Quanto pesa a Alma?

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O Sopro da Vida…

Minha alma

O salmo 19:8 é acusado de ter sofrido traduções fraudulentas no livro Analisando as Traduções Bíblicas, de Severino Celestino da Silva. Da versão literal hebraica:

O ensinamento (lei) de Javé é perfeito(a), faz voltar a alma (espírito)

Vamos por partes: A primeira questão seria quanto a palavra alma/espírito:

No entanto, na Bíblia de Jerusalém e na Bíblia Tradução Ecumênica, colocaram a palavra espírito (néfesh), como vida. Isto porque os tradutores se basearam em um dos significados gregos da palavra psyké (alma), que também pode significar “vida“, mas esta adaptação só pode ocorrer no significado grego, porque, no texto original em hebraico, isto não é verdadeiro, pois neshamá e nefésh significam espírito mesmo (Veja 2,7) e não vida (chaim) que, em hebraico, é totalmente diferente de (neshamá) e (néfesh) tanto na grafia quanto em significado. E aqui, especificamente, significa espírito.

Cap VI

Bem, a título de esclarecimento, néfesh, rouach e neshamá são três palavras comumente usadas no Antigo Testamento para designar o que chamamos grosso modo de “alma”. A filosofia medieval judaica concebeu um modelo tripartite para alma humana baseado nelas (cf. [Raphael, cap. VIII, p. 278]), cabendo à primeira as funções vegetativas da alma, à segunda as animais e à terceira as intelectuais; um modelo legado posteriormente às especulações cabalistas.

Embora não haja amarração rígida alguma, essa divisão pode ter se originado dos usos dados a cada uma delas. No caso de néfesh, significados não tão espiritualizados assim surgem, do contrário ficariam muito estranhas tais passagens:

  • Quem o come carrega seu erro: sim, ele profanou o Santuário de Iahweh. Esse/essa * é cortado de seus povos. (Lv 19:8)

  • O rei tornou a mandar um chefe de cinquenta com seus cinquenta comandados, o qual subiu e lhe disse: “Homem de Deus! Que tenham algum valor a teus olhos a minha/meu * e a destes teus cinquenta servos. Caiu fogo e devorou os dois primeiros chefes de cinquenta e seus comandados; mas agora, que minha/meu * tenha algum valor a teus olhos” (2 Re 1:13-14)

  • mas toda a carne tendo em seu/sua *, isto é seu sangue, não comereis. (Gen 9:4)

  • Sê firme, contudo, para não comeres o sangue, porque o sangue é *. Portanto, não comas * com a carne. (Dt 12:23)

  • A fuga será impossível ao ágil, o homem forte não empregará a sua força e o herói não salvará a seu/sua *. Aquele que maneja o arco não ficará de pé, o homem ágil não se salvará com seus pés, e o cavaleiro não salvará sua/seu *. (Am 2:14-15)

  • O Senhor Iahweh jurou por * – oráculo de Iahweh, Deus dos Exércitos- Eu detesto … (Am 6:8)

  • Não torneis * imundos, com todos estes répteis que andam de rasto (…) (Lv 11:43)

  • Quando * apresentar presente como oferenda diante de Iahweh, seu presente será sêmola. Nela se escorre o azeite em troca de olíbano (Lv 2:1)

  • ele não vem sobre qualquer * morto. Ele não se contaminará por seu pai ou sua mãe. (Lv 21:11)

Fontes: livros da série A Bíblia, de André Chouraqui, e A Bíblia de Jerusalém(1995).

Será que substituir todos os (*) por alma/espírito dá certo? Alma é material para estar no sangue (Dt 12:23), ou Iahweh teria uma alma encarnada como nós (Am 6:8)? Não sei se espíritos conseguem fazer oferendas sacrificiais (Lv2:1), se são retiradas por meio de exorcismo/ desobsessão do meio do povo ou de quanta força física precisam para se salvar. Almas morrem (Lv 21:11)? Ou seja, “alma” pode não ser a melhor tradução, ou pelo menos a única, para o termo “néfesh” representado pelos asteriscos. Por que não “indivíduo” (Lv 19:8), “vida” ( 2 Re 1:13-14, Gn 9:4, Dt 12:23 e Am 2:14-15 ), “si mesmo” (Am 6:8), “vós mesmos” (Lv 11:43), “alguém” (Lv 2:1), “corpo” (Lv 21:11).

E a lista poderia ser maior que esta. Portanto, considerar néfesh exclusivamente como sendo “alma/espírito” é esconder um pouco o jogo a respeito da versatilidade desta palavra hebraica. Na lista exposta no parágrafo anterior, falta um sentido que é o centro de gravidade de todos os demais: “ser”. A ideia principal que permeia inúmeras ocorrências de néfesh é a de “unidade de vida” do que exatamente uma posse dela. Humanos e criaturas são “seres”, antes de corpos que possuem um “ser” animando-os. Este sentido de “ser, criatura, pessoa” é o que mais aparece na tradução de Chouraqui (1) como Gen 2:7 (“ser vivente”), sendo que Sl 19:8 é traduzido por: “restaura o ser”. Esta propriedade de referir-se ao indivíduo como um todo permite o uso idiomático de néfesh mais um sufixo como pronome reflexivo (ou seja, referente ao próprio ser). Outras passagens (Dt 12:23) remetem a uma espécie de “energia vital”. Aqui, néfesh seria mais o espírito, o “sopro” que sustenta a existência do ser vivo do que exatamente a alma individual . Sentidos em oposição a “vida” da palavra chaim, como uma qualidade oposta a “morte”.

Vejamos, então, algumas definições dadas a “néfesh”:

[Lambin, lição 37] alma, energia vital; pessoa, criatura, mais o seu uso reflexivo
[Berezin], verbete néfesh espírito, vida, homem, personagem, figura; e ela toma parte em expressões como “com risco de vida
[Barish & Barish, cap. XIII] Nefesh – traduzida algumas vezes com vitalidade, algumas vezes com personalidade. Em Deut. XII-23 ela se refere ao sangue que é o que leva a vida através do corpo. A alma é a condutora da vida na pessoa, aquilo que a torna viva biologicamente
[Asheri, cap XLI, p.253] (2) Nefesh é a centelha que mantém vivos os seres humanos. Quando falamos de “preservação da vida”, para qual quase todos os mandamentos podem ser desprezados, a expressão hebraica é pikuach nefesh. No mesmo sentido, o “perigo à vida” é denominado sakanat n’fashot. Não devemos pensar na nefesh como sendo simplesmente uma força vital mecânica ou animal; ela também contém a personalidade do ser humano, mas parece faltar-lhe qualquer qualidade puramente espiritual. A implicação do acima dito é que ela morre com o corpo.

Assim, “vida” ou “energia vital” podem ser significados possíveis para néfesh, ainda que não o seu sentido imediato e “espírito” não significa bem o “mente + perispírito” do kardecismo, que seria separável do corpo físico. Portanto, a acusação de má tradução feita pelo autor é totalmente leviana. Conscientemente ou não, está foi repassado um embuste ao leitor de Analisando…. O “psyké” grego, a propósito, também admite: sopro de vida (a tal energia vital) e ânimo; o temo latino anima o acompanha em versatilidade: alma, vida, sopro, hálito (que não é o caso, óbvio), pessoa.

Essa situação de “traduttore, traditore” nem sequer é nova. Dissidências judaicas medievais, que já não tinham há muito o hebraico como língua materna, também derraparam no mesmo versículo. O filósofo judaico Saadia Gaon assim refutou aos que, no século X, liam como em Analisando…:

Um adicional engano da parte deles é o aplicado à referência do santo: “Ele restaurará minha alma”. Eles pensaram, a saber, que isto implicava numa permuta de corpo para corpo, não lembrando, ignominiosos que são, que se referia a relaxação, e descanso, e repouso da alma da excitação experimentada por ela, não a uma restauração depois da partida de um corpo.

[Gaon, tratado VI, cap. VIII]

E não estava sozinho, como mostra o comentário de Rabi Shlomo Yitzhaqi (vulgo Rashi, 1040-1105 d.C.) à passagem análoga de Sl 23:3

Meu espírito, que fora enfraquecido pelas dificuldades e a diligência, ele restaurará ao estado prévio.

Bem, estas são opiniões rabínicas, sem o viés protestante/católico de que tanto se reclama e, se assim for, o sentido de Chouraqui cai melhor. Há, como Gaon comenta, uma ideia de relaxamento, repouso, conforto… pois é: confortar também é um significado viável para o verbo relacionado a nefésh: shuv: reanimar, confortar, causar satisfação e também seus sentidos mais literais: fazer voltar, restituir, restaurar, devolver; todos registrados no dicionário Rifka Berezin e implícitos na fala de Gaon. Em suma, não foi uma omissão, estes significados são possíveis e deveriam ter sido expostos por Severino Celestino da Silva na sua relação de significados para shuv, e não como obra de tendenciosos. Além disso, há a possibilidade de ter ocorrido uma harmonização com outra passagem (Pr 25:13), que também é traduzida comumente como “reconforta a alma”, mas cujo contexto transmite esta sensação. Uma outra fonte de erros aqui foi ter se considerado uma relação “um para um” na hora de verter o significado de um termo hebraico para o português. Palavras, ainda mais as abstratas, muitas vezes têm um leque de sentidos num idioma, que nem sempre é mapeado de forma unívoca para outro. A propósito, a versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida já traz um sentido mais próximo ao literal: “restaura a alma”.

