significado grego, porque, no texto original em hebraico, isto não é verdadeiro, pois neshamá e nefésh significam espírito mesmo (Veja 2,7) e não vida (chaim) que, em hebraico, é totalmente diferente de (neshamá) e (néfesh) tanto na grafia quanto em significado. E aqui, especificamente, significa espírito.

Cap VI

Bem, a título de esclarecimento, néfesh, rouach e neshamá são três palavras comumente usadas no Antigo Testamento para designar o que chamamos grosso modo de “alma”. A filosofia medieval judaica concebeu um modelo tripartite para alma humana baseado nelas (cf. [Raphael, cap. VIII, p. 278]), cabendo à primeira as funções vegetativas da alma, à segunda as animais e à terceira as intelectuais; um modelo legado posteriormente às especulações cabalistas.

Embora não haja amarração rígida alguma, essa divisão pode ter se originado dos usos dados a cada uma delas. No caso de néfesh, significados não tão espiritualizados assim surgem, do contrário ficariam muito estranhas tais passagens:

  • Quem o come carrega seu erro: sim, ele profanou o Santuário de Iahweh. Esse/essa * é cortado de seus povos. (Lv 19:8)

  • O rei tornou a mandar um chefe de cinquenta com seus cinquenta comandados, o qual subiu e lhe disse: “Homem de Deus! Que tenham algum valor a teus olhos a minha/meu * e a destes teus cinquenta servos. Caiu fogo e devorou os dois primeiros chefes de cinquenta e seus comandados; mas agora, que minha/meu * tenha algum valor a teus olhos” (2 Re 1:13-14)

  • mas toda a carne tendo em seu/sua *, isto é seu sangue, não comereis. (Gen 9:4)

  • Sê firme, contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é *. Portanto, não comas * com a carne. (Dt 12:23)

  • A fuga será impossível ao ágil, o homem forte não empregará a sua força e o herói não salvará a seu/sua *. Aquele que maneja o arco não ficará de pé, o homem ágil não se salvará com seus pés, e o cavaleiro não salvará sua/seu *. (Am 2:14-15)

  • O Senhor Iahweh jurou por * – oráculo de Iahweh, Deus dos Exércitos- Eu detesto … (Am 6:8)

  • Não torneis * imundos, com todos estes répteis que andam de rasto (…) (Lv 11:43)

  • Quando * apresentar presente como oferenda diante de Iahweh, seu presente será sêmola. Nela se escorre o azeite em troca de olíbano (Lv 2:1)

  • ele não vem sobre qualquer * morto. Ele não se contaminará por seu pai ou sua mãe. (Lv 21:11)

Fontes: livros da série A Bíblia, de André Chouraqui, e A Bíblia de Jerusalém(1995).

Será que substituir todos os (*) por alma/espírito dá certo? Alma é material para estar no sangue (Dt 12:23), ou Iahweh teria uma alma encarnada como nós (Am 6:8)? Não sei se espíritos conseguem fazer oferendas sacrificiais (Lv2:1), se são retiradas por meio de exorcismo/ desobsessão do meio do povo ou de quanta força física precisam para se salvar. Almas morrem (Lv 21:11)? Ou seja, “alma” pode não ser a melhor tradução, ou pelo menos a única, para o termo “néfesh” representado pelos asteriscos. Por que não “indivíduo” (Lv 19:8), “vida” ( 2 Re 1:13-14, Gn 9:4, Dt 12:23 e Am 2:14-15 ), “si mesmo” (Am 6:8), “vós mesmos” (Lv 11:43), “alguém” (Lv 2:1), “corpo” (Lv 21:11).

E a lista poderia ser maior que esta. Portanto, considerar néfesh exclusivamente como sendo “alma/espírito” é esconder um pouco o jogo a respeito da versatilidade desta palavra hebraica. Na lista exposta no parágrafo anterior, falta um sentido que é o centro de gravidade de todos os demais: “ser”. A ideia principal que permeia inúmeras ocorrências de néfesh é a de “unidade de vida” do que exatamente uma posse dela. Humanos e criaturas são “seres”, antes de corpos que possuem um “ser” animando-os. Este sentido de “ser, criatura, pessoa” é o que mais aparece na tradução de Chouraqui (1) como Gen 2:7 (“ser vivente”), sendo que Sl 19:8 é traduzido por: “restaura o ser”. Esta propriedade de referir-se ao indivíduo como um todo permite o uso idiomático de néfesh mais um sufixo como pronome reflexivo (ou seja, referente ao próprio ser). Outras passagens (Dt 12:23) remetem a uma espécie de “energia vital”. Aqui, néfesh seria mais o espírito, o “sopro” que sustenta a existência do ser vivo do que exatamente a alma individual . Sentidos em oposição a “vida” da palavra chaim, como uma qualidade oposta a “morte”.

Vejamos, então, algumas definições dadas a “néfesh”:

[Lambin, lição 37] alma, energia vital; pessoa, criatura, mais o seu uso reflexivo
[Berezin], verbete néfesh espírito, vida, homem, personagem, figura; e ela toma parte em expressões como “com risco de vida
[Barish & Barish, cap. XIII] Nefesh – traduzida algumas vezes com vitalidade, algumas vezes com personalidade. Em Deut. XII-23 ela se refere ao sangue que é o que leva a vida através do corpo. A alma é a condutora da vida na pessoa, aquilo que a torna viva biologicamente
[Asheri, cap XLI, p.253] (2) Nefesh é a centelha que mantém vivos os seres humanos. Quando falamos de “preservação da vida”, para qual quase todos os mandamentos podem ser desprezados, a expressão hebraica é pikuach nefesh. No mesmo sentido, o “perigo à vida” é denominado sakanat n’fashot. Não devemos pensar na nefesh como sendo simplesmente uma força vital mecânica ou animal; ela também contém a personalidade do ser humano, mas parece faltar-lhe qualquer qualidade puramente espiritual. A implicação do acima dito é que ela morre com o corpo.

Assim, “vida” ou “energia vital” podem ser significados possíveis para néfesh, ainda que não o seu sentido imediato e “espírito” não significa bem o “mente + perispírito” do kardecismo, que seria separável do corpo físico. Portanto, a acusação de má tradução feita pelo autor é totalmente leviana. Conscientemente ou não, está foi repassado um embuste ao leitor de Analisando…. O “psyké” grego, a propósito, também admite: sopro de vida (a tal energia vital) e ânimo; o temo latino anima o acompanha em versatilidade: alma, vida, sopro, hálito (que não é o caso, óbvio), pessoa.

Essa situação de “traduttore, traditore” nem sequer é nova. Dissidências judaicas medievais, que já não tinham há muito o hebraico como língua materna, também derraparam no mesmo versículo. O filósofo judaico Saadia Gaon assim refutou aos que, no século X, liam como em Analisando…:

Um adicional engano da parte deles é o aplicado à referência do santo: “Ele restaurará minha alma”. Eles pensaram, a saber, que isto implicava numa permuta de corpo para corpo, não lembrando, ignominiosos que são, que se referia a relaxação, e descanso, e repouso da alma da excitação experimentada por ela, não a uma restauração depois da partida de um corpo.

[Gaon, tratado VI, cap. VIII]

E não estava sozinho, como mostra o comentário de Rabi Shlomo Yitzhaqi (vulgo Rashi, 1040-1105 d.C.) à passagem análoga de Sl 23:3

Meu espírito, que fora enfraquecido pelas dificuldades e a diligência, ele restaurará ao estado prévio.

Bem, estas são opiniões rabínicas, sem o viés protestante/católico de que tanto se reclama e, se assim for, o sentido de Chouraqui cai melhor. Há, como Gaon comenta, uma ideia de relaxamento, repouso, conforto… pois é: confortar também é um significado viável para o verbo relacionado a nefésh: shuv: reanimar, confortar, causar satisfação e também seus sentidos mais literais: fazer voltar, restituir, restaurar, devolver; todos registrados no dicionário Rifka Berezin e implícitos na fala de Gaon. Em suma, não foi uma omissão, estes significados são possíveis e deveriam ter sido expostos por Severino Celestino da Silva na sua relação de significados para shuv, e não como obra de tendenciosos. Além disso, há a possibilidade de ter ocorrido uma harmonização com outra passagem (Pr 25:13), que também é traduzida comumente como “reconforta a alma”, mas cujo contexto transmite esta sensação. Uma outra fonte de erros aqui foi ter se considerado uma relação “um para um” na hora de verter o significado de um termo hebraico para o português. Palavras, ainda mais as abstratas, muitas vezes têm um leque de sentidos num idioma, que nem sempre é mapeado de forma unívoca para outro. A propósito, a versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida já traz um sentido mais próximo ao literal: “restaura a alma”.

Gaon se referia a outra aparição do verbo em Sl 23:3, que em Analisando…, cap. VII, tem seu versículo anterior (“Em verdes pastagens me fará descansar. Para a tranquilidade das águas me conduzirá”) interpretado de forma “mui livre”, como o útero sendo o ambiente tranquilo e as água o líquido amniótico. Bem, se ele se dá ao direito de a fazer livre associações … tudo bem, contanto que outros possam utilizar os significados figurados de shuv, talvez não haja problema. Ou será não vão querer dar pesos e medidas diferentes a cada caso? Neste mesmo capítulo, a palavra chaim (“vida”, chaiâi com sufixo possessivo) é traduzida como plural “minhas vidas”. De fato, chaim é uma palavra palavra plural, mas não de “vida”. Ao pé da letra, ela significa “vivos” (plural de chayy) e é em geral traduzido por “vida”, “duração da vida”, “anos de vida”. Como em Gn. 23:1: “A duração da vida de Sara foi de 123 anos”. O próprio autor traduziu Gn 2:7, no cap. IV, “… um sopro de vida…” (e não “vidas”, vide o extrato que abre este artigo) e reiterou esse sentido no cap. VI. Muda-se misteriosamente de opinião no VII sem dar ao leitor a informação que hebraico emprega muitas vezes o plural sem se referir a um plural numérico (ex. dom, “sangue”; domym, “derramamento de sangue”).

É claro que os conceitos religiosos dos tradutores e suas crenças pessoais, os seus desconhecimentos, bem como, outros motivos aqui não citados, levaram-nos a estas conclusões.

“Analisando…”, cap VI

Sugerimos trocar de dicionário antes de ser tão contundente. Talvez um dicionário “velho” possa auxiliar também, pois Severino Celestino da Silva age de forma um tanto injusta quando trata a tradução da Vulgata para o português de Sl 19:28:

Convertens animas”, no latim, significa: faz a alma voltar, pois o verbo convertere, em latim, significa voltar, fazer voltar, retroceder. No entanto, muitos tradutores da Vulgata colocam esta frase como “converte a alma”, dando a este verbo latino um significado direto para o português que, como vemos, não representa o seu verdadeiro significado.

Analisando… Cap. VI

O Vocabulário Português e Latino (1712-1728) de Rafael Bluteau traz, entre outros significados para converter, a acepção:

Em ortografia moderna aparece “as suas setas se converterão contra eles”, num sentido claro de “voltar”. O padre Antônio Vieira (1608 – 1697), em seus sermões , traz-nos um uso similar:

Desenganemo-nos, que é necessário deixar o mundo antes que ele nos deixe. E que ocasião mais aparelhada, e ainda mais forçosa e mais fidalga, que deixá-lo quando quem o criou e nos criou o deixa? Será bem que se parta Cristo do mundo. Ut transeat ex hoc mundo — e que faça esta jornada só, sem haver quem o acompanhe e o siga? Que coração haverá tão esquecido de Deus e de si, que ouvindo aquele rebate, ou aquele pregão do céu; Sciens Jesus quia venit hora ejus [Sabendo Jesus que era chegada a sua hora – Jo 13:1] — lhe não cause um grande abalo na alma, e diga resolutamente consigo: Esta será também a minha hora? Nenhum cristão há de consciência tão perdida, que não faça conta de se converter e se dar a Deus alguma hora: e se há de ser alguma hora, que hora como esta?”

– Sermão do Segundo Mandato

Ainda que em todos os dias nos podemos converter a Deus, o tempo que sua divina misericórdia nos sinalou particularmente para a penitência dos pecados são os quarenta dias da Quaresma

– Sermão de Dia de Ramos

Obviamente, “converter” não tem o sentido de “mudar de religião, ideia”, pois se parte do princípio que o interlocutor já é cristão. O que o padre queria dizer era algo como: “não faça conta de se voltar e se dar a Deus alguma hora”. Ainda na época seiscentista e setecentista a palavra portuguesa mantinha certa reminiscência do seu significado original latino. Talvez isso tenha influenciado a tradução de Antônio Pereira de Figueiredo, cujo Antigo Testamento foi publicado entre 1782 e 1790. Com a evolução da língua, esse sentido caiu em desuso e nem todos os dicionários o registram hoje (4). Vale lembrar, embora ainda preservando um significado de “voltar/volver”, o sentido de “retorno” pleno já deveria estar esquecido, mesmo em latim, por alguns religiosos. Em seu “Sermão de Quarta-feira de Cinzas”, Vieira não equiparou converteris a reverteris, do famoso versículo de Gn 3:19: “Pulvis es, tu in pulverem reverteris“.

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… sobre Ossos Secos

Ezequiel e os ossos secos

O termo, por sinal, mais aproximadamente corresponderia a “espírito” é rouach. “Mais”, porque este termo também tem múltiplos significados (sopro, vento, espírito). Mesmo quando ele é traduzido por espírito não significa que seja exatamente a consciência sempre, mas o princípio que nos anima (Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7, o que não é panteísmo), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10).

A passagem Ez 37:1-14 dá um exemplo de “espírito” como manifestação divina:

Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um vale que estava cheio de ossos, e me fez andar ao redor deles; eram mui numerosos na superfície do vale e estavam sequíssimos. Então, me perguntou: Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos? Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito em vós, e vivereis. Porei tendões sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós estenderei pele e porei em vós o espírito, e vivereis. E sabereis que eu sou o Senhor. Então, profetizei segundo me fora ordenado; enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam, cada osso ao seu osso. Olhei, e eis que havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a pele sobre eles; mas não havia neles o espírito. Então, ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam. Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército sobremodo numeroso. Então, me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que dizem: Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; estamos de todo exterminados. Portanto, profetiza e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel. Sabereis que eu sou o Senhor, quando eu abrir a vossa sepultura e vos fizer sair dela, ó povo meu. Porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então, sabereis que eu, o Senhor, disse isto e o fiz, diz o Senhor.

Nas palavras de Severino Celestino da Silva, Analisando…, cap XV:

O capítulo 37, vv 1 a 14 do livro de Ezequiel fala da reencarnação numa linguagem clara, no entanto, a maioria o traduz e interpreta como ressurreição.(…)Observe que, a partir do versículo 11, Iahweh fecha o sentido de renascimento, mostrando que os ossos simbolizam o povo de Israel e que ele fará reencarnar a todos, retirando-os dos seus túmulos e fazendo-os voltar reencarnados à sua Terra. Ele não fala que os retiraria na ressurreição do último dia mas que os retiraria do túmulo, fazendo-os renascer e fazendo-os voltar à terra de Israel e não aos Céus. Aqui não existe dúvida sobre a Reencarnação e esclarecimento sobre a inexistência de um último dia para a ressurreição.

Não, muitas dúvidas pairam. Não há nenhum sinal de passagem cíclica pelo útero, também. Mas o principal aqui é que se tem o presente olhando o passado sob seu viés. Os antigos leitores enxergavam isto com olhos bem distintos.

(…) Concorda com ele que ao dizer que, na verdade, Ezequiel não restaurou nenhum morto no fim de contas, e a profecia foi apenas uma parábola da nação judia que seria um dia restaurada novamente. E isto está relacionado com o seguinte de Boraita: Os mortos a quem Ezequiel restaurou ergueram-se sobre seus pés, entoaram uma canção e morreram de novo. E que tipo de canção foi? Indaga R[abi]. Eliezer. R. Josué disse: A canção foi de I Sm 2:6: “O Senhor mata, o Senhor faz viver; faz descer à sepultura e dela subir.” R. Judas, entretanto, disse: Na verdade, era apenas uma parábola. R. Neemias a ele: Se verdade, então não é uma parábola; e se uma parábola, não é verdade. Diz, então, na verdade era uma parábola, R. Eliézer b[en]. R. José o Galileu, contudo, disse: Os mortos que foram restaurados por Ezequiel foram para a terra de Israel, casaram-se e tiveram filhos e filhas. E R. Judas b. Batira ficou de pé, dizendo: Eu mesmo sou um descendente deles, e estes são os filactérios que herdei de meu avô, que me relatou que eles foram usados pelos restaurados. Mas quem eram os restaurados em questão? Disse Rab: Eles foram os filhos de Efraim que erraram quanto ao tempo da prometida redenção do Egito. Como se lê[ I cr 7:20-23]: “E os filhos de Efraim: Sutala e Bared, seu filho; e Taat, seu filho; e Elada, seu filho; e Taat, seu filho; e Zabad, seu filho; e Sutala, seu filho; e Ezer e Elada a quem os homens de Deus que nasceram naquela terra mataram (1) … E Efraim, pai deles, pranteou vários dias, e seus irmãos vieram consolá-lo. ” Samuel, porém, disse: Eram os homens que não acreditavam na ressurreição. Como se lê (Ez 37:11): “Então me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel; eis que dizem, Secos estão nossos ossos e nossa esperança está perdida; estamos todos exterminados.” R. Jeremias b. Abas disse: Eram os ossos de homens sem esperança de nenhum ato meritório. Como se lê (Ez 37:4): “Ó ossos secos, ouvi a palavra do Senhor”. E R. Itzaque de Nabar disse: Eram os homens que foram mencionados em (Ez 8:10): Então entrei e vi, eis que havia toda forma de seres rastejantes, e de gado, e de abominações, e todos os ídolos da casa de Israel, pintados nas paredes e em todo o redor.” E como se lê (Ez 37:2): “e me fez andar ao redor deles.

(1)Os efraítas teriam saído do Egito 30 anos antes do êxodo dos demais devido a um erro na contagem do tempo da profecia feita por Deus a Abraão.

Trecho extraído do Talmude Babilônico, Tratado Sanhedrin, cap. XI.

Parece que os talmudistas tinham opiniões “ligeiramente” diferentes das professadas pelo tradutor espírita, apesar de divergirem largamente entre si. Outros filósofos medievais judaicos mais tardios também interpretaram esta passagem como alusão à ressurreição. De Gaon, uma interpretação quase literal:

Além disso, deixe-me dizer que, porque nosso Criador estava ciente dos escrúpulos surgidos em nosso corações pela dificuldade que temos em aceitar a doutrina da ressurreição dos mortos, Ele informou Seu profeta Ezequiel disto antecipadamente, falando a ele: “Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel; eis que dizem: Nossos ossos estão secos e nossa esperança perdida, estamos acabados” (Ez 37:11). Então Ele ordenou-o a trazer nos as boas novas de nossa ressurreição de nossas sepulturas e ressuscitação de todos os nossos mortos, ao dizer-lhe imediatamente depois disso: “… Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela, ó Meu povo” (Ez 37:12).

Porém, a fim de que não pensemos que esta promessa foi feita para o mundo vindouro, adicionou ao fim da declaração as palavras: “E vos trarei à terra de Israel” (Ez 37:12), a fim de assegurar-nos que isto se daria neste mundo. Assim, o objetivo a ser logrado é que cada um de nós, quando Deus o tiver trazido de volta à vida, fará menção ao fato de que estava vivo e morreu e foi então ressuscitado. Que é a implicação de Sua declaração: “E sabereis que eu sou o Senhor, quando eu abrir as vossas sepulturas” (Ez 37:13). A menção da ressurreição na terra da Palestina é então repetida por ele uma segunda vez, a fim de confirmar-nos que a tese é de que ela se dará neste mundo, com diz Ele: ”E porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos colocarei na vossa própria terra; e sabereis que eu, o Senhor, disse isto e o fiz, diz o Senhor” (Ez 37:14).

[Gaon, tratado VII (ressurreição), cap III]

O grande Maimônides cria, que no fim dos tempo, haveria uma ressurreição incorpórea, mas quanto a Ez 37:

(…)Entretanto, se nós dissemos, o fizemos baseados no que disseram os sábios de Israel sobre os ossos mortos ressuscitados no Livro de Ezequiel, a respeito do qual há uma diferença de opinião entre os sábios do Talmude. Porque no que diz respeito a tudo onde haja uma diferença de opiniões, a qual não conduza à execução de um preceito Divino relacionado a esse assunto, servindo como prova dele, não é possível decidir com que está a razão e nós mencionamos isto várias vezes no Comentário sobre a Mishná. É evidente para nós, dessas declarações do Talmude, que aqueles indivíduos cujas almas retornam ao corpo depois da morte comerão e beberão e terão relações sexuais e procriarão e morrerão depois de uma vida extremamente longa, como a vida daqueles que existirão nos tempos do Messias.

Além disso, a vida após a qual não há morte, é a vida no Mundo Vindouro porque não há corpos físicos lá. Acreditamos firmemente – e esta é a verdade que toda a pessoa inteligente aceita – que no Mundo Vindouro as almas sem corpo existirão como os anjos. (…)

[Maimônides, IV, 23-24]

Note que Maimônides, assim como os talmudistas mais literalistas, interpreta Ez 37:1-14 como um caso real de ressurreição, ainda que, tal como o de Lázaro no NT, não tenha sido na ocasião do Mundo Vindouro e os ressuscitados tenham vindo a falecer novamente.

Uma opinião já contemporânea resgata a opinião dos talmudistas que viam na passagem uma metáfora sobre a restauração de Israel (5):

(…)A visão de Ezequiel da ressurreição dos ossos secos salta à vista de muitos como referência óbvia ao que sucedeu ao povo judeu depois do Holocausto, com a restauração do Estado de Israel após quase dois mil anos de exílio israelita. Esses são exemplos óbvios dos temas que interessam mais profundamente aos estudioso contemporâneos do texto da Torá. (…)

[Neusner, cap. V].

Para finalizar, uma opinião da Jewish Encyclopedia quanto natureza da alma no judaísmo dos tempos bíblicos.

A narração mosaica da criação do homem de um espírito ou sopro com o qual ele foi dotado por seu criador (Gn. 2:7); mas este espírito foi concebido como inseparavelmente conectado, senão totalmente conectado o sangue-vida (Gn 9:4, Lv 17:11). Apenas através do contato dos judeus com o pensamento persa e grego, a ideia de uma alma desencorporada, tendo sua própria individualidade, se enraizou no judaísmo e encontra sua expressão nos livros bíblicos tardios, como, por exemplo, as seguintes passagens: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor” (Pr 20:27); “Há um espírito no homem” (Jó 32:8); “O espírito retornará a Deus que o concedeu” (Ecl 12:7). A alma é chamada na literatura bíblica de “ruach”, “nefesh” e “neshamah”. O primeiro destes termos denota a espírito em seu estado primitivo; o segundo, em sua associação com o corpo; o terceiro, em sua atividade com o corpo. (…)

Nota: nefesh: Gn 2:7, Gn 9:4, Lv 17:11; neshamah: Pr 20:27; ruach: Ecl 12:7, Jó 32:8

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Notas

(1) Tradutor francês que vem realizando meticulosas traduções de livros bíblicos para o vernáculo na séria A Bíblia, lançada no Brasil pela Imago. Ele foi usado como exemplo de bom tradutor por Severino Celestino da Silva.

(2) Esse livro consta na bibliografia de “Analisando as Traduções Bíblicas“. Agora, se ele foi lido nessa parte… Um ponto que chama atenção é a afirmação de que a nefesh pereceria com o corpo. Sendo assim, o autor quis reencarnar algo que é mortal. Em sua defesa, convém informar que outros autores [Bronner, cap. VI] apontam que místicos judaicos creem ser essa a parte da alma que reencarna.

(3) “Tradutor, traidor”, em italiano. Uma expressão usada para lembrar que, por mais fiel que seja um tradutor ao sentido do texto original, chega uma hora que é impossível verter um trecho de um idioma para outra sem alguma perda do significado original ou a necessidade explicação à parte. Isso pode envolver trocadilhos, particularidades de um idioma que não existem em outro (por exemplo, a separação clara entre “ser” e “estar” de nossa língua não é encontrada no inglês), uma palavra sem correspondente claro ou que precise de um circunlóquio para descrita em outro idioma, tentativa de manter métrica e rima no caso dos poesias, etc. O caso das palavras portuguesas “alma” e “espírito” é particularmente sensível porque elas possuem uma sobreposição de sentidos que nem sempre ocorria do mesmo modo em hebraico e grego.

(4) Mirador, Michaelis e Aurélio, não. Dicionário Brasileiro Globo, sim.

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Para saber mais

– Asheri, Michael, O Judaísmo Vivo, Imago, 1995.

– Barish, Louis & Rebecca; Crenças Básicas do Judaísmo, Edigraf, 1967.

– Berezin, Rifka, Dicionário Hebraico-Português, Edusp, 2003.

– Bronner, Leila Leah; Journey to Heaven – Exploring Jewish Views of the Afterlife, Urim Publications, 2015.

– Gaon, Saadia; The Book of Beliefs and Opinions; tradução inglesa de Samuel Rosenblatt, Yale University Press, 1989.

– Lambin, Thomas O.; Gramática do hebraico bíblico, Paulus, 2003.

– Maimônides, Moses, Tratado sobre a Ressurreição, tradução de Alice Frank, Maayanot, 1994.

– Neusner, Jacob, Introdução ao Judaísmo, Ed. Imago, 2004.

– Raphael, Paull Simcha; Jewish Views of the Afterlife, Rowman & Littlefield Publishers, 2004.

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A Preposição da Discórdia

Preposição hebraica `al

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Apresentação


Uma das principais controvérsias trazidas por Severino Celestino da Silva em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas (cap. VIII) é com relação à tradução correta de Êxodo 20:5, que em hebraico (transliterado) é:


lo'-thishtachveh lâhem velo' thâ`âbhdhêm kiy 'ânokhiy Adonay'eloheykha 'êl qannâ' poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym `al-shillêshiymve`al-ribbê`iym lesone'ây

Que pode ser traduzido como:

Não te prosternarás diante delas e não as servirás. Sim, eu mesmo, Iahveh, teu Deus, sou um Deus ciumento(*), sanciono o erro dos pais sobre os filhos, sobre a terceira e sobre a quarta geração dos que me odeiam.

(*) ciumento – sem tradução precisa em nossa língua. Outros tem como “zeloso”, ou “de paixão ardente”

Vale transcrever alguns comentários a respeito de certas palavras, expostos em “Analisando …”, de Severino Celestino da Silva:

`al – sobre, em
`avon – erro, falta
'abhoth – pais
bâniym – os filhos
shillêshiymve – terceira geração, netos
ribbê`iym – quarta geração, bisnetos.

Toda a querela gira em torno da preposição `al (עלַ). Espiritualistas criticam a tradução do trecho final do versículo como: “erro dos pais sobre os filhos ATÉ a terceira e quarta geração”. Defendem que o sentido correto, pelo vocabulário exposto acima, seria: “erro dos pais sobre os filhos, NA terceira e na quarta geração”. Em Analisando …, considera-se apenas a preposição `ad como passível de ser traduzida por “até” e é aí que está o problema. A preposição `al admite, diferentemente do alegado, mais do que os dois sentidos apresentados (em, sobre).

fac-símile do dicionário de Rifka Berezin

Reprodução do verbete `al de um dos dicionários de hebraico constantes na bibliografia de Analisando… (Berezin, p. 501). A palavra em hebraico seguinte informa que se trata de uma preposição.

Para os que, porventura, não conseguirem visualizar a imagem acima, o Dicionário Hebraico-Português, de Rifka Berezin, – que consta na bibliografia de Analisando … – em seu verbete para `al (pág. 501) traz os seguinte significados:

sobre, em cima; perto, junto; até, por, para

A própria “orientação geral para o uso do dicionário”, contida na introdução, informa: “vocábulos homógrafos pertencentes à mesma categoria gramatical foram geralmente apresentados num único verbete, e, as respectivas traduções separadas por ponto-e-vírgula”. A quem se interessar por uma mais aprofundada análise ou desconfiar de obras novas, deixo abaixo parte da entrada do verbete `al constante no clássico Léxico Hebraico-Caldeu do hebraísta alemão Wilhelm Gesenius (clique para ampliar).

Preposição el, segundo o dicionário de Gesenius

Preposições 'el (esq.) e `al conforme o léxico de Wilhelm Gesenius. Repare que a primeira pode ser utilizada para demarcar um término e a segunda tem acepções que se aproximam daquelas da primeira.

Em caso de dificuldade com a língua inglesa, sugiro a breve discussão acerca dos múltiplos significados de `al contida em [Ross, lição 53.3].

Significados de `al, conforme Ross. Significados de `al, conforme Ross (continuação).

Vejamos, agora, alguns exemplos bíblicos de como isso funcionava pelos lábios dos antigos (e originais) falantes do idioma:

Gn 18:8 Tomou também coalhada e leite e o novilho que mandara preparar e pôs tudo diante deles; e permaneceu de pé junto a eles debaixo da árvore; e eles comeram. (vayyiqqach chem'âh vechâlâbhubhen-habbâqâr 'asher `âsâh vayyittên liphnêyhem vehu'-`omêdh`alêyhem tachath hâ`êts vayyo'khêlu)

Ex 18:23 Se isto fizeres, e Deus to mandar, poderás então subsistir; assim também todo este povo em paz irá ao seu lugar. ('im 'eth-haddâbhâr hazzeh ta`asehvetsivvekha 'elohiym veyâkhâltâ `amodh vegham kol-hâ`âm hazzeh `al-meqomo yâbho' bheshâlom)

Js 2:8 Antes que os espiões se deitassem, foi ela ter com eles [até eles] no eirado. (vehêmmâh therem yishkâbhun vehiy' `âlethâh `alêyhem `al-haggâgh)

I Sm 1:10 levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente (vehiy' mârath nâpheshvattithpallêl `al-Adonay ubhâkhoh thibhkeh)

Jr 18:11 Ora, pois, fala agora aos homens de Judá e aos moradores de Jerusalém(…) (ve`attâh'emâr-nâ' 'el-'iysh-yehudhâh ve`al-yoshebhêy yerushâlaim (…))

Jr 23:35 Antes, direis, cada um ao seu companheiro e cada um ao seu irmão: Que respondeu o SENHOR? Que falou o SENHOR? ( koh tho'mru 'iysh `al-rê`êhu ve'iysh'el-'âchiyv meh-`ânâh Adonay umah-dibber Adonay )

Portanto, não se tratou de nenhuma fraude premeditada, como se sugere (1). Existe, na verdade, mais de uma preposição com a mesma grafia (ou mais de um uso para a mesma preposição)! Note que nos dois últimos exemplos `al e outra preposição ('el) são usadas lado a lado com o mesmo sentido. A explicação a seguir pode esclarecer como `al se tornou “eclética” a partir de uma mudança fonética na evolução do hebraico bíblico, que pode ter dado origem à homografia:

Algumas consoantes hebraicas representam sons não conhecidos no português, como é o caso do 'alep ('), oclusão glotal surda, e do `ayin (`), fricativo glotal sonoro, e algumas cinco sibilantes conhecidas no hebreu. Nos Manuscritos do Mar Morto e até na tradição massorética é frequente a confusão destas guturais (p.ex.: `l, sobre e 'l , até). As variantes dialetais e as modificações linguísticas de uma a outra época originaram numerosas confusões. Exemplo típico é o da diferente pronúncia de xibbolet na montanha de Efraim ou sibbolet na Transjordânia, que deu origem ao famoso episódio relatado em Jz 12:5-6

-Barrera, Julio Trebolle – A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Vozes, 2ª ed., parte I, cap. I p. 69

Note que Barrera não dá vogais a estas preposições – `al e 'el (אֶל), pois o registro de vogais no texto hebraico se deu ao longo da Idade Média, sendo possível uma proximidade maior da pronúncia destas palavras num período anterior. Tal como nos exemplos já citados desta confusão no massorético (Jr 18:11 e Jr 23:35). Só para a ciência dos leitores, esse J. T Barrera aqui utilizado consta na bibliografia de Analisando as Traduções Bíblicas. O porquê de suas informações não terem sido levadas em consideração permanece obscuro.

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Qumran: Antigas Trocas Preposicionais

Na antiga biblioteca da comunidade essênia de Qumran foi encontrada uma multitude de manuscritos de liturgia comunal, comentários, literatura apocalíptica e a mais antiga coletânea de texto hebraicos da Bíblia, antecedendo em cerca de um milênio os melhores manuscritos massoréticos. Essa descoberta (1947) revelou uma pluralidade de textos no período intertestamentário que já era suspeitada antes de sua descoberta. Nessa antiga comunidade do Mar Morto, tradições textuais distintas coexistiam lado a lado, evidenciando uma época em que padronização do Texto Massorético (TM) – o texto padrão do judaísmo desde a Idade Média – ainda não havia se imposto.

Por isso os manuscritos de Qumran (ou Manuscritos do Mar Morto), mais especificamente 4QSama, trazem informações esclarecedoras sobre até que que ponto ia a flexibilidade do hebraico antigo. Em 2 Sm 3:27, tem-se:

Texto massorético (TM)

(…) hasha`ar ledabbêr 'itto basheliy vayyakkêhushâm hachomesh vayyâmâth bedham `asâh-'êl 'âchiyv

4QSama

(…)[h]asha`ar ledabbêr 'itto basheliy [vayyakkêhush]âm `ad hachomesh [vayyâ]mâ(v)th [bedham] `asâh-'êl 'âchiyv

Notas:

1)Os colchetes são lacunas no manuscrito reconstituídas. Os parênteses, uma diferença ortográfica.

2)4QSama, na verdade, não é vocalizado. Foram copiadas as vogais do massorético, para fins de comparação.

Em Discoveries in the Judean Desert, vol XVII, pág. 114, há a seguinte explicação quanto a estes trocas preposicionais:

Vários textos gregos leem εις (para, a) ou επι (sobre) onde 4QSama tem (`ad) e o TM, uma lacuna. A sintaxe requer uma preposição nesta posição. Em qualquer outra parte do TM [de 1 e 2 Sm], a preposição empregada é 'el, como na frase (yo'âbh … 'el-hachomesh) (*), que é encontrado em 2 Sm 2:23, 4:6 e 20:10. O texto de 4QSama não possui 2 Sm 2:23 e 4:6, mas em 20:10 se lê (yo'âbh vayyakkêhu bhâh `al-hachomesh) com a preposição `al. Consequentemente, três preposições são usadas pelos textos hebreus nesta expressão. Contudo, 'el e `al adquiriram a mesma pronúncia neste período e eles são frequentemente confundidos em 4QSama .

(*)Joabe … no abdômen (ao pé da letra: na quinta [costela]).

Outra troca entre 'el e `al ocorre apenas dois versículos abaixo, no início de (2 Sm 3:29) “Caia [este sangue] sobre a cabeça de Joabe e sobre/para/a toda a casa de seu pai(…)”:

TM:

yâchulu `al-ro'shyo'âbh ve'el kol-bêyth (…)

4QSama

[y]âchulu `al-[r]o'shyo'âbh ve`al k[ol-]bêyth (…)

Bem, agora o leitor pode estar se perguntando o que tem a ver estas variantes textuais com a crítica de Severino Celestino da Silva quanto à tradução de Ex 20:5? Uma crucial falha de seu trabalho: o apego quase dogmático à primazia do Texto Massorético (TM) sobre as demais versões. Não que o TM seja ruim, muito pelo contrário: é o ponto de partida dos estudantes da bíblia hebraica, foi mantido com grande estabilidade ao longo de 1.800 anos por esmeradas técnicas de cópia e verificação e possui grandes corroborações nos textos qumrânicos. Mas ele não é o que se possa chamar de uma “edição crítica”: foi pego “ao todo” e não por meio de uma seleção dos manuscritos de melhor qualidade. Ele possui uma parcela de erros que foi transmitida de forma inalterada ao longo de séculos pelos sábios massoretas. Antes da estabilização do texto consonântico, nos primeiros séculos da era cristã, houve uma flutuação e evolução textual dos livros da bíblia. Os manuscritos do Mar Morto refletem essa pluralidade original e traduções feitas nesse período e antes (como a Septuaginta) podem resultar em textos discordantes do TM, sem que isto signifique má tradução, apenas uma matéria-prima distinta. Só para chamar atenção, tanto Qumran e a LXX trazem uma versão do livro de Jeremias que é 13% menor que a da versão hebraica moderna. Nem a Vulgata foi uma tradução deste três, pois Jerônimo pegou a maior parte do AT em recensões hebraicas mais recentes do texto grego.

A crítica textual do AT foi extremamente dificultada pelo hábito entre as comunidades judias de destruir ou enterrar seus livros religiosos velhos quando novas edições vinham em substituição. Por causa disto, faltam originais da antiguidade de grande porte. Dessa maneira, o TM tornou-se dominante simplesmente porque se impôs como único texto autoritativo nos meios acadêmicos. As teses de Severino Celestino da Silva de autoridade massorética seriam aceitáveis até década de 60 do século XX; mas após a descoberta, restauração e publicação dos manuscritos do Mar Morto elas não se sustentam mais. Como se comenta na introdução aos livros de Samuel em The Dead Sea Scrolls Bible:

Estes manuscritos [4QSama, 4QSamb] também têm ajudado a realinhar as assertivas dos acadêmicos quanto ao valor da antiga tradução da Septuaginta. Tradicionalmente, quando a Septuaginta diferia do Texto Massorético (que vinha sendo considerado o original hebraico), ela era rotineiramente considerada como sendo uma tradução livre (ou mesmo uma paráfrase ou puro erro). O texto hebraico de Samuel encontrado em Qumran, contudo, concorda frequentemente com a Septuaginta quando difere do Massorético. Isto demonstra que a Septuaginta foi traduzida de uma forma textual hebraica similar a dos manuscritos qumrânicos. O problema no trato com a Septuaginta, assim como muitos outros documentos históricos, estivera nas visões e critérios dos acadêmicos, não com os dados. É claro que a Septuaginta – tal como o Texto Massorético, os manuscritos do Mar Morto e qualquer outra tradição antiga de manuscritos – tem sua parcela de erros. Mas a importante lição aqui é que a Septuaginta não é uma tradução livre ou falsa, mas sim, no geral, uma tradução fidedigna de sua fonte hebraica.

Logo, ao insinuar a má-fé dos tradutores de outras religiões para (Ex 20:5) ele está sendo, no mínimo, apressado e equivocado. Vale a pena uma lida na crítica a sua postura perante outras versões de texto relatada em Traduções bíblicas: escolha uma!.

Fragmento de 2 Samuel

Fragmento de 4QSama contendo parte do o capítulo 3 de II Sm, versículos 23 a 30. Em (1) e (2) estão assinaladas duas trocas preposicionais em relação ao texto massorético, ambas discutidas acima. São Fragmentos do passado a elucidar equívocos perpetrados pelo presente. Esta figura foi elaborada de [ Cross et al.], sendo feita do emparelhamento lado a lado do esquemático da página 112 à foto do manuscrito na prancha XV, ao fim do livro.

O interessante, também, é que nem sempre o TM joga a favor de interpretações reencarnacionistas. O rolo 4QDeutn possui um versículo de Deuteronômio (Dt 5:9) muito semelhante a Ex 20:5. Lá, Qumran está de acordo com textos samaritanos e a LXX, estando qual ao de Êxodo. Por sua vez, o TM traz:


lo'-thishtachveh lâhem velo' thâ`âbhdhêm kiy 'ânokhiy Adonay'eloheykha 'êl qannâ' poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym ve`al-shillêshiymve`al-ribbê`iym lesone'ây

“(…)o erro dos pais nos filhos e até/na terceira e quarta geração(…)”. Surge a conjunção coordenada (ve), que pode significar “e” (o significado mais comum), “mas”, “ora”, “pois”. Como não há uma ideia adversativa, nem uma mudança de tema, fica “e” de melhor tradução. Muitas vezes este “e” não aparece, suponho, por algum emparelhamento do tradutor com (Ex 20:5) ou porque os que optam em traduzir `al por “até” considerem a conjunção redundante. O que importa é que fica que o castigo não seria dado apenas “na terceira e quarta geração”, quando os faltantes já estivessem reencarnados, mas também já na própria geração deles e de seus filhos.
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André Chouraqui: Esclarecendo Dúvidas

Outra citação controversa aparece em Êxodo 34:7.


notsêr chesedh lâ'alâphiym nosê' `âvon vâphesha` vechathâ'âhvenaqqêh lo' yenaqqeh poqêdh `avon 'âbhoth `al-bâniym ve`al-benêybhâniym `al-shillêshiym ve`al-ribbê`iym

André Chouraqui – hebraísta e tradutor francês usado por Severino Celestino da Silva como referência – traduziu por:

detentor do bem-querer para os milhares, carregador do agravo, da carência, da falta, ele não inocenta, não inocenta, mas sanciona o agravo dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos, sobre os terceiros e sobre os quartos.

Mantendo uma tradução uniforme para `al. A Septuaginta, aqui, usa a preposição επι (sobre) também repetidamente e citando explicitamente as quatro gerações em sequência. Severino Celestino da Silva verteu por “dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobre as terceiras e quartas gerações”, ora considerando `al como “sobre”, ora como “em”. Uma diferença sutil, mas que dá uma variação de sentido mais ampla em português: pode passar uma ideia de salto entre gerações. Será que foi essa a intenção? Por sua vez, a Bíblia de Jerusalém, impressão de 1995, manteve a tradução por “até”, destoando tanto do texto hebraico como da Septuaginta. Por outro lado, ela concorda com a Vulgata:

qui custodis misericordiam in milia qui aufers iniquitatem et scelera atque peccata nullusque apud te per se innocens est qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem.

