Por Acauan Guajajara, do Religião é Veneno
E tem um terceiro.
Um outro outro mundo, exclusivo dos espíritas e invisível para quem não o é, mas mais próximo e compreensível para os terrenos do que o etéreo entre o nirvana e o umbral, onde karmas se cumprem obedecendo a enredos parecidos com os das novelas mexicanas.
O interessante do segundo outro mundo dos espíritas é que, ao contrário do primeiro, ele é repleto de realizações positivas aferíveis pelos prosaicos observadores deste plano.
Este outro mundo manifesta-se no nosso através dos Centros Espíritas. Não… não pensem de início em lugares onde apenas se dão passes e gente morta manda recados sobre o quanto estão felizes e bem lá do outro lado.
Os Centros Espíritas são complexos impressionantes, pelos menos os grandes Centros, que agregam, além das atividades típicas requeridas pela doutrina kardecista, as ações de caridade exigidas por ela.
Os grandes Centros Espíritas são de matar pastor de igreja neopentecostal de porta de garagem de inveja. Enquanto estes espremem o dom de apascentar que lhes é dado pelo Espírito Santo para tentar recolher até o último centavo de dízimo que lhe permita pagar o aluguel do mês daquele espaçozinho sem graça, os espíritas se dão ao luxo de manter prédios no porte e forma parecidos com escolas públicas, onde, além de exercitarem seus iniciados no diálogo com o além-túmulo, mantém uma enormidade de atividades sociais que muitas vezes incluem creches, orfanatos, escolas de deficientes e coisas do tipo.
Estou certo que todo mundo sabe que manter estas coisas é caro. Talvez nem todo mundo saiba que manter estas coisas é muito, muito caro.
Há Centros Espíritas que mantém creches para carentes, escolas para excepcionais, lares para órfãos ou asilos para idosos dotados de toda a infraestrutura e tocados por profissionais especialistas remunerados. O custo mensal disto tem muitos zeros a direita da primeira cifra.
Mas segundo o IBGE os espíritas são uma percentagem pequenininha da população e não cadastram seus adeptos para pingar o dim-dim do fim do mês nos cofres das lideranças religiosas sob a pena de terem o devorador comendo suas rendas caso não o façam (hei, hei, fiz piada com vocês sabem quem…).
Como então conseguem manter tantas obras, cujo funcionamento exige uma garantia de recursos fluindo todo quinto dia útil do mês para pagar folhas de pagamento e toda semana para pagar alimentos, materiais de consumo e serviços de manutenção? E para complicar parece que ainda sobra para campanhas várias, da Páscoa ao Natal.
A resposta é o que os espíritas mantém uma enorme, silenciosa e extremamente organizada rede de coleta e distribuição de recursos que não só fazem fluir quantidades imensas de dinheiro e donativos para a manutenção de suas obras como mantém um gerenciamento eficiente na aplicação destes recursos.
Os grandes Centros Espíritas são reflexo disto. Todos funcionais, limpinhos e ascéticos.
Cheios de salas, algumas de portas trancadas embaixo das quais sempre olho para ver se tem ectoplasma escorrendo pela fresta. Quadras de esportes, cantinas e anfiteatros completam o pacote.
Os espíritas brasileiros que sustentam tudo isto estão concentrados na classe média, mas a comunidade abrange empresários e profissionais liberais bem sucedidos que de modo notavelmente discreto estão por traz das contas que não fechariam sem a contribuição deles.
Lembro-me de uma muito conhecida família de advogados criminalistas de São Paulo que assumia pessoalmente a direção de uma grande creche mantida pelos espíritas. Nunca entendi como tinham tempo para dar atenção aos seus casos jurídicos cuidando de todos os pepinos que aquele abacaxi lhes proporcionava.
Como empresário espírita não bota neon na fachada de suas empresas anunciando que “Deus é Fiel”, como fazem prosélitos de outras crenças, ninguém sabe que eles existem. Mas há muitos. Talvez o seu patrão seja um deles, vá saber.
Um conselho: não tentem fazer marketing social em instituições espíritas dando algum dinheiro para ostentar faixas do tipo “a empresa tal mantém esta instituição”. Para quem não sabe, os espíritas não aceitam isto. Se quiser doar dinheiro eles agradecerão e dirão que o donativo será tratado com discrição, mesmo que sua intenção ao doar fosse fazer o máximo possível de propaganda da sua bondade.
Alguns Centros Espíritas são mantidos exclusivamente pelos chamados servidores, membros da comunidade que realizam todos os serviços para manter a instituição – da contabilidade a lavar banheiros – sem receber um centavo por isto.
E há também empresas mantidas e tocadas por espíritas cujo objetivo é levantar fundos para manter as obras da comunidade. Um grau de especialização e sofisticação que parece planejado por alguma administração central.
Só que os espíritas não têm organização central nenhuma.
O consenso mais próximo que os espíritas parecem ter quanto à uma autoridade reconhecida por todos é que todos parecem concordar que a Federação Espírita Brasileira não é esta autoridade.
E quem é?
Ninguém.
É isto que torna o outro outro mundo dos espíritas um fenômeno digno de nota. A mais pura expressão do Laissez-faire transferida para o mundo da religião.
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Do administrador: um bom Natal e feliz ano novo!