Gaon se referia a outra aparição do verbo em Sl 23:3, que em Analisando…, cap. VII, tem seu versículo anterior (“Em verdes pastagens me fará descansar. Para a tranquilidade das águas me conduzirá”) interpretado de forma “mui livre”, como o útero sendo o ambiente tranquilo e as água o líquido amniótico. Bem, se ele se dá ao direito de a fazer livre associações … tudo bem, contanto que outros possam utilizar os significados figurados de shuv, talvez não haja problema. Ou será não vão querer dar pesos e medidas diferentes a cada caso? Neste mesmo capítulo, a palavra chaim (“vida”, chaiâi com sufixo possessivo) é traduzida como plural “minhas vidas”. De fato, chaim é uma palavra palavra plural, mas não de “vida”. Ao pé da letra, ela significa “vivos” (plural de chayy) e é em geral traduzido por “vida”, “duração da vida”, “anos de vida”. Como em Gn. 23:1: “A duração da vida de Sara foi de 123 anos”. O próprio autor traduziu Gn 2:7, no cap. IV, “… um sopro de vida…” (e não “vidas”, vide o extrato que abre este artigo) e reiterou esse sentido no cap. VI. Muda-se misteriosamente de opinião no VII sem dar ao leitor a informação que hebraico emprega muitas vezes o plural sem se referir a um plural numérico (ex. dom, “sangue”; domym, “derramamento de sangue”).

É claro que os conceitos religiosos dos tradutores e suas crenças pessoais, os seus desconhecimentos, bem como, outros motivos aqui não citados, levaram-nos a estas conclusões.

“Analisando…”, cap VI

Sugerimos trocar de dicionário antes de ser tão contundente. Talvez um dicionário “velho” possa auxiliar também, pois Severino Celestino da Silva age de forma um tanto injusta quando trata a tradução da Vulgata para o português de Sl 19:28:

Convertens animas”, no latim, significa: faz a alma voltar, pois o verbo convertere, em latim, significa voltar, fazer voltar, retroceder. No entanto, muitos tradutores da Vulgata colocam esta frase como “converte a alma”, dando a este verbo latino um significado direto para o português que, como vemos, não representa o seu verdadeiro significado.

Analisando… Cap. VI

O Vocabulário Português e Latino (1712-1728) de Rafael Bluteau traz, entre outros significados para converter, a acepção:

Em ortografia moderna aparece “as suas setas se converterão contra eles”, num sentido claro de “voltar”. O padre Antônio Vieira (1608 – 1697), em seus sermões , traz-nos um uso similar:

Desenganemo-nos, que é necessário deixar o mundo antes que ele nos deixe. E que ocasião mais aparelhada, e ainda mais forçosa e mais fidalga, que deixá-lo quando quem o criou e nos criou o deixa? Será bem que se parta Cristo do mundo. Ut transeat ex hoc mundo — e que faça esta jornada só, sem haver quem o acompanhe e o siga? Que coração haverá tão esquecido de Deus e de si, que ouvindo aquele rebate, ou aquele pregão do céu; Sciens Jesus quia venit hora ejus [Sabendo Jesus que era chegada a sua hora – Jo 13:1] — lhe não cause um grande abalo na alma, e diga resolutamente consigo: Esta será também a minha hora? Nenhum cristão há de consciência tão perdida, que não faça conta de se converter e se dar a Deus alguma hora: e se há de ser alguma hora, que hora como esta?”

– Sermão do Segundo Mandato

Ainda que em todos os dias nos podemos converter a Deus, o tempo que sua divina misericórdia nos sinalou particularmente para a penitência dos pecados são os quarenta dias da Quaresma

– Sermão de Dia de Ramos

Obviamente, “converter” não tem o sentido de “mudar de religião, ideia”, pois se parte do princípio que o interlocutor já é cristão. O que o padre queria dizer era algo como: “não faça conta de se voltar e se dar a Deus alguma hora”. Ainda na época seiscentista e setecentista a palavra portuguesa mantinha certa reminiscência do seu significado original latino. Talvez isso tenha influenciado a tradução de Antônio Pereira de Figueiredo, cujo Antigo Testamento foi publicado entre 1782 e 1790. Com a evolução da língua, esse sentido caiu em desuso e nem todos os dicionários o registram hoje (4). Vale lembrar, embora ainda preservando um significado de “voltar/volver”, o sentido de “retorno” pleno já deveria estar esquecido, mesmo em latim, por alguns religiosos. Em seu “Sermão de Quarta-feira de Cinzas”, Vieira não equiparou converteris a reverteris, do famoso versículo de Gn 3:19: “Pulvis es, tu in pulverem reverteris“.

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… sobre Ossos Secos

Ezequiel e os ossos secos

O termo, por sinal, mais aproximadamente corresponderia a “espírito” é rouach. “Mais”, porque este termo também tem múltiplos significados (sopro, vento, espírito). Mesmo quando ele é traduzido por espírito não significa que seja exatamente a consciência sempre, mas o princípio que nos anima (Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7, o que não é panteísmo), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10).

A passagem Ez 37:1-14 dá um exemplo de “espírito” como manifestação divina:

Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um vale que estava cheio de ossos, e me fez andar ao redor deles; eram mui numerosos na superfície do vale e estavam sequíssimos. Então, me perguntou: Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos? Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito em vós, e vivereis. Porei tendões sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós estenderei pele e porei em vós o espírito, e vivereis. E sabereis que eu sou o Senhor. Então, profetizei segundo me fora ordenado; enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam, cada osso ao seu osso. Olhei, e eis que havia tendões sobre eles, e cresceram as carnes, e se estendeu a pele sobre eles; mas não havia neles o espírito. Então, ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho do homem, e dize-lhe: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam. Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército sobremodo numeroso. Então, me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. Eis que dizem: Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; estamos de todo exterminados. Portanto, profetiza e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel. Sabereis que eu sou o Senhor, quando eu abrir a vossa sepultura e vos fizer sair dela, ó povo meu. Porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então, sabereis que eu, o Senhor, disse isto e o fiz, diz o Senhor.

Nas palavras de Severino Celestino da Silva, Analisando…, cap XV:

O capítulo 37, vv 1 a 14 do livro de Ezequiel fala da reencarnação numa linguagem clara, no entanto, a maioria o traduz e interpreta como ressurreição.(…)Observe que, a partir do versículo 11, Iahweh fecha o sentido de renascimento, mostrando que os ossos simbolizam o povo de Israel e que ele fará reencarnar a todos, retirando-os dos seus túmulos e fazendo-os voltar reencarnados à sua Terra. Ele não fala que os retiraria na ressurreição do último dia mas que os retiraria do túmulo, fazendo-os renascer e fazendo-os voltar à terra de Israel e não aos Céus. Aqui não existe dúvida sobre a Reencarnação e esclarecimento sobre a inexistência de um último dia para a ressurreição.

Não, muitas dúvidas pairam. Não há nenhum sinal de passagem cíclica pelo útero, também. Mas o principal aqui é que se tem o presente olhando o passado sob seu viés. Os antigos leitores enxergavam isto com olhos bem distintos.

(…) Concorda com ele que ao dizer que, na verdade, Ezequiel não restaurou nenhum morto no fim de contas, e a profecia foi apenas uma parábola da nação judia que seria um dia restaurada novamente. E isto está relacionado com o seguinte de Boraita: Os mortos a quem Ezequiel restaurou ergueram-se sobre seus pés, entoaram uma canção e morreram de novo. E que tipo de canção foi? Indaga R[abi]. Eliezer. R. Josué disse: A canção foi de I Sm 2:6: “O Senhor mata, o Senhor faz viver; faz descer à sepultura e dela subir.” R. Judas, entretanto, disse: Na verdade, era apenas uma parábola. R. Neemias a ele: Se verdade, então não é uma parábola; e se uma parábola, não é verdade. Diz, então, na verdade era uma parábola, R. Eliézer b[en]. R. José o Galileu, contudo, disse: Os mortos que foram restaurados por Ezequiel foram para a terra de Israel, casaram-se e tiveram filhos e filhas. E R. Judas b. Batira ficou de pé, dizendo: Eu mesmo sou um descendente deles, e estes são os filactérios que herdei de meu avô, que me relatou que eles foram usados pelos restaurados. Mas quem eram os restaurados em questão? Disse Rab: Eles foram os filhos de Efraim que erraram quanto ao tempo da prometida redenção do Egito. Como se lê[ I cr 7:20-23]: “E os filhos de Efraim: Sutala e Bared, seu filho; e Taat, seu filho; e Elada, seu filho; e Taat, seu filho; e Zabad, seu filho; e Sutala, seu filho; e Ezer e Elada a quem os homens de Deus que nasceram naquela terra mataram (1) … E Efraim, pai deles, pranteou vários dias, e seus irmãos vieram consolá-lo. ” Samuel, porém, disse: Eram os homens que não acreditavam na ressurreição. Como se lê (Ez 37:11): “Então me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel; eis que dizem, Secos estão nossos ossos e nossa esperança está perdida; estamos todos exterminados.” R. Jeremias b. Abas disse: Eram os ossos de homens sem esperança de nenhum ato meritório. Como se lê (Ez 37:4): “Ó ossos secos, ouvi a palavra do Senhor”. E R. Itzaque de Nabar disse: Eram os homens que foram mencionados em (Ez 8:10): Então entrei e vi, eis que havia toda forma de seres rastejantes, e de gado, e de abominações, e todos os ídolos da casa de Israel, pintados nas paredes e em todo o redor.” E como se lê (Ez 37:2): “e me fez andar ao redor deles.

(1)Os efraítas teriam saído do Egito 30 anos antes do êxodo dos demais devido a um erro na contagem do tempo da profecia feita por Deus a Abraão.

Trecho extraído do Talmude Babilônico, Tratado Sanhedrin, cap. XI.