Ué, mas não aparece a preposição in antes de “terceira e quarta”? Não foi ela que deu origem a portuguesa “em”? Sim, ela deu origem a nossa preposição “em”. Para ser mais preciso, ela deu origem a nossas duas preposições “em”: uma reconhecida pela gramática normativa (por exemplo, “estive em Paris”) e outra rejeitada por ela (“fui em Paris”). Essa é uma herança do fato de ter havido duas diferentes formas de emprego da preposição latina, uma delas que podia ser vertida por “até” em português. Isso será tratado mais adiante. Por ora, a ignorância desse fato em “Analisando…” propiciou falas um tanto comprometedoras:

Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

É interessante notar que as traduções da Bíblia de Jerusalém, de João Ferreira de Almeida, da Bíblia do Centro Bíblico Católico, Editora Ave Maria e da Bíblia Tradução Ecumênica, todas em português, apresentem-se, esses textos, com a colocação da preposição ATÉ, antes das palavras terceira e quarta geração

[Cap VIII, p. 135]

Isso é, na melhor hipótese, quase atestado de falta de domínio da língua latina. Mas o pior que é o autor às vezes aparenta não ler sua própria bibliografia:

A excelente tradução de André Chouraqui também apresenta o texto correto sem o uso do ATÉ, além de não apresentar nenhum preconceito religioso.

Idem.

Pois então vale assinalar que Chouraqui traduziu Ex 20:5 usando a famigerada ATÉ, que, como será visto, foi a preposição utilizada na LXX. Ambos esses fatos foram aparentemente desconsiderados em Analisando… pelo autor. O mais interessante vem em livros-traduções como A Torá Viva, do Rabino Aryeh Kaplan, Ed. Maayanot, que também traduz por ATÉ em Ex 20:5. Será que um judeu citado por em Analisando … (2) acabou tendo preconceito religioso contra a própria crença? É bom que se explique isto…

Chouraqui, por sua vez, sem querer ou ser explícito deu uma explicação para sua tradução “flexível” dois versículos acima de Ex 20:5.

Ex. 20:3 – não haverá para ti outros Elohîms contra minhas faces.

3. outros Elohîms contra minhas faces: Notemos que a palavra face, “panîms” , é sempre empregada no plural. Encontramos aqui grande variedade de traduções: “Além de mim, em detrimento a mim, contra mim”. A preposição hebraica tem um emprego tão vasto que praticamente qualquer tradução pode encontrar um apoio nos textos bíblicos. Mesmo a de Rashi, “desde o tempo em que existo”, pode se justificar a partir de Números 3, 4. (…)

Chouraqui não diz qual preposição é explicitamente, mas isso é fácil de saber:

Ex 20:3 – lo' yihyeh-lekha 'elohiym 'achêriym`al-pânâya

Olha aí senhores a boa e velha `al dando mostras de sua versatilidade. Coisa que o mestre reconhecia, mas um de seus discípulos parece que não. Um outro trecho do Velho Testamento muito ilustrativo das múltiplas traduções viáveis para ela é Sl 48:15:

  • É ele quem nos conduz sobre (contra) a morte. (Bíblia de Jerusalém, ed. 1995, nota de rodapé “a”)

  • Ele será nosso guia até a morte. (tradução de João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

  • Ele mesmo nos conduz para além da morte. (Louvores I, André Chouraqui, ed. Imago)

Interessante ver como Chouraqui comenta sua tradução: “para além da morte: IHWH é o verdadeiro vencedor da morte. Ele nos dá a força para escapar à sua fatalidade.” Por outro lado, a tradução de João Ferreira de Almeida não está errada, apenas adota interpretação teológica que Iahweh nos acompanharia até o fim da vida. Como o Sheol do judaísmo pré-exílio não pode ser considerado um verdadeiro “pós morte”, pode ser que a intenção do salmista tenha sido realmente esta. Nisso comento do que considero outra grande falha na obra de Severino Celestino da Silva:

O interessante, nisto tudo, é que são encontradas muitas diferenças de tradução entre elas [as traduções bíblicas]. E por quê? O texto que as originou não foi o mesmo? Por que falta unanimidade em suas traduções? E a única resposta é esta: a questão pessoal de cada corrente religiosa coloca em sua tradução.

Analisando as Traduções Bíblicas, Introdução, 4ª ed.

Primeiramente, a origem das diversas traduções não é a mesma, como explanado mais acima. Nem mesmo o massorético pode ser chamado de “original”. Segundo, mesmo que ainda tivéssemos o autógrafo de cada livro bíblico disponível e nos livrássemos da má-fé de certos grupos católicos e protestantes – coisa que critica com razão já na introdução de seu livro – ainda haveria um problema sério: certos versículos permitem mais de uma leitura! Muitas vezes uma tradução não é algo fixo, isento de interpretação, por causa de flexibilidades semântica e gramaticais. Por exemplo, a LXX é usada em estudos comparativos entre os credos da Judeia e o judaísmo helenístico da diáspora. Outro equívoco de Severino Celestino Severino da Silva é querer dar sentidos únicos para palavras (como nefesh dos salmos 19 e 23) ou um uso rígido da preposições (como a hebraica `al ou a latina in.), uma rigidez gramatical que os antigos falantes dos idiomas originais desconheciam. Quer um exemplo próximo de nós (e similar a outro já citado)? “Fulano foi à cidade/ Fulano foi na cidade”. As gramáticas normativas “clássicas” dão apenas a primeira frase como correta, apesar de a segunda construção ser a mais comum no Brasil.

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O Testemunho Versional

Visto que as traduções primitivas do Antigo Testamento podem preservantes variantes textuais dele agora perdidas, vejamos o que elas têm a dizer. Mas antes, alguns pormenores técnicos

Outras formas de pensar

Como boa Ciência Natural, a Linguística subdivide seu objeto de estudo em diversas categorias, conforme a similaridade de características. Uma delas é a seguinte (3):

  • Línguas analíticas (ou isolantes): as palavras são invariáveis e seu valor sintático está diretamente relacionado à posição que ocupam numa oração. Um exemplo famoso de uma língua que tem o predomínio dessa característica é o inglês moderno, quase sem desinências e com uma separação difusa entre substantivos, adjetivos e verbos. Outros exemplos de língua que se aproximam desse ideal são o chinês, o vietnamita e samoano;
  • Sintéticas (também chamadas flexivas ou fusionantes): as palavras mudam por meio de afixos (flexões), conforme o papel que representam na oração. O lituano é um exemplar moderno desse grupo;
  • Aglutinantes: as palavras são compostas pela justaposição de diversas unidades menores, cada uma representando um aspecto gramatical em particular. Exemplos: turco e finlandês;
  • Polissintéticas (ou incorporantes): as palavras são geralmente muito longas e complexas, contendo uma mistura de aspectos aglutinantes e flexionantes, como no esquimó e em línguas aborígenes da Austrália.

O grupo das sintéticas, particularmente, merece um pouco de atenção aqui, pois o latim e grego se enquadram nele. Ambas, assim como todas as línguas da família Indo-europeia, descendem de suposta língua falada há cerca de 6.000 anos chamada protoindo-europeu, cuja gramática foi estimada pela comparação entre os seus descendentes mais antigos a terem registro escrito (sânscrito, avesta, eslavônico e, claro, latim e grego). Crê-se que ele possuía um sistema de flexões com oito “casos” distintos de funções sintáticas que uma palavra poderia assumir, a saber:

  • nominativo: é o agente de uma alguma ação. Em gramatiquês seria o sujeito da oração ou o predicativo do sujeito;
  • acusativo: é o paciente de alguma ação. Representa, comumente, o que seria o objeto direto da oração;
  • dativo: representa a quem uma ação se direciona, equivalendo ao objeto indireto;
  • genitivo: indica o possuidor de alguma coisa (4);
  • vocativo: indica o chamamento (5);
  • locativo: designa o lugar em que a ação ocorre;
  • instrumental: indica o meio pelo qual uma ação é realizada;
  • ablativo: indica a origem de alguma ação de movimento.

Estas são as chamadas flexões nominais, que os gramáticos costumam agrupar em classes com afixos similares, conhecidas como declinações. Ao lado delas, estão as flexões verbais, que assinalam o tempo verbal e a pessoa utilizada (primeira, segunda, terceira. Singular/plural).

Nem todas as relações entre as palavras de uma oração conseguem ser abarcadas por esse sistema de casos, aí entra o papel das preposições: pequenas palavras a especificar ou modificar o significado original de algum dos casos. É intuitivo que quanto mais rico for o sistema flexional, mais dispensáveis são as preposições no correr da comunicação. Outra característica das línguas flexionantes é a menor importância da posição das palavras para o entendimento correto do significado. Por exemplo, seja a frase simples:

A água rega a terra.

Se ela for reescrita para:

A terra rega a água.

O significado muda totalmente (6), se é que ainda faz sentido. Porém se estivesse escrita em latim:

Aqua rigat terram.

Ela poderia muito bem ser alterada para:

Terram rigat aqua.

Aqua terram rigat.

Rigat terram aqua.

e tudo bem! O sentindo não se alteraria, pois a terminação (7) em a para aqua indica que ela está no nominativo, sendo o sujeito da oração, ao passo que terra está no acusativo – terminação em am – sendo o objeto do verbo não importa em que posição esteja.

Em maior ou menor grau, o sistema flexional se deteriorou nos descendentes do proto-indo-europeu. O sânscrito é a língua documentada em que ele aparece em todo seu ecletismo. No grego clássico, os casos já haviam se reduzido a cinco; no latim, a seis, e quase desapareceram as flexões nominais em suas filhas e boa parte das verbais (8). Mais radical ainda foi o que aconteceu com o inglês, hoje um idioma analítico e quase sem flexão alguma, mas que em tempos medievais possuíra um sistema rico.

Feitas essas explanações, vejamos como o sistema flexional, em especial o do latim, afeta o entendimento de Ex 20:5 e 34:7.

A versão dos primeiros cristãos

Tudo bem, os primeiríssimos cristãos falavam aramaico, não o grego, mas desde que Paulo pregou aos gentios, culminando com a hegemonia do cristianismo helênico, ela se tornou seu Antigo Testamento e foi nela que se baseou quase toda a patrística.

Septuaginta - Edição crítica de Rahlfs

Septuaginta da Deutsche Bibelgesellschaft, de Stuttgart, Alemanha. Severino Celestino da Silva tem uma. Eu também.

A língua grega nos tempos bíblicos possuía um sistema de cinco casos (inflexões): nominativo, genitivo, dativo, acusativo e vocativo. Em sua evolução do proto-indoeuropeu, o dativo absorveu, com o auxílio de preposições, as funções de locativo e instrumental; o genitivo assumiu o ablativo. Cientes dessas particularidades, vejamos que o texto grego legado faz das preposições em Ex 20:5 e correlatos.

A Edição crítica da Septuaginta (LXX) feita por Alfred Rahlfs (9) adota os seguintes textos:

Ex 20:5

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα εως τριτης και τεταρτης γενεας τοις μισουσιν με
“(…) pecado dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam.”

Nm 14:18

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα εως τριτης και τεταρτης
“(…) pecado dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração.”

Dt 5:9

(…)αμαρτιας πατερων επι τεκνα επι τριτην και τεταρτην γενεαν τοις μισουσιν με
“(…) pecado dos pais sobre os filhos sobre a terceira e quarta geração dos que me odeiam.”

Ex 20:6

και ποιων ελεος εις χιλιαδας τοις αγαπωσιν με και τοις φυλασσουσιν τα προσταγματα μου
“e faço misericórdia por milhares dos que me amam e os que guardam meus mandamentos.”

Ex 34:7

(…) ανομιας πατερων επι τεκνα και επι τεκνα τεκνων επι τριτην και τεταρτην γενεαν

“(…) pecados dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos sobre a terceira e quarta geração.”

Aqui somos apresentados a três preposições gregas importantes para o entendimento da questão:

  • 'εως: funciona como preposição ou conjunção com o sentido básico de “até (que)”, regendo o caso genitivo. Exemplos:
    • Gn 3:19 εως του αποστρεψαι σε εις την γην

      até que volte à terra.”

    • Gn 50:23 και ειδεν Ιωσηφ Εφραιμ παιδια εως τριτης γενεας

      “e José viu os filhos de Efraim até a terceira geração”

    • Ex 12:24 και φυλαξεσθε το ρημα τουτο νομιμον σεαυτωι και τοις υιοις σου εως αιωνος

      “e observarás isso como um mandamento para ti e teus filhos até a era [das eras].”

    • Lv 22:6 ψυχη ητις αν αψηται αυτων ακαθαρτος εσται εως εσπερας

      “a pessoa que tocar qualquer um deles estará impura até a tarde”

  • επι: pode assumir a forma επ diante de uma palavra que comece por vogal não aspirada ou εφ diante de aspirada. Possui o significado básico de “sobre”, com contato físico, mas pode assumir extrapolações desse sentido nos três casos que rege:
    • dativo:
      1. repouso em algum local, fazendo as vezes de um locativo.
        • Gn 21:33 και εφυτευσεν Αβρααμ αρουραν επι τωι φρεατι του ορκου”e Abraão plantou um arvoredo no poço do juramento [Bersebá].”
      2. um período específico no tempo:
        • Dt 4:30 και ευρησουσιν σε παντες οι λογοι ουτοι επ' εσχατωι των ημερων

          “E todas essas coisas virão sobre ti nos últimos dias.”

      3. a fundamentação (base) usada para um ato:
        • Ex 20:7 ου λημψηι το ονομα κυριου του θεου σου επι ματαιωι

          “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”

    • genitivo: em geral, compartilha os usos do dativo (10) . Exemplos:
      • Gn: 10:8 Χους δε εγεννησεν τον Νεβρωδ ουτος ηρξατο ειναι γιγας επι της γης

        “E Cuxe gerou a Nebrode: ele começou a ser um gigante sobre a terra.”

      • Ex 29:13 και λημψηι παν το στεαρ το επι της κοιλιας

        “e retirarás toda a gordura sobre o ventre”

    • acusativo: aqui há alguma ideia de dinamismo envolvida e a preposição assinala o local de repouso final:
      1. “sobre” com verbos de indiquem movimento, assinalando onde se desenrola ou termina:
        • Lv 4:7 και επιθησει ο ιερευς απο του αιματος του μοσχου επι τα κερατα του θυσιαστηριου του θυμιαματος της συνθεσεως του εναντιον κυριου

          “e o sacerdote colocará o sangue do novilho sobre os chifres [cantos] do altar do incenso, perante o Senhor”

      2. “em direção a” (rumar sobre algo):
        • Gn 18:6 και εσπευσεν Αβρααμ επι την σκηνην προς Σαρραν

          “E Abraão correu para a tenda atrás de Sara”

        • Ex 20:26 ουκ αναβησηι εν αναβαθμισιν επι το θυσιαστηριον μου

          “não subirás por degraus ao meu altar”

      3. “contra” (sobre um alvo):
        • Ex 15:24 και διεγογγυζεν ο λαος επι Μωυσην λεγοντες τι πιομεθα

          “E o povo murmurou contra Moisés, dizendo: ‘que vamos beber?'”

      4. “por” indicando extensão espacial ou temporal:
        • Ex 10:14 και ανηγαγεν αυτην επι πασαν γην Αιγυπτου

          “e os levou por toda a terra do Egito.”

        • Jz 14:14 και ουκ ηδυνασθησαν απαγγειλαι το προβλημα επι τρεις ημερας

          “e não puderam decifrar o enigma por três dias”

    O versículo Gn 22:19 dá um interessante contraste entre esses dois usos de επι:

    απεστραφη δε Αβρααμ προς τους παιδας αυτου και ανασταντες επορευθησαν αμα επι το φρεαρ του ορκου και κατωι κησεν Αβρααμ επι τωι φρεατι του ορκου

    “E Abraão voltou aos seus servos, e se levantaram e foram juntos para o Poço do Juramento [Bersebá]; e Abraão residiu no Poço do Juramento.”

  • εις: preposição que rege exclusivamente o acusativo e passa as ideias básicas de “na direção de“, “para dentro de“, derivando daí outros significados:
    • “para”:
      • Gn 19:17 εις το ορος σωιζου

        “Fuja para o monte”

    • “a/até”:
      • Lv 4:16 και εισοισει ο ιερευς ο χριστος απο του αιματος του μοσχου εις την σκηνην του αρτυριου

        “e o sacerdote ungido trará o sangue do novilho ao tabernáculo do testemunho.”

    • “por/através (espacial)”
      • Ex 13:18 και εκυκλωσεν ο θεος τον λαον οδον την εις την ερημον εις την ερυθραν θαλασσαν

        “e Deus fez o povo dar a volta pelo o deserto até o Mar Vermelho”

    • “por/até” (temporal): o próprio versículo Ex 20:6 visto acima. Nesse, a preposição εἰς é um equivalente bem próximo para a hebraica le, possibilitando a tradução que Severino Celestino da Silva gostaria: “por milhares”

Em Ex 20:5 temos 'εως precedendo as “terceira e quarta gerações”, επι em Dt.5:9 e novamente 'εως em Nm 14:18. Como o Pentateuco foi traduzido “todo para o grego num período curto de tempo, no século III a.C.(11), fica sugerido que as trocas preposicionais já ocorriam desde aquela época. Infelizmente, as passagens do êxodo e suas similares estão perdidas em Qumran. Por outro lado, há uma uma informação importante que os exemplos acima – em especial Gn 22:19 e Lv 4:16 – nos dão: existia uma certa sobreposição semântica entre εἰς e επι de acusativo. Isso dever ter repercutido nas versões latinas.

Epi, segundo o dicionario Grego-português de Isidro Pereira

Verbete para επι no Dicionário Grego-Português e Português-Grego de Isidro Pereira, constante na bibligrafia de Analisando…

Tal fato está acessível no próprio dicionário grego/português contido na bibliografia de Analisando… (cf. [Pereira, p. 207]), que traz a multiplicidade de sentidos para επι, conforme o caso regido.

Na Língua de Jesus

Edição dos Targumim Nefiti e Pseudo-Jonatas

O volume dois da coleção The Aramaic Bible (The Liturgical Press) contém o livro de Êxodo dos targumim Nefiti e Pseudo-Jonatas. Esse eu não sei se ele tem.

Com o Cativeiro de Babilônia (590 – 538 a.C.) , os israelitas remanescentes foram expostos ao, ou melhor, imersos no idioma do conquistador: o aramaico, que era um parente próximo do hebraico na família das línguas semíticas. Mesmo com a queda do Império Babilônico ante os persas e o retorno de parcela do povo a Israel, ele continuou a ser a língua oficial da parte ocidental do novo império. Com seu uso constante no contato com outros povos, quer na diplomacia ou no comércio, e com os que permaneceram na Babilônia fez o aramaico suplantar o hebraico como língua materna dos judeus, deixando ao segundo apenas o uso litúrgico. O livro de Neemias (v. 13:24) dá um registro dessa mudança linguística ao relatar que metade dos filhos de casamentos mistos “não sabia mais o hebraico”. Acredita-se que ao tempo de Jesus, esse processo já estivesse quase completo na Palestina romana. As poucas falas de Jesus registradas no vernáculo local estão em aramaico.

Um passo natural seria traduzir as Escrituras para o novo idioma, daí surgiram os targumin (“traduções”), que não são apenas versões para o aramaico, mas deixam-se, também, infiltrar com alguma interpretação. Seriam uma espécie de intermediário entre o literal e os comentários midrashim.

Os targumim, portanto, não apenas ajudam a entender as mudanças textuais, mas também como era sua interpretação. O Targum “Pseudo-Jônatas” (12), escrito na Palestina, assim trata Ex 20:5:

Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento e vingador, punindo com vingança, gravando a culpa dos pai iníquos sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração dos que me odeiam.

“Filhos rebeldes”. Esse targum deixa transparecer a necessidade de os filhos também se desviarem para merecerem a culpa. Isso é bem mais explícito no Targum Onkelos, cuja tradição situa sua origem na diáspora babilônica (13):

(..)aflijo os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, até a terceira e quarta geração dos que Me odeiam; quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais; mas faço o bem a milhares de gerações dos que Me amam e guardam Meus mandamento

Vejamos, então, o que dizem nos outros versículos afins (14):

Ex 34:7

Onkelos
Visitando os pecados dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos dos rebeldes, sobre a terceira e quarta geração

Pseudo-Jonatas
Visitando os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, sobre a terceira e sobre a quarta geração.

Nm 14:18

Onkelos

visitando os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração

Pseudo-Jonatas
mas visitará os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira e quarta geração

Dt 5:9

Onkelos
visitando os pecados dos pais sobre os filhos rebeldes, até a terceira geração e sobre a quarta dos que Me odeiam, quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais.

Pseudo-Jonatas
relembrando os pecados dos iníquos pais sobre os filhos rebeldes até a terceira geração e a quarta dos que Me odeiam, quando os filhos derem completude ao pecado após seus pais

Em todos os versículos acima, a preposição usada antes de “terceira geração” foi `al, que também existe em aramaico com a mesma versatilidade. Ela foi traduzida como “sobre” ou “até” conforme a existência ou não de um salto de gerações. Repare que, em Êxodo e Deuteronômio, ocorre uma “suavização” das punições hereditárias, ao só prosseguirem quando os filhos fossem “rebeldes” e persistissem nos erros dos antepassados. Estimando a origem dos targumim, essa interpretação pode remontar ao fim da Antiguidade (15).

* * *

Posteriormente, os cristãos do Levante também criaram sua versão em aramaico das Escrituras. A Peshitta (“Simples” ou “Comum”) foi escrita no dialeto siríaco, que era o aramaico literário da região da cidade de Edessa, ao Sul da atual Turquia. Seu texto para o Antigo Testamento é bem próximo ao Massorético e Ex 20:5 está como `al, mas Dt 5:9 oferece uma outra variante que também pode ser vertida para “até”: le (“a/para/por” são sentidos mais imediatos). Uma outra surpresa guardada na Peshitta é Nm 14:18: aqui o texto é mais longo e idêntico a Ex 34:7.

Para o vulgo, sem ser vulgar

Edição da Vulgata da Deutsch Biblegesellschft

Vulgata da Deutsche Bibelgesellschaft, de Stuttgart, Alemanha. Severino Celestino da Silva tem uma. Eu também.

Uma preposição, dois usos
Traduções latinas podem sugerir o oposto, à primeira vista: in terciam et quartam gerationem. A preposição latina “in” deu origem ao nosso “em”, só que ela tinha um uso mais sofisticado em nossa língua-mãe.

No latim, os casos locativo e instrumental foram absorvidos pelo ablativo, que ganhou funções de adjunto adverbial. O acusativo, além do tradicional objeto direto, também passou a assumir funções adverbiais sinalizando o ponto final de um movimento ou do tempo como duração (16). Ainda assim, o latim se valia de preposições para especificar que tipo de adjunto era. Nesse idioma, a maioria das preposições regia justamente esses dois casos, sendo que o grosso delas se associava a apenas um deles. Entretanto, um pequeno grupo – super, subter, sub e in – regia ambos e com profundas mudanças de significado. Centremo-nos na preposição in.

Se ela fosse utilizada no caso ablativo, equivalia ao “em” e era usado com verbos de permanência, movimento circunscrito ou períodos limitados de tempo; se no caso acusativo, podia também ser “a”, “até” (onde há noção de tempo), “contra”, “para”, “em” (estes dois com verbos de movimento, em geral).
Eis alguns exemplos do uso dessa preposição:

Ablativo:

Sum in urbe (“estou na cidade”)
Ambulare in agris (“passear nos campos”)

Acusativo:

Eo in urbem (“vou para a cidade”)
In urbem ingressus est (“entrou na cidade”)
Incedere in hostes (“avançar contra os inimigos”)
Amor in patriam (“amor à pátria”, cf. Cic. Flac. 1.2)
Dormiet in lucem (“dormirá até o amanhecer”, cf. Hor. Ep. 1.18)
In multam noctem (“até alta noite”)

Fontes:

-Almeida, Napoleão Mendes de; Gramática Latina, Ed. Saraiva, 26ª ed., lições 35 e 101

-Encliclopedia Labor, El Linguaje e las Matemáticas, Vol. VI, Gramática latina, pag. 176, Editorial Labor, 1958

Esta última expressão se encontra, por exemplo, no texto Somnium Scipionis (“O Sonho de Cipião”), de Cícero: Sermonem in multam noctem proxidimus: “estendemos a conversa até alta noite”. É(um exemplo típico em que o verbo não é de movimento e in faz parte de um advérbio. O humanista Erasmo de Rotterdam, em seu Colloquia Familiaria, traz ao fim de uma fala do personagem Berthulphus, na “conversa” dedicada às estalagens: atque illic desidendum est volenti nolenti usque ad multam noctem. “E lá deves ficar sentado, ainda que a contragosto, direto até alta noite”. Estes dois exemplos mostram um caso de intercambialidade entre in e outra preposição – ad – tradicionalmente tida como (a/até). Na verdade, pode haver uma sutil diferença nos usos de in e ad. Isto fica patente em texto em que as duas preposições são postas em oposição, como na Epístola Moral nº 73 de Sêneca: “Deus ad homines venit, immo quod est propius, in homines venit: nulla sine deo mens bona est.” Em tradução livre: “Deus vai até os homens, aliás, mais precisamente, adentra os homens: não há mente sã sem Deus”. Ambas indicam a direção que se segue, mas ad dá ideia de aproximação e in remete à noção de um percurso até o interior. Por isso a in de acusativo em vez de ad no versículo Ex 20:5 – para garantir a inclusão da terceira e quarta geração no cômputo.

E mais, o uso de nossa preposição em no sentido de “direção” deve ter sido um de seus usos originais e uma reminiscência da latina in de acusativo. Dizem-nos isso os clássicos portugueses:

Os cabelos na barba e os que decem
Da cabeça nos ombros. (Luís de Camões, Lusíadas, canto VI, 17)

Ou será melhor “da cabeça até os ombros/ aos ombros”? A língua evoluiu e o uso de em no sentido de direção regrediu e até quase sumir no português europeu, mas permanece ainda vivo na vertente falada no Brasil em frases como: “Vou no cinema esta noite”. Para saber desse assunto sugiro: [Coutinho], item 643, p. 339

Verbete in do dicionário latim-português de António G. Ferreira – o mesmo adotado em Analisando … – exibindo múltiplos significados, conforme o caso regido pela preposição.

A Vulgata

Do século III ao IV, desenvolveu-se no ocidente romano um conjunto de traduções que ficaria conhecido como Vetus Latina (Antiga Latina): textos vertidos para o latim principalmente da Septuaginta e do texto grego do tipo “ocidental” para o Novo Testamento. Dentro dessa tradição, havia duas subdivisões chamadas Vetus Itala e Vetus Africana (ou Afra), nomeadas conforme o local em seus textos mais circulavam. Na verdade, porém, talvez fosse mais correto dizer que havia tantas subversões quantos eram os manuscritos disponíveis, dado o fato de muitos dos letrados romanos também serem capazes de ler o grego e se julgarem aptos para corrigir, por conta própria, o texto latino baseados nas cópias gregas que dispunham (17).

Esse estado de confusão de textos, levou o papa Dâmaso a solicitar ao erudito Jerônimo de Aquileia, por volta de 382 d.C., uma revisão profunda do texto latino, ao menos dos evangelhos, cujo trabalho se baseou em texto alexandrinos do Novo Testamento. De 385 até o fim da vida (420 d.C.), Jerônimo residiu em Cesareia da Palestina, onde teve acesso a importante biblioteca cristã local, que continha a famosa Hexapla de Orígenes. Jerônimo chegou a fazer uma primeira versão latina dos salmos (baseada na Vetus), atualmente perdida. A partir de 392 d.C., Após revisar o livro de Gênesis, Jerônimo se dedicou a traduzir o restante do Antigo Testamento baseando-se no que chamava de veritas hebraica, uma “verdade” que não incluía apenas o texto protomassorético de então, mas também as traduções gregas feitas por judeus como Símaco, Áquila e Teodocião. Esse trabalho foi concluído por volta de 405 de nossa Era.

O termo Vulgata já existia existia à época de Jerônimo, como uma abreviação de versio vulgata – “versão para divulgação (ao povo)” -, mas era atribuído geralmente à LXX e à Vetus Latina. Assim, por exemplo, falou Agostinho de Hipona:

Fiunt itaque anni a diluvio usque ad Abraham mille septuaginta et duo secundum vulgatam editionem, hoc est interpretum Septuaginta.

Portanto foram mil e setenta e dois anos desde o dilúvio até Abraão, segundo a edição vulgata, isto é, a dos setenta intérpretes.

Cidade de Deus, livro XVI, cap. VIII.

Foi na Idade Média, a partir da época carolíngea, que ele passou a se referir também ao trabalho de Jerônimo e apenas no Concílio de Trento (1545–1563) é que esse tornou a versão autoritativa da Igreja Católica [Barrera, II, cap. VI, p.422]. Durante a Antiguidade tardia e a Idade Média, seu trabalho não possuía sanção oficial e teve de competir com edições da Vetus Latina, cuja popularidade a ajudou a resistir, chegando até mesmo a contaminar alguns textos de sua rival em certas cópia desta. A qualidade e regularidade do texto de Jerônimo, porém, fez, aos poucos, com que seu trabalho de tradução e revisão se impusesse.

É preciso, também, separar a Vulgata da “tradução jeronimiana”. A primeira recolhe os textos traduzidos da veritas hebraica (inclusive a tradução Iuxta Hebraeos dos Salmos), os livros de Tobias e Judite, a revisão dos evangelhos e sua tradução do texto hexaplar dos salmos (Iuxta Septuaginta). Os demais livros deuterocanônicos, assim como o restante do Novo Testamento, são revisões da Vetus Latina.

A “língua” de Jerônimo
Aquilo que os estudantes estudam é o chamado latim clássico que, digamos, teve suas práticas registradas na literatura do primeiro século antes de Cristo ao primeiro da Era Comum. Sua versão oral – o sermus urbanus – era a língua das classes aristocráticas, que podiam pagar uma educação esmerada para seus filhos com mestres do idioma. Como toda e boa “norma culta”, ela não deixava de ser uma construção artificial, que rejeitava variantes existentes. Essas continuaram vivas e ativas na fala do povo pouco letrado e foram às mais diversas partes do império pelas legiões que o defendiam, pelos colonos que o romanizavam e pelos comerciantes que o interligavam. O sermus vulgaris não era uma corrupção da língua culta, mas um filho legítimo do latim dos princípios da república, cujos falares ficaram de fora da “era de ouro” da literatura latina. Sem controle e numa época de analfabetismo generalizado, continuou a mudar e se ramificar, mas permaneceu vivo, transmutado nas diversas línguas neolatinas.

Latim - esquemático de sua evolução

Esquemático da evolução do latim. Fonte: [Ilari, cap. IV, p. 64] (18)

O “latim vulgar”, para a infelicidade dos romanistas, é de difícil delimitação, pois os que dominavam a escrita, muitas vezes procuravam imitar a forma clássica. Contudo, algumas obras sem pretensões estilísticas sofriam às vezes uma “invasão” de expressões populares. Que o diga a Vetus Latina:

Versículo Vetus Latina Vulgata Comentário
Gn 1:4 Et vidit Deus lucem quia bona est. Et vidit Deus lucem quod esset bona. A norma clássica pede o subjuntivo com orações subordinadas do discurso indireto.
Gn 11:3 Et dixit homo proximo suo Dixitque alter ad proximum suum Uso de homo (homem) como partícula indefinida (19).
Nm 14:13 eduxisti populum hunc deinter illos (20) de quorum medio eduxisti populum istum Uso de preposição composta de + inter.
Sl 132:18 Super ipsum autem floriet sanctificatio mea Super ipsum autem florebit sanctificatio mea Confusão entre conjugações. Redução do total de conjugações de quatro para três em línguas neolatinas
Lc 6:2 quidam autem de Farisaeis
dicebant ei (Codex Bezae)
Quidam autem pharisæorum, dicebant illis Diferenças ortográficas (ph/f), uso do de + ablativo no lugar do genitivo (21).
Jo 14:26 Paraclitus autem ille Spiritus Sanctus Paraclitus autem Spiritus Sanctus Uso de pronomes demonstrativos como artigo definido.
I Tm 2:15 Salva autem fiet per filiorum creationem Salvabitur autem per filiorum creationem Estrutura analítica para a voz passiva em lugar da sintética.

E como se enquadraria a Vulgata de Jerônimo, ou melhor, a tradução/revisão jeronimiana no esquema de seu mundo? Ao contrário da Vetus, que foi, de certa forma, um trabalho coletivo, temos a pena de um só autor, que nos leva indagar que decisões teria tomado como filosofia de tradução. Parte da resposta pode ser encontrada na própria Vulgata, num conjunto peculiar de características (22):

  1. Cópia da sintaxe hebraica (hebraísmos) (23);
  2. Retenção da ordem hebraica de palavras em um oração (viável em uma língua sintética);
  3. Introdução de palavras hebraicas e aramaicas (amen, mamona – Lc 16:13);
  4. Cópia da sintaxe grega (helenismos);
  5. Inclusão de algumas formas “errôneas” (orais?) de latim.

Como bem já assinalaram, a Vulgata “tem uma estrutura morfológica irrepreensível do ponto de vista do latim literário” (24), suas divergências com ele vêm da sintaxe, até como uma forma de conciliar todas essas características. Por exemplo:

  • Muitos nomes próprios hebraicos não são flexionados, como Golias, Davi, Saul. Quando o são, frequentemente vêm na forma grega;
  • Em latim clássico, relatos indiretos (após verbos de fala, pensamento, descoberta, etc.) eram expressos em construções da forma acusativo + verbo infinitivo, ao passo o latim vulgar preferia usar as conjunções quod/quia/quoniam, como em Gn 39:3 na Vulgata
    … noverat Dominum esse cum eo …compare com a Vetus:Vidit autem dominus eius quod esset Dominus cum eo …Jerônimo, por outro lado, também usa várias vezes conjunções em relatos. É possível que optasse por elas para uma tradução mais direta do grego, cujo discurso indireto é comumente introduzido pela partícula ὅτι mais um verbo finito, numa particular convergência entre um vulgarismo e um helenismo;
  • O latim clássico não possuía artigos, sendo a definição dada pelo contexto, por possessivos ou demonstrativos. No latim vulgar, tornou-se crescente o uso de demonstrativos diversos como artigos definidos. Em outra convergência entre vulgarismo e helenismo, Jerônimo emula muitas vezes o artigo grego com os demonstrativos ille e hic (ex. Jo 9:30 respondit ille hommo). O grego koiné de então carecia de artigo indefinido, mas sua versão popular adotou muitas vezes a palavra τις (“algum”), que Jerônimo emulou com outro empréstimo popular: o numeral unus (“um”). Cf. Lc 9:8: οτι προφητης τις των αρχαιων ανεστη /quia propheta unus de antiquis surrexit.
  • Jerônimo opta por construções que não eram desconhecidas nas obras clássicas, mas que ficaram mais frequentes na língua vulgar, como o comparativo analítico com magis (cf. Sb 8:20) ou plus (cf. Eclo 23:28) (25);
  • Utilizava a construção preposição + ablativo, em circunstâncias que o clássico usaria apenas o ablativo simples, pois o hebraico, de poucas flexões, usava-as. Por exemplo, o ablativo de meio ou instrumento em I Sm (I Regnum) 17:47: non in gladio nec in hasta (“não pela espada, nem pela lança”). Isso também ia ao encontro da linguagem oral, pois, àquela altura, os casos já se confundiam nela (26);
  • Comumente usava ad + acusativo como objeto indireto em vez do dativo (27).

Com essas características mistas de inovação, conservadorismo e empréstimos; a Vulgata constituiu uma linguagem sui generis, distinta de tudo que veio antes em língua latina, mas nem tanto do que viria depois (28). Sua adoção como texto bíblico pela renascença carolíngia dos séculos VIII e IX consagrou muitos de seus falares e expressões. Tornou-se referência do que hoje se chama latim medieval: o herdeiro do clássico tardio – que lhe legou a base – com alguns desvios de morfologia, uma sintaxe sujeita influências externas (29) e um vocabulário em constante expansão. Linguisticamente, não teve vida à parte, pois nunca foi a língua materna de ninguém, mas o idioma franco da intelectualidade cristã e pós-romana.

A Vulgata e as Preposições Gregas

Se alguém tentasse fazer uma “Gramática do Latim Medieval”, fracassaria sumariamente. Em seu milênio de existência, abarcou um grande de literatos dispersos geograficamente, recebendo influências das diversas e às vezes até elevando à sofisticação e purismo do clássico. O que muitos livros intitulados com algo do tema fazem é dar uma introdução com a apresentação de fenômenos linguísticos comuns do período e daí partir para a análise de textos. Todos partem do princípio de que o leitor já sabe algo a respeito das normas clássicas, pois as comparações são feitas em cima delas. Se você achou o apanhado acima entediante, saiba que ele foi bem simplório.

Assim, se alguém quiser alguma assertiva a respeito do latim da Vulgata, não há outro jeito senão debruçar-se sobre ela (30). Ao contrário da Septuaginta ou do Massorético, ela tem a vantagem de ter passado pelo crivo de uma única pessoa que, mesmo onde apenas revisou, aparou arestas.

A questão é saber se Jerônimo fazia um uso consistente dos casos para permitir uma análise com as normas clássicas. Para fins de análise, vamos nos limitar ao Novo Testamento, por termos acesso pleno ao tipo de texto do qual ele foi traduzido (alexandrino).

De fato, Jerônimo às vezes traduzia por in + ablativo passagens que em grego usavam a preposição εις (a, para, por), principalmente no que se referia ao batismo:

Mt 28:19

in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti
εις το ονομα του πατρος και του υιου και του αγιου πνευματος
Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”

No caso, uma destinação tornou-se um instrumental. Tal leitura concorda com a Vetus Latina e, provavelmente, por ser uma fórmula litúrgica trintária “consagrada pelo uso”, Jerônimo não a revisou. Ver At 19:3 como outro caso de “ablativo de meio” aplicado ao batismo.

At 2:27

Quoniam non derelinques animam meam in inferno
οτι ουκ εγκαταλειψεις την ψυχην μου εις αδην.
“Pois não deixarás minha alma ao/no inferno

No caso, uma destinação por ablativo-locativo. Também concorda com a Vetus, porém há manuscritos com a leitura in infernum (“ao inferno”) (31).

Hb 9:24

Em alguns manuscritos da Vulgata (como o Codex Amiatinus), lê-se

Non enim in manufactis sanctis Iesus introi[v]it exemplaria verorum sed in ipsum caelum

ου γαρ εις χειροποιητα εισηλθεν αγια χριστος αντιτυπα των αληθινων αλλ εις αυτον τον ουρανον
“Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, imagem do verdadeiro, porém no mesmo céu

Essa leitura concorda com a Vetus Latina no primeiro in, mas discorda dela no segundo, em conformidade com o grego. As edições Sixto-Clementina e a Neovulgata (o atual texto oficial litúrgico do Vaticano) trazem in manufacta santa.

Por outro lado, quando in + acusativo é utilizada, consistentemente se denota um movimento para/em direção ou mesmo contra alguma coisa, dependendo do contexto.

Mt 2:13

accipe puerum et matrem eius et fuge in Aegyptum
παραλαβε το παιδιον και την μητερα αυτου και φευγε εις αιγυπτον
“tome a criança e sua mãe e fuja para o Egito

Lc 6:20

Et ipse elevatis oculis in discipulos
και αυτος επαρας τους οφθαλμους αυτου εις τους μαθητας
“e erguendo seus olhos em direção aos discípulos

Ef 1:5

praedestinavit nos in adoptionem
προορισας ημας εις υιοθεσιαν
“nos predestinou para a adoção

At 8:26

viam quae descendit ab Hierusalem in Gazam
την οδον την καταβαινουσαν απο ιερουσαλημ εις γαζαν
“o caminho que desce de Jerusalém a Gaza

Lc 12:10

Et omnis qui dicit verbum in Filium hominis remittetur illi ei autem qui in Spiritum Sanctum blasphemaverit non remittetur.
και πας ος ερει εις τον υιον του ανθρωπου αφεθησεται αυτω τω δε εις το αγιον πνευμα βλασφημησαντι ουκ αφεθησεται
“E todo o que disser uma palavra contra o Filho do homem será perdoado, mas quem tiver blasfemado contra o Espírito Santo não será perdoado.”

Também no sentido temporal

Fl 1:10

ut probetis potiora ut sitis sincere et sine offensa in diem Christi
εις το δοκιμαζειν υμας τα διαφεροντα ινα ητε ειλικρινεις και απροσκοποι εις ημεραν χριστου και απροσκοποι εις ημεραν χριστου
“para que proveis as melhores coisas para que sejais sinceros e sem ofensa até o dia de Cristo.”

I Te 4:15

quia nos qui vivimus qui residui sumus in adventum Domini non praeveniemus eos qui dormierunt.
οτι ημεις οι ζωντες οι περιλειπομενοι εις την παρουσιαν του κυριου ου μη φθασωμεν τους κοιμηθεντας
que nós, os que ficarmos vivos até/para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormiram.

II Tm 1:2

et certus sum quia potens est depositum meum servare in illum diem.
και πεπεισμαι οτι δυνατος εστιν την παραθηκην μου φυλαξαι εις εκεινην την ημεραν
e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia.

Ap 9:15

et soluti sunt quattuor angeli qui parati erant in horam et diem et mensem et annum
και ελυθησαν οι τεσσαρες αγγελοι οι ητοιμασμενοι εις την ωραν και ημεραν και μηνα και ενιαυτον

“E foram soltos os quatro anjos, que foram preparados para a hora, e dia, e mês, e ano

* * *

A preposição grega εως (até) é traduzida de forma bem variada. Quando seguida por oração, costuma ser vertida por donec ou dum + subjuntivo

Mt 2:13

et esto ibi usque dum dicam tibi
και ισθι εκει εως αν ειπω σοι
“e fica lá até que eu te diga

Mt 5:18

Amen quippe dico vobis donec transeat caelum et terra
αμην γαρ λεγω υμιν εως αν παρελθη ο ουρανος και η γη
“Pois em verdade vos digo: até passarem o céu e a terra …”

Precedendo substantivos ou orações substantivadas, é comumente traduzida pelos compostos usque in (32) ou usque ad (33), seguidos por acusativo. A palavra usque funciona como advérbio de modo, que passa a ideia de contínuo, sem interrupção, e o objeto da preposição lhe serve de limite.