Parece que os talmudistas tinham opiniões “ligeiramente” diferentes das professadas pelo tradutor espírita, apesar de divergirem largamente entre si. Outros filósofos medievais judaicos mais tardios também interpretaram esta passagem como alusão à ressurreição. De Gaon, uma interpretação quase literal:

Além disso, deixe-me dizer que, porque nosso Criador estava ciente dos escrúpulos surgidos em nosso corações pela dificuldade que temos em aceitar a doutrina da ressurreição dos mortos, Ele informou Seu profeta Ezequiel disto antecipadamente, falando a ele: “Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel; eis que dizem: Nossos ossos estão secos e nossa esperança perdida, estamos acabados” (Ez 37:11). Então Ele ordenou-o a trazer nos as boas novas de nossa ressurreição de nossas sepulturas e ressuscitação de todos os nossos mortos, ao dizer-lhe imediatamente depois disso: “… Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela, ó Meu povo” (Ez 37:12).

Porém, a fim de que não pensemos que esta promessa foi feita para o mundo vindouro, adicionou ao fim da declaração as palavras: “E vos trarei à terra de Israel” (Ez 37:12), a fim de assegurar-nos que isto se daria neste mundo. Assim, o objetivo a ser logrado é que cada um de nós, quando Deus o tiver trazido de volta à vida, fará menção ao fato de que estava vivo e morreu e foi então ressuscitado. Que é a implicação de Sua declaração: “E sabereis que eu sou o Senhor, quando eu abrir as vossas sepulturas” (Ez 37:13). A menção da ressurreição na terra da Palestina é então repetida por ele uma segunda vez, a fim de confirmar-nos que a tese é de que ela se dará neste mundo, com diz Ele: ”E porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos colocarei na vossa própria terra; e sabereis que eu, o Senhor, disse isto e o fiz, diz o Senhor” (Ez 37:14).

[Gaon, tratado VII (ressurreição), cap III]

O grande Maimônides cria, que no fim dos tempo, haveria uma ressurreição incorpórea, mas quanto a Ez 37:

(…)Entretanto, se nós dissemos, o fizemos baseados no que disseram os sábios de Israel sobre os ossos mortos ressuscitados no Livro de Ezequiel, a respeito do qual há uma diferença de opinião entre os sábios do Talmude. Porque no que diz respeito a tudo onde haja uma diferença de opiniões, a qual não conduza à execução de um preceito Divino relacionado a esse assunto, servindo como prova dele, não é possível decidir com que está a razão e nós mencionamos isto várias vezes no Comentário sobre a Mishná. É evidente para nós, dessas declarações do Talmude, que aqueles indivíduos cujas almas retornam ao corpo depois da morte comerão e beberão e terão relações sexuais e procriarão e morrerão depois de uma vida extremamente longa, como a vida daqueles que existirão nos tempos do Messias.

Além disso, a vida após a qual não há morte, é a vida no Mundo Vindouro porque não há corpos físicos lá. Acreditamos firmemente – e esta é a verdade que toda a pessoa inteligente aceita – que no Mundo Vindouro as almas sem corpo existirão como os anjos. (…)

[Maimônides, IV, 23-24]

Note que Maimônides, assim como os talmudistas mais literalistas, interpreta Ez 37:1-14 como um caso real de ressurreição, ainda que, tal como o de Lázaro no NT, não tenha sido na ocasião do Mundo Vindouro e os ressuscitados tenham vindo a falecer novamente.

Uma opinião já contemporânea resgata a opinião dos talmudistas que viam na passagem uma metáfora sobre a restauração de Israel (5):

(…)A visão de Ezequiel da ressurreição dos ossos secos salta à vista de muitos como referência óbvia ao que sucedeu ao povo judeu depois do Holocausto, com a restauração do Estado de Israel após quase dois mil anos de exílio israelita. Esses são exemplos óbvios dos temas que interessam mais profundamente aos estudioso contemporâneos do texto da Torá. (…)

[Neusner, cap. V].

Para finalizar, uma opinião da Jewish Encyclopedia quanto natureza da alma no judaísmo dos tempos bíblicos.

A narração mosaica da criação do homem de um espírito ou sopro com o qual ele foi dotado por seu criador (Gn. 2:7); mas este espírito foi concebido como inseparavelmente conectado, senão totalmente conectado o sangue-vida (Gn 9:4, Lv 17:11). Apenas através do contato dos judeus com o pensamento persa e grego, a ideia de uma alma desencorporada, tendo sua própria individualidade, se enraizou no judaísmo e encontra sua expressão nos livros bíblicos tardios, como, por exemplo, as seguintes passagens: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor” (Pr 20:27); “Há um espírito no homem” (Jó 32:8); “O espírito retornará a Deus que o concedeu” (Ecl 12:7). A alma é chamada na literatura bíblica de “ruach”, “nefesh” e “neshamah”. O primeiro destes termos denota a espírito em seu estado primitivo; o segundo, em sua associação com o corpo; o terceiro, em sua atividade com o corpo. (…)

Nota: nefesh: Gn 2:7, Gn 9:4, Lv 17:11; neshamah: Pr 20:27; ruach: Ecl 12:7, Jó 32:8

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Notas

(1) Tradutor francês que vem realizando meticulosas traduções de livros bíblicos para o vernáculo na séria A Bíblia, lançada no Brasil pela Imago. Ele foi usado como exemplo de bom tradutor por Severino Celestino da Silva.

(2) Esse livro consta na bibliografia de “Analisando as Traduções Bíblicas“. Agora, se ele foi lido nessa parte… Um ponto que chama atenção é a afirmação de que a nefesh pereceria com o corpo. Sendo assim, o autor quis reencarnar algo que é mortal. Em sua defesa, convém informar que outros autores [Bronner, cap. VI] apontam que místicos judaicos creem ser essa a parte da alma que reencarna.

(3) “Tradutor, traidor”, em italiano. Uma expressão usada para lembrar que, por mais fiel que seja um tradutor ao sentido do texto original, chega uma hora que é impossível verter um trecho de um idioma para outra sem alguma perda do significado original ou a necessidade explicação à parte. Isso pode envolver trocadilhos, particularidades de um idioma que não existem em outro (por exemplo, a separação clara entre “ser” e “estar” de nossa língua não é encontrada no inglês), uma palavra sem correspondente claro ou que precise de um circunlóquio para descrita em outro idioma, tentativa de manter métrica e rima no caso dos poesias, etc. O caso das palavras portuguesas “alma” e “espírito” é particularmente sensível porque elas possuem uma sobreposição de sentidos que nem sempre ocorria do mesmo modo em hebraico e grego.

(4) Mirador, Michaelis e Aurélio, não. Dicionário Brasileiro Globo, sim.

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Para saber mais

– Asheri, Michael, O Judaísmo Vivo, Imago, 1995.

– Barish, Louis & Rebecca; Crenças Básicas do Judaísmo, Edigraf, 1967.

– Berezin, Rifka, Dicionário Hebraico-Português, Edusp, 2003.

– Bronner, Leila Leah; Journey to Heaven – Exploring Jewish Views of the Afterlife, Urim Publications, 2015.

– Gaon, Saadia; The Book of Beliefs and Opinions; tradução inglesa de Samuel Rosenblatt, Yale University Press, 1989.

– Lambin, Thomas O.; Gramática do hebraico bíblico, Paulus, 2003.

– Maimônides, Moses, Tratado sobre a Ressurreição, tradução de Alice Frank, Maayanot, 1994.

– Neusner, Jacob, Introdução ao Judaísmo, Ed. Imago, 2004.

– Raphael, Paull Simcha; Jewish Views of the Afterlife, Rowman & Littlefield Publishers, 2004.

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O Cego de Nascença – A Vida antes da Vida no Judaísmo Intertestamentário

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Jesus curando o cego

Jesus curando o cego, de El Greco, 1570.

* * *

O Cego de Nascença

E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença.

E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: “Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”

Jesus respondeu: “Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.

Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar.

Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.”

Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego.

E disse-lhe: “Vai, lava-te no tanque de Siloé” (que significa o Enviado). Foi, pois, e lavou-se, e voltou vendo.

João 9:1-7

A meu ver essa é a única passagem da Bíblia que efetivamente pode sugerir reencarnação. Até mesmo identidade Elias/João Batista já teve respostas ortodoxas razoáveis, como as de (quem diria) Orígenes, em seu Comentário sobre João, ou Agostinho de Hipona, em seus estudos sobre o Evangelho de João. Um ponto comum a ambas é o entendimento de “espírito” (pneuma, em grego e spiritus, em latim) distinto de “alma” (psyché/anima). Bem, isso é assunto para outro artigo…

O que chama atenção no episódio desse milagre é a pouca atenção dada a ele pela ortodoxia atual. Não é incomum explicações que envolvam a crença em “pecado original”, mas esse conceito é tardio, só ganhando plena forma com o já citado Agostinho de Hipona (séculos IV e V). Qualquer explicação acadêmica deve-se limitar a conceitos existentes entre os judeus da época. Mas mesmo entre os acadêmicos, esse episódio não tem muito tratamento. John P. Meier, por exemplo, escreveu um livro inteiro dedicado aos milagres de Jesus (Um Judeu Marginal, vol. II, tomo 3) e foi superficial demais nessa questão, lembrando apenas que Jesus descartou a hipótese de a culpa ser do próprio cego…

Por que não cogitar uma espécie de karma contraído em uma encarnação passada? De certo essa é a explicação mais simples, direta e preferida pelos reencarnacionistas, contudo esbarra em um problema: existe alguma evidência robusta para a crença em reencarnação entres os judeus daquela época?

Muitos espiritualistas diriam que sim, baseados em pérolas como:

  • Os judeus de hoje creem em reencarnação, logo os de antigamente também deviam crer: primeiramente, o certo seria dizer que parte (1) dos judeus atuais creem em reencarnação e outra não. O segundo e principal furo é que, se esse raciocínio fosse válido, então os primeiros cristão adoravam santos e imagens porque parte dos cristãos atuais também o faz. Note que não estou dizendo a reencarnação ou a adoração de santos sejam crenças errôneas, apenas ressaltando que elas tiveram uma aceitação mais tardia.

  • Passagens bíblicas como a “conversa com Nicodemos” ou “Ezequiel no vale dos ossos secos” aludem a reencarnação: São passagens que de tão alegóricas ou mesmo crípticas podem ter várias interpretações. Em vez de ter uma ideia preconcebida (a reencarnação está na Bíblia) e fazer um monte de livre associações para justificá-la, por que não tentam descobrir que teria sido a ideia original do autor, baseados no contexto?

  • Flávio Josefo registrou essa crença entre os fariseus: Não, não a registrou. O linguajar das descrições de Josefo quanto às crenças deles até chega a ser um pouco ambíguo, mas uma análise pormenorizada revela uma exposição da crença na ressurreição.

  • A reencarnação era doutrina secreta e por isso deve ser extraída das entrelinhas: Melhor provar essa tese antes de usá-la. O próprio Orígenes alegou ausência dela nas doutrinas esotéricas dos judeus de seu tempo (Com Jo, Livro VI, cap. VII). Infelizmente, o estado fragmentário de seu Comentário sobre João não nos legou a análise do “cego de nascença”.

Quando falo de “evidência sólida”, refiro-me a comentários dos judeus da época a respeito do que eles mesmos criam. Josefo é um tiro n’água e o Talmude é silente quanto à reencarnação, que só começou a deixar registros em tempos medievais.

Então como o cego poderia ter pecado antes de nascer? A resposta deve jazer em outra crença judaica, essa sim bem documentada no período: a preexistência da alma.
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A Preexistência da Alma no Judaísmo Intertestamentário

O Céu estrelado

No início do livro de Jó, temos uma espécie de reunião de seres celestiais (Jó 1:6), na qual os membros do séquito divino são chamados de “filhos de Deus”, estando, curiosamente, Satanás entre eles. No Salmo 82 (81) há um curioso discurso a respeito de alguns desses que teriam se desviado:

Deus está na congregação dos poderosos; julga no meio dos deuses.

Até quando julgareis injustamente, e aceitareis as pessoas dos ímpios? (Selá.)

Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado.

Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.

Eles não conhecem, nem entendem; andam em trevas; todos os fundamentos da terra vacilam.

Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo.

Todavia morrereis como homens, e caireis como qualquer dos príncipes.

Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois tu possuis todas as nações.

Sl 82:1-8

Ou seja, Deus os puniu os membros displicentes de sua corte transformando-os em humanos que, como todos nós, terminarão no pó. É uma espécie de queda semelhante a que Adão e Eva teveram e, como essa foi, constitui um caso particular, não uma regra geral. Fora o primeiro casal de Gêneses e o seres desse salmo, não há na literatura hebraica clássica (i.e., o Antigo Testamento) outra menção a uma existência pré-mortal de humanos. Há indícios vagos de alguma residual sobrevivência post mortem no Xeol. Bênçãos e castigos são concretizados neste mundo, seja com o próprio indivíduo, seja com sua descendência, pois só por meio dela seria possível uma “imortalidade sanguínea”. assim, mente e corpo ganham importâncias similares. A situação começou a mudar na literatura intertestamentária – juntando aqui os deuterocanônicos e pseudoepígrafos -, quando surgiram as primeiras alusões à uma existência antes do nascimento, a recompensas no além túmulo e à ressurreição do corpo.

Sabedoria de Salomão

Amei a sabedoria, busquei-a desde a minha juventude e procurei tomá-la por esposa, pois fiquei enamorado da sua formosura.
(…)
Assim sendo, eu ia por toda a parte procurando o modo de a conquistar para mim.
Eu era um jovem de boas qualidades e tive a sorte de ter uma boa alma,
Ou melhor, sendo bom, entrei num corpo sem mancha.
Sabendo que jamais teria conquistado a sabedoria, se Deus não ma tivesse concedido (…)

Sabedoria de Salomão 8:2, 8:18-21

Os protestantes podem muito bem desconsiderar os versículos acima, pois não constam em suas Bíblias. Os espiritualistas se deliciam com eles, pois, alegam, significam reencarnação, além de preexistências. Os católicos é que possuem um nó para desatar. Uma nota de rodapé na edição de 1995 da Bíblia de Jerusalém explica a passagem assim:

Este texto [v. 20] não ensina a preexistência da alma como se poderia crer, se fosse isolado do contexto. Ele corrige a expressão do v. 19, que parecia dar prioridade ao corpo como sujeito pessoal, e sublinha a proeminência da alma.

Talvez, mas o capítulo também pode passar a ideia de a encarnação como um estágio de aprendizado, principalmente se cruzarmos essa passagem com outras do mesmo livro:

As almas dos justos, pelo contrário, estão nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá.
Aos olhos dos insensatos pareciam ter morrido, e o seu fim foi considerado uma desgraça.
Os insensatos pensavam que a morte dos justos fosse um aniquilamento, mas agora estão em paz.
As pessoas pensavam que os justos estavam a cumprir uma pena, mas esperavam a imortalidade.
Por uma breve pena receberão grandes benefícios, porque Deus os provou e os encontrou dignos de Si.
Deus examinou-os como ouro no crisol, e aceitou-os como holocausto perfeito.
No dia do julgamento, eles resplandecerão, correndo como fagulhas no meio da palha.
Eles governarão as nações, submeterão os povos, e o Senhor reinará para sempre sobre eles.

Sb 3:1-8

Os pensamentos dos mortais são tímidos e os nossos raciocínios são falíveis,
porque um corpo corruptível torna pesada a alma, e a morada terrestre oprime a mente pensativa.

Sb 9:14-15

Vale notar que o tempo é linear, sem indicação de punições e/ou renascimentos cíclicos. Se isso não foi o bastante para convencer a equipe de A Bíblia de Jerusalém, há vários outros livros contemporâneos ao surgimento do cristianismo que atestam uma vida celestial antes de uma única vida terrena:

II Esdras

“As entradas para este mundo foram feitas estreitas, dolorosas e árduas, poucas e de aspereza triturante. Mas as entradas para o mundo maior são largas e seguras, e levam à imortalidade. Todos os homens, portanto, adentram esta existência curta e fútil; do contrário nunca poderão atingir as bênçãos guardadas. Por que então, Esdras, estás tão profundamente perturbado com a ideia de que és mortal e deves morrer? Por que não voltaste tua mente para o futuro em lugar do presente?”

“Meu senhor, meu mestre”, respondi, “é em Vossa lei que deixastes que os justos virão a gozar dessas bênçãos, mas o ímpios se perderão. Os justos, assim, podem suportar esta vida curta e aspirar à ampla vida futura; mas os que viveram uma vida iníqua terão ido por entre os estreitos sem nunca atingir os espaços abertos.”

Disse-me ele: “Não és melhor juiz que Deus, nem mais sábio que o Altíssimo. Melhor que muitos do que agora vivem se percam do que a lei que Deus pôs diante deles seja desprezada! Deus deu claras instruções a todos os homens quando vieram a este mundo, dizendo-lhes como alcançar a vida e como escapar da punição. Mas os ímpios se recusaram a obedecer-Lhe; adotaram suas próprias ideias vazias e planejaram fraude e iniquidade; até mesmo negaram a existência do Altíssimo e não reconheceram Seus caminhos. Ele rejeitaram Sua lei e recusaram Suas promessas, nem puseram fé em Seus decretos nem fizeram o que ordena. Assim, Esdras, o vazio para os vazios, a plenitude para os plenos”.

(…)
Eu respondi e disse: “Eu sei, ó Senhor, que o Altíssimo agora se chama piedoso, porque tem piedade dos que ainda não vieram a este mundo; e é afável, porque é afável aos que se voltam em arrependimento para Sua lei; é paciente, porque demonstra paciência para com os que têm pecado, já que são suas próprias criaturas; é recompensador, porque prefere dar a tomar; é abundante em compaixão, porque faz Sua compaixão abundar mais e mais aos que agora vivem e aos que já se foram e aos que ainda estão por vir”.

2 Esdras 7:13-25 e 132-137
Fonte: 2 Esdras

O texto acima foi extraído do Apocalipse Judaico de Esdras. Não é uma história, mas um conjunto de sete visões atribuídas a esse profeta e as explicações dadas pelo anjo Uriel, sendo que a terceira visão possui clara referência à preexistência. A nomenclatura desse livro é um pouco complicada, correspondendo aos capítulos 3-14 do livro 2 Esdras das edições de pseudoepígrafos feitas por protestantes, 3 Esdras nas igreja eslavas e a 4 Esdras na Vulgata de Jerônimo. Datado do final do I século, esse livro corrobora outro apocalipse do mesmo período quanto à existência prévia das almas:

Apocalipse de Abraão

E disse eu:” Eterno, Todo Poderoso! O que é essa imagem da criação?” E disse-me ele: “… O que quer que eu tenha determinado a existir já fora delineado nessa e em todas as [coisas] previamente criadas que viste perante mim”. E disse eu: “Ó Soberano, poderoso e eterno! Por que estão as pessoas dessa imagem deste lado e do outro?” E disse para mim: “Estes que estão à esquerda são uma multidão de tribos que existia previamente … Os da direita da imagem são as pessoas que separei para mim das pessoas com Azazel; esses são os que tenho preparado para nascer de ti e serem chamados de meu povo”

Apocalipse de Abraão 21:7 -22:5

Poderia dar mais exemplos (2), mas, por enquanto, basta saber que a própria ideia de um envio de almas previamente constituídas chegou a adentrar alguns círculos cristãos, como relatou Jerônimo – “Ou são as almas mantidas em um divino Tesouro onde foram armazenada há muito tempo, como alguns eclesiásticos, tolamente enganados, creem?” (epístola 126.1)- ao listar as hipóteses correntes ao final do século IV para a origem delas.