Mt 2:15

et erat ibi usque ad obitum Herodis
και ην εκει εως της τελευτης ηρωδου
“e ali esteve até a morte de Herodes

Mt 27:64

iube ergo custodiri sepulchrum usque in diem tertium
κελευσον ουν ασφαλισθηναι τον ταφον εως της τριτης ημερας
“mande que o sepulcro seja guardado até o terceiro dia

Lc 23:44 – aqui há uma oposição entre os tipos de in

et tenebrae factae sunt in universa terra [abl.] usque in nonam horam [ac.]
και σκοτος εγενετο εφ ολην την γην εως ωρας ενατης
“e houve trevas sobre toda a terra até a nona hora

I Co 16:8

permanecebo autem Ephesi usque ad pentecosten
επιμενω δε εν εφεσω εως της πεντηκοστης
“permanecerei, porém, em Éfeso até o Pentecostes

* * *

A preposição επι de dativo (34), por sua vez, é constantemente traduzida por in + ablativo:

Mt 1:11

Iosias autem genuit Iechoniam et frates eijus in transmigratione Babylonis.
ιωσιας δε εγεννησεν τον ιεχονιαν και τους αδελφους αυτου επι της μετοικεσιας βαβυλωνος
“e Josias gerou Jeconias e seus irmãos durante a deportação da Babilônia

Mt 14:8

da mihi inquit hic in disco caput Iohannis Baptistae
δος μοι φησιν ωδε επι πινακι την κεφαλην ιωαννου του βαπτιστου
“‘dá-me’, disse, ‘aqui sobre um prato a cabeça de João Batista'”

Mc 6:55

et percurrentes universam regionem illam coeperunt in grabattis eos qui se male habebant
περιεδραμον ολην την χωραν εκεινην και ηρξαντο επι τοις κραβαττοις τους κακως
“Percorrendo toda aquela região, começaram a levar, em leitos, os que tinham algum mal”

A preposição super também é usada para se referir a locais e suas proximidades, com ablativo ou acusativo.

Jo 5:2

est autem Hierosolymis super Probatica piscina…
εστιν δε εν τοις ιεροσολυμοις επι τη προβατικη κολυμβηθρα…
“Ora, existe em Jerusalém, junto à Probática [portão dos ovinos], um tanque… “

Contudo, se a noção de movimento está envolvida, uma preposição de acusativo acaba sendo usada, por similaridade de ideias.

At 3:11

concurrit omnis populus ad eos ad porticum qui appellatur Salomonis stupentes.
πας ο λαος προς αυτους επι τη στοα τη καλουμενη σολομωντος εκθαμβοι
“todo o povo correu até eles ao chamado Pórtico de Salomão maravilhado”

Com o acusativo, επι costuma ser vertida para outra preposição latina de acusativo:
Mt 14:28 (35)

Respondens autem Petrus dixit Domine si tu es iube me venire ad te super aquas
ο πετρος ειπεν αυτω κυριε ει συ ει κελευσον με ελθειν προς σε επι τα υδατα
Ao responder, Pedro disse: Senhor, se és tu, manda-me ir até ti sobre as águas

Mc 16:2

et valde mane una sabbatorum viniunt ad monumentum orto iam sole
και λιαν πρωι μια των σαββατων ερχονται επι το μνημειον ανατειλαντος του ηλιου
“E bem cedo, no primeiro dia da semana (36), foram ao sepulcro com o sol já levantado.”

Jo 13:25

itaque cum recubuisset ille supra pectus Iesu
αναπεσων εκεινος ουτως επι το στηθος του ιησου
“e então reclinando-se ele sobre o peito de Jesus”

At 8:26

ad Philippum dicens surge et vade contra meridianum ad viam (…)
φιλιππον λεγων αναστηθι και πορευου κατα μεσημβριαν επι την οδον (…)
“a Filipe e disse: levanta-te e vai para o sul, rumo ao caminho” (…)

II Cor 1:23

ego autem testem Deum invoco in animam meam
εγω δε μαρτυρα τον θεον επικαλουμαι επι την εμην ψυχην
“mas invoco Deus o testemunho de Deus por minha alma“.

Como a επι de genitivo, em geral, também denota repouso, usa-se uma preposição de ablativo

Mt 9:2

et ecce offerebant ei paralyticam iacentem in lecto
και ιδου προσεφερον αυτω παραλυτικον επι κλινης βεβλημενον
“Eis que lhe apresentaram um paralítico jazendo num leito

At 5:30

quem vos interemistis suspendentes in ligno
ον υμεις διεχειρισασθε κρεμασαντες επι ξυλου
“que vós matastes, suspendendo-o num madeiro

Por outro lado, επι de genitivo às vezes pode remeter ao deslocamento para algum lugar, levando a uma tradução latina com acusativo:
Jo 6:21

et statim fuit navis ad terram quam ibant
και ευθεως εγενετο το πλοιον επι της γης εις ην υπηγον
“e prontamente a embarcação foi para a terra que eles iam”

At 10:11

et descendens vas quoddam velut linteum magnun quattour initiis submitti [de caelo] in terram
και καταβαινον σκευος τι ως οθονην μεγαλην τεσσαρσιν αρχαις καθιεμενον επι της γης
“e descendo um certo tipo de vaso, feito um grande lençol preso pelas quatro pontas, [do céu] à terra

* * *

Em suma, a preposição επι, devido a sua variedade de usos, pode ser vertida por várias preposições diferentes em latim. Em linhas gerais:

  • Se há repouso ou circunscrição:; in (ablativo) ou supra (acusativo) ou super (acusativo ou ablativo);
  • Se algum direcionamento rumo ou por algo: ad (acusativo), in (acusativo), supra (acusativo) ou super (acusativo).

Cientes desses pormenores, voltemos à análise das versões latinas de Êxodo 20:5 e 34:7.

A Prova dos Noves

Jerônimo de Aquileia e Agostinho de Hipona

“Desculpe senhor apologista espírita, mas temos uma opinião diferente da sua.”

Diversos autores espíritas alegam que versão latina de Ex 20:5 (e correlatos) foi traduzida erroneamente:

  • Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igrejas Reformadas, cap III, pp. 43-4;
  • Chaves, José Reis;A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, Ebm, 7ª ed., cap III, p. 105;
  • Silva, Severino Celestino da; Analisando as Traduções Bíblicas, cap VIII, 4ª ed.

Nenhum deles, contudo, faz alusão aos dois usos que a preposição latina in possui, muito menos aos múltiplos sentidos que a preposição hebraica `al pode assumir, às trocas preposicionais ocorridas nos textos hebraicos – inclusive o massorético -, ou às variantes de leitura gregas. Convenhamos que apenas o último deles se aventura pelos três idiomas nessa questão.
Vejamos, então, o que texto latino de Êxodo diz:

  • 20:5- non adorabis ea neque coles ego sum Dominus Deus tuus fortis zelotes visitans iniquitatem patrum in filiis in tertiam et quartam generationem eorum qui oderunt me
    (não as adorarás, nem as servirás: eu sou o Senhor teu Deus, forte, ciumento que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam
  • 20:6 – et faciens misericordiam in milia his qui diligunt me et custodiunt praecepta mea
    (e faz misericórdia por/até mil [gerações] daqueles que me amam e guardam meus mandamentos)
  • 34:7 – qui custodis misericordiam in milia qui aufers iniquitatem et scelera atque peccata nullusque apud te per se innocens est qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem
    (que guarda misericórdia por/até mil [gerações]: que retira a iniquidade, e a transgressão, além do pecado, e ninguém é inocente por si mesmo perante ti, que retribui a iniquidade dos pais sobre os filhos e netos até a terceira e quarta descendência)

Se fôssemos usar a lógica desses autores, deveríamos traduzir a parte comum entre Ex 20:5 e 34:7 por “iniquidade dos pais nos filhos (…), na terceira e na quarta geração”. O problema é que somente filiis está no ablativo, sendo apenas o in que o antecede traduzido por em. A segunda aparição desta preposição latina rege o acusativo (tertiam, e não tertia, com o último “a” longo), numa situação temporal, cabendo-lhe muito bem uma tradução por “até”.

Nenhum deles analisa a versão latina de Ex 20:6 ou o versículo completo de 34:7 e, caso o fizessem, teriam de admitir outros significados para in. Veja como Severino Celestino da Silva traduz Ex 20:6 do hebraico:

mas que também ajo, com benevolência ou misericórdia por milhares (infinitas) de gerações, sobre os que me amam e guardam os meus mandamentos.

Tanto a hebraica le, a grega εις e a latina in + acusativo (afinal está escrito milia, e não milibus) podem resultar no “por” que ele propõe. Daí para “até” é um passo.

Tanto as traduções bíblicas de Chouraqui e Jerusalém utilizam a tradução por “até” para Ex 20:5. Se isto ainda parece um tanto misterioso, veja, caro leitor, como foi escrita a passagem análoga Nm 14:18

(…) qui visitas peccata patrum in filios in tertiam et quartam generationem.

Por que teria Jerônimo mudado o ablativo filiis para o acusativo filios, aqui? Para a tese das equivalências preposicionais no hebraico, isto é fácil de explicar. Os que pregam a adoção de regras gramaticais rígidas no hebraico e latim – com significados restritos para `al e in – podem ter um pouco mais de dificuldade…

Mesmo assim, há quem apele alegando que Jerônimo tomou ablativo por acusativo, por redigir em linguagem vulgar, numa espécie de confusão de casos. Possível? Sim. Provável? Não, por certas razões:

  • Há bem menos vulgarismos na Vulgata do que em sua irmã mais velha – a Vetus Latina – ainda mais nos livros que Jerônimo retraduziu, como Êxodo. Lembrando que o termo Vulgata só foi bem mais tardiamente aplicado ao conjunto de traduções e revisões de Jerônimo;
  • Teria de se explicar uma considerável irregularidade no uso dos casos, pois teria usado corretamente o ablativo em in filiis, erroneamente o acusativo em in tertiam … e, logo em seguida, corretamente o acusativo em in milia;
  • A troca de casos pode muito bem ter ocorrido em in filiis, dando a entender que Jerônimo, na verdade, queria dizer “contra os filhos”, como Nm 14:18 sugere. Ou será necessária uma boa explicação de por que a confusão entre ablativo e acusativo só ocorreria no sentido desejado;
  • É válido afirmar que não se deve analisar exclusivamente a Vulgata por gramáticas normativas (o que concordo), porém o apologista espírita que assim proceder também deve admitir que se possa fazer o mesmo para o hebraico. É no mínimo incoerente exigir significados fixos para preposições hebraicas – baseando-se em normas um tanto artificiais para os leitores originais da Torá – e, ao mesmo tempo, exigir um ecletismo linguístico para o uso dos casos com a in latina.

Há ainda uma última cartada que merece um tratamento à parte: alegar que Jerônimo quis mencionar um salto de gerações, mas não se expressou conforme a norma clássica. Aí se está tentando adivinhar o que se passava na mente alheia sem uma fundamentação que não seja a própria conveniência. Um procedimento mais abalizado seria buscar mais fundamentos nos próprios escritos dele, onde estariam explanadas. Uma dica parece estar na própria Vulgata, mais especificamente no livro de Tobias, que traduziu de uma versão aramaica (37):

Et dixit benedicat te Dominus Deus Israhel quia filius es viri optimi et iusti et timentis Deum et elemosynas facientis. Et dicatur benedictio super uxorem tuam et super parentes vestros et videatis filios vestros et filios filiorum vestrorum usque in tertiam et quartam generationem et sit semen vestrum benedictum a Deo Israhel qui regnat in saecula saeculorum

E disse: o Senhor Deus de Israel te abençoa porque és o filho de um homem muito bom, e justo, e temente a Deus, e que pratica as boas obras. E que a benção venha sobre tua esposa e vossos pais e que vejas teus filhos e os filhos dos vossos filhos até a terceira e quarta geração, e que vossa semente seja abençoada pelo Deus de Israel, que reina pelas eras das eras.

Tb 9:9-11

Certo que isso foi uma “bênção hereditária”, não uma maldição, mas a estrutura da fórmula é similar e Tobias conheceria sua própria descendência até a quarta geração. Não há razão para achar que Jerônimo se equivocou no usou dos casos, ou você acha que Tobias morreria para renascer como o próprio tetraneto e admirar-se no espelho, lembrando de quem foi?

Jerônimo não apenas era um tradutor, mas também um comentarista bíblico. Em seu Comentário sobre Ezequiel, escrito entre os anos de 410 e 414 (após a Vulgata, portanto), lemos:

Monet autem divina Scriptura illud quod in Exodo dictum est: Ego sum Dominus Deus tuus. Deus aemulator, qui reddo peccata patrum super filios, usque ad tertiam et quartam generationem his qui oderunt me, et facio misericordiam in millia his qui diligunt me, et custodiunt praecepta mea. Et iterum: Descendit Dominus in nube et astitit iuxta Moysen, et invocavit Moyses nomen Domini, et transiit Dominus ante faciem eius, et invocavit eum, dicens: Domine Deus miserator et misericors, patiens et multae misericordiae, et verax, et iustitiam servans, et misericordiam in millia, auferens iniquitates, et iniustitias, et peccata: et non emundabit iniquitates patrum super filios et super filios filiorum, in tertiam et quartam generationem, sic accipi debere, quasi proverbium, et parabolam, ut aliud in verbis sonet, aliud in sensu teneat; quod in parabola quoque duarum aquilarum supra diximus.

Livro 6, cap. XVIII, parágrafo 2.

Que, em tradução livre, significa:

Alerta-se, no entanto, que quando a divina Escritura em Êxodo diz: “Eu sou o Senhor teu Deus. Um Deus ciumento, que retribui o pecado dos pais sobre os filhos, até a terceira e quarta geração do que me odeiam, e faço misericórdia a milhares dos que amam e guardam meus mandamentos“. E outra vez: “O Senhor desceu da nuvem e se pôs junto a Moisés, e Moisés invocou o nome do Senhor, e o Senhor passou diante de sua face, e ele o invocou, dizendo: ‘Senhor Deus de misericórdia e misericordioso, paciente e rico em misericórdia, e fiel, e guardando justiça e misericórdia por milhares, retirando iniquidades, e injustiças, e pecados: e não purificará as iniquidades dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos até a terceira e quarta geração’“, assim deve ser tomada como se fosse um provérbio e parábola, a fim de que em palavras soe uma coisa, outra coisa tenha em sentido; o que também dissemos acima na parábola das duas águias [cf Ez 17].

O segundo e o terceiro destaques são os mesmíssimo versículos de Êxodo 20:5 e 34:7 redigidos de forma alternativa, talvez refletindo uma leitura da LXX e da Vetus, respectivamente (38). Qualquer língua que possua um conjunto rico de preposições (simples e compostas) consegue exprimir a mesma ideia de várias maneiras, vide o exemplo do português moderno com a grande intercambialidade entre “a”/”para” ou “sobre”/”em cima de”. No caso em questão, o in de ablativo foi substituído por super e a in de acusativo por usque ad, que é traduzida sem equívoco por “até”. Com essa pequena variante, Jerônimo exprimiu com clareza o que pensava do assunto e não era o que os reencarnacionistas bíblicos gostariam.

E por isso o Senhor no septuagésimo sétimo salmo diz [ou 78º, v. 2]: “Abrirei minha boca em parábola: proferirei enigmas do princípio dos tempos“. Dessa forma expõe no Evangelho a parábola do semeador, e a do joio, e a do grão de mostarda [Mateus 13] – que embora seja a menor de todas as sementes, dela brota grande árvore – para mostrar uma coisa em palavras, mas tendo outra em sentido.

E nós, até o presente dia, valorizávamos os dois testemunhos de Êxodo, que anteriormente [Is 29] não consideramos como parábola, mas que explicavam um simples juízo. E ainda que não nos atrevêssemos a dizer qualquer coisa, nem o vaso de barro falar contra o oleiro, “por que razão me fizeste desta forma ou de outra” (cf. Rm 9:21), entretanto sofríamos um escândalo oculto, na medida que fosse vista a injustiça de Deus: um pecava e outro pagava pelos pecados.

Se de fato Ele retribui os pecados dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração [peccata patrum super filios in tertiam et quartam generationem] é tido por injusto, do mesmo modo é visto que um peque e outro seja punido. Mas é depois disso que vem: o escândalo da ameaça ou ensinamento é liberado pelos “que me odeiam“. Logo, não são por essa razão punidos na terceira e na quarta geração [in tertia et quarta generatione (ablativo)] – porque os pais deles pecaram – já que é preferível os pais, que foram pecadores, deverem ser punidos; mas porque despontaram como imitadores dos pais, e odiaram Deus por mal hereditário e também pela impiedade que cresce em ramos a partir da raiz.

Nesse ponto estão acostumados os heréticos, que não aceitam o antigo Instrumento, a dizer contra o Criador: “Quão bom e justo o Deus da Lei e dos Profetas, que se abstém e silencia para os pecados dos pais, retribui aos que não pecaram, muito pelo contrário: quanta crueldade nele há de modo que estende sua ira até a terceira e quarta geração!“[usque ad tertiam et quartam]. A eles responderemos que nessa parte a clemência do Deus Criador é demonstrada.

Logo, não é truculência ou severidade que a ira permaneça até a terceira e quarta geração [usque ad tertiam et quartam], mas um sinal de misericórdia que a pena do pecado seja adiada. De fato, quando diz “Senhor Deus de misericórdia e misericordioso, paciente e rico em misericórdia” e dispõe “retribuindo o pecado dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos“, aí indica, o que de tanta misericórdia é, para que não se puna de imediato, mas que se postergue o juízo do condenado.

Mas se a punição dos pecadores é postergada para até a terceira e quarta geração [in tertiam et in quartam generationem], o que, com santidade e justiça, faz Ele de mais distinto? O seguinte: E distribui justiça e misericórdia por muitos milhares aos que guardam seus mandamentos e praticam os ensinamentos dEle. Está escrito em Provérbios: “Como uva amarga é danosa aos dentes e a fumaça aos olhos: assim é a iniquidade aos que fazem uso dela” [Pr 10:26, LXX]. Disso é evidente: não é são os dentes alheios que doem e estragam, mas os dos que tenham comido uvas amargas.

No entanto, é nesse lugar que está este entendimento, como se alguém quisesse dizer:o pais comeram uvas amargas e os destes dos filhos estragaram. Isso é ridículo e não tem nexo: desse jeito é iníquo e injusto que os pais pequem e filhos e netos sejam castigados. Há os que pelo fato de que em Êxodo está escrito: “Retribui a iniquidades dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração” [super filios in tertiam et quartam generationem, Ex 20:5], desta maneira explanam, a fim de redirecionarem o juízo para a alma humana, dizendo que conosco o pai é uma leve picada dos sentidos e um incentivo aos vícios; o filho, uma vez que o pense, concebe o pecado; por ocasião dos netos, se se houver pensado e concebido, perpetrar-se-á, pela obra; no entanto, por ocasião do bisneto, que é a quarta geração, já não se terá feito apenas o que é mal e iníquo, mas também pela glória de suas iniquidades, conforme está escrito: “O ímpio, quando vai às profundezas do Mal, despreza” [Pr 18:3, LXX]. Deus, então, de forma alguma pune as primeiras e segundas pontadas de pensamento, que os gregos chamam de προπαθεια (39), sem as quais nenhum homem pode estar, mas se alguém decidir fazer o cogitado, ou ele mesmo que o fizer, não há de querer ser corrigido pela penitência.

Por isso está escrito: “Ninguém está sem o pecado do homem. Ainda mais se nenhum dia de sua vida terá sido. No entanto, contados são os anos de sua vida” [cf. Jó 14:4-5, LXX/Vetus]. E em outro lugar: “Quem há de vangloriar que tem um coração puro” [Pr. 20:9, Vetus]. E ainda: “também os astros não são limpos em sua presença: e até contra anjos seus algo destruidor preparou.” [Jó 25:5, versão de Jerônimo]. Mas se, por sua vez, a sublime natureza não carece do pecado, o que se deve dizer sobre os homens, que envoltos pela frágil carne, devem se valer do apóstolo: “Miserável homem sou! quem me livrará do corpo desta morte?” [Rm 7:24]. E isso, mesmo quando tivermos feito tudo, devemos dizer: “Servos inúteis somos, o que devíamos fazer, fizemos.” [Lc 17]. E também: “A não ser que o senhor tenha construído a casa, em vão trabalharam os que a constroem, a não ser que o senhor tenha guardado a cidade, por nada vigia o que a guarda.“[Sl 126:1,2]. Por outro lado, para a avaliação dessa condição – que de modo algum é punido por Deus o primeiro impulso de pensamento, muito menos o pequeno instinto da mente, mas somente se o que mente conceber, pela obra se consumar -, é isso se deve mostrar de Gênesis: Cam pecou, ridicularizando a nudez do pai, e o juízo não foi para ele próprio que riu, mas para seu filho Canaã: “Maldito seja Canaã! Serás um servo de seus irmãos!“[cf. Gn 9]. Será realmente justiça que pai peque e a sentença seja proferida ao filho? E também porque o Apóstolo [I Tm 2:15], expõe algo em contrário: a mulher é salva se seus filhos permanecerem na fé, na santidade e na pudicícia, vê-se que o juízo não tem justiça, de modo que se os filhos e netos forem bons, os pais são salvos (40).

Quantos pais são santos e têm filhos maus e, do contrário, quantos pais pecadores geram filhos justos? Portanto, conforme esse entendimento, deve-se aceitar a totalidade do que dissemos acima: que os pecados dos pais asssim como os dos descendentes são punidos nos ramos, não na raiz. Por enquanto, desse provérbio ou parábola diz-se o suficiente: que a Lei e os Profetas, i.e., Êxodo e Ezequiel, mais precisamente o próprio Deus que fala em um e no outro, de forma alguma estão em discrepância nos sentidos, ou melhor, um corrige o que o outro expressa mal.

No entanto, se alguém puder elaborar um entendimento alternativo ou melhor, que retire o escândalo da contradição mútua entre os testemunhos, ele é dos que deve ser submetido a juízo.

Idem

Em sua ampla e documentada correspondência, Jerônimo, em pelo menos duas ocasiões, expôs o raciocínio acima, ainda que não com o mesmo desenvolvimento:

Em vez disso, massacre as seduções ao vício, enquanto elas ainda são apenas pensamentos; e esmague as crias da filha de Babilônia contra as pedras, onde a serpente não pode deixar rastro algum. Seja cauteloso e faça um voto ao Senhor: “não deixeis que tenham não domínio sobre mim: então me colocarei ereto e serei inocente da grande transgressão.” Pois em outra parte, também a Escritura testifica: “Afligirei a iniquidade dos pais contra os filhos até a terceira e quarta geração [Peccata patrum reddam in filios in tertiam et in quartam generationem](Nm 14:18).” Ou seja, Deus não nos punirá de imediato por nossos pensamentos e resoluções, mas enviará retribuição sobre sua prole, isto é, sobre as más ações e hábitos do pecado que se originam deles. Como diz Ele, pela boca de Amós: “Por três transgressões de certa cidade e por quatro, não retirarei o castigo (Am 1:3 ou 2:4).”

Carta CXXX, a Demétrias.

Mas se, mesmo assim, ele se mostra indisposto a se arrepender, e se, depois que sofreu naufrágio, recusa-se a agarrar a única prancha que pode salvá-lo, sou finalmente obrigado a dizer: “Assim diz o Senhor: ‘Por três transgressões e por quatro, não devo eu me afastar dele?’“. Por esse “afastamento”, Deus justifica uma punição Deus, na medida em que o pecador é deixado aos seus próprios planos. É assim que retribui os pecados dos pais até a terceira e quarta geração; [peccata patrum in terriam et quartam generationem restituit] (Ex 20: 5), não punindo imediatamente os que pecam, mas perdoando suas primeiras ofensas e condenando as últimas. Pois, se de outra forma, Deus atuasse prontamente como um vingador de crimes, muitos outros [santos] da Igreja e, certamente, o apóstolo Paulo, não teriam existido.

Carta CXLVII, a Sabiniano.

Um contemporâneo de Jerônimo, cuja língua materna também era o latim e posteriormente, segundo os espíritas, teve participação ativa na codificação kardecista como um dos guias espirituais, tinha uma linha de raciocío com alguns pontos em comum com ele e uma curiosa numerologia:

Os pais não devem morrer pelos pecados dos filhos, nem os filhos morrer pelos pecados dos pais; cada um morrerá pelo seu próprio pecado“. Essa afirmação não é apenas os Profetas (Ez 18:18-20), mas também da Lei, que diz que cada um deverá ser apartado por causa de sua própria culpa, não a de seu pai ou de seu filho. Que significa, então, o que é dito em outra passagem: “Deus retribui os pecados dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração (Ex 20:5 – in tertiam et quartam progeniem)”? Talvez se refira às crianças ainda não nascida, em razão do pecado original, que a humanidade contraiu por hereditariedade de Adão; ao passo que a outra frase, faz distinção em relação à criança já nascida de modo que cada uma morra por causa de seu pecado? Visto que nada contraiu do pai, pois já havia nascido quando ele pecou. Mas aqui também se diz: “aos que me odeiam” (id.), está claro que esta condição pode ser mudada se as crianças não imitarem as ações de seus pais. Certamente por um tempo é retribuído o [pecado] de Adão, pois todos morrem por causa disso, mas não o será para sempre com aqueles que foram regenerados espiritualmente pela graça e perseveraram nela até o fim. Contudo, há mérito em perguntar, se são retribuídos os pecados dos pais sobre os filhos aos que odeiam a Deus até a terceira e quarta geração, por que razão nada é dito sobre a primeira e segunda, ou também não se prossegue a outras gerações que permaneçam a imitar a impiedade e má conduta de seus pais? Talvez por meio deste número, pois é entendido como sendo o setenário, pretenda-se denotar a totalidade: e por essa razão não colocou exatamente o setenário, dizendo “até a sétima geração” ( in septimam generationem), e ainda assim será todo compreendido, pois essa forma melhor ressalta a causa pela qual este numero tem sua perfeição? Na verdade, por isso ele é considerado perfeito, uma vez que consiste destes dois números, o três, que é evidentemente o primeiro inteiro ímpar, e o quatro, que é o primeiro inteiro par. A partir disso acredito que se origina a fala do Profeta, continuamente repetida: “Por três e por quatro transgressões não retirarei [o castigo]” (Am 1:3, 6, 9, 11, 13), com a qual ele queria mostrar toda transgressão em vez de apenas três ou quatro.

Agostinho de Hipona, Questões sobre o Heptateuco, livro V.

Palavra de quem falava em latim com doutos e iletrados.

[topo]

Fazendo as Contas

Três mais um igual a ...

Uma das alegações dadas por apologistas espíritas fanáticos parece até razoável:

Por que “até a terceira e quarta geração“, quando bastaria dizer até a quarta geração“, com a terceira geração já incluída? Portanto “na terceira e na quarta geração” parece ser mais lógico.

Se a questão fosse só matemática, dar-se-ia plena razão a esse raciocínio analítico. Acontece que, ao se lidar com a Bíblia, não se deve pensar como um cartesiano ocidental moderno, mas como um simbolista hebreu antigo. A chave está na associação que Jerônimo e Agostinho identificaram logo acima:

Assim diz o Senhor: [`al-sheloshâh / επι ο τρεις] Por três transgressões de Damasco, [ve`al-'arbâ / και επι ο τεσσαρες] e por quatro, não retirarei o castigo, porque trilharam a Gileade com trilhos de ferro.

Am 1:3

Esse é o chamado padrão “três mais um“, em que algo se repete quatro vezes, porém a última marca um ponto de virada. Como:

  • A fábula da Oliveira, contada por Jotão em (Jz 9:7-15);
  • As quatro tentações de Dalila sobre Sansão (Jz 16:4-21), quando cede o segredo de sua força na última;
  • No terceiro capítulo de I Samuel, o jovem Samuel é chamado três vezes por Deus e não entende o que acontecia. Após um aconselhamento de seu pai, Eli, na quarta vez ele recebe a mensagem de Deus;
  • Às vésperas de sua ascensão (II Re 2), Elias é enviado por Deus a três lugares (Gigal, Betel e Jordão) e diz para Eliseu não o seguir, porém este insiste e ambos vão. Ao quarto lugar (Céu), apenas Elias vai;
  • A fórmula “por três transgressões … e por quatro” recorrente em Amós (1:3, 6, 9, 11, 13; 2:1, 4, 6);
  • A fórmula “três coisas … e quatro” recorrente em Provérbios 30 (18,9; 20-3 e 29-31);
  • Os “quatro reinos” de Daniel (cap 2 e 7), em que o fim do último marca o advento do Filho do Homem.

Assim, a “quarta geração” marca o fim das punições hereditárias em Ex 20:5 e afins. Note que no versículo seguinte está a ordem de grandeza das benesses, sem um limite claro.

[topo]

Apelando para a Piedade


Uma das grandes discussões entre espiritualistas e cristãos ortodoxos é questão da “inerrância bíblica”. Para os últimos, embora a Bíblia tenha sido escrita por homens, isso ocorreu sob a inspiração de Deus, logo ela seria perfeita, isenta de contradições ou ensinos duvidosos. O espiritualistas, até por uma questão de estratégia ou “boa vizinhança”, não deixam (o mais das vezes) de prestar sua reverência à Bíblia. Por exemplo:

Repetimos que jamais nos passaria pela ideia o intuito de amesquinhar o papel da Bíblia como regra de fé da Cristandade, e nem seriam pigmeus como nós que ousariam tão inexequível tarefa. Sabemos e proclamamos que ela é o fanal de todos os povos cristãos, e que os preciosos ensinamentos morais nela contidos brilharam e continuarão a brilhar por muitos e muitos séculos concorrendo para dissipar as trevas da ignorância dos homens sempre que eles estiverem à altura de os assimilar.

Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igrejas Reformadas, cap. III, p. 41

Contudo

Aquilo que unicamente contestamos é a tese da “inerrância”, a ideia de que ela encerra toda a Verdade e de que tudo quanto contém é a Verdade e de que tudo quanto contém é a palavra saída dos lábios do próprio Deus. O que afirmamos é que a Bíblia foi escrita por homens e por isso mesmo está referta de falhas resultantes da imperfeição humana. Pretender que ali esteja a Verdade como um bloco monolítico, é semear confusão na mente de homens que já aprenderam, ou pelo menos, deviam ter aprendido a raciocinar.

Como cético, concordo em boa parte desse raciocínio, porém, como não espírita, vejo que essa mesma postura coloca em xeque boa parte do que se fala em reencarnação para o versículo Ex 20:5 e, de certa forma, para todo o Antigo Testamento. Do contrário, teremos de assumir que todas as passagens passíveis de interpretação reencarnacionista são inspirada e as que não, humanas. Arbitrariedade pura e simples.

Em diversas passagens divinamente inspiradas se diz que “os filhos não pagarão pelos pecados dos pais” (Deut. 24:16, Jer. 31:29-30), Eseq. 18:20), o que é uma noção de elementar justiça, imanente à consciência de qualquer pessoa de bom senso. Em nenhum ordenamento jurídico do mundo se prescreve que a pena passará da pessoa do criminoso. Mas então, por que os nossos primeiros pais tiveram o seu pecado transmitido, por estranha hereditariedade, a todos os seus descendentes? (Rom. 5:10)

Id. p. 43

Vejamos mais de perto Jr 31:29,30:

Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes terá seus dentes embotados.

Só que esta passagem é de tempo futuro, quando a casa de Israel e Judá fossem restauradas. Só um pouco depois, com tempo no presente:

Tu fazes misericórdia a milhares, mas punes a falta dos pais, em plena medida, em seus filhos. Deus grande e forte, cujo nome é Iahweh dos Exércitos.

Jr 32-18

Há algo errado aí… Por ora, continuemos com Jayme Andrade:

Note-se também que há passagens em franca contradição com as acima citadas, e são aquelas onde Deus diz que “visitará a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração” (Ex 34:7; Num 14:18; Deut. 5:9), mas nestas é fácil observar que a tradução foi ajeitada para acomodar o sentido às ideias vigentes, pois no texto original de São Jerônimo, ou seja, a “Vulgata Latina”, em vez de “até a 3a. e 4a. geração”, lê-se “na 3a. e 4a. geração”, como menciona PAULO FINOTTI em seu livro “Ressurreição” [Editora Edigraf, 1972, pg. 45]. Aí tem lógica, pois é evidente que na terceira e quarta geração o espírito pode já ter voltado para resgatar suas faltas.

Id. pp. 43-4

Além de discordar da tradução que esse e outros autores dão para para os versículos em questão, pelos motivos expostos anteriormente, creio que todos incorrem na falácia conhecida como cherry picking (“coleta de cereja”), que consiste, basicamente, em escolher o que que é favorável e desconsiderar o que contradiz. Façamos um inventário do que o Antigo Testamento diz sobre castigos hereditários:

Com punições hereditárias Sem punições hereditárias
Gn 9:24-25 – Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem (Cam). E disse: “Maltido seja Canaã (filho de Cam)! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos!”

Dt 23:2 – (..)Nenhum bastardo entrará na assembléia de Iahweh; e seus descendentes não poderão entrar na assembléia de Iahweh até a décima geração

Dt 28:18 – Maldito será o fruto do teu ventre(…)

2 Sm 12:13-14 – Então Natã disse a Davi: “Por sua parte, Iahweh perdoa a tua falta: não morrerás. Mas, por teres ultrajado a Iahweh com teu procedimento, o filho que tiveste morrerá.

2 Sm 21:6 – Que nos sejam entregues sete dos seus filhos, e nós os desmembraremos perante Iahweh em Gabaon, na montanha de Iahweh.

1 Rs 2:33 – Recaia, pois, o sangue deles sobre a cabeça de Joab e sua descendência para sempre, mas que Davi e a sua descendência, sua casa e seu trono gozem para sempre de paz da parte de Iahweh.

1 Rs 11:11-12 – Então Iahweh disse a Salomão:” Já que procedeste assim e não guardaste minha aliança e as prescrições que te dei, vou tirar-te teu reino e dá-lo a um de teus servos. Todavia, não o farei durante tua vida, por consideração para com teu pai Davi; é da mão de teu filho que o arrebatarei.

1 Rs 21:29 – Viste como Acab se humilhou diante de mim? Por ter se humilhado diante de mim, não mandarei durante sua vida; é nos dias de seu filho que enviarei a desgraça sobre sua casa.

2 Rs 5:27 – Mas a lepra de Naamã se apegará a ti a à tua posteridade para sempre.(…)

Jó 8:8-9 – Pois, eu te peço, pergunta agora às gerações passadas; e prepara-te para a inquirição de seus pais. Porque nós somos de ontem, e nada sabemos; porquanto nossos dias sobre a terra são como a sombra.

Is 14:21 – Por causa da maldade dos pais promovei a matança dos filhos.

Jr 16:10-11 – (…)Por que anunciou Iahweh, contra nós, toda essa grande desgraça? (…)Porque vossos pais me abandonaram, disse Iahweh(…)

Jr 29:21 – por isso assim disse Iahweh: Eis que vou castigar Semeias Naalam e à sua descendência.

Jr 32:18 – Tu fazes misericórdia a milhares, mas punes a falta dos pais, em plena medida, em seus filhos. (..)

Sl 109 (108):14 -Que Iahweh se lembre da culpa de seus pais, e o pecado de sua mãe nunca seja apagado!

Sl 136 (137):8-9 – Ah! filha de Babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir o pago que tu nos pagaste a nós. Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras.

Dt 24:16 – Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos no lugar dos pais. Cada um será executado por seu próprio crime.

Jr 31:29-30 – Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram.

Ez 18:20 – Sim, a pessoa que peca é a que morre! O filho não sofre o castigo da iniqüidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniqüidade do filho: a justiça do justo será imputada a ele, exatamente como a impiedade do ímpio será imputada a ele.

Jó 34:11 – Ele retribui ao homem segundo suas obras, e dá a cada um conforme o seu proceder

Sl 28 (27):4 – Dá-lhes, Iahweh, conforme suas obras, segundo a malícia de seus atos.

Is 3:11 – Mas ai do ímpio, do homem mau! Porque será tratado de acordo com suas obras.

Lm 3:64 – Retribui-lhes, Iahweh, segundo a obra de suas mãos

Não esquecendo, claro, de notáveis passagens do Novo Testamento, como a já citada Carta aos Romanos (Rm 5:10), a “maldição do sangue” (Mt 27:25) e o famosíssimo episódio do “cego de nascença” (Jo 9:1-2). Curioso nesse último que os discípulos também perguntam se o pecado cometido teria sido obra dos pais e não apenas dele; sugerindo, assim, que a ideia de punição hereditária ainda persistia, apesar das críticas de Ezequiel. Os mesmos que usam esta passagem são os que criticam Ex 20:5, só que eles não se atentam à contradição dessa atitude. Para saber mais, clique aqui.

Cerejas

“Se você não pode debater com seus oponentes no âmago da questão, esmague-os nos pequenos detalhes.”

Mas, como disse um poeta: “e agora, José?” Afinal, paga-se pelo próprio pecado apenas ou pelo dos outros, também? Analisando… citas os versículos da coluna da direita (e mais alguns) como garantia de sua interpretação reencarnacionista de Ex 20:5 e Ex 34:7, mas desconsidera o que está na coluna da esquerda. Este tipo de incoerência é que não pode ocorrer. Do mesmo modo, não se deveria defender essa ou aquela interpretação em prol de uma uniformidade em um grupo seleto de mensagens e depois, quando convém, retirar a autoridade do discurso de um debatedor salvacionista mostrando-lhe as disparidades do texto bíblico. Se deve haver coerência de algum tipo, que comece pelas atitudes.

A resposta para essas discrepâncias, de certa forma, pode ter sido dada por autores espíritas:

O exame do Velho Testamento nos leva a duas alternativas: Ou era o próprio legislador quem, com o propósito de infundir respeito, atribuía à Divindade todos aqueles rompantes de ferocidade de que o Antigo Testamento está repleto, ou Deus se fazia representar ante o povo por uma deidade tribal, talvez até mais de uma, como se infere de Gên. 3:22: “Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal.” E a prova de se tratar de Espírito ainda um tanto materializado é que habitava no tebernáculo (2a Sam. 7:6), ou “de tenda em tenda” 11″ (jôn. 17:5) e “se comprazia com o cheiro dos animais imolados em holocausto” (Números 29:36). Para os gnósticos do 2o Século, segundo o teólogo WALKER,

“O Deus do Antigo Testamento, criador do mundo visível, não pode ser o Deus Supremo revelado por Cristo, mas sim um demiurgo inferior.” (“História da Igreja Cristã”, 2a edição, pg. 80).

Id. 30

O leitor que desejar fazer um estudo mais aprofundado sobre as incongruências e incorreções contidas nesse livro poderá encontrar valiosos subsídios na importante obra do escritor MÁRIO CAVALCANTI DE MELLO, intitulada “Da Bíblia aos Nossos Dias”, ed. FEP, Curitiba, onde ele disseca magistralmente o Velho Testamento. Eis algumas da interessantes indagações do referido autor (Pgs. 363/ 371), aliás em alguns casos transcrevendo perguntas formuladas por DOMÊNICO ZAPATA, professor de Teologia na Universidade de Salamanca, no século XVII:

(…)
13 — Por que a lei judaica não menciona em lugar algum as penas e recompensas após a morte? E por que nem Moisés nem os outros profetas falaram na imortalidade da alma, se isso já era conhecido dos antigos caldeus, dos persas, dos egípcios e dos gregos?
(…)

Id. p.36

Bem, se o Javé o Antigo não era tão moralmente elevado assim e nem havia o conceito de punições após a morte no Pentateuco, então por que acreditar que ele seria justo em Ex 20:5 usando a reencarnação? E quanto ao versículo seguinte? Afinal, pela própria tradução de Analisando… milhares de gerações receberiam bênçãos imerecidas, o que não deixa de ser uma injustiça, também!

Então, retomo o primeiro princípio de crítica textual bíblica que apresentei em outra parte: a Bíblia não foi feita para você. Afinal, muitos desses nós podem ser desatados caso se leve em conta o ambiente em que os livros mais antigos da literatura hebraica foram redigidos:

  • Ausência de um pós-morte claramente definido: Para um judeu do Primeiro Templo, a morte era o retornou ao pó ou um existência vazia no Xeol. Conceitos de ressurreição surgiram apenas após exílio de Babilônia e os de reencarnação são medievais. O indivíduo se imortalizava pela descendência e, nesse contexto, as punições (e bênçãos) hereditárias faziam sentido;

  • antropomorfismo divino: um ponto assinalado por Jayme Andrade, em sua crítica à Inerrância Bíblica, foi a presença de emoções, digamos, “humanas demais” no Javé do Antigo Testamento, como seus rompantes de ira ou a possibilidade de até se arrepender (cf. op. cit. pp. 32-3). Se assim o é, certas teses usadas nas traduções encontradas em Analisando… perdem a razão ser, como esta feita, também, para Ex 20:5:

    Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que muitos tradutores colocam, em suas traduções, adjetivos que não condizem com a realidade divina. O termo hebraico (él kaná significa, entre outros atributos, Deus Zeloso. No entanto, muitos traduzem estas palavras como Deus Ciumento, como se Deus fosse possuidor de uma qualidade puramente humana e de caráter inferior. É devido a fatos como este que a Bíblia é tão incompreendida em suas traduções.

    Analisando…, cap. VIII, p. 125

    Dado que Javé “pede permissão a Moisés para destruir o povo (Ex. 32:10), porém este o repreende (Ex. 32:12) e Ele se arrepende (Ex. 32:14)” (Andrade, p. 33), concluo que Severino Celestino da Silva devia estar falando de outra divindade. Se você acha que estou interpretando literalmente o que não deveria ser, então comece a dar razão à tese da Inerrância.

  • A queda de Israel (mas não de Javé): em caso de uma conquista estrangeira, um padrão comum entre os povos politeístas da Antiguidade era adoção dos deus do conquistador; se não total, ao menos junto aos seu tradicionais. E se o conquistado fosse monoteísta? Uma hipótese mais imediata seria que o dito deus único era falso e inferior aos do conquistador ou julga que ele abandonara seu povo. A abordagem registrada nos livros proféticos de Israel (41), contudo, foi distinta: Javé não abandonara seu povo, foi esse que o deixou ao se desviar de sua Lei. O sofrimento dos exilados, em razão faltas de seus pais, cessaria tão logo eles retornassem a ela. Bem, essa é mensagem de Jeremias: as punições hereditárias são o presente de um povo desviado da Lei. As punições, neste caso, constituíam uma forma inocentar a Deus pela calamidade que assolaria Jerusalém e seu fim seria para o futuro, com a renovação do pacto com Deus.