Então, seria possível as almas pecarem antes de vir a este mundo e receberem um “corpo maculado”, como poderia sugerir a lógica de Sabedoria de Salomão? Talvez, mas antes seria útil analisar uma outra e surpreendente hipótese para o pecado do cego de nascença, a ser tratada a seguir.
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John Lightfoot – uma Abordagem Inusitada

Retrato de John Lightfoot

Reclamei no início deste artigo sobre o baixo interesse dos cristãos ortodoxos atuais sobre a passagem do “cego de nascença” em João. Justiça seja feita, houve comentaristas que realmente abordaram a questão a fundo e, de certa forma, fazem escola até hoje. Um nome deve ser ressaltado: John Lightfoot (1602-1675), teólogo e hebraísta inglês e um dos primeiros a analisar os evangelhos à luz de informação colhidas de documentos hebraicos fora do Antigo Testamento.

Em edições antigas deste portal, já havia colocado links para seu comentário ao nono capítulo de João, mas, como estava perdido no corpo de artigos um tanto longos e – suspeito – muitos dos autoproclamados pesquisadores que sonham em me refutar são monoglotas, acho que pouquíssimos o leram. Portanto, faço a tradução do inglês para o texto original disponível neste portal. Como o texto é um tanto longo, vamos passo a passo.

João 9

2. E seus discípulos lhe perguntaram, dizendo, “Mestre quem pecou, este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?”

[Quem pecou, este homem ou seus pais?]

  1. Era uma doutrina aceita nas escolas judias que as crianças, em razão de alguma iniquidade de seus pais, nasciam coxas, ou tortas, ou mutiladas ou deficientes em alguma de suas parte, etc.; através da qual elas mantinham os pais em temor, a fim de que não ficassem desleixados e negligentes na realização de alguns rituais relacionados a seu estado de limpeza, tais como lavagens e purificações, etc. Demos exemplos em outro lugar.
  2. Mas que a criança deva nascer coxa, ou cega, ou em alguma parte por algum pecado ou falta sua própria aparenta ser um enigma, de fato.
    1. Nem resolvem o problema os quem partem para o princípio da transmigração das almas, com o qual teriam pintado os judeus; ao menos se admitirmos Josefo como um intérprete justo e juiz desse princípio. Pois segundo ele:

      É a crença dos fariseus que “as almas de todos são imortais e passam para outro corpo; isto é, apenas os do Bem [observe isso]; mas os da iniquidade são punidos com tormentos eternos.” De modo que, a não ser que diga que a alma de algum bom homem passou para o corpo ser a causa de sua cegueira de nascença (uma suposição que qualquer um deveria se envergonhar), não dirás nada quanto ao caso em mãos. Se a crença da transmigração das almas entre os judeus prevalecia apenas até esse ponto, que supunham ‘apenas as almas dos homens de bem’ passariam para outros corpos, esse mesmo assunto está fora da presente questão; e toda suspeita de punição ou defeito ocorrendo à criança em razão da transmigração desaparece completamente, a não ser que digas que isso poderia ocorrer a uma boa alma vinda do corpo de um bom homem.
      (…)

É interessantíssima essa observação de Lightfoot, válida para os que ainda insistem em utilizar Flávio Josefo para alegar crença na reencarnação entre os judeus intertestamentários. Para Josefo, o retorno a um novo corpo é prêmio e não uma punição. Os maus sofreriam a danação eterna. Um estudo pormenorizado do linguajar de Josefo feito por Steve Mason demonstrou que Josefo utilizava um palavreado grego para explicar a seu público helênico a crença na ressurreição à moda paulina.

Prosseguindo com Lightfoot:

  1. (cont.)

    1. Há uma solução tentada por alguns a partir da preexistência da alma; da qual, imaginariam eles, os judeus tinham alguns traços, a partir do que dizem sobre aquelas almas que estão na Goph ou Guph.

      “R. José disse, O Filho de Davi não virá até que todas as almas que estão na Goph sejam consumadas.” A mesma passagem é recitada também em Niddah e Jevamoth, onde é atribuída a R. Asi.

      “Há um repositório (diz R. Salomão), cujo nome é Goph: e desde a criação, todas as almas que já estiveram para nascer foram formadas juntas e lá colocadas.”

      Mas há outro rabino, trazido por outro comentarista, que supôs uma Goph dupla e que as almas dos israelistas e dos gentios não estão na mesma e única Goph. Além disso, ele concebe que, nos dias do Messias, haverá uma terceira Goph e uma nova raça de almas criada.

      R. José deduziu sua opinião de Isaías 57;16, torcendo miseravelmente as palavras do profeta para este sentido, “Minha vontade se retardará para as almas que criei.” Pois assim Aruch e os comentaristas explicam seu pensamento.

      Considerando, agora, que o que citei possa ser suficiente confirmação de que os judeus realmente partilhavam a crença na preexistência da alma, embora eu confesse não ter nem uma apreensão rápida, nem uma forma de imaginar o que considerar a preexistência de almas tenha a ver com essa questão.

De fato, não basta a simples crença na preexistência da alma para explicar o episódio de “o cego de nascença”. Se as almas ficarem meramente estocadas, inertes enquanto aguardam sua vez, o problema persiste. É preciso que elas, antes de nascerem, tenham algum grau de consciência e livre-arbítrio. Sabedoria de Salomão sugeriu que, de algum modo, isso ocorre, Lightfoot, por sua vez, resolve essa questão de uma forma surpreendente para a maioria dos leitores:

  1. Eu, portanto, procuraria desatar esse nó de alguma outra forma .
    1. Teria observado a passagem que temos em Vajicra Rabba:”E estão próximos os dia em que não dirás ‘Neles tenho prazer'” (Ecl 12:1). “Esses
      são os dias do Messias, nos quais não haverá mérito nem demérito
      “: isto é, se não me engano, em que nem os bons merecimentos dos pais serão imputados aos filhos para seu benefício, nem seus merecimentos por sua falta e castigo. Essas são palavras de R. Akibah in locum, e elas sua aplicação dessa passagem de Eclesiastes e certamente de sua invenção: mas a própria crença de que não haverá mérito nem demérito nos dias do Messias é que é comumente aceita entre os judeus. Sendo assim, então deixe-me aumentar um pouco a pergunta dos discípulos de nosso Salvador, por meio de paráfrase, para este propósito: “Mestre, sabemos que sois o Messias, e que estes são os dias do Messias; também aprendemos de nossas escolhas que não há imputação de mérito ou demérito dos pais nos dias do Messias; qual a razão, então para que este homem nascesse cego? Para que nestes dias do Messias ele devesse vir ao mundo com alguma marca e imputação de falta em algum parte? Por acaso foi alguma falta de seus pais? Isso parece contra a crença aceita. Parece, portanto, que carrega alguns sinais de sua própria falta: é isso ou não?”

    2. Era um preceito entre os judeus que a criança, quando já formada e a chutar dentro do ventre, poderia se comportar de forma anormal e fazer algo não pudesse ser de todo sem falta.

      No último tratado mencionado, traz-se uma mulher perante o juiz em seríssima reclamação sobre seu filho, que a chutava irracionalmente dentro do ventre. Em Midas Coheleth e Midras Ruth, cap. III. 13, há uma história que fala de Elisha Ben Abujah, que se afastou da fé e se tornou um horrível apóstata e, entre outras razões de sua apostasia, ela é devida a:

      “Há os que dizem que sua mãe, quando já estava grande na gestação dele, ao passar por um templo dos gentios, cheirou algo muito forte, e eles deram a ela do que cheirou, e o comeu; e a criança em seu ventre ficou quente, e inchou em bolha, como no ventre de uma serpente.”

        Em tal história, sua apostasia é supostas como sendo originariamente enraizada e fundada nele dentro do ventre, em razão da falta de sua mãe ao comer do que fora oferecido aos ídolos. Também é igualmente presumido que uma criança possa chutar e socar de forma irracional e anormal no ventre de sua mãe além da frequência de crianças comuns. Sejam como exemplo as crianças no ventre de Rebeca; onde os judeus certamente absolvem Jacó de falta, apesar de ter puxado Esaú pelo calcanhar; mas dificilmente perdoarão Esaú por se voltar com seu irmão Jacó.

        “Antonino perguntou a R. Judá, ‘Em qual época as afeições malignas começam prevalecer no homem? Será assim que se forma o feto no ventre ou por ocasião de sua chegada?‘ Disse-lhe o Rabi, ‘A partir da época de sua chegada.’ ‘Então,’ disse Antonino, ‘chutará ele de dentro do ventre de sua mãe e apressar-se-á em sair.’ Disse o Rabi, ‘Isso aprendi de Antonino; e a escritura parece tornar a isso quando diz: o pecado jaz à porta.'”

        Dessa disputa, seja verdadeira ou fictícia, aparenta que a antiga crença dos judeus era que a criança, desde seus primeiros chutes, tinha alguma mancha de pecado sobre ela. E esse grande doutor, R. Judá, o Santo, era ele mesmo originalmente dessa crença, mas mudara ligeiramente sua opinião em tão insignificante discussão. De fato, eles iriam um pouco mais longe: não apenas a criança poderia ter alguma mancha de pecado no ventre, mas ela poderia, em alguma medida, realmente pecar e fazer o que poderia torná-la criminosa. Para tal propósito essa passagem dos discípulos parece ter alguma relação; “Esse homem pecou para que nascesse cego?” Isto é, fez ele, quando sua mãe o carregava no ventre, alguma insensatez ou coisa enorme para que merecesse essa severa deficiência nele, para que trouxesse essa cegueira consigo ao mundo?

Pecados pré-natais. Impressionante, não? É preciso alertar o leitor de que o cerne do judaísmo rabínico é aperfeiçoar a prática da Lei e não a teologia dogmática, como viria a ser no cristianismo. Excetuando alguns assuntos chaves como o monoteísmo estrito, a ressurreição no fim dos tempos e a vinda do Messias, existe uma ampla variedade de opiniões quanto ao funcionamento da Criação e outros assuntos não relacionados com a Lei, de modo que dificilmente um grupo conseguiria acusar outro de heresia (3). Lightfoot trouxe uma opinião para explicar a origem do sofrimentos dos recém-nascidos. Explicações de cunho “kármico” surgiram na Idade Média, às quais o rabino Saadia Gaon contrapôs a tese de compensações futuras no pós-morte.

Talvez algum apologista espírita esteja achando a solução aqui trazida uma apelação. Talvez ignore ele que um nome bem conhecido entre os espiritualistas concordaria com isso, embora discordasse em vários outros pontos meus. Esse é o próximo assunto.
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Uma Inesperada Corroboração

A jornalista Elizabeth Clare Prophet produziu um livro muito falado entre os espiritualistas de nome Reencarnação: o Elo Perdido do Cristianismo. Comparada com outras obras sobre o tema, esse livro apresenta vários pontos positivos: uma pormenorizada descrição das crises origenistas, ao contrário da simplificação exagerada feita por outros autores, e não cai na tentação fácil de explicar tudo numa teoria conspiratória centrada na figura da imperatriz Teodora. Também devo comentar que Prophet fez a gentileza de colocar muitas vezes referências diretas às obras de Orígenes, o que facilita muito o trabalho de revisão e crítica, embora ainda se valha demais de citações não verificadas. Já comentei em outro artigo certos vícios de pesquisa da autora, que não vou repetir aqui. O que interessa agora é uma valiosa informação que ela traz no capítulo XVI do livro (“Os Diferentes Destinos dos Gêmeos”).

Os rabinos chegaram a uma conclusão incomum. Como as escrituras diziam que os destinos dos gêmeos [Esaú e Jacó] eram diferentes desde o nascimento, e uma vez que Deus era justo, acharam que a única resposta possível era que Esaú havia pecado enquanto estava no ventre de sua mãe. Por mais estranho que pareça, é exatamente esta especulação que encontramos num comentário do Gêneses escrito por volta de 400 a.C.. Os rabinos conjeturavam que, quando Rebeca passava por “casas de idolatria”, Esaú indicava a sua preferência dando pontapés, mas “quando ela passava por sinagogas e casas de estudo, era Jacó quem dava pontapés, tentando sair” (n. 4). Por estas ações os rabinos concluíram que Deus preferia Jacó e sua semente a Esaú e sua semente, por gerações.

Prophet afirma que essa história consta no comentário rabínico Genesis Rabbah 63.6.3 (4) e, conforme ela explica em sua nota nº4 para esse capítulo ao fim do livro, foi retirada de um livro do escritor judeu Jacob Neusner. Bom, como estamos falando de citações de citações surge uma questão a respeito da datação de Gêneses Rabbah. Tenho outro livro desse mesmo autor (Introdução ao Judaísmo, ed. Imago ) cujo glossário traz a datação para Genesis Rabbah para 450 E.C. (Era Comum, isto é, d.C), portanto quando Prophet situa o livro em 400 a.C. devo indagar se o correto não seria 400 d.C. De fato, há um erro aí, mas não da autora e sim da tradução da edição brasileira. Consultando o original em inglês, encontra-se:

Edição em língua inglesa de Prophet

A expressão usada é “A.D. 400” (Anno Domini 400), que significa literalmente “400º ano do Senhor“, ou, em bom português, “ano 400 depois de Cristo“. Por algum motivo, confundiram a sigla A.D., comum entre os anglófonos, com o nosso tradicional a.C. Esse lapso não é tão inofensivo assim, pois, ao datar Genesis Rabbah 400 anos antes de Cristo, haveria tempo para sua proposta para o caso de Esaú e Jacó ter sido substituída por uma doutrina reencarnacionista que, supostamente, teria se difundido no seio do judaísmo intertestamentário. Com a datação correta, fica menos provável que a reencarnação já fosse moeda corrente no mainstream do judaísmo ao tempo de Jesus. Prophet, sem querer, confirma a mesma ideia trazida por John Lightfoot em seu comentário de João.

Bem, muitos podem estar se perguntando por que estou usando uma autora cujo trabalho tanto critiquei. A resposta é que aqui ela está agindo contra os seus interesses, portanto não há motivo para que fraudasse isso. Vale lembrar que Prophet também abordou a passagem do “Cego de Nascença” no capítulo IX de seu livro e óbvio que sua análise está ao gosto espiritualista. Ela não percebeu que sua alusão a Genesis Rabbah, bem mais à frente, deixaria a obra inconsistente. Isso também deve ter passado despercebido por vários apologistas que fazem uso dessa autora, mas não por este portal.
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A Finitude da Criação

ampulheta

A crença na existência alguma forma de Juízo Final ou Fim dos Tempos torna imperioso que, em algum dado instante, novas almas deixem de ser criadas. Num modelo traducianista (alma e corpo são gerados juntos) ou com criação contínua de almas, bastaria que novas concepções não ocorressem. O que aconteceria, porém, se todas as almas já estivessem prontas e contadas desde o princípio? É esse o caso que nos traz o apocalipse judaico II Baruque, que defende o começo da era messiânica para quando a última alma em espera vier a nascer:

XXIII – A Proximidade da Salvação
(…)
Então ele falou-me: “Por que te preocupas, pois, com aquilo que não sabes? Por que te angustias com o que não conheces? Se tu tens conhecimento dos homens de hoje, e dos que já se foram, eu conheço os que hão de vir. Quando Adão pecou, atraindo a morte sobre os seus descendentes, foi então contada a grande massa daqueles que haveriam de nascer; e foi preparado um lugar para aquela multidão, tanto para morada dos vivos como para a guarda dos mortos. Enquanto aquele número predeterminado não for preenchido, as criaturas que morreram não reviverão. O meu Espírito é o de Criador da vida; e o mundo inferior continuará a receber os mortos.
“Porém, mais coisas ainda ser-te-á permitido ouvir sobre o que irá acontecer após esses tempos. Em verdade, a Salvação que vos preparei está próxima, e já não mais tão distante como anteriormente.”

Fonte [Tricca, p. 314]

O interessante que esse apócrifo nos revela é o fato de a preexistência, embora seja uma condição necessária para a reencarnação, de forma alguma é uma condição suficiente para ela. É perfeitamente possível conceber um sistema – e foi concebido – em que as almas encarnem apenas uma vez e, depois, permaneçam numa espécie de limbo até a ressurreição do Mundo Vindouro, algo do qual o próprio livro de II Baruque apresenta sua versão em outra parte.

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Uma Análise Histórica de João, capítulo IX

Tudo que foi escrito acima partiu de dois pressupostos:

  1. Os ensinos de Jesus estavam dentro de seu contexto histórico-cultural;
  2. A passagem do “cego de nascença” foi histórica.

Nenhum dos dois, porém, me parece válido, ou melhor, válido do modo como os espiritualistas alegam. Com relação ao primeiro, pode-se conceber uma racionalização para a discrepância assinalada ao final do tópico anterior: Prophet consideraria a reencarnação como um ensino de Jesus, ao passo que os pecados pré-natais pertenceriam aos de outros rabinos. A brecha que ela e outros escritores esotéricos dispõem são os “anos perdidos”: o período dos 13 aos 30 anos de Jesus em que a literatura cristã é silente. Jesus poderia ter absorvido a reencarnação pelo contato com a cultura grega ou viajado à Índia pegando carona com a “Rota da Seda” (cap. VIII do citado livro de Prophet). É um tanto questionável a primeira hipótese porque o ambiente em que Jesus viveu era fortemente nacionalista e apocalíptico, ou seja, não eram seus conterrâneos tão propícios a aceitar ideias alienígenas e acreditavam numa mudança iminente (e cataclísmica) da realidade que conheciam. Quanto ao suposto contato de Jesus com monges budistas na Índia, isso não é levado muito a sério no meio acadêmico (5). Em outras palavras, “Jesus em contexto” aqui assumido não é o mesmo deles.

Resta ainda saber se Jo 9:2 tem alguma probabilidade relevante de ter sido verídico. Em suas palavras após a pergunta dos discípulos são: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu para que a obra de Deus se manifestasse na vida dele“; Jesus vai contra o tecido social da época, um ponto favorável a sua autenticidade. Por outro lado, como contexto é uma hierarquia, há fatos no capítulo IX de João que não condizem com o esperado durante a vida de Jesus:

Responderam os pais: Sabemos que ele é nosso filho e que nasceu cego. Mas não sabemos como ele pode ver agora ou quem lhe abriu os olhos. Perguntem a ele. Idade ele tem; falará por si mesmo. Seus pais disseram isso porque tinham medo dos judeus, pois estes já haviam decidido que, se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga.

Jo 9:20-22

Nem nos sinópticos, nem em Atos há relatos de expulsão dos cristãos das sinagogas durante a vida de Jesus ou bem no início da pregação do apóstolos. Os registros judaicos de expulsão de quem apontasse Jesus como Messias (ou qualquer outro) também são mais tardios. Então, o autor de João está narrando uma experiência vivida por sua comunidade, não por Jesus e seus discípulos. A resposta de Jesus é feita de palavras desse desconhecido autor, embora façam o estilo do Messias cristão.

João é o mais tardio dos canônicos, tendo sido escrito após a destruição do Segundo Templo em 70 d.C., quando a maioria das seitas judaicas foi extinta e o judaísmo rabínico emergiu como força distinta do cristianismo. O “cego de nascença” reflete o começo das tensões que levaram declaração de que judeus-cristãos não eram mais filhos de Abraão nesse novo judaísmo centrado na sinagoga. Note-se o teor antissemita das palavras ao final do capítulo precedente ao nono:

Vós [os judeus] tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.