    De certa forma, o livro de Deuteronômio já possui essa noção em sua teologia: o pacto de Javé com os hebreus estava condicionado à obediência do povo eleito: sua infidelidade resultaria numa série de desgraças. Muitas das quais os hebreus devem ter enfrentado por ocasião da queda de Israel e, posteriormente, de Judá ante potências estrangeiras. Estaria seu autor já intuindo o que iria acontecer? Para os devotos, sim; mas um observador externo poderia cogitar que tudo isso já tivesse acontecido e Deuteronômio foi redigido em torno de um código de leis para servir de base interpretativa à trajetória da nação (42);

  • Um noção de justiça simples e crua: Jayme Andrade critica a incoerências de atitudes de Moisés, pois ele

    que “era o mais manso de todos os homens que havia sobre a terra” (Num. 12:3), desce do Sinai com as “Tábuas da Lei”, onde constava o mandamento “não matarás” e logo, para passar da teoria à prática, manda matar 3 mil dos seus compatriotas e ainda por cima pede a bênção de Deus para os assassinos (Ex. 32:28/29).

    (Id, p. 32)

    Se o leitor reparar bem, várias sentenças contidas no Pentateuco são de morte – p.e., não guardar o sábado (Ex31:14/Nm 15:32-6) -, inclusive a adoração de ídolos (Dt 17:2-6), justamente o crime cometido no capítulo 32 de Êxodo (o bezerro de ouro). Isso, por incrível que pareça, não está em contradição com o quinto mandamento, levando-se em conta que sua tradução mais precisa seria “Não assassinarás”. Bem, ao menos essa é a opinião de André Chouraqui, tão elogiado em Analisando…. Portanto, para os antigos hebreus, era a pena capital para os que matassem um inocente, mas não era errado matar por determinação de Justiça. Em geral, por apedrejamento. Para os crimes não religiosos e que não atentassem contra a vida, as penas eram mais amenas, como multa, desterro, mutilação, servidão e encarceramento, aplicadas segundo o preceito de reparação equivalente estabelecido em Dt 19:21: “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”, vulgo lei de talião. Esse princípio tinha o bom aspecto não permitir que o castigo extrapolasse a falta, mas não havia tanta preocupação assim com a recuperação do faltoso. Também havia o pressuposto de a punição não dever ultrapassar a figura do faltoso, como explicitado em Dt 24:16. Curiosamente, esse versículo não está em contradição com Dt 5:9 ou Dt 28:18, ao contrário do que a sensibilidade moderna pode achar, pois os capítulos V e XXVIII desse livro tratam principalmente do relacionamento entre entre Deus e os homens, por meio dos mandamentos, ao passo que o XXIV regula as relações entre os mortais. São escopos diferentes;

  • Tribalismo: Embora seja apresentado como o Criador, Javé se comporta muitas vezes ao estilo de um deus tribal, posteriormente elevado à categoria de divindade nacional única. Assim, teríamos originalmente uma monolatria (adoração a só um deus, embora se reconheça a existência de outros) em vez de um monoteísmo genuíno (só há um deus, todos os demais são engodos). Nesse contexto, a tradução por “ciumento” em Ex 20:5 faz bem mais sentido que “zeloso”, a maldição sobre Canaã ganha ar de profecia da conquista de Josué e o amargor de um exilado na Babilônia fica compreensível;

  • Desconsideração pura e simples do todo: muitos dos versículos estão fora do seu contexto, o que coloca algumas ressalvas. Por exemplo: Jó 34:11, do jeito que está, não leva em conta que o sofrimento de Jó não era um castigo pela infração de outrem, muito menos algo merecido pelos próprios atos desse personagem; mas o resultado de uma aposta entre Deus e Satanás pela integridade de Jó. Severino Celestino da Silva passa por cima desse detalhe quando cita o versículo no cap. VIII de seu livro.

Diante desse panorama, a hereditariedade das penas pode, sim, ter sido a intenção dos autores do Pentateuco e, por mais que os apologistas espíritas bradem apelos emotivos, as evidências históricas (e bíblicas!) pendem a favor desse entendimento. Óbvio que os tempos mudam e leis começam a ficar desatualizadas. Os judeus da diáspora não podiam aplicar leis antigas que se chocassem com as de suas pátrias adotivas, além travarem contato com sofisticados sistemas filosóficos, às vezes contrastantes com a rudez do épico nacional contido na Escritura. Os cristãos ortodoxos, por sua vez, tinham de responder ao desafio que gnósticos e marcionitas lhes impuseram de conciliar os rompantes de brutalidade de Javé com a bondade do Pai do Novo Testamento.

Foram elaboradas, então, técnicas de exegese para extrair do texto significados que antes não possuíam, permitindo a suavização arestas, harmonia entre discrepâncias e até a sistematização de doutrinas. Evidente que o êxito depende da aceitação pelo interlocutor das premissas usadas. No caso de Ex 20:5 e 34:7, um dos argumentos mais simples consta no próprio Pentateuco: “Mas somente se eles seguirem os caminhos de seus pais (Dt 24:16)”. É isso que os targumim utilizaram e, recente, foi o que o supracitado Rabino Aryen Kaplan colocou no rodapé do livro de Êxodo em sua edição bilíngue A Torá Viva (p. 352). O louvado Chouraqui também fez uma abordagem bem singela nesse versículo, relacionando-o com o seguinte a ele:

5. (…)
quarto ciclo ou “geração”: A cólera de IHVH contra um povo infiel foi comparada por Hoshéa (Oseias) à de um esposo que expulsa uma esposa adúltera com seus filhos (Os 1-2). Ficamos sabendo aqui que ela é limitada, estando fundada no amor criador.

6. milésimo: O amor de IHVH pelos que lhe são fieis é eterno e sem limites.

A reencarnação é apenas outra interpretação para desatar o nó das punições hereditárias. Não é a única – ao contrário do alegado por espiritualistas -, nem a mais simples; além de ser a mais anacrônica com a Escritura: as evidências de reencarnação no judaísmo são medievais.

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Massorético X Massorético


Bem, algum hebraísta roxo pode ainda alegar: “Esses exemplos de trocas preposicionais só ocorreram em textos marginais ou traduções, ambos passíveis de serem feitos de forma descuidada. Nenhum deles é páreo para o esmero da transmissão textual feita pelos mestres massoretas”. Tudo bem, então vai um xeque-mate nessa teimosia:

1 Sm 14:1

vayhiy hayyom vayyo'mer yonâthân ben-shâ'ul 'el-hanna`ar nosê' khêlâyv lekhâh vena`berâh 'el-matsabh pelishtiym

“Um dia, Jônatas, filho de Saul, disse ao seu escudeiro: ‘Vamos, atravessemos até o posto avançado dos filisteus…”

1 Sm 14:4

ubhêyn hamma`beroth 'asher biqqêshyonâthân la`abhor `al-matsabh pelishtiym…

“No deslifadeiro que Jônatas procurava atravessar para atingir o posto avançado filisteu…”

Hum…

2 Sm 23:23

min-hasheloshiym nikhbâdh ve'el-hasheloshâh lo'-bhâ' vaysimêhu dhâvidh 'el-mishma`tos

1 Cr 11:25

min-hasheloshiym hinno nikhbâdh hu' ve'el-hasheloshâh lo'-bhâ' vaysiymêhu dhâviydh `al-mishma`tos

Era mais nobre do que os trinta, porém aos três primeiros não chegou, e Davi o pôs sobre a sua guarda pessoal. (i.e. no comando da guarda)

E outro

2 Sm 22:16

koh 'âmarAdonay hineniy mêbhiy' râ`âh 'el-hammâqom …

2 Cr 34:24…

koh 'âmar Adonay hineniymêbhiy' râ`âh `al-hammâqom…

Assim diz o Senhor: Eis que trarei males sobre/a este lugar…

E mais outro! (há muitos se quiser saber…)

2 Cr 34:15

vayya`an chilqiyyâhu vayyo'mer 'el-shâphân hassophêr

2 Re 22:8

vayyo'mer chilqiyyâhu hakkohên haggâdhol `al-shâphânhassophêr

Então, disse (o sumo sacerdote) Hilquias ao escrivão Safã.

Por mais que se esperneie, por mais que se negue, o massorético traz dentro de si o testemunho se sua própria evolução. De uma época em que o hebraico bíblico era língua viva e, como tal, sujeita a flutuações. Quando se extinguiu, fossilizou-se. Um fóssil extremamente bem conservado, ao ponto de poder ser ressuscitado com êxito no séc. XX e voltar a evoluir. Nesse ínterim, o que se transmitiu foi um conjunto de normas gramaticais mais rígido do que se estivesse ainda viva como língua. Isto se refletiu nas análises críticas da Bíblia, que privilegiaram o tradicional, o recebido, em detrimento do aspecto diacrônico dos tempos bíblicos.

Emanuel Tov, em seu Textual Criticism of the Hebrew Bible, cap. VIII, cita como tais questões contaminaram edições bíblicas da era moderna:

Ao longo dos anos, muitas correções gramaticais têm sido propostas, geralmente para formas incomuns que eram corrigidas nas bases de um modelo gramatical formal. Como uma vasta coletânea de exemplos, Sperber ataca diretamente as correções gramaticas desse tipo, argumentando que eles eram comumente baseadas em “gramática escolar”. A maioria das correções mencionadas por ele são encontradas na Bíblia Hebraica (BH) e em muitos dos comentários, e vale mencionar que a maioria delas não foram repetidas na Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS).

(…)

Ez 2:6 ve'el-`aqrabbiym 'attha yoshebh

e estás sentado com/sobre escorpiões

Correção: ve`al-…

Os editores da BH tinham uma concepção petrificada do uso das preposições 'el e `al (tomadas respectivamente como “a/com” e “sobre”) e geralmente corrigiam os textos de acordo. Estas correções não são necessárias (ver A. Sperber, A Historical Grammar of Biblical hebrew – A Presentation of Problems com Suggestions to Their Solution, Leiden -1966, pags. 59-63).

Nas próprias palavras de Sperber:

Gramáticas bem como dicionários nos ensinam a diferenciar entre 'el e `al. A própria Bíblia é obviamente ignorante de qualquer diferença entre 'el e `al e as usa indiscriminadamente (…) Especialmente os livros de Jeremias e Ezequiel abundam em tais “irregularidades”: encontramos `al onde, de acordo com a gramática e dicionário, esperaríamos 'el e vice-versa. (…)

p. 58

As partículas `al e 'el são usadas indiscriminadamente. Qualquer diferença em seus significados é sem qualquer fundamentação na Bíblia e deve ser considerada arbitrária.

p. 633

Portanto, é provável que toda a crítica feita por Severino Celestino da Silva, não passe de um desses casos de “gramática escolar”. Por Sperber:

A prática adotada pelos comentadores de corrigir o texto da Bíblia – mesmo sobre evidências de manuscritos – para determinar que 'el deva significar “em direção” e `al “sobre” ou “contra”, trabalha com o pressuposto [grifo do autor] que estes são os reais significados destas palavras. Um exame objetivo revelará que todo e qualquer manuscrito as usa promiscuamente, apesar de eles poderem diferir em suas leituras em qualquer passagem dada.

p. 633

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Tentando uma Engenharia Reversa

Pois é: também comprei um exemplar.

“Sanciona o agravo dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos, sobre os terceiros e sobre os quartos.”

Essa é minha proposta para qual seria a estrutura original de Ex 20:5, Ex 34:7, Dt 5:9 e Nm 14:18. Isso não quer dizer que assim estivesse escrito em todos os autógrafos desses livros, mas deve ter sido uma fórmula que já circulava oralmente entre os antigos hebreus antes de ser grafada. E digo isso porque, se alguém reparou, os mandamentos apresentados no capítulo XX de Êxodo e, de novo, no XXXIV são diferentes, indicando que tais passagens foram compostas em épocas distintas e reunidas posteriormente em uma única obra. Escolho a forma de Ex 34:7 por ser ela a mais extensa – com quatro gerações explicitamente citadas (filhos, filhos dos filhos, terceiros e quartos) -, por dar um uso regular à preposição `al e por não possuir suavização alguma: o sentido mais duro e injusto tem mais chances de ser o original. Este último é um princípio da crítica textual: “A leitura mais difícil é preferível a mais fácil(43).

A seguir, lanço uma série de hipóteses de como as demais leituras surgiram a partir dessa.

diagrama hipotético de evolução

Clique para ampliar.

  1. Num primeiro momento, pode ter ocorrido uma espécie haplografia, i.e., o olho de algum copista (ou de quem lhe ditava um texto) teria “escorregado” em razão da repetição da palavra “filhos”. Pode até haver ocorrido mais de uma vez, dado que Dt 5:9, no Texto Massorético (TM), ainda preserva a conjunção “e” perdida em Ex 20:5 e Nm 14:18 dessa família de manuscritos. É plausível, pois, como já informado, antes que a tradição metódica de cópias dos sábios massoretas se firmasse, os textos hebraicos possuíram pelo menos uns 500 anos de flutuação mais livre;

  2. Essa perda de palavras não deve ter causado estranheza, pois, com a similaridade entre `al e 'el, a primeira passou não apenas a indicar uma posição pontual, mas toda uma sobreposição por uma extensão. O sentido de “até”, “em direção a” advém quando o foco cai sobre o término dessa extensão (cf. Ex 18:23);

  3. Numa particular coincidência linguística, a preposição grega επι abarcou boa parte dos usos da hebraica `al, especialmente os novos, ao reger o acusativo (cf. Gn 22:19). Um ecletismo que gerou dúvidas, em certos casos, se a melhor tradução para `al seria ela ou 'εως;

  4. Ao se transpor a língua para o latim, quer pela pena de Jerônimo (44) ou dos anônimos tradutores da Vetus, defrontou-se com mais de uma possibilidade para verter a επι de acusativo. Em alguns casos ela foi interpretada ora como “contra” ou “a” (utilizando-se in filios, no acusativo), ora como indicativo de posição (in de ablativo ou super) e, por fim, como indicativo de extensão (in de acusativo). O resultado foram versões distintas com significado similar:
    Êxodo 34:7
    Vetus reddens iniquitates patrum super filios et super filios filiorum, in tertiam et quartam generationem
    Vulgata qui reddis iniquitatem patrum in filiis ac nepotibus in tertiam et quartam progeniem.

    Nesse versículo, ambos os tradutores entenderam as duas primeiras επι de acusativo como a posição onde a retribuição divina incidiria inicialmente, e a última επι de acusativo como sendo a extensão dessa retribuição (“até a terceira e quarta geração“).


De certa forma, a gama de significados que `al pode repercutir até hoje na forma como a Bíblia é traduzida para nosso idioma, ainda que passe por mãos judaicas. Trago dois exemplos ainda disponíveis nas prateleiras:

Aryeh Kaplan
A Torá Viva
Meir M. Melamed
Torá – A Lei de Moisés
Ex 20:5 Eu tenho em mente o pecado dos pais por (seus) descendentes, até a terceira e quarta (geração). (…) visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre as terceiras e quartas gerações
Nm 14:8 (…) mas guarda o pecado dos pais por seus filhos, netos e bisnetos. (…) visita o delito dos pais nos filhos, sobre terceiras e quartas gerações.
Dt 5:9 Eu lembro o pecado dos pais para (seus) descendentes por três e quatro (gerações). (…) visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e sobre quartas gerações.
Ex 34:7 (…) mas guarda em mente os pecados dos pais para seus filhos e netos, para a terceira e quarta gerações. (…) visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobre terceiras e quartas gerações.

Os tradutores de “Torá: A Lei de Moisés” preferiram se ater aos significados mais básicos de `al, no caso “sobre/em”, ao passo que Aryeh Kaplan preferiu explorar as demais conotações. Embora a forma esteja distinta, o entendimento das duas obras é semelhante, como atestam os comentários que fazem:

A Torá Viva Torá – A Lei de Moisés
Ex 20:5 Mas somente se seguirem os caminhos de seus pais (Dt 24:16, Berachot 7a). Quando os filhos continuam praticando a iniquidade de seus pais, pois os filhos não devem seguir o mau exemplo dos pais, depois de conhecer suas consequências.
Ex 34:7 Ver 20:5. Quando os filhos seguem o mau caminho dos pais, o Eterno os castiga também pelos pecados dos pais.

Observe-se que o uso de “sobre” ou “em” dado em “Torá – A Lei de Moisés“, Ex 20:5, está invertido em relação ao que consta no livro de Severino Celestino da Silva:

Ex 20:5 – (…) visito a culpa dos pais sobre os filhos, na terceira e na quarta geração.

Ex 34:7 – (…) visita a iniquidade dos pais nos filhos, e nos filhos dos filhos, sobre terceiras e quartas gerações ou sobre netos e bisnetos.

Analisando …, cap. VIII, p. 124 e 127.

Essa sutil mudança pode dar efeitos fortes no idioma português. Em Ex 20:5, alguém pode entender que apenas a terceira e a quarta gerações seriam punidas, deixando os filhos de fora. Em Ex 34:7, por sua vez, a situação é mais gritante em razão do complemento adicionado: “ou sobre netos e bisnetos“, equiparando a terceira geração aos netos. Se fosse esse o versículo Ex 20:5 e se considerasse os pais como a primeira geração, tudo bem. O problema é que os netos já aparecem em “filhos dos filhos”. Em Ex 34:7, temos – além de pais, filhos e netos -, os bistenos e trinetos. Está se forçando um salto de gerações que não existe (45)!

Caso se mantivesse um uso uniforme de `al como “sobre”, obter-se-ia a frase que abre esta seção, que é idêntica à tradução de André Chouraqui para Ex 34:7, por ele elogiada em [cap. VIII, p. 135] e já mencionada acima, com quatro (ou cinco) gerações em sequência para receber a sanção. Isso não significa prova absoluta da crueldade de Javé ou dos tradutores que assim prefiram, pois a fixação em preciosismos dos reencarnacionistas não lhes permite ver interpretações e comentários mais amenos (que não sejam os deles), nem se focar que a benevolência do Eterno é muito maior que Sua ira (cf. Ex 20:6), o cerne dessa passagem.

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Um Panorama da Questão


Fazendo um sumário que discutido aqui:

  • Apesar de a preposição (`al) possuir como significado mais comum “em/sobre”, ela também pode assumir outros valores, entre eles “até”;
  • Em Qumran, há casos de intercambialidade entre as preposições (`al), ('el) e (`ad);
  • Em tempos antigos, houve casos de homofonia entre (`al) e ('el), o que permitiu que a primeira assumisse funções de partícula dativa (i.e. preposição de objeto indireto) e outros significados de ('el), como “até” (e vice-versa);
  • A LXX e a Vulgata nem sempre utilizaram a mesma base textual do que viria a ser o Texto Massorético. Logo é precipitado chamar discordâncias do texto de propositais;
  • Trocas entre (`al), ('el) também podem ter ocorrido na matriz hebraica LXX e a troca de (`al) por (le) ocorreu na Peshitta;
  • As traduções de (Ex 20:5) e (Ex 34:7) feitas a partir da Vulgata estão corretas, ao contrário do que é alegado;
  • Há vários casos de castigos hereditários no AT e ao menos um no NT, mas isto não significa que eles fossem irrevogáveis ou que se tenha que apelar para interpretações reencarnacionistas (Targum Onkelos e R. Kaplan, em tempos modernos).

Isso já é material bastante para considerar a tese de tradução errônea, no mínimo, equivocada. Para alguns, talvez, não passem de subterfúgios de “detratores”. Paciência. A bem da verdade, um subterfúgio muitíssimo mais grave foi querer impor aos há muito falecidos redatores, tradutores e copistas da Bíblia regras gramaticais que eles mesmos ignoravam em suas línguas maternas. Quando, ao final do capítulo VIII, o autor diz:

Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

p. 135

eu torço um pouco o nariz, pois sua própria bibliografia (Barrera, Chouraqui) e os dicionários usados (Berezin, Perreira) lançariam muita luz em sua dúvida. Quanto à questão da injustiça das “penas hereditárias”, outra obra bem cotada por ele – Torá: a Lei de Moisés – traz uma explicação alternativa à reencarnação em Ex 20:5 e 34:7, e que mantém a responsabilidade individual dos descendentes do faltoso.

Ainda há uma hipótese a considerar: a de que as penas hereditárias tenham sido realmente a intenção original que se passar aos leitores. Isso pode parecer cruel e injusto para você, cidadão do Ocidente moderno. Contudo, faria bastante sentido para um hebreu exilado na Babilônia, tentado a julgar que Javé o abandonara (Cf. nota 42). Afinal, a Bíblia não foi feita para você!

[topo]

Notas

(1) Óbvio que se pode achar dicionários e gramáticas que possuem apenas o sentido de “sobre/em” para `al, mas, como explanei em outro artigo, sair dizendo que outros significados não existem é “colocar o carro na frente dos bois”. Os verdadeiros donos de uma palavra são os que a usam, ou, no caso, os que a usaram e deixaram registrando na Bíblia. Os dicionários, na melhor das hipóteses, correm atrás dos significados que as palavras têm ou tiveram. Se um dicionário (ou gramática) não deixou registrado os usos que demonstrei com exemplos tirados da própria Bíblia, então ele(a) é que está deixando a desejar, ao menos nesse verbete. [voltar]

(2) Curiosamente, o autor traz no capítulo XI, p. 159, a seguinte frase atribuída a Arieh Kaplan: “Não é possível entender a Cabalá sem acreditar na eternidade da alma e suas reencarnações“. Não há referência alguma, contudo. Seja como for, Kaplan não enxergou a reencarnação em Ex. 20:5, nem o traduziu como os reencarnacionistas bíblicos gostariam.[voltar]

(3) Cf. [Störig, cap. XII] [voltar]

(4) O inglês ainda possui vestígios desse caso, por exemplo the Richard’s car (“o carro de Richard”). [voltar]

(5) Por exemplo “ô Fulano”, só que sem se valer de interjeições. Cogito se as expressões infantis “paiê”, “manhê” não são uma reinvenção do vocativo no português falado. [voltar]

(6) Ainda é possível alguma mudança de ordem no português se o objeto for marcado por uma mudança de entonação. Tomando o exemplo dado: “A teRRA, a água rega”. [voltar]

(7) O exemplo dado abarca apenas palavras da primeira declinação latina. [voltar]

(8) O romeno ainda possui vestígios do vocativo latino. As seis flexões verbais continuam bem nítidas no italiano, reduzidas a quatro ou cinco no português falado e a três no francês. Esse último é curioso, pois, na escrita, tem-se a impressão de que as seis pessoas estão ainda presentes, mas, na fala, muitas vezes as três pessoas do singular e a terceira do plural são indistintas, pois suas desinências não são pronunciadas, sendo obrigatório o uso do pronome pessoal reto para distingui-las. [voltar]

(9) Severino Celestino da Silva tem a edição de 1979 em sua bibliografia. Se verificarmos aparato crítico para Ex. 20:5, podemos constatar uma leitura variante no Codex Alexandrinus que usa επι em vez do 'εως. Tendo-se em mente a complexa evolução da tradução dos LXX, isso não invalida nosso raciocínio. Pelo contrário, sugere que sucessivas revisões feitas na Antiguidade acompanharam as trocas preposicionais do texto hebraico. De qualquer forma, o Codex Alexandrinus ainda traz 'εως para Nm 14:18. Aposto que haverá alguém que, ao encontrar um texto baseado no Alexandrinus, comece a bradar que maioria dos livros, portais e fóruns usam versões adulteradas da LXX e só a que ele encontrou esta acima de qualquer suspeita. Bem, ferramentas são tão boas quanto as pessoas que as manipulam…

Para constar: o Codex Vaticanus, outro peso-pesado entre os códices mais antigos da Bíblia, segue a leitura com 'εως para Ex. 20:5. O Codex Sinaiticus, infelizmente, está fragmentário no Pentateuco e não dispõe dos versículos aqui analisados. [voltar]

(10)[Freire, cap. IX, pp. 210-1] (grego clássico, usada por Severino Celestino da Silva) traz uma listagem de significados para επι, conforme a regência, no melhor estilo “decoreba”.

[Murochco, pp. 572-9](clássico) sugere um pouco da lógica subjacente:

  • επι + dativo -> “locativo”: ponto no espaço ou no tempo em que a predicação ocorre;
  • επι + genitivo -> “genitivo partitivo”: parte de uma superfície ou período temporal em que a predicação ocorre;
  • επι + acusativo -> “lativo” (cf n. 14): associado a ideia de movimento em direção a, finalidade.

Pode-se reparar que entre o dativo e genitivo, a diferença é bem sutil. Um dos exemplos que Murochco e Freire têm em comum para o genitivo – επι Σαμου πλειν – é traduzido bem mais literalmente no primeiro (“navegar sobre Samos”) que no segundo (“navegar rumo a Samos”).

A listagem de significados em [Wallace, p. 376] (grego koiné) é quase idêntica entre o dativo e genitivo, sendo a única diferença que o primeiro poderia dar a επι o sentido de “contra”.

A mais sofisticada análise das sutilezas semânticas de επι está [Robertson, cap. XIII, pp. 600-5](koiné), mas extrapola muito o escopo deste artigo. Por ora, segue a linha geral (p. 602) “O genitivo com επι tem, de maneira similar, uma ampla variedade de usos. Geralmente o sentido de ‘em cima de’ satisfaz todos os requerimentos”. [voltar]

(11) Cf. [Jobes, Parte I, cap II]. [voltar]

(12) “Pseudo” por ser erroneamente atribuído a Jônatas ben Izzel, que é o tradutor de outro targum, porém sobre os profetas. [voltar]

(13) A mais antiga referência ao Targum Onkelos se encontra no Talmude Babilônico (Meg. 3a), fazendo menção à tradução feita por “Onkelos, o prosélito”. Acontece que, no Talmude da Palestina, há um paralelo (Meg. 1, 9, 71c) a dizer que “Akylos, o prosélito” fez a tradução da Torá. No caso, a pessoa em questão seria Áquila, cuja tradução da Torá para o grego é bem conhecida. Teria seria sido “Onkelos” a versão hebraica do nome “Áquila” e o Targum atribuído a ele um caso de pseudonímia, como o de Jônatas? Talvez. Por outro lado, não se discute o conhecimento do hebraico de Áquila e, por extensão, poderia ele ter sido capaz traduzir, também, para outra língua aparentada. Além disso, as interpretações presentes no texto desse targum se aproximam das utilizadas pelo Rabbi Akiba, do qual Áquila foi discípulo. Enquanto a autoria do targum permanece incerta, análises linguísticas indicam que a linguagem de Onkelos se aproxima mais do aramaico literário praticado na Palestina que o vernáculo da Babilônia, embora fosse mais utilizado lá. É provável, então, que o atual “Targum Onkelos” seja uma babilônica edição final de um targum originário da Palestina. Para mais pormenores cf. [McNamara (2010), cap. XVII, pp 255-9] e [Barrera, parte III, cap. IV, pp 389-90]. [voltar]

(14) Se alguém quiser ler o texto inglês constante em Pentateuchal Targumim, informo que harmonizei as traduções inglesas entre os targumim. Nada para se assustar, pois que eles tiveram tradutores separados. Por exemplo, em Ex 34:7 de PsJo um palavra foi traduzida por “pecados”, enquanto em Onkelos o tradutor preferiu “culpa” para a mesma palavra. [voltar]

(15) A datação dos targumim pode ser um tanto problemática, em especial no caso do Pseudo-Jônatas, pois foi alvo de sucessivas interpolações. A mais tardia (Gn 21:21) dá às esposas de Ismael o nome de uma das filhas (Fátima) e uma das esposas (Adisha/Khadija) de Maomé, situando a redação final após a expansão islâmica. A que faz referência ao personagem mais antigo (Dt 33:11) é uma oração a Johanan, o Sumo Sacerdote, que pode ser João Hircano, do primeiro século antes de Cristo, o que não impede que seja um registro posterior. Assim, as datações mais tardias o colocam no século VIII da Era Cristã e a mais antiga o situa durante o reinado do imperador romano Juliano, o Apóstata, (361-3), quando houve uma breve esperança de reconstrução do Templo (cf. [MacNamara (2010), cap. XVII, pp. 265-6]). O Targum Onkelos é bem mais enxuto em termos de interpolações que o Pseudo-Jônatas, o que dificulta o rastreamento por evidências internas. Seu livro de Gênesis encontra paralelos no Gênesis Apócrifo de Qumran (cf. [Barrera, parte III, cap. IV, p. 389]) e a análise de sua linguagem o situa no começo do segundo século (cf. [McNamara (2010), cap. XVII, p. 258).[voltar]

(16) Isso seria o lativo existente em línguas ural-altaicas, como o finlandês. Para uma descrição resumida dos casos em latim, cf. [Ilari, cap. VII, p. 89]. [voltar]

(17) Cf. [Barrera, parte III, cap. VI, pp. 417s]. [voltar]

(18) Linguistica Românica é uma obra bem didática, mas às vezes derrapa quando sai de seu tema fim. Ao avaliar as diferenças entre a linguagem da tradução dos Evangelhos frente ao Antigo Testamento, o autor diz:

Como iniciativa de aproximação entre a língua vulgar e o latim culto, pode-se citar a decisão da Igreja, no tempo de São Jerônimo, de redigir em um latim tanto quanto possível popular os textos do Novo Testamento. Essa tentativa remonta ao tempo em que São Jerônimo (século IV a.C.) (sic), a pedido do papa São Dámaso, cuidou da versão da Bíblia conhecida como “Vulgata”. O Antigo Testamento havia sido traduzido por Jerônimo diretamente do hebraico, num latim literário impecável, sem levar em conta as versões anteriores (conhecidas pelo nome de Itala Vetus), feitas a partir do grego e eivadas de expressões e construções populares. Conta-se que quando São Jerônimo se preparava para traduzir o Novo Testamento, lhe apareceu um anjo, que o censurava por ser mais ciceroniano do que cristão (“ciceronianus es, non cristiano”). Segundo a tradição, foi esse o motivo pelo qual o texto do Novo Testamento foi decalcado mais diretamente da Itala Vetus, apresentando linguagem de caráter bem mais popular.

Tal anedota, de fato, existe, foi registrada em uma carta de Jerônimo endereçada a Eustóquio (Carta 22 na numeração da Nicene and Post-Nicene Fathers) e ela data realmente à época de sua tradução dos evangelhos. Entretanto:

  1. A reclamação do anjo não era com o trabalho de tradução, mas com o hábito de Jerônimo de ainda ler muito as obras clássicas e pouco as cristãs;
  2. Jerônimo não traduziu, revisando apenas levemente, os Atos, as Cartas e o Apocalipse. Eles ainda são em grande parte herança da Vetus;
  3. Ainda que Jerônimo tenha tentado preservar o que seus leitores já estavam acostumados a ler, não deixou de lapidar o texto dos Evangelhos aqui e ali;
  4. A tradução do Antigo Testamento foi posterior à revisão dos Evangelhos.

Não vou crucificar Rodolfo Ilari por ter cometido um erro histórico se sua obra trata de Linguística, da mesma forma que não criticaria um livro de Matemática por conter erros de português. Também não critico Analisando … por seu autor ser espírita ou crer na reencarnação, mas por conter erros históricos e linguísticos, estando a História e a Linguística no seu cerne.

[voltar]

(19) Essa é a origem da partícula indefinida on do francês, via corruptela de hom(me). [voltar]

(20) O texto de [Sabatier] não tem esse versículo, Cf. [Harrington, p. 29]. Uma outra variante, a preposição composta de + intro, deu origem a nossa palavra “dentro”. Note que a Vulgata usa o “que enclítico” como conjunção (=et). [voltar]

(21) E foi a preposição latina de ablativo de que, com o desaparecimento dos casos, assumiu o genitivo nas neolatinas. Curiosamente, essa construção não era desconhecida no latim clássico. Que o diga o poeta Virgílio:”Et viridi in campo templum de marmore ponam (Geórgicas 3.13). [voltar]

(22) Cf. [Sidwell, cap. III, p. 30]. [voltar]

(23) Por exemplo, a frase genitiva in saecula saeculorum (“pelas eras das eras”) é uma latinização de uma expressão grega que reflete um jeito hebraico de fazer o superlativo. Cf. [Sidwell, Grammar 10.a]. [voltar]

(24) [Ilari, cap. V, p. 70]. [voltar]

(25) Magis deu origem ao nosso “mais” e ao “más” espanhol, ao passo que plus deu origem ao “plus” francês e ao “più” italiano. [voltar]

(26) Repare em At 2:28 (Vetus Latina) …replebis me laetitia cum facie tua. Mesmo a literatura preservando todo o sistema de casos clássico, ainda havia risco de confusões. Na palavra do exemplo acima, seu nominativo singular (facies) era idêntico ao acusativo plural e o significado era deduzido do contexto. Assim, mesmo não tendo mais latim como língua materna, escritores medievais continuaram a usar preposições gramaticalmente dispensáveis para fins de clareza. [voltar]

(27) O que talvez fosse a preservação de um falar antigo que não foi adotado pelos clássicos. O teatrólogo Tito Plauto, no segundo século a.C., escreveu em sua peça “Os Prisioneiros” (Captivi) a frase Ego hunc ad carnuficem dabo (“Darei este ao executor”). [voltar]

(28) Uma pequena licença poética de [Sidwell, cap. III, p. 30]: “[Vulgate] is unlike anything else in Latin“. [voltar]

(29) Hebraica e grega para Jerônimo, do vernáculo para os escritores mais tardios. [voltar]

(30) Sugestão de leitura [Plater & White]. [voltar]

(31) Codex Cavenensis (C); um manuscrito da Biblioteca Vallicelliana, Roma, B.25II, s. VIII-IX in Latio vel Romae (I); e o Codex Legionensis (Λ). [voltar]

(32)É possível encontrar construções do tipo usque in + ablativo, como em At 7:45 “expulit Deus a facie patrum nostrorum usque in diebus David“. Nesses casos, in se refere a uma época passada específica, o que seria, de certa forma, o equivalente temporal do repouso. O advérbio usque assume sozinho o sentido de “até” (cf. II Cr 12:4). Compare com At 7:41 “et vitulum feccerunt in illis diebus” e Eclo 47:1 “post hoc surrexit Nathan propheta in diebus David“. [voltar]

(33) A preposição composta de + usque + ad deu origem ao jusqu'à francês. [voltar]

(34) Cf. [Plater & White, cap. VI, p. 102]. [voltar]

(35) A preposição super é comumente traduzida por “sobre”, “acima de”. Em ideias de movimento ela sempre rege o acusativo. Em repouso ou circunscrição, pode reger tanto o acusativo como o ablativo. Por exemplo
Lc 23:38

Erat autem et superscriptio inscripta super illum [ac.](…) hic est rex Iudaeorum.
ην δε και επιγραφη επ αυτω [dat.] ο βασιλευς των ιουδαιων ουτος

[voltar]

(36) Literalmente, “uma dos sábados” ou “primeira dos sábados”, traduzido do grego “μια [ημερα] των σαββατων”. O numeral é feminino porque “dia” em grego é uma palavra feminina (ημερα) e, dependendo do contexto, também o é em latim. A expressão como um todo aparece no Antigo Testamento encabeçando o salmo 23 da LXX e é, possivelmente, um hebraísmo vindo do fato de hebraico nomear apenas o dia de sábado (“Shabbat”). Todos os demais são referenciados por numerais. A palavra “sábado”, além do dia da semana, também é algumas vezes utilizada como equivalente para “semana”, na forma singular ou plural (cf. Mt 28:1 e Lc 18:12). Os tradutores da LXX preferiram, provavelmente, essa construção porque traduzir para os nomes semanais gregos obrigaria o leitor dizer nomes de divindades pagãs. [voltar]

(37)No prólogo ao livro de Tobias, Jerônimo informa que traduzira o livro do “caldeu” (i.e., do aramaico) em apenas um dia, com o auxílio de uma pessoa fluente tanto nesse idioma quanto em hebraico, que são bastante próximos, como ele reconheceu. Jerônimo, em seguida, traduziu do hebraico para o latim. Não temos mais o documento sobre o qual a dupla trabalhou, mas supõe-se que fosse bem distinto dos remanescentes, pois resultado final possui um texto consideravelmente maior. A tradição da Septuaginta contempla duas versões, ambas constam na edição de Rahlfs, mas nenhuma contém os versículos finais do texto latino no capítulo IX. As edições Sixto-Clementina e a Neovulgata preferiram um dos texto gregos ao legado por Jerônimo. Feita essa preleção, deixamos claro que não há interesse aqui em fazer análise crítica do texto latino de Tobias, mas na redação que Jerônimo deu a uma frase muito similar ao versículo Ex 20:5, tendo ela sido original ou não. [voltar]

(38) Para o primeiro caso, vale lembrar que usque ad/in é a tradução imediata de εως, encontrada em Ex 20:5 da LXX. Quanto ao segundo, cf. Sabatier, tomo I, p. 205, Ex 34:7, Versio antiqua. Como será visto mais adiante no texto, Jerônimo retoma a redação que está em sua Vulgata nas correspondências pessoais. Uma hipótese é que conviria ao comentário, por ser destinado a um público mais amplo, receber uma redação com a qual a maioria dos leitores (e ouvintes) já estivesse acostumada. [voltar]

(39) Propatheia é um conceito importado da escola estoica de filosofia por teólogos gregos como Orígenes e Dídimo, o Cego, que se refere às impressões preliminares ou pré-emoções que, caso persistam, levam ao desenvolvimento de uma paixão (pathos). [voltar]

(40) A argumentação de Jerônimo não seria válida caso se utilizasse o texto da Vulgata Sixto-Clementina. Tanto a Vetus quanto os mais antigos exemplares da Vulgata e os manuscritos gregos trazem a leitura: “ Será salva, porém, através da geração de filhos, se permanecerem [perseveraverint (Vetus)/permanserint] com modéstia na fé (…)“, dando a entender que os filhos salvam a mãe pela virtude deles, já a Sixto-Clementina traz o último verbo no singular “(…) se permanecer [permanserit] (…)“, deixando a salvação exclusivamente nas mãos da mulher. Alguns códices medievais da Vulgata, contudo, sustentam essa leitura e podem ter sido utilizados na revisão da Contrarreforma. As Bíblias protestantes em língua portuguesa, em especial as calcadas na tradução de João Ferreira de Almeida, costumam trazer essa leitura, também. Por outro lado, já no século XX, a Nova Vulgata retornou à leitura original, mais criticamente embasada. [voltar]

(41) Traduzo a seguir um quadro de informações constante no capítulo XVI de [Ehrman (2008)]

* * *

Box 16.1 Profecia ou Apocalipticismo?

A maioria dos historiadores do antigo judaísmo concorda que as opiniões apocalípticas encontradas em livros como Daniel e nas obras não canônicas de I Enoque e 4 Esra estão vinculadas bem de perto com as opiniões proféticas encontradas nos profetas clássicos, incluindo Isaías, Jeremias, Amós e Miqueias. Tanto profetas e apocalipticistas acreditavam que Deus estava por intervir em nome do povo israelita para aliviar seu sofrimento. Mas discordavam quanto ao porquê de o sofrimento ocorrer, sobre quem era o culpado e como ela seria removida.

Opinião Profética Opinião Apocalíptica
Por que o povo de Deus sofre? Pecou contra Deus e ele o está punindo por isso. Existem forças cósmicas malignas que se opõem a Deus e estão fazendo estragos entre seu povo justo.
Quem causa o sofrimento? O próprio Deus. Ele está punindo seu povo a fim de que ele se arrependa. As forças malignas. Elas são propensas a machucar o povo de Deus.
De quem é a culpa? Do povo de Deus, porque vive em pecado. As forças cósmicas no mundo, que se opõem aos justos de Deus.
O que deve acontecer para haver um fim no sofrimento? O povo de Deus deve ser arrepender e voltar para Ele. Deus deve intervir em nome de seu povo justo e destruir as forças malignas.
O que o povo de Deus deve fazer? Abandonar seu pecado e voltar para Deus. Permanecer fiel e esperar pela intervenção de Deus.

* * *

[voltar]

(42) Chama-se de “História Deuteronomista” a narração bíblica contida entre os livros de Deuteronômio e 1-2 Reis (excetuando Rute), que é interpretada principalmente à luz da teologia contida em seu primeiro livro: uma alternância entre períodos de salvação e redenção conforme o comportamento do povo hebreu, culminando com o desastre da destruição do Templo. Acredita-se que houve duas redações para essa história: original a terminar com queda do “idólatra” Reino de Israel no final do sétimo século a.C., que teria servido de propaganda ao supostamente virtuoso Reino de Judá, e uma posterior revisão feita após a conquista desse último pelos babilônicos. Para mais informações, vide [Lamadrid, cap. I].
[voltar]

(43) Cf. [Ehrman (2006), cap. IV, p. 121]. Bart D. Ehrman se tornou querido por certos apologistas espíritas após a publicação de O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (Misquoting Jesus no original). Esse autor é bom, de fato, só gostaria de saber como os espíritas se sairiam se eu o usasse contra eles. Afinal, ele está mais alinhado comigo do que com eles. De qualquer forma, esse princípio é amplamente aceito como ferramenta de crítica textual.

Contudo, algumas ressalvas devo fazer:

  • Quando se fala em “leitura mais difícil“, entenda-se “mais difícil para o escriba.“. É possível que a fórmula original não possuísse “e sobre os filhos dos filhos” e o escriba não estranhasse por já entender `al como “por, até” ou ele até estranhasse e por isso expandiu o texto. No primeiro primeiro caso, o texto ganhou cadência e no segundo uma suposta correção;
  • Há uma tendência dos textos a crescer, o que seria um ponto favorável ao texto mais curto de Ex 20:5. Porém;
  • Essa tendência se reverte, caso haja uma repetição de palavras que possibilite o olho escriba (ou a memória do narrador) “escorregar” – um fenômeno conhecido na crítica textual como parablepse – e ter pulado algumas palavras. A versão longa de Ex 34:7 preenche esse requisito.
  • Assim, devo admitir que outras possibilidades de reconstrução são possíveis. Preferi esta, também, por haver outro fator em prol do texto longo: a discrepância entre Dt 5:9 (TM) e Ex 20:5 (TM), com a presença de uma conjunção “e” no primeiro caso, sugerindo duas parablepses distintas para um mesmo original.