Mas, porque vos digo a verdade, não me credes.

Quem dentre vós me convence de pecado? E se vos digo a verdade, por que não credes? Quem é de Deus escuta as palavras de Deus; por isso vós [os judeus] não as escutais, porque não sois de Deus.

Jo 8:44-47

Assim, pode-se cogitar que a cura do cego de nascença seja uma metáfora para como a comunidade joanina encarava sua antiga matriz religiosa: todo judeu nasceria cego e apenas Jesus Cristo lhe “abriria os olhos”, especialmente se fosse fariseu (cf. Jo 9:39-41).

É possível, também, que essa passagem reflita um estágio em que a comunidade joanina já contasse com um bom número cristãos gentios entre eles e a pergunta dos apóstolos refletisse uma antiga crença pagã deles (6). Ou era mesmo parte de uma herança rabínica ainda recente, como alegado acima. Embora não seja possível decidir quanto a isso, o certo é que quando foi abraçado pela ortodoxia cristã, notadamente por Irineu de Lião (7), a reencarnação não fazia parte de sua doutrina.
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Notas

(1) Acesse o portal Ser Judio – Vida y muerte ou leia O Judaísmo Vivo, de Michael Asheri, cap. XLI, pp. 251-2 , para verificar que a aceitação da reencarnação ou gigul neshamot não é universal entre os judeus modernos. Leia Jewish View of the Afterlife, de S.P. Raphael, cap. VIII, pp. 314-20 para uma análise histórica e mais aprofundada. Curiosamente, esses dois autores também tocam na possibilidade, em alguns círculos kabalísticos, de reencarnação em corpos de animais. Será que os espiritualistas modernos compram essa ideia?

(2) Cf. [Givens], cap.III. e – [Chamberlin]

(3) O historiador Paul Johson fez uma interessante observação:

[Na Idade Média] Havia uma tal variedade de opiniões sobre o Messias no judaísmo que era quase impossível ser herético nesse assunto. O judaísmo dizia respeito à Lei e sua observância. O cristianismo dizia respeito à teologia dogmática. Um judeu podia atrapalhar-se quanto a um ponto delicado da observância do sábado que a um cristão pareceria ridículo. Por outro lado, um cristão podia ser queimado vivo por sustentar uma ideia sobre Deus que a todos os judeus pareceria um assunto de opinião legítima e de controversa.

Johson, Paul; A História dos Judeus, Imago, 1995, parte III, p. 228.

O comentário rabínico Genesis Rabbah 34:10 (a conversa entre Antonino Pio e Rabi Judá ha-Nasi, trazida por Lightfoot), mostra uma opinião oposta à possibilidade de um feto pecar. Porém, conforme a nota seguinte, dentro do mesmo comentário há uma opinião a favor disso. Uma alternativa para Jo 9:2 é a de que os discípulos de Jesus quisessem justamente sanar essa dúvida.

(4) Da própria transcrição de Genesis Rabbah 63:6 feita por Jacob Neusner (p. 180):

When she sent by houses of idolatry, Esau would kick, trying to get out: “The wicked are estranged from the womb” (Ps. 58:4). When she passed by synagogues and study-houses, Jacob would try to kick, trying to get out: “Before I formed you in the womb, I know you” (Jer 1:5)

Tradução

Quando ela [Rebeca] cruzasse com casas de adoração dos ídolos, Esaú se contorceria querendo sair, como se diz, “os ímpios são desviados desde o ventre materno” (Sl 58:4). Quando ela passasse por sinagogas ou casas de estudo, Jacó se contorceria querendo sair, como se diz, “antes que eu te formasse no ventre, eu te conheci” (Jr 1:5).

Óbvio que aqui houve uma “rabinização” da história de Gêneses, pois não havia sinagogas ou casas de estudo à época da narrativa sobre Esaú e Jacó.

Observação: Uma edição completa e bilíngue (hebraico/inglês) do livro pode ser encontrada no portal www.seferia.org. O portal “Sacred Texts” possui apenas uma seleta deste livro e carece desta passagem. A Bíblia Ecumênica Barsa (1979) comenta a passagem Jo 9:2 de forma parecida com a de John Lightfoot, mas não faz nenhuma referência bibliográfica.

(5) Essa história de que “Jesus viveu na Índia” teria começado quando um russo – Nicolai Notovitch -, no final do século XIX, teria viajado ao Tibete e se abrigado no mosteiro budista de Hemis enquanto convalescia de uma fratura. Lá teria conseguido acessar um manuscrito chamado A Vida de São Issa, que lhe era recitado, e ficou pasmo com similaridades entre essa personagem e Jesus Cristo, com o diferencial de ela conter informações sobre os “anos perdidos de Jesus”, i.e., o período que vai dos doze aos trinta anos que supostamente foram passados na fronteira entre a atual Índia e o Tibete, e dedicados ao aprendizado do budismo. Já de volta ao ocidente, publicou em francês suas memórias no livro A Vida Desconhecida de Jesus Cristo. Um dos apologistas desse “Jesus indiano” – Holger Kersten (de Jesus Viveu na Índia) – não ignora as críticas surgidas e adota a postura de que “a melhor defesa é o ataque”: acusa um dos críticos da tese – Max Müller, hindulogista de Oxford – de ser fanático cristão e de nunca ter estado na Índia. Isso é de uma extrema esperteza e covardia, pois assinalar as fraquezas do adversário de forma alguma torna alguém mais forte. Pelo contrário, afinal fica claro que não se tem resposta às críticas do oponente. E um dos ataques de Müller era o fato de tão notável documento não constar em grandes cânones do budismo tibetano, como o Kanjur e o Tanjur. Notovitch acabou mudando sua história em novas edições: a biografia de Issa não era mais uma obra em dois volumes e, sim, um apanhado de contos espalhados em diversas outras. Além disso, existe outra acusação de fraude feita à mesma época pelo acadêmico inglês J. Archibald, que foi ao mosteiro de Himes e não encontrou nada e ninguém sabia de tal manuscrito. A história foi encerrada por um tempo até que outros alegaram ter visto o documento, inclusive entrando em contradição com Notovitch, só que ninguém o trouxe ou fotografou. Como se não bastasse, o documento, posteriormente, foi dado como “perdido”, apesar de a história original de Notovitch não tratar os textos de Himes como exclusivos…

A quem quiser saber mais, sugiro a leitura de Jesus in Tibet – A Modern Myth, de Robert M. Price, e a das publicações originais de Müller e Archibald. O recentemente aclamado Bart Ehrman chega a fazer um breve comentário a respeito das teses do “Jesus indiano”:

Outras falsificações têm sido perpetradas nos tempos modernos, de relevância direta para nosso corrente estudo de apócrifos cristãos antigos. Pode-se pensar que, em nossos dias e época, ninguém seria tão ardiloso para assegurar quaisquer relatos de primeira mão de Jesus como autênticos. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Estranhos evangelhos aparecem regularmente, se você souber onde procurá-los. Muitas vezes esses registram incidentes dos “anos perdidos” de Jesus, por exemplo, relatos de Cristo ainda criança ou jovem anteriores a seu ministério público, um gênero que retrocede até o segundo século. Esses relatos algumas vezes descrevem viagens de Jesus à Índia para aprender a sabedoria dos brâmanes (como de outra forma ele seria tão sábio?) ou seus feitos no deserto, juntando-se com monges judaicos para aprender o caminho da santidade.

– Ehrman, Bart D.; Lost Christianities, Oxford University Press, 2003, cap. IV, p. 68:

Ehrman não chega a citar Notovitch, nem a desenvolver o tema do Jesus budista/hindu. Mas esse parágrafo deixa transparecer que a tese não é levada muito a sério nos meios acadêmicos.

(6) Para mais pormenores da evolução social da comunidade joanina, ver Ehrman, Bart; The New Testament, Oxford University Press, 2008, cap. XI. O Jesus Seminar, no livro The Five Gospels, também não considerou essa passagem como genuína, mas por razões estilísticas: serve de abertura a um discurso um tanto longo, improvável de ser relembrando com tanto precisão, e como mais uma brecha para os característicos “Eu sou” desse evangelho.

(7) Contra as Heresias, livro III, 11
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Para Saber Mais

– Asheri, Michael; O Judaísmo Vivo; Imago,1995;

– Chamberlin, Frank; Pre-Existence of the Soul in the Book of Wisdom and in the Rabbinical Writings, The American Journal of Theology, Vol. 12, No. 1, (Jan., 1908), pp. 53-115, The University of Chicago Press.

– Givens, Terry L.; When the Souls had Wings – Pre-Mortal Existence in Western Thought, Oxford, 2010.

– Johson, Paul; A História dos Judeus, Imago, 1995

– Raphael, Simcha, Paull; Jewish Views of the Afterlife, Aronson, 2004.

– Neusner, Jacob; Introdução ao Judaísmo, Imago, 2004.

– Tricca, Maria Helena de Oliveira (compiladora); Apócrifos – Os proscritos da Bíblia, tradução do alemão de Ivo Martinazzo, vol. I e III, Ed. Mercuryo, 2003.

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Saadia Gaon e a Reencarnação

A Alma


Tratado VI – capítulo VIII

Concordo que a transmigração de almas (gigul) faz parte da mística moderna de grupos judaicos. Mas quando ela entrou? A ausência de vida após a morte entre os saduceus, a rejeição dela por Flávio Josefo (Discurso aos gregos sobre o Hades) e o relato de Orígenes negativo à presença dela entre os místicos judaicos de sua época (Comentário sobre o Evangelho de João, VI, VII) sugerem que ela não pertencia àquela época ainda. Então quando ela começou a se difundir? Difícil dizer, mas pode-se estipular que foi ao longo da Idade Média. Este texto é, de certa forma, um testemunho desta divulgação ocorrendo no século X, dado por um famoso teólogo e filósofo judeu.

Por Saadia Gaon (ou Saadia Ben Yosef), O Livro das Crenças e Opiniões, tratado VI

* * *

Agora eu considero apropriado a estas observações uma referência ao ponto de desacordo existente entre aqueles que os que discordam quanto a substância da alma e aqueles que expressam-se em referência ao destino dela após a morte. Já que eu descubro que, aqueles que asseveram ser ela de um material etéreo ou substância ígnea e a maioria dos afirmam que ela é uma propriedade, todos sustentam que a alma se decompõe e se desintegra e desaparece. Aqueles, de novo, que são da opinião de que ela é derivada de seres espirituais, ou de seu Criador apenas, ou dEle e algo mais, ou de dois princípios existentes desde a eternidade, sustentam unanimamente que a após a morte a alma retorna para fonte da qual se originou. Entretanto, já demonstrei a insustentabilidade de todas essas teorias e as refutei.

Embora eu deva dizer que tenho encontrado certas pessoas, que chamam a si mesmas de judias, professando a doutrina da metempsicose, que é designada por eles com a teoria da “transmigração” das almas. O que ele querem dizer com isso é que o espírito de Rúben transferiu-se a Simão e depois a Levi e, em seguida a isto, a Judá. Muitos deles iriam tão longe como ao ponto de afirmar que o espírito de um ser humano pode entrar no corpo de uma fera ou que o de uma fera no de uma ser humano e outros tipos de absurdo e estupidez.

Agora eu tenho estudado as considerações que, alegam eles, levaram-nos a aceitar esta doutrina e descobrir que elas se constituem de quatro premissas erradas, que eu considero apropriado listar agora e refutar. A primeira é que eles aderem à teoria dos espiritualistas e a três outras teorias, ou que eles não estão cientes de que o fato que advoga a teoria da transmigração ter derivado da teoria dos dualistas e dos espiritualistas. Entretanto, os argumentos contra todas essas visões já foram descritos e registrados por mim.

A segunda base de suas conclusões é que eles observaram as características de muitos seres humanos e descobriram que elas se assemelham às de feras. [Eles viram, por exemplo, que havia pessoas] que eram dóceis como carneiros, e outros que eram violentos como animais selvagens, e aqueles que eram maliciosos e contemplativos como cães, e outros, ainda, que são volúveis como pássaros, e assim por diante. Estas observações deram suporte para sua visão de que as características supra citadas foram adquiridas pelas pessoas em questão em virtude de elas possuírem almas dos respectivos animais.

Isto por si só, porém, indica o quão tolos eles são. Pois eles consideraram que o corpo humano é capaz de transformar a essência da alma a fim de torná-la uma alma humana depois de ter sido a de uma fera. Eles assumem, além disso, que a alma por si só e capaz de transformar a essência do corpo humano ao ponto de dotá-lo com as características das feras, ainda que sua forma seja a de homens. Não seria suficiente para eles, então, que atribuíssem uma natureza variável a alma não lhe imputando uma essência intrínseca, mas eles se contradizem quando declaram a alma capaz de transformar e mudar o corpo, e o corpo capaz de transformar e mudar a alma. Mas tal raciocínio é um desvio da lógica.

O terceiro [argumento que eles apresentam] está na forma de um argumento lógico. Dizem, a saber: “Visto que o Criador é justo, é inconcebível que Ele deva ocasionar sofrimento a criancinhas, a não se que seja por pecados cometidos por suas almas durante o tempo em que elas alojadas em seus antigos corpos.” Esta visão é, entretanto, passível de numerosas refutações.

A primeira é que eles esqueceram o que mencionamos (tratado V, cap III) quanto à compensação no além-vida pelos infortúnios experimentados neste mundo. Além disso, gostaríamos de perguntar o que eles entendem do status da futura alma – queremos dizer: seu status quando ela é criada. É ela imputada por seu Mestre com alguma obrigação de obedecer a Ele ou não? Se eles alegam que ela não é imputada, então não podem haver punições por isso, já que não foram imbuídas com nenhuma obrigação para começar. Se, por outro lado, eles reconhecessem a imposição de tal encargo, no caso em que obediência e desobediência não se aplicam a alma até então, assim eles admitem que Deus imputa seus servos com obrigações com relação ao futuro e não todas com relação ao passado. Mas então eles retornam a nossa teoria de compensação e são forçados a abandonar sua insistência na visão de que o sofrimento do homem neste mundo é devido somente a sua conduta numa existência anterior.

A quarta [causa de suas conclusões errôneas] é sua dependência em interpretações falhas da Bíblia. Destas eu considero apropriado mencionar alguns exemplos. Como um deles, posso citar a declaração feita por Moisés, que a paz esteja com ele: Mas com aquele que está aqui conosco este dia, perante o Senhor nosso Deus, bem como aquele que não está aqui conosco hoje. (Deut. 29:14). Isto, dizem eles, prova que as almas das últimas gerações são idênticas às das primeiras, portanto os presentes e ausentes foram um e o mesmo. Entretanto, o simples significado daquele verso nega seu ponto de vista, porque ele estabelece explicitamente que quem está presente é alguém diferente do ausente. Sua significação, em suma, é que aqueles a quem a mensagem de Moisés veio pela tradição são tão obrigados a aceitá-la tanto quanto os que estavam presentes para recebê-la.

Outro caso de má interpretação é o do verso: Feliz o homem que não não tenha andado no conselhos dos ímpios (Sl 1:1) [hath not walked, na versão inglesa]. Dizem, a saber, que o fato de a Escritura usar a expressão não tenha andado e não a de não andar nos indica que a punição é imputada pelo mal feito pela alma no passado, enquanto estava em seu primeiro corpo. Mas isto é um grave erro da parte deles, pois a Escritura pode ordenar que a pessoa em questão será feliz somente após não ter andado. Não se pode fazer isto antes de não andar. O sentido explicito do verso, portanto, refuta sua visão.

Além disso, se for como propõem, as recompensas seriam conferidas pelas futuras boas ações, não pelas do passado, por causa do fato de que a expressão usada pela Escritura, em seguida, é e na Sua lei ele meditará (1) (Sl 1:2) e não que ele tem meditado; pelo mesmo motivo eles concluíram que as punições são imputadas pelos pecados passados, e não pelos do futuro, a partir do fato de a fraseologia empregada na Escritura ser: Feliz … é o que não tenha andado e não que não andar.

Outro verso que é mal interpretado por eles: Transforma-se como argila debaixo de um sinete; e tinge-se como um vestido (Jó 38:14). Interpretaram, a saber, a expressão Transforma-se como se referindo a alma, alegando que isto prova que ela alterna continuamente entre homens e animais. Contudo, não perceberam, tolos, que na verdade esta afirmação é feita em relação à terra, visto que a sentença imediatamente anterior é: para agarrar as bordas da terra e sacudir dela os ímpios (Jó 38:13). É com relação à terra que se afirma que ela é transformada pelas desgraças, causadas pelos ímpios, como argila de baixo de um sinete, e que se apegam a ela como se fossem sua vestimenta, incapaz de ser arrancada até os desígnio de Deus referentes a eles ter sido cumprido.

Um adicional engano da parte deles é o aplicado à referência do santo: “Ele restaurará minha alma” (2) (Sl 28:3). Eles pensaram, a saber, que isto implicava numa permuta de corpo para corpo, não lembrando, ignominiosos que são, que se referia a relaxação, e descanso, e repouso da alma da excitação experimentada por ela, não a uma restauração depois da partida de um corpo.

O significado da expressão na língua de nossos primeiros ancestrais é bem claro e evidente(3). Assim falaram de Sansão, quando ele estava sedento e seu Mestre deu lhe água para beber: Seu espírito voltou e ele reviveu. (Jz 15:19), apesar de, na verdade, nunca tê-lo deixado. Similarmente, falaram do egípcio que estava faminto e que foi alimentado por Davi, que a paz esteja com ele, E seu espírito retornou-lhe ( 1 Sm 30:12). De novo a Escritura fala do mensageiro fiel: Então é um mensageiro fiel que lhe é enviado; para restaurar (4)a alma de seu senhor . (Pr 25:13). Também diz da Lei: A lei do Senhor é perfeita, restaurando a alma (Sl 19:8). Eu deveria ter me acautelado de discutir o erro de sua teoria e prevenir-me contra discursar sobre sua inutilidade, não fosse que estivesse receoso da má influência [ deste pensamento sobre os outros].

Finalmente, [devo falar como exemplos de engano da] sua citação [ em suporte a sua teoria] da frase da Escritura: Venha dos quatro ventos, Ó espírito (5), e sopre sobre estes mortos, que eles viverão (Ez 37:9). Porém, pergunto: “O que há nisto afinal que aponta conclusivamente para [a doutrina da] metempsicose?” A única razão pela qual este raciocínio foi expresso da forma que aqui está é que os ventos estão estacionados nas regiões superiores e inferiores. De qualquer lado que eles possam estar, portanto – sempre, mesmo se devessem estar nas suas quatro direções, eles tem de aparecer quando seu Mestre os chamar. Isto também é corroborado pela afirmação do santo: Tu me chamarias e eu responderia; desejarias rever a obra de tuas mãos.(Jó 14:15).

Por meio deste, o sexto tratado foi completado.

(1) A tradução usual é ele medita.

(2) A tradução usual é restaura. [Nota do administrado do portal] O texto inglês dá esta passagem (Sl 28:3), mas o provável seria Sl 23:3, supondo um erro tipográfico.

(3)Este tratado foi escrito originalmente em árabe, não em hebraico.

(4) Outras traduções são refrescar, reconfortar.

(5) Ou sopro.

Versão inglesa:

– Gaon, Saadia; The Book of Beliefs and Opinions; Yale Judaica Series, Yale University Press, tradução de Samuel Rosenblatt.