    Para uma exposição sucinta dos critérios de crítica textual, ver [Metzger, Introdução]. Quem desejar um estudo acadêmico que também aventa a hipótese de omissão de palavras em Ex 20:5, ver [Freedman & Overton, pp. 104-5].

[voltar]

(44) Lembrando que Jerônimo também se valeu de recensões do texto grego feitas por judeus constantes na Hexapla, como as de Áquila, Teódicio e Símaco. [voltar]

(45) O estranho é que, na página anterior, o autor traduz corretamente shilesh como “neto” ou “terceira geração”. Parece que se enxerga o que se quer ver.[voltar]

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Para Saber Mais


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Para Acessar

Aramaic Targum Search é mecanismo de busca de versículos de targumim, com análise léxica embutida, criado pelo Comprehensive Aramaic Lexicon Project do Hebrew Union College-Jewish Institute of Religion. Acessado em 04/02/2014.

Hebrew Lexicon contém a entrada completa para (`al) do léxico hebraico-caldeu de Genesius. Acessado em 10/07/2015.

Common Man’s Prospective, The traz uma tradução da Septuaginta para o inglês. Acessado em 04/02/2014.

Latin Vulgate traz a Vulgata de Jerônimo. Acessado em 04/02/2014.

Nova Vulgata é o atual texto litúrgico do Vaticano. Acessado em 04/02/204.

Pentateuchal Targumim traz traduções inglesas de alguns targumim do Pentateuco. Acessado em 04/02/2014.

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Uma História de Dois Equívocos

Leia as frase abaixo:

– “Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.”

– “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos2.”

São duas declarações extraídas do cap. IX, tópico “Os Cristãos”, de “
Analisando as Traduções Bíblicas, 4ª ed. A primeira está categoricamente errada. O origenismo já era rejeitado de pelo menos duzentos anos antes do fatídico quinto concílio. A segunda citação foi deixada propositadamente com o índice (2) que constava no original. Este número nada mais é do que a referência bibliográfica dada pelo autor Severino Celestino da Silva:

2. Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

Bem, o que realmente continha o texto da coletânea de Alberigo?

Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o Monge, ed. ch. De Boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos.

pág. 134

Curiosamente, o texto de [Alberigo] é contraditório. Dois parágrafos antes do texto acima:

Não sabemos, porém, com exatidão o que aconteceu durante o concílio. As atas do concílio se perderam. Temos somente uma tradução latina, e em duas versões diferentes. Parece que os originais se perderam em 1453, por ocasião da tomada de Constantinopla, pois em 1448, durante o concílio de Florença, ainda se fez uso deles (Gill S., Actorum Graecorum Conciliorum Concilii Florentini, Roma, 1953). De qualquer modo, sabemos que se realizaram oito sessões no secretum de Santa Sofia.

De fato, versões das atas do V concílio chegaram até nós e uma delas, inclusive, pode ser encontrada em inglês na bibliografia ao fim deste tópico. Porém, há algo interessante no primeiro extrato: “(…) o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos”, em contraste com o termo citado por Severino Celestino da Silva: “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos”. Parece pouca coisa, não fica claro aos mais desavisados a abismal diferença entre uma alegação categórica e uma dedução lógica representada pelo verbo “indicar” usado no texto original e cujas premissas estão envoltas por certa névoa. Isto é mais sério do que alguns apologistas espíritas gostariam de admitir. A coletânea de Alberigo não foi tão categórica assim no trato contra o origenismo, apesar de dar bons indícios. Se isso ainda não te convenceu da gravidade do mal uso de fontes bibliográficas em Analisando…, citemos alguns parágrafos anteriores de Alberigo:

Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as idéias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

págs. 130-131

Eis aí uma explicação mais correta para a primeira condenação do origenismo em 543 e os motivos pelos quais ele (talvez) voltou a ser comentado em 553. E o nome da imperatriz Teodora não é citado em nenhum instante. Muito menos as ditas 500 prostitutas! Severino Celestino da Silva teve acesso a uma melhor informação sobre as preliminares do V concílio. Mas preferiu a teoria conspiratória …. por quê? E mais:

Nesse contexto já complicado, um novo movimento – o origenismo – veio tornar a situação realmente insolúvel. É verdade que Orígenes fora condenado há muito tempo, mas sua irradiação intelectual nunca cessou, e seu misticismo exercia constante atração sobre os monges instruídos do deserto. Na realidade, o origenismo jamais desapareceu das zonas sírio-palestinenses. Era tolerado na medida em que não criava problemas. Ora, na efervescência provocada pelas decisões do concílio de Calcedônia, tudo estava envolto pela suspeita de heresia. Pelo final do séc. V, o origenismo reapareceu sob a forma de contestação contra a ortodoxia, contra o monofisismo e contra o nestorianismo. É claro que essa quarta via não tinha muitas possibilidades em contexto tão carregado como aquele.

Pág. 125

A própria referência de Severino Celestino da Silva o desmente quando diz que até o século VI a Igreja (i.e. a ortodoxia, não os dissidentes) acreditava na reencarnação. O origenismo já fora rejeitado de muito antes – como explanado acima – e recruscedeu como um fenômeno sírio-palestino, que estava mais ligado ao monacato local. O texto de Severino Celestino da Silva contém mais dois erros crassos. O primeiro é que o concílio não se deu 299 dias após a morte do teólogo, mas 299 anos! Poderia até ser um descuido de revisão, se esta não fosse a quarta edição do livro. O mesmo dado (299 “dias”) se encontra em um livro de sua bibliografia (O Livro Tibetano dos Mortos, W.Y. Evans-Wentz, Ed. Pensamento, p. 177). Talvez houve uma predileção por esta fonte errônea em vez de outra correta, porém menos chamativa. A definição de apocatástase também está errada. Ela era uma doutrina concebida por Orígenes que enfatizava o caráter sacrificial da morte de Cristo, resgate tão alto pago aos poderes do mal que levaria não só todas as criaturas à salvação. Ou seja, Orígenes era um universalista, mas fica patente que sua doutrina era essencialmente salvacionista. Uma consequência lógica deste princípio seria a salvação até do diabo, ideia que Orígenes parece ter rejeitado depois. José Reis Chaves, outra fonte de Analisando…, acerta mais nessa definição.

Teorias Conspiratórias a (des)Serviço da História

Há muitos boatos e meias-verdades espalhados quanto ao II Concílio de Constantinopla, que teria riscado a reencarnação da Bíblia. Um bem conhecido é:

Até agora, quase todos os historiadores da Igreja acreditaram que a doutrina da reencarnação foi declarada herética durante o Concilio de Constantinopla em 553. No entanto, a condenação da doutrina se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concilio. Segundo Procópio, a ambiciosa esposa de Justiniano, que, na realidade, era quem manejava o poder, era filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio. Ela iniciou sua rápida ascensão ao poder como cortesã. Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas “colegas” e, para não sofrer as consequências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconizava a lei do Carma, empenhou-se em abolir toda a magnífica doutrina da reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por “ordem divina”!

Em 543 d.C. o imperador Justiniano, sem levar em conta o ponto de vista papal, declarou guerra frontal aos ensinamentos de Orígenes, condenando-os através de um sínodo especial. Em suas obras De Principiis e Contra Celsum, Orígenes (185-235 d.C), o grande Padre da Igreja, tinha reconhecido, abertamente, a existência da alma antes do nascimento e sua dependência de ações passadas. Ele pensava que certas passagens do Novo Testamento poderiam ser explicadas somente à luz da reencarnação.

– Kersten, Holger; Jesus Viveu na Índia, Ed. Best Seller, 7ª ed., Cp. VI – “Considerações Finais”.

O engraçado é terem encontrado recentemente uma tumba atribuída a Jesus e Maria Madalena em Israel. Será que enterraram a cabeça em Jerusalém e as canelas na Índia? Bem, isto foge ao assunto, vamos a José Reis Chaves:

A Igreja teve alguns concílios tumultuados. Mas parece que o V Concílio de Constantinopla II (553) bateu o recorde em matéria de desordem e mesmo de desrespeito aos bispos e ao próprio Papa Virgílio, papa da época.

O imperador Justiniano tem seus méritos, inclusive o de ter construído a famosa Igreja de Santa Sofia, obra-prima da arte bizantina, hoje uma mesquita muçulmana.

Era um teólogo que queria saber mais que teologia do que o papa. Sua mulher, a imperatriz Teodora, foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra, que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarnacionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição, sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes.

Como a doutrina da reencarnação pressupõe a da preexistência do espírito, Justiniano e Teodora partiram, primeiro, para desestruturar a da preexistência, com o que estariam, automaticamente, desestruturando a da reencarnação.

Chaves, J.R.; A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VIII, 7ªed., Ed. Ebm

Agora, um texto extraído de Analisando as traduções bíblicas, de Severino Celestino da Silva, Editora Idéia, 4ª ed., cap XI:

Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina Cristã.
Devido a esta sua crença, 299 (duzentos e noventa e nove) dias, após sua morte, contra ele a igreja decretou a excomunhão. O segundo Concílio de Constantinopla, no ano de 553, decretou: “Todo aquele que defender a doutrina mística da preexistência da alma e a consequente assombrosa opinião de que ela retorna, seja anátema”[grifo do autor].

Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.

A história do II Concílio de Constantinopla teve marcante acontecimento com a figura do imperador Justiniano, um teólogo, que queria saber mais teologia do que o papa. Justiniano tentou reinserir os monofisistas no meio dos ortodoxos da Igreja, pois temia que os monofisistas, comandados por Severo de Antioquia, se afastassem e voltassem-se para a Pérsia. Organizou no palácio a primeira conferência entre ortodoxos e monofisistas, para a qual convidou seis ortodoxos e seis monofisistas tentando definir diferenças entre as doutrinas.

O papa, Vigílio, apesar de se encontrar em Constantinopla, recusou-se a participar do concílio convocado pelo imperador e tampouco se fez representar. O Concílio pressionado pelo imperador excomungou o papa. O papa Vigílio acabou reconhecendo o concílio em troca da suspensão de sua excomunhão.

A esposa de Justiniano chamada Teodora, teve muita influência nos assuntos do marido e até no que se referiu à teologia. Foi ela quem acomodou os monges egípcios e os clérigos siríacos nos vários palácios da capital e sobretudo no palácio Hormisdas, que se tornara o centro da propaganda monofisista.

Por ter sido uma prostituta, suas ex-colegas se sentiam orgulhosas e decantavam tal honra. Mas esse fato a revoltava e se constituía numa desonra, fazendo com que mandasse matar todas as quinhentas prostitutas de Constantinopla.

Os cristãos da época passaram a chamá-la de assassina e a dizer que ela deveria ser assassinada, quinhentas vezes, em vidas futuras. Este seria seu carma por ter mandado matar suas quinhentas ex-colegas prostitutas.
A partir daí, Teodora passou a odiar a doutrina da Reencarnação e como mandava e desmandava em meio-mundo através de seu marido, resolveu partir para a perseguição sem tréguas contra essa doutrina e contra maior defensor que era Orígenes.

O concílio tratou de duas questões básicas: o Monofisismo e o Origenismo. O Origenismo defendia a apocatástase do universo (revolução de um astro) e a Reencarnação. O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos.

Para começo de conversa, eu adoraria saber quais foram estes historiadores comentados por Kersten, em quais de suas obras está essa tese de reencarnação na igreja primitiva e em quais capítulos. O único historiador citado, Procópio, dá uma versão “ligeiramente” diferente dos fatos:

(…)Havia uma multidão de mulheres em Bizâncio que realizava em bordéis uma atividade de libertinagem, não por escolha própria, mas sob a força da luxúria. Visto que isto era mantido por cafetões, e as mulheres de tais casas eram obrigadas a toda e qualquer hora a praticar obscenidade e copular de imediato com desconhecidos à medida que apareciam, elas se submetiam aos seus abraços. Já que houvera um numeroso corpo de alcoviteiros na cidade desde os tempos antigos, conduzindo seu tráfico em licenciosidade nos bordéis e vendendo a juventude alheia no mercado público, reduzindo pessoas virtuosas à escravidão. Mas o imperador Justiniano e a Imperatriz Teodora, que sempre compartilhavam uma comum piedade em tudo que faziam, arquitetaram o seguinte plano. Limparam o estado de poluição dos bordéis, banindo o próprio nome dos cafetões e libertaram de uma licenciosidade adequada apenas a escravas as mulheres que estavam lutando com imensa pobreza, provendo-as com sustendo independente e liberando virtude. Isso ele conseguiram da seguinte forma. Próximo à margem do estreito que está à direita dos que navegam em direção ao mar chamado Euxino, eles transformaram o que fora anteriormente um palácio em um imponente mosteiro projetado para servir de refúgio a mulheres que se arrependessem de suas vidas anteriores, de forma que lá, através da ocupação que suas mentes teriam com Deus e com a religião, poderiam ser capazes de limpar os pecados de suas vidas no prostíbulo. Portanto, denominaram o domicílio de tais mulheres de ‘Arrependimento’, em adequação com seu propósito. E estes soberanos dotaram este convento com ampla soma em dinheiro e adicionaram várias construções, a maioria notável por sua beleza e suntuosidade, para servirem de consolo às mulheres, a fim de que nunca se sintam compelidas a se afastar da prática da virtude de uma forma ou de outra.(..)

Procópio, Das Construções (De Aedificiis), livro I, cap. IX.

E, agora, uma variação do mesmo tema:

Teodora também devotou considerável atenção ao castigo de mulheres flagradas em pecado carnal. Ela apanhou quinhentas prostitutas no Fórum, que lá auferiam uma vida miserável se vendendo por três óboles, e as enviou para a margem oposta [do Bósforo], onde foram trancadas no mosteiro chamado Arrependimento, para forçá-las a reformar seu estilo de vida. Algumas delas, porém, atiravam-se à noite dos parapeitos e assim se livravam de uma salvação indesejada.

Procópio, A História Secreta, (Anekdota), cap XVII, “Como Teodora salvou quinhentas prostitutas de uma vida de pecado.”

Os dois relatos de Procópio dão um tratamento radicalmente distinto ao casal imperial. Das Construções é uma propaganda estatal, cheia de elogios às realizações urbanísticas e arquitetônicas do governo de Justiniano. A História Secreta, por sua vez, macula a imagem deles o tempo todo, chegando ao ponto de considerar Justiniano, literalmente, um demônio encarnado (cap. XII). Comparando esses dois extratos, consta-se que Procópio muda o tom de um ato piedoso para uma deportação das prostitutas para fora da capital. Ao que parece, o mosteiro ex-palácio fora convertido numa “gaiola de ouro” para uma espécie de noviciado forçado e perpétuo. Algumas (note bem, algumas) preferiam a liberdade com insegurança àquela vida de beatas e morriam tentando escapar (ou se suicidavam, simplesmente). Nada diz que o mosteiro “Arrependimento” era uma usina de morte como o Auschwitz nazista, onde elas iriam esmagadoramente parar morrer. A não ser morrer de velhas.

Um importante historiador do iluminismo inglês – que, ao contrário dos historiógrafos espiritualistas acima, procurava sempre ler os originais – fez interessante fusão dessas duas passagens de Procópio, fornecendo um panorama intermediário do que pode ter ocorrido:

O nome de Teodora figura com igual distinção em todas as iniciativas piedosas e caritativas de Justiniano; as instituições mais benevolentes do seu reinado podem ser atribuídas à simpatia da imperatriz por suas irmãs menos afortunadas que haviam sido seduzidas ou compelidas a dedicar-se ao ramo da prostituição. Um palácio no lado asiático do Bósforo foi convertido num espaçoso e imponente mosteiro, e um generoso sustento, garantido a quinhentas mulheres recolhidas das ruas e bordéis de Constantinopla. Nesse retiro sacro e seguro, elas se devotavam a um perpétuo confinamento, e o desespero de algumas, que se precipitaram ao mar, foi calado pela gratidão das penitentes libertadas do pecado e da miséria por sua generosa benfeitora.

Edward Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, Cap. XV, Tradução de José Paulo Paes, Companhia das Letras.

Diga-se de passagem que Teodora não era flor que se cheirasse, sendo que tanto Procópio e Gibbon concordam que ela cometeu inúmeras crueldades. Procópio, porém, exagera demais nos ataques à imperatriz, a ponto descrever o voraz apetite sexual da imperatriz, quando solteira, de maneira pouco verossímil (cap. IX). De qualquer forma, nada indica que ela tenha cometido o crime que seria o pivô da condenação de Orígenes. Justiniano não era tão fantoche assim como foi alegado. Ele e Teodora tinham visões políticas diferentes em alguns pontos, sendo que ela advogava uma tolerância religiosa maior do que de seu fanático e intransigente marido, afinal era monofisista.

Outro cronista bizantino, João Malala, deu um curioso relato de uma tentativa de Teodora de erradicar a prostituição:

Naquela época, a piedosa Teodora acrescentou o seguinte a suas outras boas ações. Certos conhecidos cafetões percorriam cada distrito em busca que homens pobres que tivessem filhas e dando-lhes, dizia-se, sua palavra e alguns nomismata, levavam as garotas como se fosse um contrato; transformavam-nas em prostitutas públicas, vestindo-as como sua desventurada sorte exigia e recebendo delas, e miserável preço de seus corpos, forçavam-nas a ingressar na prostituição. Ela ordenou que todos os cafetões deveriam ser presos com urgência. Quando foram apresentados junto com as garotas, ordenou que cada um deles declarasse sob juramento o quanto haviam pagado aos pais das garotas. Disseram que deram a cada um cinco nomismata. Quando todos deram a informação sob juramento, a piedosa imperatriz devolveu o dinheiro e libertou as garotas do jugo de sua desgraçada escravidão, ordenando que a partir daí não houvesse cafetões. Presenteou as garotas com um conjunto de roupas e dispensou-as com um nomismata para cada.

João Malala; Crônicas, Livro XVIII, seção 24

Malala data seu relato em 532-3 d.C. e a partir de 534 começou a ser publicado um conjunto de leis conhecido como Novellae, cujo artigo primeiro do capítulo XIV traz uma condenação de morte aos que perpetrassem o tráfico humano e a cafetinagem, mas é compassivo com as prostitutas. É provável que a indenização relatada por Malala tenha fracassado, pois o dinheiro concedido à cada garota era pequeno demais para recomeçar a vida e dotação mais farta dos agenciadores deve ter servido para realimentar o tráfico humano (1). Uma hipótese aventada é que a construção de “Arrependimento” tenha sido parte dessa nova política social de acabar com a prostituição à força.

Notas:

(1) Cf. Evans, J. A; The Empress Theodora – Partner of Justinian, University of Texas Press, 2002, cap. III, p. 30-32.

Palingênese – colocando o carro na frente dos bois!

Carro na frente do boi

– Se o verbete é este, então vou escolher o sentido que mais me agrada.
– Acho que está fazendo isso errado…

Uma tradução controvertida que Severino da Silva faz de Tito 3:4-5 em seu Analisando as Traduções Bíblicas, cap. XVII:

Paulo, em sua epístola a Tito 3:4-5, interpreta bem esta citação do Cristo: ‘Mas quando apareceu a vontade de Deus, nosso salvador; e seu amor para com os homens, não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório da reencarnação, e pelo renascimento de um espírito santo’.

Aqui, Paulo deixa bem claro que Deus nos salvou não porque o tivéssemos merecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da reencarnação a qual é um ‘lavatório’ (de água) e um ‘renascimento do espírito’. A palavra grega do texto a que se refere Paulo é παλιγγενεσιας ‘Palingenesia’ – isto é, ‘renascimento’, ‘Novo Nascimento’, REENCARNAÇÃO. [grifos do autor]

É um argumento até bem organizado, mas que, visto de perto, revela sérias rachaduras. Em primeiro lugar, se uma das máximas espíritas é “fora da caridade não há salvação”, então como essa passagem afirma que as obras têm pouco valor na misericórdia divina? E, segundo, o mais interessante ainda aparece nos versículos seguintes:

que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador a fim de que, justificados por graça [misericórdia], nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras. Estas coisas são excelentes e proveitosas aos homens.

Tito 3:6-8

Ele até diz que devemos ser “solícitos na prática de boas obras”, mas o que salta aos olhos é “somos justificados por graça”. Severino Celestino da Silva forçou a barra da reencarnação em um texto salvacionista! Analisou uma palavra e desviou a atenção do leitor para fora do contexto (1).

E quanto ao sentido de Palingenesia? De fato, há registros dela com o uso de “reencarnação” na filosofia grega(2), mas seria esse o único uso que lhe era dado? Quem define o significado de uma palavra é quem a usa, não os dicionários, que apenas registram suas diversas acepções. O panorama, seja do texto ou social, é o que nos dá noção do real significado, do contrário temos uma inversão de raciocínio: em vez de analisar o texto para determinar se a realidade dos primeiros leitores possibilitava a presença da reencarnação em seu credo e a partir daí traduzir conforme seus conceitos, arbitra-se a existência dela no credo e a tradução é feita conforme tal prejulgamento.

Portanto, passemos à análise dos diversos valores que “palingenesia” pode assumir. Ela só aparece mais uma vez na Bíblia:

E Jesus disse-lhes: Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando, na regeneração [εν τη παλιγγενεσια], o Filho do homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel.

Mt 19:28

O versículo se relaciona diretamente com o sentido escatológico do fim dos tempos. Este sentido escatológico aparece também na literatura pagã, em especial entre os filósofos estoicos. Fazia parte da doutrina dessa corrente, entre outras coisas, a crença em diversos ciclos nos quais o universo seria renovado. Assim escreveu o imperador romano Marco Aurélio em suas Meditações, livro XI, 1

E além disso, ela [a alma racional] percorre todo o universo e o vácuo circundante, e analisa sua forma, e se estende para o infinito de tempo, e abarca e compreende a periódica renovação [περιοδικην παλιγγενεσιαν] do universo, e entende que os que virão após nós não verão nada novo, nem os que vieram antes viram algo mais, mas de certo modo, o quarentão, ainda que não tenha discernimento, viu tudo o que foi e o que será, em virtude da similaridade das coisas.

Sentido escatológico similar é o que deve ser entendido em (Mt. 19:28). Em outras partes não bíblicas da literatura judaico-cristã é possível “palingenesia” significando “regeneração”, “restauração”:

Agora que Zorobadel obtivera estas concessões do rei, ele saiu do palácio e, olhando para o céu, começou a render graças a Deus pela sabedoria que lhe dera e a vitória que tivera com isso, mesmo na presença do próprio Dario; visto que, disse ele,”Eu não tinha me julgado merecedor destas vantagens, ó Senhor, a menos que tivesses sido favorável a mim“. Então, quando já agradecera a Deus pelas presentes circunstâncias em que se achava e orara para que ele lhe proporcionasse como um favor o tempo vindouro, voltou para Babilônia e trouxe as boas novas sobre as concessões que conseguira do rei a seus compatriotas; que, assim que ouviram o mesmo, também deram graças a Deus que mais uma vez restaurou a eles a terra de seus antepassados. Então puseram-se a beber e comer, e por sete dias continuaram festejando, e mantiveram uma celebração pela reconstrução e restauração de seu país [καὶ παλιγγενεσιαν της πατρίδος εορταζοντες].

Extraído de Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas X, cap. III, parágrafo 9. Uma passagem que relata o fim do cativeiro de Babilônia e retorno dos judeus a sua terra, após a tomada deste reino pelos persas de Dario. Fontes grego-latinas disponíveis em Antiquitates Judaicae.

Outro exemplo de uso “macro” da palingênese se encontra em um texto atribuído (talvez pseudonimamente) ao terceiro bispo de Roma, na virada do primeiro século d.C. para o segundo, e endereçado à Igreja de Corinto a fim de resolver uma desavença local. Em certa altura, seu autor aplica essa palavra para se referir uma das metas da missão de Noé.

Portanto, vamos render graças a Sua excelsa e gloriosa vontade; e implorando Sua misericórdia e bondade amorosa, enquanto deixamos todas as tarefas infrutíferas, e disputa, e inveja que leva a morte, vamos nos voltar a Sua compaixão e se valer dela. Vamos contemplar continuamente os que ministraram perfeitamente para Sua excelsa glória. Tomemos (por exemplo) Enoque, que, sendo reconhecido virtuoso em obediência, foi arrebatado e nunca foi sua morte registrada. Noé, sendo reconhecido fiel, pregou a regeneração (παλιγγενεσιαν) do mundo através de seu ministério; e o Senhor salvou através dele os animais que, harmoniosamente, entraram na arca.

I Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, cap. IX

Não só o universo, o mundo ou nações podem sofrer um processo de “palingenesia”. Pessoas também podem sofrê-lo e ainda em vida. Diz-nos isso o político e orador romano Cícero, em sua coletânea de cartas a seu amigo Ático, mais especificamente na carta 6 do livro VI:

Amicorum litterae me ad triumphum vocant, rem a nobis, ut ego arbitror, propter hanc palingenesian nostram non neglegendam. Qua re tu quoque, mi Attice, incipe id cupere quo nos minus inepti videamur.

As cartas de meus amigos me convidam ao triunfo, uma coisa, em minha opinião, que não devo negligenciar em vista de minha restauração, Por isso, meu [caro] Ático, que tu também comeces a desejá-lo para que eu pareça menos tolo (3).

As circunstâncias da carta representam o fim do proconsulado de Cícero na província da Cilícia, ao sul da atual Turquia. Fora a contragosto devido a um sistema de sorteio entre os magistrados e governou de 51 a 50 a.C., tendo se preparado para possível invasão dos partas (que acabou ocorrendo na Síria, mas foram repelidos) e feito pequena campanha contra tribos ainda hostis [Ferrero]. Aparenta ter feito bom governo, ainda mais quando comparado com a rapinagem praticada pelos demais governadores romanos. Foi-lhe decretado um triunfo por suas vitórias na ocasião de seu retorno à Itália. Cícero considerou seu retorno triunfal uma nova fase de sua vida, adotando a palavra “palingenesia” para defini-la e traduzida por certo erudito inglês como “nova etapa da vida”. Essa “palingenesia” para encarnados é a que melhor define a ideia contida em Tito 3:5, especialmente pela mudança de comportamento apresentada nos versículos que antecedem:

Lembra-lhes que devem ser submissos aos magistrados e às autoridades, que devem ser obedientes e estar sempre prontos para qualquer trabalho honesto, que não devem difamar a ninguém, nem andar brigando, mas sejam cavalheiros e delicados para com todos. Porque também nós antigamente éramos insensatos, desobedientes, extraviados, escravos de toda sorte de paixões e de prazeres, vivendo em malícias e inveja, odiosos e odiando uns aos outros.

Confrontando 3:1-3 com 3:6-8, fica claro que, para o autor de Tito, a mudança foi operada externamente por meio da graça. Se a plateia é composta de um grupo de prosélitos (o mais comum num cristianismo nascente), pouco sentido faz falar em reencarnação, pois experimentaram a mudança em vida. Aqui, o sentido de “palingenesia” está mais para o de Cícero que o de Platão, e mais conforme com a pregação paulina.

Por fim, passemos a um exemplo em que “lavagem” e “palingênese” caminham juntos para uma renovação em vida, desta vez por um texto do apologista cristão Teófilo de Antioquia (ca. 180 d.C.) em que ele rebate as acusações de um suposto pagão (4).

No quinto dia foram criados os animais que procedem das águas, pelas quais e nas quais se mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem seria capaz de enumerar sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas espécies? Além disso, o que foi criado das águas por Deus foi abençoado por ele, para que isso servisse de prova sobre o que os homens deveriam receber: penitência e remissão dos pecados através da água e banho de regeneração [λουτρου παλιγγενεσιας], todos os que se aproximam da verdade, renascem e recebem a bênção de Deus.

II Livro a Autólico, cap. XVI. Texto grego em Patrologia Graeca, Migne, Vol. VI, col. 1.078

Ou seja, por meio do batismo.

Talvez haja um fenômeno que já ocorreu antes, na transição do judaísmo para o cristianismo: a releitura. Passagens de um tipo de exegese estão sendo remodeladas para outra. Quando os tradutores da LXX usaram a palavra “parthenos” em Is 7:14 : “a jovem conceberá um filho”, eles usaram uma palavra que podia abarcar pelo menos três sentidos: “virgem”, “menina” e “mulher jovem”. Com observou Geza Vermes, o judaísmo do Segundo Templo possuía uma grande fluidez em seu conceito de “virgindade”: inexperiência sexual, ser ainda impúbere, ter concebido e dado filhos sem menstruação anterior, e o estado de pós-menopausa de da esposa de Abraão, como uma mulher que se tornara virgem pela segunda vez (segundo Filo de Alexandria). O que o cristianismo fez foi adotar seu sentido estrito e desprezar todas as demais possibilidades. Coisa que os espíritas estão fazendo novamente com “palingenesia”.

Notas

(1) Ficou um tanto ambíguo o uso da palavra “lavatório”. No original grego, lê-se loutron: “lavagem, banho” (λουτρον declinada para λουτρου, em genitivo-ablativo). “Lavatório” pode ter esse sentido em português, embora também possa significar “instrumento com que se lava”, “pia” (λουτηρ). O “local onde se lava” seria λουτρων (cujo gen-abl é λουτρωνος).

(2) Plutarco, em Sobre o Consumo de Carne, faz uma defesa apaixonada do vegetarianismo. Um dos argumentos expostos seria a possibilidade reencarnar em corpos animais, conforme algumas escolas apregoavam (ex.: pitagóricos):

No entanto, se alguém porventura demonstrar que as almas em seus renascimentos [παλιγγενεσιαις] fazem uso de corpos comuns e que o que é agora racional reverte para o irracional , e, de novo, o que é agora selvagem se torna-se doméstico, e que a Natureza muda tudo e atribui novas moradas, não irá isso deter o componente indisciplinado naqueles que adotaram a doutrina em razão da implantação de doenças e da indigestão em nossos corpos e pervertendo as nossas almas a uma ilegalidade ainda vez mais cruel, assim que são alijadas do hábito de não divertir um convidado ou celebrar um casamento ou se reunir a nossos amigos sem derramamento de sangue e assassinato?

Sç 998c

Platão, por sua vez, não utilizou essa palavra em seus escritos. Em vez disso, valeu-se da expressão similar “palin gignesthai”:

Dizem eles pois que a alma do homem é imortal, e que ora chega ao fim e eis aí o que se chama morrer, e ora nasce de novo [παλιν γιγνεσθαι], mas que ela não é jamais aniquilada. É preciso, por causa disso, viver da maneira mais pia possível.

Menão (ou Mênon), Sç 81b

Curiosamente, Platão tem um uso consistente do verbo αναβιοω no sentido de “reanimar”, “ressuscitar”, tal qual o escritor judeu Flávio Josefo.

(3) Na tradução foram desfeitos os plurais de modéstia comuns na pena de Cícero.

(4) Atólico pode não ter sido uma pessoa real, mas um personagem a representar todas as críticas dos pagão da época.

Para saber mais

– Ferrero, Guglielmo; Grandeza e Decadência de Roma, vol. II, Globo, 1ª ed., 1963, caps. IX – XI, p. 147-187.

– Liddell, Henry George & Scott, Robert; A Greek-English Lexicon, παλιγγενεσια, versão eletrônica de Perseus Digital Library.

– Teófilo de Antioquia, Livro a Autólico, Coleção Patrística, Vol II – Padres Apologistas, Ed. Paulus.

– Vermes, Geza; As Várias Faces de Jesus, Record, 1ª ed., 2006, cap. VI, p. 252-254

Orígenes

A Igreja Católica aceitava a reencarnação até o ano 553 da nossa era (…) Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina cristã.

– Severino Celestino da Silva, Analisando as traduções bíblicas, cap. IX

Com estas palavras, Severino Celestino da Silva abre o tópico Os Cristãos daquele capítulo. Note que é a “Igreja Católica” a que ele se refere, não se está fazendo nenhuma menção grupos gnósticos, seitas sincréticas, heresias, etc. Bem, se a “ortodoxia” que daria origem ao catolicismo moderno já defendera a reencarnação até aquela data, nada mais natural que encontrássemos referências simpáticas a ela nos escritos de seus primeiros teólogos. Mas será?

O teólogo cristão do século III Orígenes, mencionado acima, não desconhecia tal doutrina, nem a metempsicose professadas por seitas orientais, mas não as aprovava. Dou aqui algumas pinceladas em obras de Orígenes que rejeitam a transmigração das almas em moldes pitagóricos e até modernos. Orígenes terá um tratamento à parte posteriormente, pois poucos Padres da Igreja têm sido tão mal citados como ele.

[As escrituras dizem] Eles então lhe perguntaram: “Quem és, então? Elias?” e ele disse: “Não sou” (Jo, 1:21). Não se pode deixar de lembrar a conexão disso com o que Jesus disse a respeito de Elias: “Se quiserdes dar crédito, ele é o Elias que deve vir“. (Mt 11:14). Como então João replica aos que lhe perguntaram: “És tu Elias?“Não sou“. (… ) Pode-se dizer que João não sabia que era Elias. Esta será a explicação para aqueles que encontraram nessa passagem sustentação para sua doutrina de transmigração, como se a alma fosse revestida em novo corpo e também não lembrasse das vidas anteriores (…) Entretanto, um membro da Igreja, que rejeita a doutrina da transmigração como falsa e não admite que a alma de João fosse a de Elias, pode se referir às palavras do anjo supracitadas e assinalar que não é a alma de Elias que é dita ao nascimento de João, mas o espírito e poder de Elias.

Comentário sobre o Evangelho de João, livro VI, cap VII

Quanto aos espíritos dos profetas, esses são dados por Deus e são considerados como, de certo modo, propriedades deles, como “Os espíritos dos profetas estão submissos aos profetas” (I Cor 14:32) e o “Espírito de Elias repousou sobre Eliseu” (2 Reis 2:15). Assim, diz-se, não há nada de absurdo supor que João, “no espírito e poder de Elias“, converteu o coração dos pais para os filhos (Lc 1:17) e foi por causa desse espírito que foi chamado de “o Elias que deve vir“.

Idem.

Se a doutrina [da transmigração] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.

Idem.

Alguém pode dizer, porém, que Herodes e parte da população mantinham o falso dogma da transmigração de almas para os corpos, com a consequência de que eles pensassem que o antigo João apareceu outra vez devido a um novo nascimento e tinha vindo da morte para a vida como Jesus. Mas o tempo entre o nascimento de João e o de Jesus, que não foi mais que seis meses, não permite se dar crédito a esta falsa opinião. E talvez fosse melhor que outra ideia estivesse na mente de Herodes – os poderes que operaram com João tivessem passado para Jesus – fazendo que ele fosse visto pelo povo como João Batista. E pode-se usar a seguinte linha de raciocínio: apenas por causa do espírito e poder de Elias, não pela alma dele, que se diz de João: “Este é o Elias que deve vir“.

Comentário sobre Mateus, livro X, cap XX

Nesse ponto [a dentificação de João Batista com Elias em Mt 17:10-13], não me parece que se falava da alma de Elias, para que eu não caia na doutrina da transmigração, que é estranha à Igreja de Deus, não sendo ensinada pelos apóstolos, nem encontrada nas escrituras.

Comentário sobre Mateus Livro XIII, cap I

Mas se necessariamente os gregos, que introduziram a doutrina da transmigração, ajustando as coisas em harmonia com ela, não reconhecem que o mundo está se corrompendo; é adequado, que quando eles encararem diretamente a escritura, que declara de modo franco que o mundo perecerá, devem ou desacreditá-las ou inventar uma série de argumentos a respeito da interpretação das coisas referentes à consumação; que mesmo que desejem, não serão capazes de fazer.

Idem

Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de nossas Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo moral, explicada não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais elevada. Teria visto, ao contrário, uma descida extraordinária devido a um excesso de amor aos homens, visando reconduzir, conforme a expressão misteriosa da divina Escritura, “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15:24), que desceram das montanhas, e para as quais o pastor de certas parábolas “desceu”, deixando nas montanhas as que não se tinham perdido (Mt 18:12-13, Lc 15:4s).

Contra Celsus, IV, 17

Entretanto, não admitimos, de modo algum, a metensomatose da alma nem sua queda em animais irracionais, e se por vezes nos abstemos de carne de animais, evidentemente não é pelo mesmo motivo de Pitágoras que nos privaremos dela. Pois sabemos honrar somente a alma racional e confiar com honra seu órgãos a uma sepultura honrada conforme os costumes estabelecidos.

Contra Celsus, VIII, 30

O assunto encerra uma profunda doutrina mística à qual se aplicam as palavras: “É bom manter o oculto o segredo do rei” (Tb 12, 7). Não devemos expor aos ouvidos profanos a doutrina sobre a entrada das almas no corpo que não se dá por metensomatose; não devemos dar aos cães as coisas sagradas, nem lançar as pérolas aos porcos (cf. Mt 7,6).

Contra Celsus, V, 29 – Note que ele rejeita a mudança da alma de um corpo para outro (metensomatose), mas sugere admitir sua pré-existência (entrada no corpo).

O desconhecimento das citadas obras de Orígenes tem levado a uma série de equívocos facilmente evitáveis por parte de apologistas espiritualistas. Léon Denis expõe nas notas num. 4 de seu “Cristianismo e Espiritismo” apenas a parte que lhe interessava de Orígenes, ele poderia ter dado o exemplo e não ter escondido fatos: Cita um resumo do abade Bérault-Bereastel sobre Orígenes que, de cara, erra ao afirmar que “as almas foram criadas simples, livres, ingênuas e inocentes por sua própria ignorância”, de estilo semelhante ao proposto pelos espíritas, em vez de racionais. Também não inclui as explanações do livro III de De Principiis, que privilegiam a pré-existência das almas em vez de reencarnação, nem faz menção a obras posteriores do teólogo alexandrino (Comentários sobre Mateus, João, Contra Celsus) que rejeitam a interpretação que ele quer. Já no século XX, certo autor fez uma curiosa citação:

Ele [Orígenes] chegou a tecer judiciosas ponderações sobre certos trechos da Escritura (…) que não teriam sentido sem admitir a preexistência da alma: “Se o nosso destino atual não era determinado pelas obras de nossas existências passadas, o que dizer de um Deus justo permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes de haver cometido atos que merecessem a servidão e o ódio? Só as nossas vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó e Esaú antes do seu nascimento, a eleição de Jeremias quando ainda estava no seio da mãe … e tantos outros fatos que atirarão o descrédito sobre a Justiça Divina, se não forem justificados ou praticados pelos atos bons ou maus cometidos em existências passadas” (Contra Celso, I, III, cit. por Mário C. Mello, em Como os Teólogos Refutam, pg. 153).

Andrade, Jayme; O Espiritismo e as Igreja Reformadas, editora EME, 4ª ed., cap. VII, parte 3

Tal citação não existe em Contra Celso, livro I, cap. III. Uma menção à superioridade de Jacó em relação a Esaú ainda no útero é encontrada em De Pricipiis, livro II, cap. IX. O texto real de Contra Celsus é:

Depois disto, Celsus prosseguindo a falar dos cristãos ensinando e praticando suas doutrinas favoritas em segredo e dizendo que eles fazem isto para, com alguma intenção, ver se escapam de uma pena de morte que é iminente; ele compara seus perigos com aqueles encontrados por homens tais como Sócrates pelo amor à filosofia; e aqui ele poderia ter citado Pitágoras também e outros filósofos. Mas nossa resposta com relação a isto é que, no caso de Sócrates, os atenienses se arrependeram imediatamente depois e nenhum sentimento de amargor permaneceu em suas mentes com relação a ele, bem como ocorreu na história de Pitágoras. Os seguidores do último, de fato, estabeleceram por um tempo considerável suas escolas numa parte da Itália chamada Magna Grécia; mas no caso dos cristãos, o Senado Romano, e o príncipe do momento, e a soldadesca, e o povo, e os parentes dos que se tornaram conversos à fé fazem guerra contra sua doutrina e teriam impedido seu (progresso), sobrepujando-a com uma aliança de natureza tão poderosa que, não fosse pela ajuda de Deus, não teria escapado do perigo e se erguido acima dele, a fim de (finalmente) derrotar o mundo em sua conspiração contra ela.

Orígenes, Contra Celsus, I,III

É um capítulo curto e não há nenhuma referência a Esaú e Jacó nele. A questão destes filhos de Rebeca é recorrente nas discussões entre ortodoxos e reencarnacionistas, porém a chave dela pode estar além de qualquer teologia. Numa visão laica, a diferença de tratamento entre estes dois gêmeos pode ser, na verdade, parte do mito nacional da criação de Israel e seus vizinhos, contidos na Gênese:

Deus diz a Rebeca, então grávida: “Duas nações estão em teu útero, e dos dois povos, nascidos de ti, serão divididos; um será mais forte que o outro, o mais velho deverá servir ao mais moço.” (Gen 25:23). Como os eventos se desenrolaram, aprendemos que Esaú é o mais velho e Jacó, o mais moço. Portanto a descrição dos dois irmãos fundadores de Edom e Israel, serve como legitimação para uma relação política entre duas nações nos tempos posteriores da monarquia. Jacó-Israel é sensível e educado, enquanto Esaú-Edom é bem primitivo, um caçador e um homem ao ar livre. Mas Edom não existe como entidade política até um período relativamente tardio.(…) A evidência arqueológica também é clara: a primeira onda de assentamento em larga escala em Edom, acompanhada pelo estabelecimento de grandes povoações e fortalezas, pode ter começado no final do século VIII a.C., mas alcançou o ápice apenas no século VII e no início do século VI a.C. Antes, portanto, a área era pouco povoada. (…) Assim, aqui também as histórias de Jacó e Esaú – filho delicado e poderoso caçador – são habilmente construídas como lendas arcaizantes, para refletir as rivalidades dos tempos monárquicos posteriores.

Finkelstein, Israel & Silberman, Neil Aser; A Bíblia não tinha razão, Ed. A Girafa, cap. I

Este “erro de citação” é até uma falha “menor”, digamos assim. Porém demonstra claramente que nem Andrade, nem sua fonte (Mello) se deram ao trabalho de ler Orígenes diretamente.

Agora, só para constar:

Orígenes é conhecido como um dos maiores sábios cristãos de todos os tempos. Foi praticamente o criador de nossa teologia cristã. E, como apenas 17 anos, foi reitor da Universidade de Alexandria, em substituição a São Clemente de Alexandria. E diga-se, de passagem, que Alexandria foi o maior centro intelectual do mundo, na época de Orígenes, século 3º.

José Reis Chaves, A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VI, 7ª ed., p. 203.

Se formos conferir o que nos diz o principal biógrafo de Orígenes, leremos algo um tanto diferente:

Orígenes ia completar dezoito anos quando foi posto à frete da escola catequética, momento em que, sob a perseguição do governador de Alexandria Aquila, realizava grandes progressos. Foi então também que seu nome se fez famoso entre todos a quem movia a fé, pela acolhida e solicitude que mostrava para com todos os santos mártires conhecidos e desconhecidos. [grifo meu]

Eusébio de Cesareia, A História Eclesiástica, VI, cap. 3, item 3

Não é demérito nenhum um garoto ser posto no comando de um cargo importante na comunidade cristã de então – a escola catequética. Indica que era reconhecido como um mestre pelos seus. Mas convenhamos que é uma posição bem mais modesta do que ser o reitor da pagã Universidade de Alexandria, que cobria uma gama bem maior de interesses e gente.

Justino, o Mártir

Em um texto de José Reis Chaves, em A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VI, 7ª ed., p. 213:

São Justino, mártir, autor de Apologia da Religião Cristã, também faz parte da lista de santos reencarnacionistas e sábios do cristianismo primitivo. Segundo ele, “a alma habita corpos sucessivos, perdendo a memória das vidas passadas” (16)

e na nota de rodapé:

(16)A Reencarnação e a Lei do Carma, pág. 46, William Walker Atkinson, Editora Pensamento, São Paulo, SP.

O livro de Atkison realmente tem essa frase na página referida, só que não dá indicação nenhuma de que obra de Justino ela saiu. O fio da meada estaria perdido, seu eu não a conhecesse de antes do livro de Geddes MacGregor, Reincarnation in Christianity, Ed. A Quest Book, cap. III:

According to de Dialogue with Trypho, he taught that human souls inhabit more than one body in the course of their earthly pilgrimage(13)

Que é quase uma versão inglesa do que traz Chaves. A nota 13 fornece:

Dial. IV P.G. 6, cols. 481-484.

Isto é: “Diálogo com Trifão, cap IV”. Bem finalmente alguma referência mais precisa. Encontrei outra fonte, agora online, que cita Justino

Near Death – Reincarnation and the Church

“E o que sofrem aqueles que são considerados indignos deste espetáculo?”, disse ele?

“Eles são aprisionados no corpo de certos animais selvagens e esta é a punição deles.”

Aliás, o portal Near Death é perito em fazer citações mutiladas, vide o link:

Modern Misrepresentation of Quotes by Origen

Por outro lado, Near Death fez a caridade de disponibilizar um link para Diálogos com Trifão: http://www.earlychristianwritings.com/text/justinmartyr-dialoguetrypho.html, que no cap. IV:

“(…) Responda-me, porém, a isto: a alma vê [Deus] enquanto no corpo, ou depois de ter sido retirada dele?”

“Enquanto na forma de um homem, é possível para ela”, continuei, “alcançar isto por meio da mente; mas especialmente quando ela foi posta livre do corpo e estando livre por si mesma, ganha posse do que estava habituada a amar contínua e plenamente.”

” Ela lembra disto [a visão de Deus], então, quando está novamente no homem?”

“Parece-me que não”, disse eu.

“Qual a vantagem, então, de eles terem visto[Deus]? Ou tem o homem que viu mais do que aquele que não viu, a menos que ele se lembre do fato que viu?”

“Não sei dizer”, respondi.

“E o que sofrem aqueles que são considerados indignos deste espetáculo?”, disse ele?

“Eles são aprisionados no corpo de certos animais selvagens e esta é a punição deles.”

“Sabem eles, então, que é por esta razão que eles se encontram em tais formas e que eles cometeram algum pecado?”

“Acho que não”

“Então este não colhem nenhuma vantagem de sua punição, ao que parece: além disso, eu diria que eles não estão sendo punidos a menos que tenham consciência do castigo.”

“De fato, não”

“Portanto as almas [ψυχαι] nem vêem Deus, nem transmigram de um corpo para outro, visto que elas saberiam porque estão sendo punidas e teriam depois medo de cometer mesmo o mais trivial pecado. Mas que elas percebem que Deus existe e que justiça e piedade são honrosas, eu também concordo contigo”, disse ele.

“Tens razão”, repliquei.

Justino (100 d.C? – 165), o Mártir, Diálogo com Trifão, cap IV.

Aí que está, em Diálogo…, do capitulo III ao VII, Justino narra a história de sua conversão ao cristianismo, graças a uma conversa que teve com um idoso cristão. Ao citar essa passagem, Gregor e Near Death (e, por tabela, J.R. Chaves) pegam palavras de quando, na altura da narrativa, Justino ainda era pagão e, portanto, crente em algum tipo de reencarnação. Você pode até achar os argumentos do veterano cristão fracos, visto que segundo o espiritismo certo inatismo persiste, mas não é o ponto aqui: houve um caso que anglófonos chamariam de misquotation: fragmentos escolhidos a dedo para serem usados como “prova” da opinião de certo autor, mas que no contexto original tinham um significado totalmente diferente. Este Pai da Igreja também é citado por Severino Celestino da Silva como alguém tido por defensor de “maneira limitada” da transmigração das almas (Analisando as Traduções Bíblicas, cap. XVII).

Para saber mais

– Mártir, Justino; Προς Τρυφωνα Ιουδιον Διαλογος, edição grega de Diálogos com o Judeus Trifão. Acessado em 10/08/2017.

_________________; Dialogue with Trypho, tradução em língua inglesa já de domínio público do portal Early Christian Writings, muito usada por autores anglófonos. Acessado em 10/08/2017

– Patrística, Padres Apostólicos, vol I, Paulus, 1995. Contém tradução para o português de Diálogos…

Traduções Bíblicas: escolha uma!

Traduções Bíblicas

Índice

Apresentação


Na busca de textos de maior “autoridade”, procura-se sempre promover sua base escrita e demolir a do adversário. A perda dos manuscritos originais joga uma verdadeira névoa sobre como foi a redação original e seu verdadeiros e profundo significado. Mudanças, acréscimos e mutilações pios, erros de transcrição são fatos presentes neste verdadeiro processo de investigação que é a reconstituição. Um subproduto desta pesquisa é a desconstrução de verdadeiros mitos que permeiam o imaginário de exegetas de plantão. A saber:

  • Somente a Bíblia hebraica é fiel ao original. O resto está sujeito a erros de traduções de deturpações;

  • A Septuaginta (LXX) é uma tradução mal feita, mutilada e corrompida do texto hebraico. Ou seja, um lixo;

  • A vulgata é uma tradução de tradução, portanto é pior ainda;

  • Da Vetus Latina, nem se fala.

Para começo de conversa, seria mais correto usar o termo “versão” no lugar de tradução, pois nem sempre um livro é uma tradução pura e simples de outro. Ao contrário do que muitos pensam, A LXX não é uma tradução do texto hebraico que conhecemos, nem a Vulgata é uma tradução dela. Bem, vamos por partes.

[topo]

Original, mas nem Tanto


Todos os textos hebraicos modernos se baseiam em um trabalho iniciado após a destruição do templo de Jerusalém e continuado ao longo da Idade Média por sábios judeus conhecidos por “massoretas”, daí o nome “texto massorético” (TM). Fizeram a tarefa de fixar o texto consonantal existente em diversos manuscritos (as vogais não são grafadas) e adicionar um sistema de pontuações e acentos sobre as letras para indicar a pronúncia que, até então, era passada pela tradição oral. Tem grande autoridade, mas não é possível precisar até que ponto são fiéis a um suposto texto original. Já no século II d.C, existiam diferenças entre vários manuscritos, além erros de copistas ou modificações de amanuenses (cf. [Barrera, IV.1, p. 439ss]). A maioria, porém, são fragmentos de dimensões reduzidas que tinham escapado a um processo de fixação já em andamento. Um complicador a mais para os pesquisadores é o antigo hábito as comunidades judias de queimar ou enterrar seus manuscritos velhos assim que chegavam cópias novas. Como resultado, faltam manuscritos de grande porte dos mais antigos. O mais velho dos manuscritos em que se baseiam a maioria das bíblias impressas modernas é o códice de S.Petersburgo, do século X, distando cerca de 1500 anos de seus supostos originais. Como manuscritos recentes podem preservar textos antigos fielmente e levando em conta que o trabalho dos massoretas foi bem metódico, mais o fato de a fixação do texto consonantal ser bem mais antiga que a do vocálico, pode-se retroceder a tradição destes sábios a até 500 anos após a redação da maioria do Antigo Testamento (AT). Antes disto, havia a possibilidade de flutuação no texto, suspeita confirmada pela descoberta dos Manuscritos do Mar Morto (Qumran). Antes deles, as únicas evidências de grande porte que se tinha de modificações do texto hebraico pré-massorético eram o pentateuco samaritano (PS) e a LXX que eram vistos com certa ressalva por serem testemunhos indiretos, quer na datação recente das cópias do PS ou no fato da língua ser diferente na LXX (o grego). Com Qumran, foi patente que houve uma evolução do cânon. Por exemplo, O livro de Jeremias é cerca treze por cento menor que o do TM. Fato parecido ocorre na LXX. O Pentateuco, apesar de sua grande estabilidade textual, permite disparidade grandes como Dt32,43. Este trecho é mais breve que o da LXX, mas o manuscrito qumrânico 4QDtq conserva o texto mais amplo, refletindo a versão grega:

TM LXX/4QDtq
Aclamai, nações,
a seu povo,

porque ele vingará o sangue
seus servos
devolverá a vingança
contra seus adversários,
aos que o odeiam,

e expiará
por sua terra,
seu povo

Aclamai, céus,
a seu povo,
e fazei cair diante dele todos os deuses
porque ele vingará o sangue
de seus filhos,
devolverá a vingança
contra seus adversários

e lhes dará o troco,
e expiará
pela terra de
seu povo

Fonte [Barrera, IV.1, p.448]

Disparidades antes tidas como má tradução ou adulteração proposital se tornaram apenas indício de fontes distintas. Vale lembrar, porém, que nem sempre Qumran destoa do TM, muito pelo contrário, indica muitas vezes fixação adiantada do texto.

Em resumo: o TM está escrito na mesma língua do original. Só que não podemos dizer com precisão o quanto ele tem do original.

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Qumran: a Encruzilhada das Versões


Na antiga biblioteca da comunidade essênia de Qumran foi encontrada uma multitude de manuscritos de liturgia comunal, comentários, literatura apocalíptica e a mais antiga coletânea de texto hebraicos da Bíblia, antecedendo em cerca de um milênio os melhores manuscritos massoréticos. Esta descoberta (1947) revelou uma pluralidade de textos no período intertestamentário que já era suspeitada antes de sua descoberta. Na antiga comunidade do Mar Morto, tradições textuais distintas coexistiam lado a lado, evidenciando uma época em que padronização do TM ainda não havia se imposto. O especialista Emanuel Tov dividiu em cinco grupos

  1. Textos escritos nas práticas de Qumran: revelam o estilo de ortografia, morfologia e práticas escriturais de uma escola provavelmente pertencente à própria comunidade. Em gera, aborda o texto bíblico de forma livre, com muitas adaptações (por exemplo, às mudanças gramaticais que o hebraico sofrera [Barrera]), correções e até erros. Alguns textos são transcrições de proto-massoréticos (grupo 2), mas a maioria foi transcrita de textos de identidade própria (grupo 5). Corresponde à cerca de 20% dos textos;

  2. Protomassoréticos: possuem quadro consonantal similar ao TM, porém até um milênio mais antigos que os códices medievais da Masorah. Não possuem nenhuma característica especial além da concordância com o TM;

  3. Pré-Samaritanos: estes textos refletem características do Pentateuco Samaritano, porém sem as adaptações ideológicas vindas posteriormente. Este grupo também abrange textos não-samaritanos que comportam um comum e exclusivo caráter textual. A principal característica é a preponderância de leituras de harmonização. Corresponde a cerca de 15% dos textos;

  4. Textos próximos a fonte hebraica da LXX: Não há um texto em Qumran que seja “exatamente” igual a “vorlage” da LXX em toda a sua extensão. Alguns, porém, são muito próximos à LXX, seja no arranjo dos versos e extensão. Certos textos, como 4QSama, possuem proximidade com a LXX (e a recensão luciânica), mas também exibem características próprias que o levam a ser classificados no grupo 5. O grupo 4 abrange certa de 5% dos textos;

  5. Textos não-alinhados: textos que não são exclusivamente próximos de nenhuma tradições consideradas acima são, portanto, considerados independentes. Eles concordam algumas vezes com o TM contra outros textos ou com o PS e/ou LXX, mas discordam destes em outros trechos. Ademais, contem, também, leituras que não pertencem a nenhum outro texto ou grupo. É uma característica importante quando se tenta determinar a amplitude textual à época do Segundo Templo.

Qumran contribuiu em muito para o conhecimento acerca do texto bíblico nos tempos de Jesus. Até sua descoberta em 1947, o estudiosos baseavam suas análises principalmente em manuscritos medievais. O testemunho de Qumran enriqueceu nosso conhecimento nestas áreas:

  • Leituras anteriormente desconhecidas nos ajudaram a conhecer melhor muitos detalhes dos textos bíblicos. Entretanto, apesar de antigos, os manuscritos do Mar Morto ainda estão muito longe de quando os textos originais foram definidos;

  • A variedade textual refletida nos cinco grupos acima provém um bom panorama da condição do texto bíblico no período intertestamentário;

  • Os manuscritos fornecem indiretamente informação sobre a cópia de textos e sua transmissão durante esse período;

  • A confiabilidade das antigas traduções, especialmente a LXX, é fortalecida pelos textos qumrânicos. Ela é uma importante fonte de pesquisa, mas, por estar em grego, sua matriz hebraica tem de ser reconstituída a partir dessa língua. A recomposição de tantos detalhes é agora embasada pela descoberta de leituras idênticas em hebraico. Vide o exemplo de Dt 32:43 no tópico acima.

[topo]

Septuaginta: em Busca da “Vorlage”

A versão dos “setenta” ou Septuaginta (LXX) data do século III a.C. Foi feita por sábios da comunidade judaica de Alexandria no Egito, a pedido de Ptolomeu Filadelfo. Diz-se que setenta ( ou setenta e dois) eruditos se isolaram em cabanas separadas e só saíram após setenta dias, quando concluíram juntos trabalhos de tradução idênticos. Nada verossímil, mas a lenda ficou. Parece que só o Pentateuco foi incluído no projeto original, sendo os demais livros do Antigo Testamento adicionados posteriormente. A rigor, poder-se-ia afirmar que o que se conhece por LXX “não existe”. O que se tem é a chamada “tradição dos setenta”, um conjunto dos mais textos do AT mais antigos escritos em grego koiné, a então língua franca do mediterrâneo oriental, anteriores traduções subsequentes. Foi feita por diversos autores, que variavam em estilo e grau de liberdade na tradução. Ela não foi estática, teve desenvolvimento complexo, sofrendo com erros de copistas e revisões. Duas famosas reavaliações (ou retraduções) foram as feitas por Áquila, discípulo de Rabbi Akiva, e a hexapla do teólogo Orígenes. Uma das hipóteses de reconstituição segue no quadro abaixo:

Evolução da LXX

Extraído de An Invitation to the Septuagint

Por ser uma tradução, o valor da LXX como fonte de crítica textual era extremamente subestimado. Quando Léon Denis, no segundo capítulo de seu Cristianismo e Espiritismo, escreveu: “Mas já desvirtuado pela versão dos Setenta, o Antigo Testamento não refletia, nos últimos séculos antes da vinda de Cristo, mais que uma vaga intuição das verdades superiores”; estava apenas reproduzindo um pensamento corrente da época. Porém, reviravolta profunda se deu com a já mencionada descoberta dos Manuscritos do Mar Morto. Diversos paralelos entre ambas as coletâneas frente ao TM revalorizaram o testemunho da versão grega. Surgiu uma nova vertente entre os historiadores que atribui a origem da LXX a uma antiga versão hebraica, agora perdida. Seria possível reconstituir este original judeu da LXX (Hebrew Vorlage) a partir do que se tem hoje? Karen Jobs e Moisés Silva fizeram uma interessante analogia no capítulo 6 de seu An Invitation…

Talvez uma simples ilustração ajudará a esclarecer a natureza do desafio. Estações de tratamento de água deveriam prover uma água que fosse 100% pura, mas isto não é factível. O obstáculo, contudo, não é razão para parar de se tratá-la ou considerar a tarefa de importância secundária. Desde que sejamos capaz de determinar níveis exequíveis e seguros de contaminação, é certo e necessário fazer deles a nossa meta.

Isto não quer dizer que se deva usar a Vorlage como pura e simples corretora do TM, pois esta também contém corrupções e o TM tem de ser usado para corrigi-la. Mais amplamente, os quatro “pesos-pesados” da pesquisa exegética da atualidade – MT, LXX. Qumran e PS – tem cada um o valor na reconstituição de um possível ancestral comum; tal como biólogos trabalham fósseis na reconstituição filogenética de sua evolução. J. Barrera assim descreveu o desafio da restauração:

Um texto reconstituído criticamente pode ser, e é muitas vezes, mais autêntico , quer dizer, está mais próximo do original que um texto documentado. A reconstituição de textos envolve problemas similares aos da restauração artística: qual “Sistina” é mais verdadeira e seria reconhecida por Michelangelo como própria, a que contemplávamos até alguns anos atrás, enegrecida pela tempo, ou a que hoje se oferece, remoçada de colorido?

A crítica de épocas passadas pecou no desprezo pelo tardio e tradicional (= o “massorético”), pelo canônico e confessional. Uma grande parte da crítica atual peca, ao contrário, pelo abandono da diacronia, por não querer enfrentar o desafio do original e da distância que media entre o original e o tradicional. Justamente esta distância é, contudo, o fator movente de todo processo hermenêutico, que permitiu libertar os textos do acúmulo de séculos para deixá-los contar sua própria história.

[Barrera, IV.1, p. 462]

Um exemplo interessante de como “testemunhos indiretos” podem acabar tendo um valor inesperado pelo fato de terem se tornado únicos: O discurso original que Albert Einstein pronunciou em alemão por ocasião da entrega do Nobel de física de 1921 se perdeu. Por coincidência, naquela época encontrava na universidade de Kioto, Japão, onde fez o mesmo discurso, só que desta vez ele foi anotado por um discípulo nipônico que o publicou, mais tarde, em japonês. Este texto foi traduzido para o inglês em 1982 (Physics today 8, 1982) e desta versão inglesa que se fez a tradução para o alemão (1983). Certo que a forma deve estar diferente do original, mas a importância do conteúdo vale a atenção. O mesmo pode se dizer de versões latinas e gregas preservam um texto hebraico diferente do tradicional massorético. Os originais se perderam e estas traduções se tornaram a única fonte para traçar formas antigas do texto bíblico.

Independente da apologia, o desprezo do tradutor espírita Severino Celestino da Silva pelo antigo e não hebraico pode ser uma fraqueza de sua obra. Só dá valor ao texto grego ou latino na medida em que (pensa que) ele o confirma no TM. Lembra da dobradinha ex 20:5, 34:7? Em seu Analisando as Traduções Bíblicas, ele desconsidera todo a importância de crítica textual da LXX, para não dizer que até a deprecia:

O talmude comenta que “o dia da tradução foi tão doloroso quanto o dia em que o bezerro de Ouro foi construído, pois a Torá não poderia ser acuradamente traduzida’. Alguns rabinos disseram que ‘as trevas cobriram a terra por três dias”, quando a LXX (Setenta ou Septuaginta) foi escrita”[grifos do autor]

Analisando…, cap II, p.44

Opiniões feitas por homens de fé e não por verdadeiros historiadores críticos, numa época em que o judaísmo já estava em rixa com o cristianismo, que adotara a LXX, são um tanto suspeitas. Como o próprio Severino C. da Silva observou, o famoso filósofo e teólogo Fílon defendeu a “inspiração” desta versão. Conversa de detrator? Não, pois gente gabaritada e insuspeita também concorda comigo nesse aspecto e, ao contrário de pesquisas ao estilo recorte/cole, dá referências precisas:

O abandono da LXX. Os primeiros cristãos muito naturalmente escolheram a LXX como sua Sagrada Escritura e fonte para textos adicionais, visto que grego era sua língua. Como resultado, a LXX influenciou-os não apenas pelo conteúdo da tradução em gera, mas também por sua terminologia. O frequente uso da LXX levou os judeus a se dissociarem dela e a começar novas traduções. À luz disso, deve-se ver as crítica a LXX em Sof. 1.7: “Certa vez cinco anciãos escreveram a Torá em grego para o Rei Ptolomeu e tal dia foi tão agourento para Israel como o dia em que o bezerro de ouro foi feito, já que a Torá não poderia ser traduzida acuradamente”.

[Tov, cap. II, p. 143]

A referência que Tov dá vem de Massekhet Soferim, membro de um conjunto de tratados da literatura rabínica conhecido como “pequenos tratados” que é editados junto com o Talmude babilônico (sim, convém a boa pesquisa dizer qual talmude é) por sua estrutura semelhante, porém Tov e mais alguns não os consideram parte do cânon talmúdico. Além disso, possíveis fontes talmúdicas negativas podem ser confrontadas com outras injunções (só que, desta vez, diretas) do mesmo livro:
[Tov, cap. II]

Não há nenhuma diferença entre os Livros Sagrados e Thephelin e Mezuzoth, exceto que o primeiro citado pode ser escrito em qualquer linguagem, mas o último em caracteres assírios, apenas. Rabi Simeon b. Gamaliel diz: “A permissão para escrever os Livros Sagrados foi limitada à língua grega, somente.”

(…)

Disse R. Judas: “Os sábios permitiram escrever em grego apenas o Pentateuco, mas nada além. E isto também foi permitido somente por causa do que aconteceu ao rei Ptolomeu, como se segue: ocorreu ao rei Ptolomeu de trazer setenta e dois anciãos de Jerusalém e colocou-os em setenta e dois recintos separados, não os informando do propósito pelo qual ele os trouxera. E em seguida ele entrou em cada um delas e lhes disse: Traduza-me a Torá de Moisés de cor. E o Sagrado, louvado O seja, enviou ao coração de cada um conselhos, e todos eles concordaram em ter uma só inspiração (mind) e mudaram conforme o seguinte:(…)

Fonte: Talmude Babilônico – Tratado Megilla, cap. I

e vem uma sequência de diferenças entre o TM e a LXX.

Com isto fica claro que, para alguns talmudistas, a língua grega gozava de autoridade teológica, ao menos até a destruição do segundo Templo ( cerca de 70 d.C). R. Judas, inclusive, sustenta a versão lendária da origem da LXX. De fato, porém, a versão dos setenta começou a cair em descrédito com o os judeus tempos depois; como um reflexo da apropriação que os cristãos fizeram dela. De início, foram criadas novas traduções extremamente literais, como a de Áquila, que resultava em um grego muitas vezes esdrúxulo, ininteligível para quem desconhece o hebraico. Por fim, o dia de festa que era o aniversário da tradução da Torá tornou-se um dia de luto, devido aos danos que ela causou ao judaísmo (Megillat Ta’anit 13, segundo [Barrera, pág. 150]).

Tanto a LXX quanto suas revisões foram trabalhos feitos por judeus e para judeus; gente que se empenhou em verter as peculiaridade de uma língua para outra. Áquila, por exemplo, reproduziu o neogilismo da primeira palavra do Gêneses – Beréshit (No princípio), fusão de preposição be com o substantivo réshit (começo, princípio, parte inicial) – com um novo neologismo grego: Entête (En tête). A alegação, portanto, de que o valor exegético da versão hebraica foi irremediavelmente perdido na tradução é fraca e não muito defendida por estudiosos:

A denominada “escola das religiões” prestou grande atenção a este transvase de expressões e conceitos da Bíblia hebraica para a grega, segunda uma linha de estudo desenvolvida por G.Betram e aplicada no novo Dicionário teológico do Novo Testamento(…). É evidente , por ex., a repugnância dos tradutores em admitir expressões gregas que tivessem ressonância pagã. A antiga tradução latina mostra um similar rechaço. A palavra hebraica “torah” é traduzida correntemente pelo termo grego “nómos”. Todavia o conceito hebraico de “lei” é muito mais amplo que o expresso pelo termo grego; uma equivalência mais apropriada poderia ser “didakhê”, “ensino”, que é justamente o título de um importante escrito cristão dos primeiros tempos. A eleição de “nómos” pôde conduzir a interpretações excessivamente legalistas ou nomistas da lei hebraica e inclusive do própria judaísmo como um todo.

É preciso, contudo, recordar as críticas de J. Barr ao citado dicionário teológico do NT, no sentido que há de se desconfiar, em princípio, dos saltos demasiado rápidos para conclusões teológicas, desprovidas de base linguística suficiente. Assim, por ex., Bertram desenvolvia as supostas implicações teológicas da versão do epíteto divino hebraico “šadday” (“o onipotente”) para o grego “ho hikanós”. Na realidade, todavia, o tradutor grego não fez mais que interpretar etimologicamente o termo “šadday” como “še-day” (“o que é suficiente”). A versão grega representa uma forma helenizada da Bíblia Hebraica, porém realizada por e para judeus e à maneira judaica. A tradução das Escrituras em grego judaizou a koiné em maior medida do que helenizou o judaísmo. Carregou de ressonâncias tipicamente israelitas termos até então de sentido profano e pagão(…)

Barrera, Bíblia Judaica…, parte III, cap III.

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Versões Latinas: Tardias, mas com Valor

Durante o império romano, o grego foi a língua dominante no cenário cultural do Império Romano, sendo a língua franca do oriente e das classes abastadas do ocidente. Até mesmo as classes mais pobres romanas travaram com ela através de muitos escravos importados do oriente. Importantes escritores cristãos do ocidente como Clemente de Roma, Hipólito, Irineu e Hermas também escreveram neste língua. Exceção talvez feita ao norte-africano Tertuliano, que era capaz de se expressar tanto em grego como em latim. Apesar de não haver indícios do uso do latim no culto sinagogal da África Romana, algumas comunidades judaicas da época deste escritor falavam seguramente o latim. Pode-se supor que versão latina do Pentateuco tenha tido efetivamente origem judaica.

O termo Vetus latina (Antiga Latina) não se refere a uma tradução única e completa da Bíblia, porém a um conjunto de traduções anteriores à Vulgata de Jerônimo (final séc. IV). É possível que alguns estágios sejam posteriores a Jerônimo. Apesar da falta de método unificado de tradução que a poria em desvantagem frente à Vulgata, a Vetus Latina (VL) possui qualidades que a Vulgata não pode oferecer. Em termos linguísticos, a VL foi escrita no vernáculo popular, já mostrando os inúmeros vulgarismos de um latim em plena evolução para o romance, ao passo que a Vulgata, apesar de sua linguagem bem despretensiosa, é gramaticalmente correta. Como crítica textual, ela tem um efeito similar às mais antigas da tradição da LXX: reflete muitas vezes um texto grego do século II, anterior a recensão de Orígenes e de Luciano. Isso supõe um texto muito antigo que goza, portanto, de um considerável valor textual. Por exemplo, o Livro de Jó latino e copta refletem uma forma textual grega mais antiga, da qual não restou manuscritos; A VL do livro de Ester é a único testemunho de outra forma textual grega perdida, com similaridades chamativas com o qumrânico 4QprotoEster, em aramaico.

Apesar destas qualidades, a falta de padronização dos textos da VL, somado a corrupções de cristãos latinos que se achavam capazes de “corrigir” o texto grego com seus conhecimentos, começaram a irritar, a ponto de Agostinho de Hipona se queixar parecer haver tantas versões latinas quanto códices. Neste quadro, entra em cena o erudito Jerônimo que, atendendo a uma encomenda feita pelo papa Dâmaso por volta de 382, iniciou o trabalho o trabalho de retradução do NT. Sua tarefa seria o embrião da versão divulgada ou “Vulgata”.

Quanto a validade do NT da vulgata, Leon Denis atribuiu estas palavras a Jerônimo em seu prefácio à tradução dos evangelhos:

De uma velha obra me obrigais a fazer uma nova. Quereis que de alguma sorte me coloque como árbitro entre exemplares da Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego (…)

Cristianismo e Espiritismo, cap II

E o texto prossegue com um relato de Jerônimo quanto ao seu receio de que algum leitor pense que ele adulterara o texto, por ele se diferir do que ele está acostumado. O fato de ser uma profunda revisão a torna ruim ou venalmente forjada? Denis ainda insere depreciação nos adjetivos: “corrigida, aumentada e modificada”. Modificar faz parte de qualquer trabalho de correção. Isto só seria grave se as modificações totalmente inventadas, sem nenhuma base grega ou latina. Em outras ocasiões Jerônimo se coloca mais confiante como “revisor” do NT, tal como em sua carta CXII a Agostinho, cap VI ( ou LXXV na numeração deste último): “E já que aprovas meus trabalhos na revisão da tradução do Novo Testamento, como dizes(…)”; ou a carta LXXI, 5 a Lucínio: “Eu restaurei o NT à autoridade da forma grega original”. Denis continua a crítica alegando que as novas correções da Vulgata tiveram de ser feitas ao longo dos séculos. Não há nada de desqualificador nisto! O conhecimento se acumula com o tempo e ferramentas que Jerônimo não teve hoje estão disponíveis. Sem contar que várias cabeças analisando têm, juntas, mais potencial que a tarefa de “lobo solitário” dele.
Da obra de (Leite):

Foi, pois, o texto “exclusivo, oficial” da Igreja Católica, até o início do nosso século [século XX], quando, com o retorno ao estudo das línguas orientais, ressurgiu o desejo e necessidade de novas investigações para dirimir dúvidas em certos pontos.

Em 1907 Pio X confiou aos monges beneditinos o encargo de fazer os estudos preparatórios para uma nova edição da versão das escrituras. E com Pio XII começaram a aparecer livros litúrgicos com a nova tradução, feita segundo os preceitos de crítica científica e com recursos dos métodos modernos.

O trabalho foi concluído em 1987 (com exceção de 1-2 Mac, ainda em andamento), com o título de “Neo-Vulgata”.

A tradução AT feita por Jerônimo foi um trabalho posterior, iniciado por volta de 392. À exceção dos livros da Gênese, Salmos, Tobias e Judite, Jerônimo se baseou em versões gregas de tradutores judeus, isto é, Áquila, Teodocião e Símaco. Tais versões já refletiam uma fonte hebraica bem próxima do TM medieval, com poucas alterações. A Gênese foi, na verdade, uma revisão da VL e os Salmos foram fundamentados na Hexapla de Orígenes. Jerônimo não se dedicou a Tobias e Judite que posteriormente foram importados da VL. Com isso, faz-se necessário distinguir entre a Vulgata e a “tradução jeronimiana”, que abarca apenas os livros que Jerônimo realmente traduziu e revisou.

O valor da Vulgata está no fato de ela ser o amálgama de três tradições. Preserva a VL e suas qualidades, seja nos livros que não foram traduzidos, seja nos comentários de Jerônimo, que ainda a utilizava. Em seus salmos, conserva o testemunho grego do texto hexaplar agora perdido. Permite rastrear as leituras de Áquila e Símaco e, por elas, entender o estado do texto hebraico da época.

Houve um atrito, porém, entre Agostinho e Jerônimo quanto à tradução do AT. Agostinho dava o valor de “inspirado” ao texto grego:

“A meu ver, eu preferiria que nos suprisse com a tradução com versão grega das Escrituras canônicas conhecidas como o trabalho dos Setenta intérpretes. Pois se tua tradução começar a ser mais comumente lida em várias igrejas, será algo doloroso ter que, ao se ler a Escritura, surgirem diferenças entre as Igrejas latinas e gregas, especialmente vendo que a discrepância é facilmente condenada numa versão latina pela produção do original grego, que é uma língua bem amplamente conhecida; visto que, se qualquer um que ficado perturbado pela ocorrência de algo que ele não estava acostumado na tradução tomada do hebreu e alegar que a nova tradução está errada, será difícil, se não impossível, obter documentos hebraicos pelos a exceção da versão possa ser defendida. E quando forem encontrados, quem, tendo tantas autoridades em grego e latim, alegará: declarado estar errado? Além disso tudo, judeus, se consultados sobre o significado de um texto hebraico, podem dar uma opinião diferente da tua: neste caso será como se tua presença fosse indispensável, como sendo o único capaz de refutar seus pontos de vista, e seria um milagre encontrar alguém apto de atuar com árbitro entre tu e eles.

Agostinho de Hipona, Carta LXXI

Ou seja, já no século V, a LXX e o protomassorético haviam tomado caminhos divergentes. Severino Celestino da Silva traz um trecho da carta parecido, mas um tanto “reduzido”:

“A meu ver, eu preferia que tua antes nos interpretasse as Escrituras gregas canônicas que são atribuídas aos setenta intérpretes, pois se há discordância entre o latim das antigas versões e o grego da Setenta, pode-se ir verificar, mas se há dissonância entre o latim da nova versão e o texto da nova versão e o texto conhecido do público, como dar prova de sua exatidão?”

Silva, Analisando …, cap II

Tudo bem que, no fundo, os dois trechos dizem a mesma coisa; ou melhor, quase a mesma coisa. Severino C. da Silva reforça um equívoco ao afirmar que carta testifica “a inexistência de exatidão nas traduções bíblicas”. Nada mais errado. O que a carta escancara é que a fonte da LXX e do TM já tinham se tornado distintas. A exposição integral de Agostinho deixa claro que Jerônimo se baseou em intérpretes hebraicos (ainda que escritos em grego) e que os manuscritos deles já diferiam da matriz hebraica da LXX. Por isso, nem sempre um documento na língua original é garantidamente o original.

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O Original: dificuldades da crítica textual

Apesar do otimismo de alguns autores, a crítica textual está longe de ser uma ciência exata. Muitos podem acusá-la até de muita subjetividade. Pode ser, pois suas metodologias não são precisas. De qualquer forma, são um jeito limitado de fazer as coisas que de outro modo seriam piores. Ruim com ela… Comparando diversos estudiosos, concluo que fazer uma declaração categórica de que determinado versículo está mal traduzido e/ou corrompido é algo um tanto temerário às vezes. Dou aqui um pequeno exemplo extraído de Gn 4:8:

E disse Caim a Abel, seu irmão. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.

Afinal, o que Caim disse a Abel? Fica claro a sensação de uma lacuna no texto. Trago quatro autores, cada um com uma opinião distinta:

  • André Chouraqui, comenta este versículo (Volume No princípio de sua coleção A Bíblia) com a seguinte nota: “O texto não explicita o que é dito dor Caîn. Os tradutores que completam a frase apenas inventam por sua própria conta”;

  • Jobes e Silva em seu An Invitation…<, cap. X, comentam: "A frase διελθμεν εις το πεδιον [vamos ao campo] não possui nenhuma correspondente no TM, mas é atestada no Pentateuco Samaritano, na Peshitta, e na Vulgata. Visto que o hebraico vayyo’mer normalmente introduz o que está sendo dito, muitos estudiosos alegam que o tradutor da Vorlage incluiu as palavras (consonantais) nlkh hsrh, que seria leitura original e que foi acidentalmente omitida numa tradição hebraica bem antiga. Alguns estudiosos assinalam, em resposta, que ao menos três outras passagens onde vayyo’mer é usado sem expressar noção do que é dito. (Ex. 19:25, 2 Cr 1:2 e 32:24 – apesar de não proverem paralelos exatos). Devemos, pois, deixar em aberta a possibilidade que, como uma leitura mais difícil, o TM seja considerado o original e que o tradutor grego (talvez confiando numa tradição antiga) introduziu a sentença para completar o significado”;

  • Julio T. Barrera, em Bíblia judaica…, parte IV, cap. III: “O tradutor (do Targum Pseudo-Jônatas) introduziu um desenvolvimento teológico, convertendo Abel na figura do protomártir e Caim no protótipo do apóstata perseguidor dos justos. É possível que a frase ‘Vem, subamos ao campo’, não seja uma inserção ‘targúmica’, mas leitura de um texto hebraico antigo. Esta leitura, perdida no texto massorético, foi conservada em numerosos manuscritos hebraicos medievais e no Pentateuco Samaritano, e aparece refletida no texto da versão da LXX e nas versões Peshitta e Vulgata”

  • Emanuel Tov, em Textual Critiscim…, cap. IV-C, ”[após citar uma comparação entre Gn 4:8 no TM e no PS] parece que no TM algumas palavras foram omitidas ( por be‘emsha` pasuq – ‘uma subdivisão no meio de um verso’) talvez as mesmas palavras com as do PS e versões – visto que TM realmente não declara o que Caim na verdade disse.”

Quatro autores distintos, cada um trazendo um pedaço de informação diferente. Curiosamente, aqui o elogiado Chouraqui possui o argumento mais fraco de todos, pois se baseia numa indevida primazia massorética. Mesmo as traduções possuem grande importância e o PS não pode ser considerado “exatamente” uma tradução. Jobes e Silva são mais conciliatórios e expõem um caso em que duas técnicas de crítica textual se opõem: a preferência pela leitura mais difícil (visto uma tendência dos copistas a harmonizar textos difíceis com doutrinas, outros textos mais fáceis ou sua própria intuição) contra a múltipla confirmação por documentos antigos. Barrera coloca mais crédito na múltipla confirmação das versões, sendo alguns documentos hebraicos corroboradores de sua opinião, e Tov lança uma hipótese para a origem da lacuna. A balança pende realmente a existência de uma lacuna no TM, apesar de isto não poder ser atestado de forma absoluta. Por isso quando alguém diz: “há um erro de tradução aqui”, é bom pensar duas vezes antes de ser tão categórico.

Masssorético X Pentateuco Samaritano em Gn 48

Comparação entre o texto massorético (à direita e pontuado) de Gn 4:8-9 com seu equivalente no Pentateuco Samaritano (à esquerda, não-pontuado e transcrito com caracteres hebraicos). Aqui está em evidência a lacuna presente no TM. Esta falta estava no original ou produzida por um acidente de cópia? Nem sempre é fácil estabelecer um juízo.

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Para saber mais

– Abegg Jr., Martin, Flint, Peter & Ulrich Eugene – The Dead Sea Scrolls Bible- Harper San Francisco, 1ª ed.

– Barrera, Julio Trebolle – A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã- Editora Vozes, 2ª ed, 1999.

– Jobes, Karen H. & Silva, Moisés – An Invitation to the Septuagint- Paternoster / Baker Academic, 1ª ed.

– Leite, Thomaz Paula; Sabedoria da Bíblia, Ed. Cultrix

– Shoulson, Mark (organizador); The Torah: Jewish and Samaritan Versions Compared, 1ª ed. (editado pelo organizador)

– Tov, Emanuel; Textual Criticism of the Hebrew Bible, Fortress Press, 2ª ed. revisada, 2001.

Notes on the Septuagint, acessado em 05/09/2016.

Nota: O livro de Barrera, “A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã” consta na bibliografia de “Analisando as Traduções Bíblicas”

Reencarnação X Ressurreição

Ressurreição da Carne

Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. (I Cor 15:52)”

Luca Signorelli: A Ressurreição da Carne

    Índice

    Se a reencarnação realmente estivesse contida na Bíblia, tão importante ponto referente ao destino deveria estar escrito de maneira bem explícita. Autores espíritas, possivelmente querendo tornar sua doutrina mais palatável com a ortodoxia cristã, começaram um esforço violento para extrair supostos versículos que confirmassem a presença deste antigo ensino. O Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE), já alega arbitrariamente que a ressurreição é a reencarnação entendida pelos judeus do séc. I. Como eles não criam em novo nascimento, acreditavam que no retorno ao mesmo corpo. Segundo Kardec o certo seria crer em reencarnação, visto ser impossível reagrupar nossos átomos após o corpo se decompor. Isto é muito questionável, pois não interessa se algo é possível ou não, mas se teve algum significado para o povo do século I. Pelo menos, o próprio “mestre lionês” teve a prudência de reconhecer que o credo corrente na época pregava a ressurreição. Vejamos, então, o que realmente os judeus do século I entendiam como ressurreição e verificar se corrobora o preconizado por Kardec.

    1 – Antigas Visões Judaicas do Pós-Morte

    Túmulos judaicos

    Ao longo dos livros do Antigo Testamento, pode-se notar uma evolução uma progressiva evolução de pensamento sobre o que acontece após a morte:

    1. Aniquilação;
    2. Existência desencorpada;
    3. Não morrer.
    4. Restauração corporal.

    1.1 Aniquilação

    A primeira a ser encontrada na Bíblia e se resume a sentença de Iahweh sobre Adão (Gn 3:19): “Com o suor de teu rosto comerá teu pão até que retornes ao solo. Pois tu és pó e ao pó retornarás“. Dessa forma, a morte é o fim inexorável de nossa existência, a ser retardado o mais possível. As bênçãos que uma pessoa poderia esperar seriam uma vida longa, feliz, ter muitos filhos e ser enterrado junto aos ancestrais. A “imortalidade” existiria através da descendência e daí um grande temor de que punições recaíssem sobre ela (1). No mundo pagão, essa (des)crença se expressava em inscrições lapidares como RIP – Resquiat in Pace (Descanse em paz) ou NFFNSNC – Non fui, fui, non sum, non curo (Não existia, existi, não existo, não me importo). Como paralelo moderno, esse seria o destino imediato de todo ser humano, segundo as Testemunhas de Jeová, e o destino final da maior da humanidade não salva.

    1.2 Existência de desencorpada

    As almas não seriam imateriais, mas formadas de alguma substância sutil que sobreviveria, de certa maneira, em um lugar chamado Xeol (pronuncia-se Sheol). Ao menos nos livros que lhe fazem menção, o Xeol estava longe de ser um prolongamento desta vida, mas a contemplação de um eterno vazio, não muito diferente do Hades dos pagãos:

    Lembra-te que minha vida é um sopro, e que meus olhos não voltarão a ver a felicidade. Os olhos de quem me via não mais me verão, teus olhos pousarão sobre mim e não mais existirei. Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim que desce ao Xeol não subirá jamais.

    Jó: 7-10

    Volta-te, Iahweh! Liberta-me! Salva-me por teu amor! Pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te louvaria no Xeol?

    Salmos 6:5-6

    Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais que um leão morto. Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, por que sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo que se faz debaixo do Sol.

    Eclesiastes 9:4-6

    Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica, pois já não esperam em tua felicidade aqueles que descem à cova. Os vivos, só os vivos é que te louvam, como estou fazendo hoje.

    Isaías 38:18-19

    Não te prives da felicidade presente, não deixes escapar nada de um legítimo desejo. Não deixarás a outro os teus recursos, e o fruto de teu trabalho à decisão da sorte? Dá e recebe, faze divagar a tua alma, pois não há no Xeol quem procure algum prazer. Como uma roupa, toda carne vai envelhecendo, porque a morte é lei eterna. Como as folhas numa árvore frondosa tanto caem como brotam, assim a geração de carne e sangue: esta morre, aquela nasce.

    Eclesiástico 14:14-20

    As expectativas de longo prazo dos vivos não seriam muito diferentes do caso anterior.
    Um paralelo moderno aparece no terceiro volume da série Fronteiras do Universo (no original, His Dark Materials), do escritor Philip Pullman, em que o “Mundo dos Mortos” é apresentado como um lugar sombrio, acinzentado, onde as almas são impostas a uma espécie de tédio sem fim, ao ponto de acabarem esquecendo, com os séculos, seus próprios nomes.

    1.3 Não Morrer – Vivendo no Céu

    Três grandes figuras da mitologia judaicas se constituem exceção à regra:

    • Enoque: Brevemente citado em Gn 5:18-24 como um justo ancestral de Noé, que “andou com Deus”, viveu 365 anos e então desapareceu, “pois Deus o arrebatou”. Aparentemente, livro Gêneses foi extremamente sucinto ao falar de uma personagem que teve vida bem mais ampla no imaginário judaico e se tornou título de três livros:

      • I Enoque: Na verdade, uma compilação de cinco livros redigidos entre III e I a.C., que tratam desde a queda de um grupo de anjos conhecido como Vigilantes até a consumação dos tempos, além das jornadas de Enoque ao Xeol e aos céus.
      • II Enoque ou Livro dos Segredos de Enoque: Apesar do nome, não é continuação do anterior, tendo sido redigido no I século de nossa era e narra a viagem de Enoque aos dez céus, ao Xeol e as coisas que aprendeu sobre a origem do mundo, a queda dos anjos e destino dos justos e iníquos. Enoque volta à Terra, fala aos seus sobre o que viu, de como deveriam se portar para agradar a Deus e redige 366 livros. É arrebatado de novo e definitivamente por Deus. Alguns manuscritos possuem um adendo sobre a origem de outro imortal: Melquisedeque.
      • III Enoque: Também sem relação com seus antecessores e datado no século V de nossa era. Nele o arcanjo Metatron é apresentado como tendo sido originariamente Enoque.
    • Melquisedeque: Figura enigmática da mitologia judaica, Melquisedeque (“Meu rei é justiça”) é apresentado e Gn 14:17-20, como o rei-sacerdote da cidade de Salém, a quem o patriarca Abraão deu um décimo de um butim de guerra. E só. Fora da Bíblia, porém, Melquisedeque parece ter tido várias faces. Um dos seus reaparecimentos foi nos Manuscritos do Mar Morto, mais especificamente em 11QMelch (ou 11Q13), onde ele é retratado como um grande juiz escatológico celestial, sugerindo uma metamorfose parecida com a que viria ter Enoque/Metatron. Um dos mais elucidativos retratos de seus foi registrado em algumas versões de II Enoque. Nele, informa-se que Melquisedeque teve um nascimento de circunstâncias miraculosas e já veio ao mundo grande o bastante para ficar em pé e pregar. Essa criança foi arrebatada antes do dilúvio e, após as águas baixarem, um novo Melquisedeque apareceu, sem grandes explicações. A partir dele, viria uma sequência de sacerdotes com esse título e último deles seria um juiz escatológico. Talvez a menção ao “sacerdócio eterno de Melquisedeque” na Epístola aos Hebreus não seja mera coincidência.
    • Elias: Profeta que teria sido arrebatado por uma carruagem de fogo (II Reis 2:11). Segundo Malaquias (Ml 3,1) e (Ml 3,22-24 ou 4,4-6), retornará como precursor do Messias.

    Um problema surge ao se tratar com os “arrebatados”: o corpo humano está sujeito ao desgaste e à deterioração. Como, então, poderiam eles permanecer indefinidamente no Céu? Uma conjectura já foi dada acima, pela transformação de Enoque e Melquisedeque (o de Qumran) em seres celestiais. Há também o caso do pseudepígrafo judaico-cristão “Ascensão de Isaías” (séc. I ou II), em que é relatada uma jornada desse profeta pelas várias regiões celestiais. Essa viagem não se enquadra bem como um caso de “arrebatamento” porque se tratou de uma visão: Isaías não esteve lá em corpo físico. Mesmo nessa “visão”, ele precisou colocar uma veste a partir do sétimo Céu para poder prosseguir e ela o deixou similar aos anjos. Já no sétimo Céu, ele encontrou … Enoque, que trajava o mesmo tipo de veste! Não é impossível que seu autor tenha se inspirado em um trecho de I Enoque (62:10), onde se lê de forma poética:

    Serão [os justos] recobertos com as vestes da glória, que são as vestes da Vida do Senhor dos Espíritos. Vossas vestes não envelhecerão e vossa glória não passará na presença do Senhor dos Espíritos.

    Seja por uma mudança em sua natureza intrínseca ou por um influxo externo de poder, a transformação de um corpo mortal em outro celestial foi melhor explorada em outros exemplares da literatura intertestamentária que se encarregaram de democratizar a imortalidade de uns poucos.

    1.4 Restauração corporal

    No judaísmo posterior ao exílio, talvez por influência persa e pela constatação de que muitos justos sofrem e maus prosperam nesta vida, começam a se desenvolver ideias a respeito da ressurreição dos mortos, i.e., a reunião da alma dos falecidos com corpo a ocorrer durante a concretização das profecias apocalípticas. Seria o tempo de as injustiças serem reparadas:

    Como mulher grávida, ao aproximar-se a hora do parto, se contorce e, nas suas dores, dá gritos, assim nos encontrávamos nós na tua presença, ó Iahweh: Concebemos e tivemos as dores do parto, mas quando demos à luz, eis que era vento: não asseguramos a salvação da terra; não nasceram novos habitantes para o mundo. Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque o teu orvalho será um orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras.

    Isaías 26:17-19

    Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto aos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justificar hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade. Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

    Daniel 12:1-4

    Neste caso, o Xeol passaria a ser um estágio intermediário enquanto os mortos esperam o fim da realidade tal como conhecemos, que cederá lugar ao “Mundo Vindouro”, quando a opressão sobre os judeus terminará, o Mal será punido e os justos recompensados.

    No deuterocanônico II Macabeus, torna-se mais explícita a crença em uma restauração corporal. Era uma forma de honrar aqueles que morreram por sua fé na luta contra o domínio da dinastia helênica dos Selêucidas na Palestina.

    Passado também este à outra vida, passaram a torturar da mesma forma ao quarto, desfigurando-o. Estando ele próximo a morrer, assim falou: “É desejável passar à outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser ressuscitado por Ele. Mas para ti, ao contrário, não haverá ressurreição para a vida!”

    II Mc 7:13-4

    Depois, tendo organizado uma coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse o sacrifício pelo pecado: agiu absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso seu modo de pensar (5).

    II Mc 12:43-5

    Repare a semelhança entre II Mc 7:14 e o registro feito por Flávio Josefo (6) sobre a crença da facção dos fariseus:

    Eles também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de revivificar-se e viver novamente (…)

    Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. I

    Uma forma curiosa de ressurreição apenas para os bons. Contudo, a independência de Israel durou pouco e os romanos tomaram o lugar dos Selêucidas. Uma nova literatura apocalíptica floresceu em torno da imagem desse novo agressor.

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    2 – II Baruque: um Apocalipse Judaico por Excelência

    Quadro da destruição do Templo

    A Destruição do Templo em Jerusalém, por Francesco Hayez (1867).

    Apesar de todas as previsões da escatologia judaica quanto à vinda do Messias e advento do Reino de Deus, algo saiu errado. Em 70 d.C., uma revolta judaica foi esmagada pelas tropas do general Tito, a população de Jerusalém foi chacinada, a cidade reduzida a escombros e tesouro do Templo saqueado. Os “kittim” [grego-romanos] venceram e o processo de diáspora se acelerou. Com o mundo em que Jesus viveu se extinguindo e um judaísmo estupefato com a tragédia, os sobreviventes precisavam de uma explicação para o ocorrido.

    Uma das respostas veio em Apocalipse de Baruque (ou II Baruque), datada no final do século I e começo do II. Nele (2) são narrados diálogos de Baruque (ou Baruch, Baruc), contemporâneo da tomada de Jerusalém pelos babilônicos ocorrida em 587 a.C., a lamentar com o próprio Criador e vozes celestes a sorte de Sião, sua pátria, e indagar-lhes o porquê da calamidade. É nítida a intenção do desconhecido autor do livro de comparar destruição que presenciou com aquela ocorrida séculos antes, além de levantar o moral de seu povo ao afirmar que tudo isso já estava previsto e dias melhores viriam com a chegada do Messias (“Ungido”) aos que persistissem na Lei. Eis alguns trechos elucidativos:

    IV – Nova Jerusalém

    Falou-me então o Senhor: “Sim, esta cidade [Jerusalém] será abandonada por algum tempo, e temporariamente será castigado o seu povo; contudo, o mundo não terminará. Pensas tu por acaso que é esta a cidade da qual eu falei: ‘Trago-te inscrita nas minhas mãos’?, não, esta vossa cidade, com as suas edificações, não é a cidade futura que eu anunciei, já anteriormente preparada, desde o tempo em que decidi criar o Paraíso. Eu mostrei-a a Adão antes da queda em pecado; ela foi-lhe tirada juntamente com o Paraíso, depois que ele se rebelou contra a proibição.

    “Mostrei-a também ao meu servo Abraão, naquela noite, entre as oferendas partidas ao meio. Mostrei-a a Moisés sobre o monte Sinai, onde lhe expliquei a imagem do tabernáculo e todos os seus utensílios. Assim, ela continuará preparada na minha mente, juntamente com o Paraíso. Vai, pois, e faz o que eu te ordeno!”

    XXIX – O Messias

    Ele falou-me: “O que vai acontecer atingirá toda a terra; dessa forma, experimentá-lo-ão todos os que estiverem em vida. Mas naquele tempo eu protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste país [Sião]. Uma vez cumprido aquilo que deve acontecer nos períodos do tempo, o Messias começará a sua revelação. Também Behemoth virá dos seus domínios, e Leviatã se levantará do mar; os dois imensos monstros marinhos por mim criados no quinto dia da Criação, e que reservo para aqueles dias; eles servirão de alimento para todos os que sobreviverem.

    “Então a terra produzirá os seus frutos ao cêntuplo; numa cepa de videira haverá mil ramos, um ramo carregará mil racimos, e um racimo mil bagos, e um bago data até quarenta litros de vinho (3). Os que sofreram fome comerão regiamente, e a cada dia lhes estão reservadas novas maravilhas (4).

    “Pois de mim procederão ventos que trarão todas as manhãs o perfume de frutos saborosos, e farão gotejar ao final do dia o orvalho salvífico. Do alto cairá de novo grande quantidade de maná; dele comerão eles naqueles anos, por haverem participado do final dos tempos”.

    XXXII – Reconstrução de Sião

    “Mas preparai os vossos corações e semeai neles os frutos da Lei, para estardes protegidos no tempo em que o Todo-Poderoso haverá de abalar toda a Criação. Pois as edificações de Sião dentro de pouco tempo serão aniquiladas, mas logo em seguida reconstruídas.

    “Todavia, essa reconstrução não durará muito; após algum tempo, Sião será arrasada uma vez mais e permanecerá em destroços por um período. Depois será renovada em todo o esplendor, e, uma vez plenamente reconstruída, permanecerá para todo o sempre.

    “Não devemos perturbar-vos excessivamente com a desgraça que aconteceu, mas muito mais com aquilo que ainda há de vir. Pois, maior ainda do que ambas essas calamidades será o embate em que o Todo-Poderoso renovará a sua Criação. Agora, porém, não te preocupeis mais por alguns dias! Não vos preocupeis comigo, até que eu volte para junto de vós!”

    Após essas palavras, eu, Baruch, segui meu caminho. Mas quando o povo percebeu que eu desejava afastar-me, levantou a voz em lamentos, clamando: “Aonde vais tu? Por que, Baruch, nos abandona, como um pai que vai embora e deixa os filhos na orfandade? (…)”

    Fonte [Tricca, p. 304,316-8]

    A glória que viria após a vitória final do Bem não seria vivenciada apenas pelos que houvessem nascido um pouco antes, mas também pelos morto, que seriam restaurados. Uma inovação que II Baruque traz é que os maus também ressuscitariam para o castigo. Ele assim relata:

    “Terminado o tempo vigente do Messias, Ele voltará de novo à glória do céu. Então haverão de ressuscitar todos aqueles que outrora adormeceram na esperança. Naquele tempo acontecerá que se abrirão as câmaras onde se demoram as almas dos piedosos; elas sairão, e todas essas numerosas almas, como uma legião de um só coração, apareceram todas juntas, abertamente. As que foram as primeiras, alegrar-se-ão; as que foram as últimas, não estarão tristes.

    “Cada uma delas sabe que foi chegado o tempo, previsto como o fim de todos os tempos. As almas dos pecadores perder-se-ão em angústia, ao presenciarem tudo isso. Pois elas já sabem que o tormento as atingirá, e que a hora da sua condenação é chegada.”

    Cap. XXX. Fonte: [Tricca, p. 317]

    O mesmo livro vai além e descreve o próprio processo de ressurreição:

    Mas além disso, eu te pergunto, ó Poderoso; e pedirei graça dele que criou todas as coisas. Em qual forma irão os viventes viver em seu dia? Ou como permanecerá o esplendor que haverá depois dele? Irão eles, talvez, retomar esta presente forma e adquirirão membros acorrentados que são malignos e pelos quais males são feitos? Ou irás mudar essas coisas que têm estado no mundo, bem como o próprio mundo?

    E ele respondeu e me disse: “Ouça, Baruch, estas palavra e registre na memória de seu coração tudo o que aprenderá. Pois a terra seguramente devolverá os mortos naquele tempo; ela os recebe agora a fim de preservá-los, sem mudar nada em sua forma. Mas assim como ela os tem recebido, então ela os devolverá. E como eu os tenho enviado para ela, então ela os erguerá. Pois aí será necessário mostrar aos que vivem que os mortos estão vivendo novamente e que voltaram os que partiram. E será então quando tiverem reconhecido uns aos outros aqueles que se conhecem neste momento, então meu julgamento será forte e aquelas coisas que foram ditas antes serão cumpridas.“

    E será então após esse dia que ele indicou ter acabado é que tanto a forma daqueles que se descobriram culpados quanto a glória dos que se demonstraram justos serão mudadas. “Pois a forma dos que agora agem iniquamente será feita mais maligna que é (agora) de modo que sofram tormento. Também, como a glória dos que demonstraram serem justos em nome de minha lei, os que possuíram inteligência em sua vida e os que plantaram a raiz da sabedoria em seu coração – seu esplendor será então glorificado por transformações e a forma de sua face será convertida na luz de sua beleza de modo que possam adquirir e receber um mundo imperecível que está prometido a eles. Portanto, especialmente eles que então virão a ficar tristes, porque desprezaram minha Lei e taparam seus ouvidos a fim de que não ouvissem sabedoria e recebessem inteligência. Quando, portanto, virem que os que estão acima deles, que são agora exaltados, serão então ainda mais exaltados e glorificados que eles, então tanto estes e aqueles serão mudados, estes no esplendor dos anjos e aqueles em aspectos chocantes e formas horríveis; e arrasar-se-ão ainda mais. Pois primeiro verão e, então, partirão para o tormento. (…)” (7)

    Cap 49-51. Fonte: [Charlesworth, p. 637-8] (8)

    Desse apocalipse judaico, fica claro um paralelo com a defesa de Paulo da ressurreição mortos através de transformação de um corpo material em espiritual (I Cor 15), que será vista a seguir.
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    3 – Paulo: um Apocalipsista Cristão

    Ícone de Paulo de Tarso

    Em sua primeira carta aos coríntios, Paulo trata de diversos problemas enfrentados por uma das assembleias que fundou. No capítulo XV, ele trata particularmente de uma questão doutrinária que surgira entre eles:

    Ora, se prega que Cristo ressuscitou dos mortos como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou, se é que mortos ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens.
    (1 Co 15.14-20).

    Ao que aparenta, alguns membros daquela igreja estavam descrentes da ressurreição dos mortos. Paulo, então, não tenta convencê-los disso, mas lembrá-los de algo que eles já aceitam: a ressurreição do próprio Jesus como exemplo dessa possibilidade.

    Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato! O que semeias não readquire vida a não ser que morra. E se o que semeias não é o corpo da futura planta que deve nascer, mais um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio.

    Nenhuma carne é igual às outras, mas uma é a carne dos homens, outra a carne dos quadrúpedes, outra a dos pássaros, outra a dos peixes. Há corpos celestes e corpos terrestres. São, porém, diversos o brilhos dos celestes e o brilho dos terrestres. Um é o brilho do Sol, outro o brilho da Lua,e outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há diferenças de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual.

    Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo homem vem do céu. Qual foi o homem terrestre, tais são os homens celestes. E assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim traremos a imagem do homem celeste.

    (I Co.15:35-49)

    Tomando Jesus como modelo (o “segundo homem”), a ressurreição para Paulo não consiste numa existência etérea, quase desencorpada, mas na transformação do corpo carnal em outro melhor, celestial. A afirmação mais contundente de Paulo, porém, foi deixada bem para o fim:

    Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.

    I Cor 15:50-5

    Portanto, o apóstolo dos gentios cria que essa ressurreição seria um evento iminente, que se daria até mesmo para alguns de seus conhecidos que ainda estivessem vivos e consistiria, tal como em II Baruque ou I Enoque, não no descarte do corpo físico, mas em sua modificação. Ela seria não um evento rotineiro como a reencarnação espírita (ressurreição material, segundo eles) ou o desencarne (ressurreição espiritual), mas um episódio ímpar destinado a se concretizar apenas no fim dos tempos, do mundo tal como o conhecemos (cf. I Cor 15:20-28).

    Ou seja, a ressurreição é ponto fundamental do cristianismo e se dará num corpo análogo ao de Cristo ressuscitado. Em A Gênese, cap XV, 65, Kardec dá a ideia de que Jesus teria dois corpos: o carnal e o fluídico. O primeiro foi sepultado e o segundo foi o que teria aparecido para os apóstolos. Não era essa a crença contida contida em I Coríntios ou II Baruque. A ressurreição, segundo esses autores antigos, não deixaria restos. Em vez disso, esses restos seriam matéria-prima para algo novo
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    4 – Outras Visões da Ressurreição

    Fênix renascida.

    Vale lembrar que opiniões sobre a ressurreição expostas acima são de judeus que criam nela, como Paulo e o anônimo autor de II Baruque. A seita judaica dos saduceus (9) não acreditava nela e os essênios, aparentemente, criam numa imortalidade meramente espiritual. A literatura patrística registrou variantes da opinião paulina:

    – Clemente I (30 -100): bispo de Roma (na época não existia a denominação Papa) e possivelmente companheiro de Paulo em Filipos, comparou a ressurreição à lenda da Fênix, em sua carta aos coríntios, cap XXV – A Fênix, um emblema de nossa ressurreição:

    Vamos considerar este maravilhoso sinal [de ressurreição] que acontece nas terras orientais, isto é, na Arábia e países adjacentes. Há certo pássaro que é chamado Fênix. Este é o único de sua espécie e vive quinhentos anos. E quando o tempo de sua dissolução mostra que sua morte está próxima, constrói por si só um ninho de olíbano, mirra e outras especiarias, no qual, quando é chegada a hora, entra e morre. Mas a medida que a carne se decompõe, um certo tipo de verme é produzido, que sendo alimentado pelos fluidos do pássaros morto, produz penas. Então, quando adquire força, ergue o ninho em que estão os ossos de seu pai e, carregando-os, vai da Arábia para o Egito, para a cidade chamada Heliópolis. E, num dia de céu limpo, voando à vista de todos os homens, deposita-os sobre o altar do sol, e feito isto, apressa-se em voltar à antiga residência. Os sacerdotes, então, inspecionam o registro das datas e descobrem que ele retornou exatamente ao quingentésimo ano ser completado.

    – Justino Mártir (100-165): acreditava na ressurreição da carne, pois tinha uma visão tríplice do ser humano: corpo, alma e espírito. Em seu tratado sobre a ressurreição (*), cap. X:

    A ressurreição é uma ressurreição da carne que morreu. Visto que o espírito não morre, a alma está no corpo, e sem uma alma ele não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, perece. Visto que o corpo é a casa da alma e a alma é a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que nutrem uma fé sincera e inquestionável em Deus, serão salvos. Considerando, portanto, mesmo tais argumentos como são adequados a este mundo e descobrindo que, mesmo com tais argumentos, não é impossível que a carne seja regenerada; e vendo que, além de todas estas provas, o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que não deixamos de aturar esses céticos e perigosos argumentos e falhamos em ver que retrocedemos quando escutamos tais argumentos como se fossem: a alma é imortal, mas o corpo é mortal e incapaz de ser redivivo?

    (*) Só restam fragmentos deste tratado. Não há certeza absoluta que são de sua autoria, mas há forte possibilidade de que sejam.

    – Irineu de Lião (120? – 200?): segue a interpretação paulina de um corpo carnal incorrupto em seu “Contra as heresias”, livro V, cap VII:

    Da mesma maneira que Cristo se ergue na substância da carne e assinalou para Seus discípulos a marcas dos cravos a abertura em seu lado [Jo 20:20,25] (agora estes são símbolos da carne que ascendeu dos mortos), então “Ele também irá”, diz [I Co 6:14], “nos ressuscitar pelo seu próprio poder”. E mais uma vez diz aos romanos [Rom 8:11], “e se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos dará vida também aos vossos corpos mortais”. Então o que são corpos mortais? Seriam eles almas? Não, visto que almas são incorpóreas quando postas em “comparação com corpos mortais; pois Deus soprou na face do homem o sopro da vida e o homem se tornou alma vivente”. Agora o sopro da vida é algo incorpóreo. E certamente eles não podem manter aquele mesmo sopro da vida que é mortal. (… ) Nos devemos assim concluir que isto é em referência a carne cuja morte é mencionada; que, depois da partida da alma, torna-se parada e inanimada e se decompõe gradualmente na terra de onde foi tirada. Isto, então, é o que é mortal. E é disto que ele também fala, “Ele dará vida a seus corpos mortais”. E assim em referência a isto ele diz na primeira [epístola] aos coríntios: “O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível, ressuscita incorruptível.” Visto que declara,”O que semeias não readquire vida até que morra.”

    – Orígenes ( 182? – 254?): É um dos mais controversos teólogos pré-nicenos, utilizado, equivocadamente, por grupos esotéricos e espiritualistas para reforçar suas teses. No “Analisando as Traduções Bíblicas”, cap. XVI, de Severino C. da Silva, 4ª ed., Idéia; aparece a seguinte alusão a Orígenes:

    O teólogo cristão primitivo, Orígenes de Alexandria, sugere uma versão diferente. Ele defendia que haveria duas ressurreições, uma no final dos tempos e outra “do espírito, da vontade e da fé”, que poderia ocorrer durante a vida. Este conceito apresenta a ressurreição como sinônimo de Reencarnação. Orígenes também achava que o corpo da ressurreição era um corpo espiritual que não tinha nenhuma relação com o corpo mortal.

    Severino C. da Silva dá como embasamento desta opinião a obra “Reencarnação: O Elo perdido do Cristianismo“, de Elizabeth Clare Prophet; portanto não se baseou no original de Orígenes. Sugiro uma leitura na categoria Patrística para saber a verdadeira opinião de Orígenes quanto a “transmigração de almas”. Por hora, deixemos o próprio Orígenes contar suas ideias quanto à ressurreição: na obra De Principiis, livro II, cap X; ele também disserta sobre o enfoque de Paulo:

    O que então? Se é certo que devemos fazer uso de corpos, e se os corpos caídos são declarados ter de erguer-se novamente (pois apenas o que caiu antes pode ter a adequada capacidade de se reerguer), não pode ser matéria de dúvida a ninguém que eles se erguem de novo para que sejamos revestidos com eles uma segunda vez na ressurreição. Uma coisa está estreitamente relacionada com a outra. Pois se corpos são erguido outra vez, sem dúvida eles se erguem para nos revestir; e se nos é necessários ser investidos de corpos, como é certamente necessário, não devemos ser investidos com nenhum outro senão o nosso próprio.

    Mas se é verdade que eles se reerguem e que ressuscitam como corpos “espirituais”, não pode haver dúvida que eles vêm do morto, após se livrarem da corrupção e posto de lado a mortalidade; de outra forma pareceria vão e inútil a qualquer um ressuscitar dos mortos para morrer uma segunda vez. E finalmente isto deve ser mais distintamente compreendido desta forma, se cuidadosamente se considerar quais são as qualidades de um corpo animal, que, quando semeado na terra, recupera as de um corpo espiritual. Pois é de um corpo animal que o próprio poder e graça da ressurreição extraem o corpo espiritual, quando ele transmuta de uma condição indigna para uma de glória.

    Pois é… não seria um novo corpo ou apenas o perispírito, mas o mesmo corpo modificado. A questão é, como Orígenes imaginou essa transformação:

    Nós, porém, estamos convencidos de que aquilo que semeamos “não adquire vida a não ser que morra” e “não é o corpo da futura planta” que é semeado. Pois “Deus dá o corpo que quer”: semeado “corruptível, o corpo ressuscita incorruptível, semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado desprezível, ressuscita cheio de força; semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (I Cor 15:36-44). Conservamos tanto a doutrina da igreja de Cristo quanto a grandeza da promessa de Deus. Podemos provar que é uma coisa possível não por uma afirmação mas por meio do argumento. (…) Portanto, não afirmamos que o corpo putrefato voltará à sua verdadeira natureza original, assim como o grão de trigo, uma vez corrompido, não retorna ao seu estado de grão de trigo. Afirmamos que, assim como do grão de trigo surge uma espiga, há também no corpo um princípio que não está sujeito à corrupção, a partir do qual o corpo surge “incorruptível”. (…) Não recorremos à mais absurda evasiva: tudo é possível para Deus; pois sabemos entender a palavra “tudo” sem incluir nela o que não tem existência ou não é concebível. Concordamos assim que Deus nada pode fazer de vergonhoso, pois então Deus não poderia ser Deus: pois se Deus fizesse algo de vergonhoso, não seria Deus.

    Contra Celso, V.22-3

    Qual era esse “princípio não sujeito à corrupção” só é explicado bem mais adiante:

    Celso não compreendeu nossa doutrina da ressurreição, doutrina rica, difícil de expor, por exigir mais do que qualquer outra intérprete bem preparado para mostrar o quanto esta doutrina é digna de Deus e sublime: de acordo com ela, existe uma relação seminal no que a Escritura chama de tenda da alma (II Cor 5:4), na qual os justos gemem acabrunhados; e gostariam de não ser “despojados de sua veste, mas revestir a outra por cima desta” (idem). Por ter ouvido falar da ressurreição da boca de pessoas simples, incapazes de apoiá-la com qualquer razão, ridiculariza o que se afirma. Será útil acrescentar ao que ficou dito acima esta simples observação sobre a doutrina: não é, como acredita Celso, por ter compreendido mal a doutrina da metensomatose que nós falamos de ressurreição; mas é porque sabemos que a alma, que por sua própria natureza é incorpórea e invisível, precisa, quando se encontra num lugar corporal qualquer, de um corpo apropriado por sua natureza neste lugar. Ela carrega este corpo depois de ter abandonado a veste, necessária antes, mas supérflua para um segundo estado, e a seguir, após tê-lo revestido por cima com aquela veste que tinha inicialmente, porque precisa de uma veste melhor para chegar às regiões mais puras, etéreas e celestes. Ao nascer para o mundo, ela abandonou a placenta que era útil à sua formação no seio de sua mãe enquanto nela se encontrava; revestiu por baixo o que era necessário a um ser que viveria na terra.

    Contra Celso, VII.32

    Essa “relação/princípio seminal” (logos spermatikos) seria uma espécie de lei ou força que, por sua própria natureza, sobreviveria à morte e, nutrindo-se com os elementos adequados, conforme a situação em que se encontrasse, construiria um novo invólucro. O corpo atual e o futuro seriam contínuos por esse princípio, mas não em substância. Vale atentar que Orígenes usou aqui a mesma expressão de filósofos estoicos para se referir ao “princípio gerativo” responsável pela renovação do universo. Com isso, novos adversários pagãos teriam a dificuldade extra de rejeitar suas próprias ideias.

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    5 – A Questão da Gilgul

    Escultura de uma roda de carruagem

    A crença na transmigração de almas (gilgul neshamot – “roda de almas”) é mais tardia, tendo sido assimilada por certas correntes judaicas ao longo da Idade Média e posteriormente. Ainda é matéria de discussão entre os historiadores de como isso ocorreu exatamente (10).

    Assim relata a Jewish Enclyclopedia

    Transmigração das almas: A passagem de alma em sucessivos formas corpóreas, sejam humanas ou animais. De acordo com Pitágoras, que provavelmente aprendeu a doutrina no Egito, a mente racional, após ter se libertado dos grilhões do corpo, assume uma veículo etéreo e passa para a região dos mortos, onde permanece até ser enviada de volta a este mundo para habitar algum outro corpo, humano ou animal. Depois de passar por sucessivas purgações e quando estiver suficientemente purificada, ela é recebida entre os deuses e retorna para a fonte eterna de onde originalmente procedeu. Esta doutrina era estranha ao judaísmo até cerca do século oitavo, quando, sob influência de místicos maometanos, foi adota pelos caraítas e outras dissidências judaicas. Ela é mencionada pela primeira vez na literatura judaica por Saadia [Gaon], que protestou contra esta crença, que em seu tempo era compartilhada pelos yudghanitas(…)”

    Assim relatou Saadia Gaon:

    Embora eu deva dizer que tenho encontrado certas pessoas, que chamam a si mesmas de judias, professando a doutrina da metempsicose, que é designada por eles com a teoria da “transmigração” das almas. O que ele querem dizer com isso é que o espírito de Rúben transferiu-se a Simão e depois a Levi e, em seguida a isto, a Judá. Muitos deles iriam tão longe como ao ponto de afirmar que o espírito de um ser humano pode entrar no corpo de uma fera ou que o de uma fera no de uma ser humano e outros tipos de absurdo e estupidez”

    Saadia Gaon, Livro das crenças e opiniões, tratado VI, cap. VIII, “A alma”. Acesse aqui para uma versão completa do texto.

    A primeira aparição da doutrina da gilgul em um tratado esotérico escrito vem a ocorrer só no século XII, num trabalho intitulado Bahir. A partir daí, a reencarnação se torna popular entre a vertente mística do judaísmo, a Cabala.

    De 1.200 d.C. A 1.500, ocorreram trabalhos cabalísticos afirmando a possibilidade em alguns casos de transmigração para corpos de animais. Esta ideia entrou em declínio depois, apesar de nunca ter desaparecido totalmente (11).

    Atualmente, a reencarnação não é professada por boa parte dos judeus, e muitos desses alegam que judeus não devem adotá-la. Ela ainda permanece vigente entre cabalistas, muitos grupo judaicos hassídicos (seita fundada no século XVIII) e até mesmo entre alguns ultraortodoxos.

    Para outros, como o professor e rabino Yehuda Ribco é lícito um judeu crer em reencarnação, mas não uma questão central do judaísmo, e nem mesmo ele a defende:

    Logo, e já passando a responder: graças a Deus não sou o único que não compartilha da ideia da reencarnação (gilgul haneshamot), pois houve outros, anteriores e imensamente maiores que este humilde mestre, que se opuseram, tal qual Saadia Gaon, Bajia ibn Pakuda, Iosef ibn Tzadik, e até (segundo alguns entendidos) o príncipe dos pensadores judaicos: Rambam [Maimônides], entre outros.

    Se bem é certo, outros insignes mestres e filósofos a sustentaram (Ramban [Nachmânides] e Baal Shem Tov, por exemplo, ambos posteriores a aparição pública do Zohar), não é por isso que a ideia da reencarnação é parte das crenças judaicas centrais, nem é obrigação que se compartilhe dela.

    (…)

    Em resumo: a reencarnação é uma crença individual (ou de certos grupos), tal como a descrença na mesma o é. É uma crença de natureza restrita e que não atenta contra os princípios gerais e superiores (Torá e halacá); nem tão pouco é obrigatório compartilhá-la. Portanto, não há razão de identificá-la ao judeu e ao judaísmo, tal como, por exemplo, a crença em alienígenas.

    De fato, a conversão do escritor judeu americano Norman Mailer à crença na reencarnação chamou atenção até da imprensa:

    Como todo construtor de crenças de ocasião, Mailer não quer perder o vínculo com a religião original. Embora os cabalistas acreditem na transmigração de almas, a reencarnação não faz parte da essência da fé judaica. Não é mencionada na Bíblia, nem na literatura rabínica”

    Revista Veja, edição 1834, ano de 2003, pág. 125.

    Já a ressurreição é dogma (ou lei como preferem) a todas as correntes do judaísmo:

    A crença na ressurreição dos mortos é declarada nas orações, na teologia e na lei: no fim dos dias, a morte morrerá. A certeza da ressurreição origina-se de um fato simples da teologia restauracionista: Deus já mostrou que pode fazê-la.

    Você observa que tudo o que o Sagrado, abençoado o seja, destina-se a fazer nos dia vindouros ele já se adiantou e fez por meio dos justos nesse mundo. O Sagrado, abençoado seja, levantará os mortos, e Elias levantou os mortos.

    O fato de Deus erguer os mortos leva à última pergunta: quem ele erguerá dos mortos? E a resposta é: “Todo Israel, com poucas exceções”. Por Israel entendem-se aqueles que serão erguidos dentre os mortos; praticar o judaísmo e guardar a Torá e escolher a vida eterna, de acordo com a admoestação de Moisés em Deuteronômio 30:19: “Portanto, escolhe a vida”. Aquela definição de quem é israelita e o que é Israel – aqueles que se levantarão do túmulo, o povo destinado à vida eterna nos céus – retira o modo de vida judaico do domínio meramente étnico ou terreno.

    [Neusner, cap VII]

    A morte, todavia, não assinala o fim da vida. Nos tempos de Deus, os mortos viverão novamente. A ressurreição representa a mais completa metamorfose de uma experiência desse mundo: a morte simboliza o seu oposto, a vida eterna. Na lei judaica, a reação à antecipada transformação traduz-se numa regra especial e estrita contra a autópsia ou a desfiguração do corpo. Os mortos viverão, portanto, o corpo deve ser preservado como foi em vida, tanto quanto possível, para a ressurreição vindoura.

    Idem, cap IV

    Portanto, é errôneo afirmar que a “ressurreição era a reencarnação entendida pelo judeus da época de Cristo”, pois mesmo os grupos que professam a gilgul modernamente, lhe dão tratamento diferente da ressurreição (12). Há até questões de ordem teológica própria, como “qual corpo será o ressuscitado?” Alguns grupos alegam que apenas última encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas (13).

    Do exposto acima, conclui-se que a doutrina da reencarnação entrou tardiamente no judaísmo, só sendo posta por escrito na Idade Média e ainda hoje não é consenso.
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    6 – Distorções Espíritas

    Ciclo da reencarnação

    Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa.

    Todas as versões acima quanto ao processo de ressurreição possuem um traço comum: de algum modo, o novo corpo espiritual é produzido a partir do antigo corpo material. Para os proto-ortodoxos, o mundo material era inerentemente bom como seu Criador, embora corrompido pelas forças do Mal. Mas no fim dos tempos, ele também seria redimido. Para os gnóstico, a situação era bem distinta: o mundo material fora criado por uma divindade inferior e maligna, escapar dele seria a atitude correta. O espiritismo, por sua vez, não julga o mundo material como algo ruim, embora ele tenha limites de melhoria (as leis naturais) e seja apenas um estágio transitório na jornada evolutiva de um espírito. Assim, não é incomum encontrar autores espíritas que tentam expor a ressurreição antiga como uma espécie de desencarne: o simples descarte do corpo físico e permanência do corpo perispiritual subjacente.
    Para obter esses efeito, lança-se mão dos seguintes artifícios:

    • A boa e velha misquotation: Escolher um pequeno fragmento a dedo para que ele, destacado do conjunto, aparente corroborar essa tese. Por exemplo, pegue I Coríntios 15:50: “Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade“. Agora, prolongue a citação até o versículo 55 e veja as implicações;

    • Desconsiderar a escatologia: A ressurreição em corpo espiritual ocorreria apenas no fim dos tempos, com a vinda do Messias (II Baruque) ou, para os cristãos, sua segunda vinda (cf. I Cor 15:20-28), ao contrários dos exemplos relatados evangelhos, cujos ressuscitados certamente morreriam outra vez, nem que fosse de velhice. O que aconteceria entre a morte nesta era e a consumação final é ambíguo nas escrituras, podendo-se buscar ao bel-prazer passagens sobre aniquilação, um Xeol de simples espera ou castigos e recompensas logo após a morte. De qualquer forma, a ressurreição não é um simples retorno ao mundo espiritual após o “desencarne”, mas o estágio final da existência humana (ao menos para os “salvos”) com data para ocorrer e de forma coletiva;

    • Fazer jogo com os evangelhos: O modelo de ressurreição apresentado acima é, entre os cristãos, essencialmente sinóptico e paulino. O cristianismo joanino, por sua vez, quase nada possui de escatologia. Para os primeiros, o Reino de Deus é uma mudança temporal e cataclísmica, ao passo a comunidade joanina o via como uma mudança espacial (ou dimensional, se preferir): “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18:36). Evangelho de João dá tanto valor ao espiritual, que até mesmo uma parte da comunidade em que ele surgiu (cf. Segunda Epístola de João) passou a negar que Jesus tivesse um corpo físico real, apenas aparentando um (i.e., inventaram o docetismo (14). Já no século II, o Evangelho de João seria, inclusive, admirado por gnósticos, que viram nele similaridades com sua doutrina (15). Óbvio que a proto-ortodoxia, ao adotar João como canônico, não o interpretava assim, procurando harmonizá-lo com os sinópticos. O discurso espírita, então, consiste em desfazer essa harmonização, ao enfatizar os itens convenientes da mensagem de João (16);

    • Usar a consultoria de judeus ortodoxos: Que, por coincidência, também creiam na gilgul neshamot. Nada contra um filho de Abraão expressar seu entendimento sobre o pós-morte. A questão é saber o quanto a opinião de um judeu moderno seria representativa no judaísmo do primeiro século. Mal comparando, seria como se fiar num católico para afirmar que o culto aos santos era corrente entre os primeiros cristãos. Note que não estou afirmando que seja errado cultuar santos ou acreditar na gilgul, a questão é que tais crenças são inovações que surgiram, em suas respectivas religiões, bem depois dos tempos de Jesus. Há muitas coisas, sem dúvida, em que os judeus ortodoxos foram conservadores, mas é irrealista supor que tenham permanecido estáticos por 2.000 anos e possam ser usados como “pedra de toque”, sem nenhuma ressalva, para estudar o judaísmo intertestamentário.

    ***

    Caso se queira realmente validar a crença da reencarnação na Bíblia, é necessário comprovar que o contexto em que ela foi produzido era reencarnacionista. As seguintes abordagens podem ser feitas:

    1. Obras que relatem certo ensino explicitamente: Foi, por exemplo, o caso da ressurreição em “II Baruque” ou nas cartas paulinas. Por outro, não seria viável considerar a reencarnação como presente no “nascer de novo” do diálogo entre Jesus e Nicodemos (Jo 3), pois o discurso é tão alegórico, que dá margem a múltiplas interpretações;

    2. Comentários religiosos: Os comentários rabínicos do midrash e as obras da patrística são silentes quanto ao assunto. Mesmo o sistema concebido por Orígenes, no século III, não era compatível com a proposta espírita para reencarnação. Gnósticos, sim, criam na reencarnação, só que, outra vez, “à moda deles”;

    3. Relatos de não religiosos: Flávio Josefo, pelo visto, revelou-se um tiro n’água.

    Assim, ao escolher frases a dedo, desconsiderar a evolução histórica do pós-morte judaica e tratar o cânon bíblico como monolítico, você pode até se dar bem contra religiosos presos à inerrância e autossuficiência bíblica, mas dificilmente poderá ser considerado um pesquisador.
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    Notas:

    (1) Cf. Gn 9:24-25, Dt 23:2, Dt 28:18, 2 Sm 12:13-14, 2 Sm 21:6, 1 Rs 2:33, 1 Rs 11:11-12, 1 Rs 21:29, 2 Rs 5:27, Is 14:21, Jr 16:10-11, Jr 29:21, Jr 32:18, Sl 109:14. Algumas passagens preveem o fim das punições hereditárias em um tempo futuro, como Jr 31:29-30, e algumas a negam desde já: Dt 24:16 e Ez 18:20.

    (2) Informo que II Baruque NÃO é continuação do deuterocanônico de mesmo nome, constante nas Bíblias católicas.

    (3) Obviamente, a unidade de medida “litro” não existia na época. Em versões inglesas do livro, encontra-se “a cor of wine”. Essa unidade de capacidade (cor) corresponderia a aproximadamente 400 litros (391 mais precisamente). Talvez um erro de digitação tenha transformado 400 em 40 e tradutor assim transcrito por extenso.

    (4) Compare essa fartura dos tempos pós-apocalípticos com aquela descrita mais acima no Livro de I Enoque, 10:9 -11:2. Um traço comum à literatura apocalíptica é a superabundância do Mundo Vindouro”.

    (5) Repare que os livros de Macabeus fazem menção explícita a orações pelos mortos. Isto pode ser um dos motivos que levaram os líderes da Reforma protestante a adotar a Bíblia hebraica como Antigo Testamento e assim eliminar de seu cânon um livro que iria contra a sua teologia, embora ele tivesse grande valor como documento histórico por narrar um genuíno episódio.

    (6) Se Flávio Josefo aponta os fariseus como defensores da reencarnação, como defendem alguns, favor explicar porque os maus, que mais precisariam de uma nova chance, não a teriam. Também explicar porque reencarnar num mundo de sofrimento seria alguma espécie de “recompensa”, se havia opções melhores…

    (7) No Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV

    A reencarnação fazia parte dos dogmas judaicos sob o nome de ressurreição. Somente os saduceus, que pensavam que tudo acabava com a morte, não acreditavam nela. As ideias dos judeus sobre esse assunto, e sobre muitos outros, não estavam claramente definidas, pois apenas tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o corpo. Acreditavam que um homem que viveu podia reviver, sem entender entretanto de que modo isso podia acontecer. Designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama mais apropriadamente de reencarnação. De fato, a ressurreição supõe o retorno à vida do corpo que está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, porque os elementos desse corpo estão, desde há muito tempo, desintegrados na Natureza. A reencarnação é o retorno da alma ou Espírito à vida corporal, mas em um outro corpo, formado novamente para ele, e que não tem nada em comum com o que se desintegrou. A palavra ressurreição podia assim se aplicar a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, conforme se acreditava, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, porque João tinha sido visto desde criança e sabia-se quem eram seu pai e sua mãe. João, portanto, podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado.

    Tal argumento de Kardec é muito questionável. Mesmo os grupos judaicos que desenvolveram em tempos medievais o conceito reencarnacionista gilgul ainda creem em ressurreição no fim dos tempos. Algumas facções alegam que apenas última encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas [cf. Blau]. O fato de a ressurreição ser inviável do ponto de vista científico é irrelevante do ponto de vista de um historiador. Se os judeus do período intertestamentário advogavam uma ressurreição física, então qualquer estudo que se faça sobre eles deve respeitar isso, do contrário correrá o risco de distorcer o passado para que se adeque a ideias e vieses do presente. Por último, havia relatos que deixavam bem claro que tal ressurreição estava longe de ser reencarnação nos moldes espíritas ou um processo exclusivamente espiritual. O livro de II Baruque dá um exemplo disso, apresentando uma ressurreição física seguida por uma espécie de transfiguração.

    (8) O livro Apócrifos – Os Proscritos da Bíblia, vol. III, de Maria H. O. Tricca possui uma gigantesca lacuna em II Baruque, que vai do capítulo XL ao LXXXIX. Não creio que tenha sido só o meu exemplar, pois a numeração das páginas não dá saltos. Ao que me parece, não há ruptura no texto, apenas na numeração dos capítulos. Os capítulos XLIX – LI corresponderiam aos XCIX – CI dessa edição. Como consequência, o livro está incompleto. Ignoro se isso foi corrigido em edições posteriores e, por via das dúvidas, traduzi a referida passagem do texto inglês de Charlesworth.

    (9) Os saduceus, de acordo com o Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, item 3

    Seita judia que se formou por volta de 248 a.C.; assim nomeada devido a Sadoc, seu fundador. Os saduceus não acreditavam nem na imortalidade da alma, nem na ressurreição, nem nos bons e maus anjos. Entretanto, acreditavam em Deus, mas não esperavam nada após a morte, somente o serviam em vista de recompensas temporais que, segundo a crença que tinham, era ao que se limitava sua Providência. A satisfação dos sentidos era para eles o objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, os saduceus se prendiam ao texto da antiga lei, não admitindo nem a tradição, nem nenhuma interpretação; colocavam as boas obras e a execução pura e simples da lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como podemos ver, os materialistas, os deístas e os sensualistas daquela época. Essa seita era pouco numerosa, mas contava com personagens importantes, e se tornou um partido político constantemente oposto aos fariseus.

    Não deixa de ser um tanto ilógico associar uma seita que cria em Deus e o temia com materialistas. O fato de crerem que esta vida era a única que poderiam almejar não os torna automaticamente sensualistas. Se as punições também eram deste mundo, era preciso seguir condutas éticas para evitá-las, e isso também pode ser encontrado na Antiga Lei. Seria um pouco de preconceito por não crerem em vida após a morte?

    (10) Vide [Raphael, cap. VIII, pp. 314-20] para uma análise histórica mais aprofundada.

    (11) De [Asheri, cap. XLI, pp. 251-2]:

    REENCARNAÇÃO: Em hebraico, a reencarnação é chamada de gilgul neshamot, e um grande número de judeus ortodoxos sustenta que em certas circunstâncias, nunca definidas de maneira muito clara, a alma de um judeu pode retornar à vida no corpo de outra pessoa ou até no de um animal ou de um planta. Não é necessariamente como castigo que o gilgul ocorre, mas com frequência alguma boa ação que a alma foi incapaz de realizar enquanto estava na Terra é completada na reencarnação dessa alma em outro corpo.

    Ver também [Raphael, cap. VIII, pp. 318-9].

    (12) Fazendo coro com Neusner:

    O MESSIAS E A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS. De todas as crenças, esta é a mais amplamente aceita, sendo considerada por muitos ortodoxos como absoluto artigo de fé. Em resumo, diz-se que algum dia aparecerá um judeu que anunciará o fim do mundo, tal como o conhecemos, e a criação do Reino de Deus, no qual, finalmente, o leão se deitará ao lado do cordeiro. Esse judeu, e ele será uma pessoa, não uma encarnação de Deus (como se tal coisa fosse possível), é chamado de Mashiach, ou Messias. Quando ele chegar, haverá uma ressurreição dos mortos, chamada em hebraico de T’chiat Ha-metim, e todos os judeus ressurrectos reunir-se-ão em Israel, para lá viver eternamente. O Messias será um descendente da Casa de Davi e seu anúncio será feito por Elias, o Profeta (Eliahu Anavi).

    Nada muito diferente das crenças apocalípticas circulantes pela Judeia do século I.

    (13) Cf. [Blau]

    (14) Qualquer semelhança com Roustaing não é mera coincidência.

    (15) Em João, Jesus é um ser divino (O Verbo) enviado à terra como figura redentora (“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida“, Jo 14:6) para que por meio dele tenhamos o conhecimento necessário para nos libertarmos (“Conhecereis a verdade e a Verdade vos libertará“, Jo 8:32). Essas similaridades fizeram de João um prato cheio para os gnósticos e o primeiro comentário a esse evangelho foi feito por um gnóstico: Heracleão.

    (16) Quando o assunto é a Trindade, a tática é oposta: enfatizar os sinópticos e menosprezar João.
    [topo]

    Para saber mais

    – Asheri, Michael; O Judaísmo Vivo – As tradições e as leis dos judeus praticantes, Imago, 1995.

    Bíblia de Jerusalém, Sociedade Bíblica Internacional e Editora Paulus, 1995.

    – Blau, Yitzchak; Body And Soul:Teh.iyyat ha-Metim and Gilgulim in Medieval and Modern Philosophy, publicado em The Torah u-Madda Journal (10/2001).

    – Charlesworth, James H.; Old Testament Pseudoepigrapha, vol. I, Doubleday, 1983.

    – Ehrman, Bart D.; Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium, Oxford University Press, 2001.

    – Neusner, Jacob; Introdução ao Judaísmo, Imago, 2004.

    – Raphael, Simcha Paul; Jewish View of the Afterlife, Aronson, 2004.

    – Reddish, Mitchell G., Apocalytiptic Literature: A Reader [Literatura Apocalíptica: um Manual de Leitura], Hendrickson Publishers, Inc., 1995.

    – Schweitzer, Albert; The Quest of the Historical Jesus [A Busca do Jesus Histórico], Acessado em 10/09/2009 no portal Early Christian Writings.

    – Tricca, Maria Helena de Oliveira (compiladora); Apócrifos – Os proscritos da Bíblia, tradução do alemão de Ivo Martinazzo, vol. I e III, Ed. Mercuryo, 2003.

    Para acessar

    Jewish Eschatology, acessado em 05/10/2013.

    Rabbi scheinerman – After life, acessado em 05/10/2013.

    Ser judio – Vida y Muerte, acessado em 05/10/2013.

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Analisando as Traduções Bíblicas

Tem caroço nesse angu!

Um Adendo

Para saber mais

Ao final de março de 2002 o jornalista Élio Gaspari publicou artigo n’O Globo (“Sinfonia dos Educatecas Doidos”) apontando erros factuais sobre o livro didático “O Brasil Atual e a Mundialização”, de Zilda Iokoi. Parte de sua motivação não estava nos erros em si, mas no fato de o livro ter se tornado a fonte de estudo para mil escolas públicas. Foi um auê na comunidade acadêmica. Gaspari respondeu com outro artigo (“Aos colegas, tudo. Aos fatos e aos alunos, o rigor da lei”) a um professor da USP que saíra em defesa de sua colega. Ele acusava o jornalista de ter “ranço positivista da história das datas, dos nomes e da sucessão dos fatos“. Gaspari deu um troco à altura, mostrando que positivismo nada tem a ver com “datas e nomes”, a historiografia clássica podia, sim, fazer obras-primas como “o 18 de Brumário de Luís Bonaparte” na qual um dos maiores autores da aclamada “ala progressista” – Karl Marx – não se furtou ao uso de pesada bagagem factual. Toda correta. De quebra, jogou mais erros factuais do livro e alguns extratos de conteúdo conceitual, no mínimo, questionável, que indicavam um viés ideológico da autora de “O Brasil…” tão alto a ponto de transformar a história numa sucessão de teorias da conspiração.

Para quem estava de fora, parecia que Gaspari incomodara não por criticar um livro, mas por ser um “estranho no ninho”, furão, bicão. E quem sabe o fosse mesmo, por isso não teve nenhum pudor de meter o bedelho numa situação a qual os profissionais da área se omitiam. E nada de chamá-lo de reacionário, pois quem leu seu livro “Ditadura Escancarada” sabe muito bem de quem ele toma partido. Bem, o que tem a ver a pendenga acima com esta resenha? Muita coisa. Entre as idas e vindas internéticas, recebi um comentário de um apologista: “Não acho nada ético ficar apontando erros de livros. Devemos alertar os autores para que corrijam suas obras”. Curiosamente, ele mesmo confessara não ter tido muito sucesso em fazer Celestino corrigir um erro. Daí pergunto: será que Gaspari conseguiria que uma versão revisada de “O Brasil…” se não tivesse jogado “esterco” no ventilador? A postura que rolou mais entre os historiadores não foi a de ética e, sim, o corporativismo. Por isso achei um tanto ingênua a fala de meu interlocutor. Talvez ele achasse ético um portal com os erros e contradições da Bíblia (há muitos por aí), sobre as Cruzadas, o Santo Ofício ou atacando o padre Quevedo. Isto não é um “tu também”, simplesmente a constatação de uma propriedade intrínseca da natureza humana: muitas vezes só nos aperfeiçoamos sob o atrito com nossos adversários. Assim como muito deste portal evoluiu no melhor estilo “corrida armamentista”, sofisticando-se a medida que as refutações a ele aumentavam, quem sabe esta resenha sirva para um “Analisando…” revisado, ou que simplesmente saia de circulação. De repente o tiro sai pela culatra e o leitor fica curioso demais e sai correndo comprá-lo. Outros podem pensar duas vezes antes de abrir a carteira, uma parcela ínfima – porém agressiva – de paladinos sairá em sua defesa.

Há algo de errado com esta obra, que deveria ser seriamente repensada e revisada. Muito de lá já foi falado em “Reencarnação na Bíblia”. Primeiro e principal erro, que é a causa de muitos outros ao longo da obra, é a crença de que existe disponível um original hebraico (i.e. o texto massorético – TM) a partir do qual toda tradução “fidedigna” deve se calcar. No caso, a dele. O TM, apesar de estar no idioma do original, ter tido grande estabilidade e ser o ponto de partida dos estudantes, está longe do que foram os “autógrafos” de cada um de livros. Mesmo que não existisse nenhuma outra versão, paralelos em textos análogos extraídos de livros distintos denunciam evolução do conteúdo e edição. A consequência direta dessa postura do autor é uma verdadeira depreciação do testemunho versional. No capítulo II, o autor traça uma história das traduções bíblicas simplesmente que distorce a origem das versões gregas e latinas e retira todo o seu valor como aparato crítico para o TM, em especial a Septuaginta (LXX). Isso poderia ser até compreensível antes da restauração e publicação dos manuscritos do Mar Morto, quando se pensava que as discrepâncias do texto grego eram devido a traduções parafrásticas ou puro erro. Hoje, principalmente devido aos manuscritos, sabe-se que havia uma pluralidade textual grande no período intertestamentário e muitos texto encontrados refletiam a tradição grega. Ou seja, a LXX é uma janela para uma versão hebraica hoje perdida. O desprezo da LXX ainda era comum mesmo entre grandes autores até a década de 80, como observou o hebraísta Emanuel Tov, o que poderia ser até um atenuante para Celestino, mas não o é como explicarei depois.

Celestino aparenta realmente entender de hebraico. O que não fica muito claro é o quanto ele entende de uma gramática histórica do hebraico, para uma crítica textual de qualidade. No capítulo VIII, em que analisa a troca das preposições (`al – sobre) em ex. 20:5 e 34:7. O capítulo abre com uma transcrição em hebraico desta preposição e outra (`ad – até) sugerindo nas entrelinhas que uma não poderia ter sido trocada pela outra numa tradução descuidada, ainda que bem intencionada. O que mela a análise do autor é que (`al) pode ter muito mais sentidos, em parte devido a uma evolução linguística do hebraico que a tornou homófona com outra preposição (‘el – a, para), o que pôde ter levado a confusões quando um texto era ditado para outros copiarem. O resultado é que se pode achar textos hebraicos (4Qsama) em que essas três preposições foram intercambiadas. Além de faltar uma visão histórica da evolução do hebraico, há coisas que chamam muita atenção nesse capítulo: o texto grego é usado quando confirma a tese do autor (ex. 34:7) e omitido quando discorda (ex. 20:5). E mais: Celestino erra quanto ao uso da preposição latina in, que explica muito do que ocorre nas traduções modernas que se baseiam na Vulgata. Poucas análises do livro são tiradas do latim, não deixando claro o quanto o autor domina desse idioma.

Os erros citados nos parágrafos acima poderiam ter sido facilmente evitados caso uma leitura mais cuidadosa do “Bíblia Judaica e Bíblia Cristã” (J. Barrera) – constante na bibliografia de “Analisando…”- fosse feita pelo autor. O valor da LXX e as trocas (`al/’el) não deveriam ser novidades para Celestino. Outra coisa que surpreende é no capítulo VI – um estudo de Sl 19:8 – ser afirmado que a palavra nefesh (sopro, espírito, alma, vida, ser) jamais poderia ter sido traduzida por “vida” tal como é seu similar grego psiké. Ironicamente, ela pode sim ser vertida para esse sentido como atesta outro livro de sua bibliografia – “O Judaísmo Vivo” (M. Asheri), cap. XLI – ainda que não seja seu sentido mais usual. Vale lembrar que o sentido “restaura a alma” pode ser encontrado em comentários de rabinos medievais como Gaon e Rashi (Sl 23:3). No capítulo VII, em que se dedica à tradução do salmo 23, a palavra chaim (“vida”, com sufixo possessivo chaiâi) é traduzida como plural “minhas vidas”. De fato, chaim é uma palavra palavra plural, mas não de “vida”. Ao pé da letra, ela significa “vivos” (pl. de chayy) e é em geral traduzido por “vida”, “duração da vida”, “anos de vida”. Como em Gn. 23:1: “A duração da vida de Sara foi de 123 anos”. O próprio autor traduziu Gn 2:7, no cap. IV, “… um sopro de vida…” (e não “vidas”) e reiterou esse sentido no cap. VI. Muda misteriosamente de opinião no VII sem dar ao leitor a informação que hebraico emprega muitas vezes o plural sem se referir a um plural numérico (ex. dom, “sangue”; domym, “derramamento de sangue”).

Outras questões de gramática também repercutem na língua grega. A preposição grega (ek/en) é traduzida por um simples “de” no capítulo XVII, ao contrário de seu sentido completo “a partir de”, o justificaria o uso do artigo na tradução para o português da conversa de Jesus com Nicodemos (“da água e do espírito” x “de água e de espírito”). Como se não bastasse, no capítulo VII esse mesmo versículo apareceu como “pela água e pelo espírito”. Além de trocar a preposição por outra bem distinta, pôs um artigo que mais à frente diria não existir. Ainda acerca do mesmo episódio, no que se refere à querela “do alto” x “de novo” (ambos expressos por anothen), Celestino lança mão de um suposto texto hebraico da passagem que… não possui fonte alguma! O evangelho de João só possui textos e fragmentos mais antigos em grego. Ainda se discute se a redação original foi em aramaico, mas ainda falta uma evidência documental disto. Como João foi obra de uma comunidade de cristãos helênicos, é possível que este jogo de palavras (Jesus falou um sentido, Nicodemus entendeu outro) tenha realmente existido. Traduções hebraicas do Novo Testamento datam do século XIX. Ah! E o por ele elogiado Chouraqui (cap. VIII) é um adepto do jogo de palavras. Em Tito 3:4-5, traduz palinggenesias como “reencarnação”, um possível, embora improvável uso, da palavra, principalmente quando confrontada com Mt 19:28 e outros autores cristãos.

No capítulo IX, é apresentada uma teoria da conspiração de que a doutrina da reencarnação teria sido suprimida do cristianismo por ação da imperatriz bizantina Teodora, que teria banido os ensinos do teólogo Orígenes no século VI. A questão é que o suposto estopim para a perseguição dela (o assassinato de 500 prostitutas) nunca ocorreu. Não há nenhum cronista antigo que respalde isso, mesmo o virulento Procópio fala somente de um confinamento de prostitutas em um mosteiro. Apenas caça-níqueis modernos vendem essa moeda falsa. A data da morte de Orígenes está com um erro da ordem de uns três séculos, dando a entender que a Imperatriz nem esperou o cadáver do dito cujo esfriar direito para começar a agir e, quem sabe influenciado por esse erro, o autor passa por cima das controvérsias origenistas que vieram muito antes do II concílio de Constantinopla. O pior de tudo é ele teve acesso a uma versão correta dos fatos através de um item de sua própria bibliografia (Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos, Ed. Paulus, 1995) e preferiu a tese conspiratória.

Há muitos pormenores desenvolvidos no portal. Por hora fica claro que o livro está longe de ser algo imparcial (ou abusa demais do direito de ser parcial). É um livro direcionado a um público específico e se beneficiou grandemente da ignorância das línguas bíblicas entre seus leitores e, principalmente, do despreparo de católicos e protestantes. Em mais de um trecho, seu trabalho de pesquisa aparenta ser superficial, podendo ser contestado até por simples enciclopédias como a Barsa (esta ao menos acerta a data de falecimento de Orígenes e o sentido de “apocatástase”) e gramáticas. No geral, o livro é um enorme desserviço à inteligentsia espírita, estando mais para pura apologética, do que para uma verdadeira crítica textual. Um dos poucos instantes em que revela valor é quando refuta traduções que associam “agoureiros” e “adivinhos” a “médiuns” e “espíritas”. Olhando as técnicas usadas por seitas cristãs para fazer essas transformações linguísticas, repara-se algo interessante. Por exemplo, em Lv 20:27 a palavra ob tem o significado literal de “vaso”, um recipiente que é preenchido com algo, um médium que é incorporado por algo (demoníaco, na concepção deles). Ou seja, uma senhora livre associação de ideias; não muito diferente da transformação de “renascimento” em “reencarnação” de Tito 3. “Analisando…” até é um bom livro quando defende, mas quando parte para o ataque, se vale das mesmas técnicas de seus adversários. Talvez se mereçam por terem mais em comum (no mal sentido) do que pensam.

Avaliação: 3. A serem pagos em uma única cédula de papel-moeda.

Recomendado para: quem quer bancar o maioral em fóruns de internet, especialmente nos cristãos. Mas cuidado para que a máscara não caia e passes uma tremenda vergonha. Aliás, às vezes eu dou uma forcinha para que isso ocorra mais rápido.

Um Adendo

Em razão das dúvidas e clamores emitidos pelo leitor Fabrício (vide comentários abaixo), venho explicitar alguns pontos sobre por que não considero Analisando as Traduções Bíblicas possuidor de algum valor acadêmico ou científico. Julgava desnecessário fazer isso, visto que meus próprios textos deveriam falar por si mesmos, mas reações como a dele me deram o alerta que nem tudo está tão cristalino assim. Uma autocrítica é que, não afã de me embasar e exaurir assuntos, acabei por exaurir o leitor. O resultado é que muitos devem fazer leituras em diagonal e não entender realmente a gravidade da questão. Podem até terem lido a resenha acima mas não os link onde os assuntos são desenvolvidos. Como suponho que as angústias de Fabrício ante alguém que resolveu tocar numa das “vacas sagradas” do movimento espírita devem ser comuns a outros leitores, venho aqui bater os pontos mais nevrálgicos.

Eis o resumo do resumo: o problema com este livro não é o que ele diz, mas as coisas que poderiam ter sido ditar e não foram. Ou, melhor, as coisas que o autor deveria ter dito, mas, por algum ignoto motivo, omitiu. Como eu sei disso? Simples, usando a própria bibliografia que ele dá. Desculpem-me por ser repetitivo:

  • O autor se mostra um adepto da “primazia massorética”, i.e., a principal fonte hebraica disponível hoje – o Texto Massorético (TM) – seria o original em que toda e qualquer tradução deveria se basear. A questão é que o começo dos trabalhos dos sábios massoretas se deu pelo menos quatrocentos anos após os autógrafos (i.e, os primeiríssimos manuscritos) dos últimos livros do Velho Testamento e mais de um milênio depois dos textos mais antigos. Ou seja, eles preservaram maravilhosamente bem um conjunto de textos que já passara um bom tempo com uma transmissão sem estrito controle e, portanto, passível de flutuações (cf. [Barrera, IV.1, p. 439]). Ademais, o TM foi fixado, grosso modo, a partir de um único conjunto de textos (cf. [Barrera, III.2, p. 325]), e não de uma seleção dos melhores manuscritos de cada livro. Enfim, ainda que ele diga que no começo “a Bíblia possuía uma só língua ([cap. II, p.41]), não existia uma só Bíblia. As variantes que hoje encontramos também são fruto de matrizes hebraicas diversas e não apenas de sucessivas traduções;
  • Um efeito colateral da postura acima é praticamente o menosprezo do testemunho versional em Analisando…, com direito a uma motivação mais religiosa que científica:

    O talmude comenta que “o dia da tradução foi tão doloroso quanto o dia em que o bezerro de Ouro foi construído, pois a Torá não poderia ser acuradamente traduzida’. Alguns rabinos disseram que ‘as trevas cobriram a terra por três dias”, quando a LXX (Setenta ou Septuaginta) foi escrita”[grifos do autor]

    Idem, p.44

    De fato, por muito tempo se considerou a Septuaginta (LXX) como uma tradução no mínimo dúbia, por haver considerável desigualdade entre ela e o massorético em diversas partes. Essa opinião, contudo, ficou obsoleta após a divulgação dos Manuscritos do Mar Morto, pois muitos deles se assemelhavam ao que seria a matriz hebraica (Hebrew Vorlage) da LXX (cf. [Barrera, IV.1, p.448]). Assim, hoje se considera a LXX como uma janela para uma versão hebraica perdida;

  • O autor até aceita o testemunho versional quando esse o corrobora. Por exemplo, em Ex 34:7, a LXX traduz todas as ocorrências da preposição hebraico `al pela grega epi (cujo sentido básico é “sobre”). O autor ressalta isso (cap. VIII, p. 134), porém “esquece” de informar ao leitor que a LXX traduz a tal preposição, em passagens similares como Ex 20:5 e Nm 14:18, também como heos, i.e, “até” (cf. edição crítica de Alfred Rahlfs);
  • Também com traduções modernas é feita a mesma coisa:

    A excelente tradução de André Chouraqui também apresenta o texto correto sem o uso do ATÉ, além de não apresentar nenhum preconceito religioso.

    Cap VIII, 135

    Isso é verdade para Ex 34:7, mas Chouraqui usa ATÉ para Ex 20:5 (cf. [Nomes, p.245]);

  • Outra tradução moderna:

    A tradução da Torá (A lei de Moisés e as Haftarots) do rabino MEIR MATZLIAH MELAMED usa a preposição correta.

    Sim, porém de um jeito diferente daquele encontrado em Analisando…:

    Êxodo 20:5
    Analisando
    as Traduções Bíblicas
    que visito a culpa dos pais sobre os filhos, na terceira e quarta geração dos que me odeiam…
    Torá:
    A Lei de Moisés
    que visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e sobre as quartas gerações, aos que me aborrecem…

    E aí? Essa diferença é uma mera questão de gosto estilístico ou a forma como está em Analisando… pode induzir um sentido de salto entre gerações no leitor? De qualquer forma, Torá: a Lei de Moisés traz a seguinte nota para Ex 20:5

    Quando os filhos continuam praticando a iniquidade de seus pais, pois os filhos não devem seguir o mau exemplo dos pais, depois de conhecer suas consequências.

    e existe observação similar em Ex 34:7. Portanto, há uma maneira de interpretar esses dois versículos (e Dt 5:9 e Nm 14:18) sem apelar para a reencarnação e mantendo a responsabilidade individual de cada um. Uma linha de raciocínio que estava acessível ao autor e não foi explorada por ele;

  • Mas afinal, qual a tradução correta para a preposição hebraica `al: “em, sobre” ou “até”? As duas. Originalmente, apenas o primeiro sentido existia, mas uma mudança linguística fez com que ela pudesse assumir o outro também:

    Algumas consoantes hebraicas representam sons não conhecidos no português, como é o caso do ‘alep (‘), oclusão glotal surda, e do `ayin (`), fricativo glotal sonoro, e algumas cinco sibilantes conhecidas no hebreu. Nos Manuscritos do Mar Morto e até na tradição massorética é frequente a confusão destas guturais (p.ex.: `l, sobre e ‘l , até). As variantes dialetais e as modificações linguísticas de uma a outra época originaram numerosas confusões. Exemplo típico é o da diferente pronúncia de xibbolet na montanha de Efraim ou sibbolet na Transjordânia, que deu origem ao famoso episódio relatado em Jz 12:5-6

    [Barrera, parte I.1, p. 69]

    Aliás, O Dicionário Hebraico-Português, de Rifka Berezin – constante na bibliografia de Analisando… – em seu verbete para `al (pág. 501) traz os seguinte significados:

    sobre, em cima; perto, junto; até, por, para

    Os três último, devem ter se originado da confusão entre `al e ‘el nos tempos bíblicos. Contudo, apenas o sentido de “sobre” encabeça o capítulo VIII de Analisando…;

  • Seu dicionário grego também informa uma multiplicidade de sentidos para epi:

    Epi - Dicionário de Isidro Pereira

    De particular interesse, são as acepções para quando esta preposição rege o caso acusativo (ac.);

  • No caso das versões latinas, a Vulgata mais especificamente, fiquei em dúvida com relação ao quanto ele domina do idioma. Na questão dos versículos Ex 20:5 e Ex 34:7, ele atribui à preposição latina in unicamente o significado de “em” (cap. VIII, p. 134-5). O próprio dicionário que ele utilizou informa que ela pode assumir diversos significados, conforme o caso (ablativo ou acusativo) que esteja regendo:

    In - Dicionário de António G. Ferreira

  • Ao final do capítulo VIII, o autor diz:

    Não sei como encontraram este sentido para a língua portuguesa, nem de onde o tiraram, pois, no hebraico, bem como, no grego e no latim, ele não existe.

    p. 135

    Ele pode até não saber mesmo, mas teria como.

  • Mudando de assunto:

    No entanto, na Bíblia de Jerusalém e na Bíblia Tradução Ecumênica, colocaram a palavra espírito (néfesh), como vida. Isto porque os tradutores se basearam em um dos significados gregos da palavra psyké (alma), que também pode significar “vida“, mas esta adaptação só pode ocorrer no significado grego, porque, no texto original em hebraico, isto não é verdadeiro, pois neshamá e nefésh significam espírito mesmo (Veja 2,7) e não vida (chaim) que, em hebraico, é totalmente diferente de (neshamá) e (néfesh) tanto na grafia quanto em significado. E aqui, especificamente, significa espírito.

    cap. VI

    Porém, uma das próprias fontes do autor -o livro O Judaísmo Vivo– diz:

    Nefesh é a centelha que mantém vivos os seres humanos. Quando falamos de “preservação da vida”, para qual quase todos os mandamentos podem ser desprezados, a expressão hebraica é pikuach nefesh. No mesmo sentido, o “perigo à vida” é denominado sakanat n’fashot. Não devemos pensar na nefesh como sendo simplesmente uma força vital mecânica ou animal; ela também contém a personalidade do ser humano, mas parece faltar-lhe qualquer qualidade puramente espiritual. A implicação do acima dito é que ela morre com o corpo.

    [Asheri, cap XLI, p. 253]

    Ou seja, em Analisando… tenta-se reencarnar algo perecível.

  • Entremos agora no famigerado II Concílio de Constantinopla ou V Concílio Ecumênico. No capítulo XI de Analisando … é dito:

    A Igreja Católica aceitava a reencarnação até o ano 553 da nossa era (p .157)

    (. . .)

    Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina Cristã.

    Devido a esta sua crença, 299 (duzentos e noventa e nove) dias, após sua morte, contra ele a igreja decretou a excomunhão. O segundo Concílio de Constantinopla, no ano 553, decretou: Todo aquele que defender a doutrina mística da preexistência da alma e a consequente assombrosa opinião de que ela retorna, seja anátema.

    Até esta época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.
    (p. 158)

    (. . .)

    O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos2.
    (p. 159)

    Essa tese de que a Igreja aceita a reencarnação até o século VI foi disseminada por diversos autores espiritualistas como Prophet, Atkinson, J.R. Chaves, etc., que também aparecem na bibliografia de Analisando…. Note que não se fala de algum grupo específico de cristãos, geograficamente determinado e adepto de uma versão muitíssimo particular de reencarnação. Não: toda a Igreja Católica aceitava a reencarnação.

    A terceira citação acima foi deixada propositadamente com o índice (2) que constava no original. Este número nada mais é do que a referência bibliográfica:

    2. Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

    Bem, o que realmente continha o texto da coletânea de Alberigo acerca do origenismo?

    Nesse contexto já complicado, um novo movimento – o origenismo – veio tornar a situação realmente insolúvel. É verdade que Orígenes fora condenado há muito tempo, mas sua irradiação intelectual nunca cessou, e seu misticismo exercia constante atração sobre os monges instruídos do deserto. Na realidade, o origenismo jamais desapareceu das zonas sírio-palestinenses. Era tolerado na medida em que não criava problemas. Ora, na efervescência provocada pelas decisões do concílio de Calcedônia, tudo estava envolto pela suspeita de heresia. Pelo final do séc. V, o origenismo reapareceu sob a forma de contestação contra a ortodoxia, contra o monofisismo e contra o nestorianismo. É claro que essa quarta via não tinha muitas possibilidades em contexto tão carregado como aquele.

    [Alberigo, p. 125 ]

    Ou seja, a única fonte acadêmica sobre o assunto constante em Analisando… afirma que origenismo não só já foi condenado anteriormente, como permanecia apenas entre sectários. Mais à frente:

    Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o Monge, ed. ch. De Boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos.

    [Alberigo, p. 134 ]

    A questão não interessava aos ocidentais“, claro, pois eles – os origenistas – estavam nos mosteiros da Síria e da Palestina. De onde saiu, então, a ideia de que “A Igreja Católica aceitava a reencarnação”? Não foi do livro de Alberigo, com certeza.

    Quanto ao gatilho que levou à convocação do V Concílio, Severino Celestino da Silva opta pela versão trazida por José Reis Chaves:

    O papa, Vigílio, apesar de se encontrar em Constantinopla, recusou-se a participar do concílio convocado pelo imperador e tampouco se fez representar. O Concílio pressionado pelo imperador excomungou o papa. O papa Vigílio acabou reconhecendo o concílio em troca da suspensão de sua excomunhão.

    A esposa de Justiniano chamada Teodora, teve muita influência nos assuntos do marido e até no que se referiu à teologia. Foi ela quem acomodou os monges egípcios e os clérigos siríacos nos vários palácios da capital e sobretudo no palácio Hormisdas, que se tornara o centro da propaganda monofisista.

    Por ter sido uma prostituta, suas ex-colegas se sentiam orgulhosas e decantavam tal honra. Mas esse fato a revoltava e se constituía numa desonra, fazendo com que mandasse matar todas as quinhentas prostitutas de Constantinopla.

    Os cristãos da época passaram a chamá-la de assassina e a dizer que ela deveria ser assassinada, quinhentas vezes, em vidas futuras. Este seria seu carma por ter mandado matar suas quinhentas ex-colegas prostitutas.
    A partir daí, Teodora passou a odiar a doutrina da Reencarnação e como mandava e desmandava em meio-mundo através de seu marido, resolveu partir para a perseguição sem tréguas contra essa doutrina e contra maior defensor que era Orígenes.

    p. 158-9

    O único problema é que Teodora já estava morta em 548, uns cinco anos antes do concílio. Será que ela atuou na primeira condenação em 543? Alberigo explana que:

    Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as ideias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

    [Alberigo, pp. 130-131]

    Teodora nada teve a ver com a história (nem houve assassinato de 500 prostitutas). Foi tudo um problema local levado ao arbítrio do imperador e o papa não hesitou em assinar a decisão do sínodo, visto que os ocidentais não davam a mínima por Orígenes. A questão nevrálgica e real motivação para o V Concílio foram os “Três Capítulos”, i.e., a condenação de antigos teólogos cujos escritos estavam sendo utilizados pelos nestorianos (adeptos de uma distinção radical entre as naturezas humana e divina de Cristo). Justiniano esperava angariar com isso a simpatia dos monofisitas – que advogavam a preponderância da parte divina – e trazê-los de volta para a ortodoxia. Embora tais teólogo tivessem realmente sido verdadeiros protonestorianos, eles morreram dentro da ortodoxia e, por isso, o papa e demais bispos ocidentais estavam reticentes. Os ortodoxos da Palestina apenas aproveitaram a discussão dos “Três Capítulos” em Constantinopla para resolver de vez seus problemas com os origenistas;

  • O equívoco dos “299 dias” para o V Concílio contados após a morte de Orígenes deve ter se originado de um “copy/paste” de O Livro Tibetano dos Mortos [(W.Y. Evans-Wentz, Ed. Pensamento, p. 177]. Isso foi apenas, digamos, “a cereja do bolo” de um problema bem maior: parte da bibliografia de Analisando… é ruim, composta de livros de leigos que às vezes se enveredam por temas que não dominam e não se preocupam em pesquisar a fundo. Por outro lado há livros bons como os supracitados A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, de Barrera, A História dos Concílios Ecumênicos, de Alberigo, e as traduções de André Chouraqui; contudo tenho a impressão que o autor não os leu devidamente ou fez uma leitura muito seletiva. Entre uma opinião acadêmica desfavorável e outra mais confessional que o corrobore, o autor parece preferir a segunda;
  • Há uma falha em particular que não é por uma dele fonte dizer algo em contrário, mas por ela simplesmente inexistir:

    Esta ambiguidade de entendimento só acontece na língua grega, porque no hebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com Nicodemos, este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode significar ”do alto”. Diz o seguinte: (“im Iô iualed ish mimkôr ’ai lô-iukal lirôt et-malkut haelohim”) im=se, =nâo, iualed= incompleto do grau qal do verbo “nolad”= nascer, ish= um homem, mimekôr= palavra composta, formada por mi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão hebraica “Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da vida”. Observe que não existe nada referente “ao alto”, no texto grego, como muitos querem se fazer entender. Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem, no sentido de se voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente, “não poderá” (lô-iuchal=incompleto do verbo iachôl=poder) ver o reino de Deus (lirôt et-malkut haelohim).

    Cap. XVII, p. 239.

    Aqui o autor discute se melhor tradução para a palavra grega anothen, falada por Jesus em sua conversa com Nicodemos (Jo 3:3), seria “de novo” ou “do alto”. Ele conclui que o primeiro significado seria o correto, pois tal ambiguidade não existiria na língua original. Bem, ainda estou para encontrar algum teísta (espíritas entre eles) a se perguntar se tal diálogo teria realmente ocorrido e, caso sim, se alguém estava por perto tomando nota. O Evangelho pode ter sido escrito diretamente em grego, língua em que esse jogo de palavras era válido. Outra questão é quanto a língua em que esse diálogo teria se dado: o hebraico não era mais falado na Galileia à época em que Jesus viveu. Ainda era uma língua litúrgica, mas é duvidoso que Nicodemos tenha se dirigido a Jesus em outra língua que não fosse a vernacular, o aramaico. O pior não é isso: de onde saiu esse texto em hebraico que foi analisado? Todas as cópias antigas dos evangelhos chegaram até nós em grego koiné e a versão Peshitta está em siríaco. O autor deve ter se valido de um “retroversão” (como edição hebraica de Franz Delitzsch), porém não achei nenhum Novo Testamento em Hebraico na bibliografia;

  • Por fim, teço uma crítica ao sistema de referência adotado no livro. O autor indica apenas de qual obra foi extraída uma citação, sem menção alguma ao capítulo ou página. Embora essa forma de citação não seja desconhecida no meio acadêmico, ela se presta quando utilizada para referenciar artigos curtos. Quando aplicada a livros ao estilo “calhamaço”, seu efeito é dificultar a checagem das fontes por outrem. Pergunto-me se foi essa a intenção.

Bem são essas as objeções que encontrei a este livro, baseando-me exclusivamente na própria bibliografia dele. Há outras críticas calcadas em outras fontes, disponíveis nos artigos linkados acima. Para as do primeiro caso, apenas o próprio autor seria capaz de rebatê-las, pois teria de deixar claro os motivos que o levaram a tal manuseio heterodoxo de suas fontes. Por que, então, ele não toma a iniciativa para respondê-las ou corrigi-las? Posso lançar algumas hipóteses:

  1. Ele as desconhece, o que acho difícil. Duvido que ao menos um dos vários apologistas que amam me odiar já não tenha entrado em contato com ele;
  2. São críticas tão infundadas que não merecem o esforço gasto em refutação. Julgo difícil que eu não tenha feito um mínimo, mas ele simplesmente parece ter pensado que não valia a pena;
  3. Seria uma propaganda negativa. Se não estou causando muito burburinho, responder-me apenas colocaria as críticas em evidência. Um outro escritor cometeu esse deslize;
  4. As críticas estão tão bem fundamentadas que respondê-las seria pior, um verdadeiro atestado de falta de solidez nos argumentos.

Seja o for, isso não impede que haja os que partam em sua defesa. Eles simplesmente refazem as traduções com outras fontes que lhes sejam favoráveis, por exemplo, com dicionários hebraicos que não contenham a acepção “até” para preposição `al. Assim, até reconhecem que as críticas existem, mas não te dizem quais são todas elas exatamente, esquivam-se de responder aos pontos mais espinhosos, fornecem explicações sobre alguns pormenores e conseguem “pregar para o coral”. Por coral, entenda como o tipo de gente que já apoiava o autor antes e que também engoliria as respostas evasivas que dão, e ainda se convence de que tudo não passa de intriga de detrator. O curioso é que, ao aprofundar a discussão, tais apologistas acabam por desnudar toda a falta de profundidade com que esses temas foram tratados nesse livro em questão. De certa forma, eles me lembram do personagem Z. Zagalo, do romance póstumo de Eça de Queirós O Conde d’Abranhos. O Sr. Zagalo fora um diligente secretário particular de Alípio Severo Abranhos, o conde que dá nome ao romance. Condoído com o falecimento do antigo patrão, a quem admirava muito, ele se põe a escrever sua biografia. O problema é que sua vida é sempre narrada de uma forma tal, que a impressão passada nem de longe é a pretendida biógrafo.

Longe de mim comparar o autor de Analisando…, cuja pessoa desconheço, com o inepto conde e, sim, seus atrapalhados defensores com o bem intencionado Zagalo. Nisso quero deixar clara a imensa diferença do que seria caluniar a figura de Severino Celestino da Silva e denunciar a pouca solidez dos argumentos usados em seu livro. Pessoas devem ser respeitadas; já suas ideias, não necessariamente. E, no caso dele, é possível perfeitamente separar o autor da obra. Isso que muitos dos comentam em tom demasiadamente emotivo não percebem.

Para saber mais

– Alberigo, G.; História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

– Asheri, Michael, O Judaísmo Vivo, Imago, 1995.

– Barrera, Julio Trebolle; A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Editora Vozes, 2ª ed, 1999.

– Berezin, Rifka; Dicionário Hebraico-Português, Edusp, 1ª ed., 2003,

– Chouraqui, André;A Bíblia: Nomes (Êxodo), Imago, 1996.

– Ferreira, António Gomes; Dicionário Latim-Português, Porto, 1985.

– Melamed, Meir Matzliah; Torá – A Lei de Moisés, Sêfer, 2001.

– Rahlfs, Alfred; Septuaginta, Sociedade Bíblica do Brasil, 2006. Sob licença da Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart , Alemanha.