Orígenes X Origenismo

Já houve quem dissesse que se Karl Marx estivesse vivo na década de 70 do século XX, com certeza não seria marxista, tamanha a modificação que suas ideias sofreram durante cem anos de rupturas, dissidências e diversos “experimentos práticos”. De maneira análoga, as ideias de Orígenes passaram por uma transformação desde sua morte no século III ao segundo Concílio de Constantinopla no VI. Henri Crouzel (conforme relatado em The School of Alexandria: Origen, cap. IV) relata que se podem distinguir seis momentos sucessivos:

  1. O conjunto de especulações que, por meio da incompreensão de seus sucessores, contribuiu para a base do origenismo posterior;

  2. Origenismo como compreendido pelos detratores dos séculos III e IV: Metódio, Pedro de Alexandria e Eustâncio de Antioquia. Estes foram respondidos por Pânfilo em sua Apologia de Orígenes. Além da preexistência das almas e apocatástase, eles rejeitaram, por uma série de mal-entendidos, a doutrina da ressurreição do corpo e criação eterna;

  3. Origenismo dos monges egípcios e palestinos (na segunda metade do século IV): foi principalmente exposto por Evágro Pôntico em Kephalaia Gnostica. O “escolasticizado” pensamento origenista de Pôntico, suprimindo suas tensões internas e deixando de fora parte de sua doutrina a fim de construir uma sistema com o que restara. [o que teria, segundo os autores de “The School…”, sido o responsável por caráter herético de tal sistema, ao suprimir antíteses que caracterizariam a doutrina cristã];

  4. O mais importante momento de Orígenes foi nos embates entre os antiorigenistas dos séculos IV e V – Epifânio, Jerônimo e Teófilo de Alexandria – contra seus defensores, como João de Jerusalém e Rufino de Aquileia. Eles acusavam Orígenes em vista das heresias de seu próprio tempo como o arianismo. Nunca fizeram estudos sistemáticos do trabalho de Orígenes e baseavam suas acusações em textos isolados, sem levar em conta que explicações muitas vezes podiam ser encontradas no mesmo livro, algumas linhas abaixo. Data do final do século IV e começo do V uma querela em Rufino e Jerônimo quanto a correta tradução latina de De Principiis. Jerônimo acusou o primeiro de ter adulterado e suprimido do texto de forma a tornar Orígenes mais “palatável” ao pensamento tido por “ortodoxo” na época. Jerônimo contra-atacou com sua própria tradução latina, contendo todos os ponto polêmicos. Tal tradução se perdeu, mas uma ideia aproximada dela pode ser extraída da sinopse que Jerônimo faz em sua Carta a Ávito. Rufino defendeu-se assumindo que restaurara ao pensamento original um texto que fora alterado por hereges, tal qual outros escritores cristão tinham sido indevidamente alterados. Um sétimo da obra De Principiis está preservada em antologia feita por Basílio de Cesareia e Gregório Nazianzeno (Philocalia) e sugere que tanto Rufino quanto Jerônimo extrapolaram em suas posições. Este episódio (que, na verdade, envolveu mais personagens e histórias) ficou conhecido como “primeira crise origenista”, situando-a cronologicamente em relação à “segunda crise” que viria sob o reinado de Justiniano;

  5. A controvérsia origenista ampliou-se na primeira metade do século VI, sendo descrita em pormenores em Vida de S. Saba, de Cirilo de Citópolis. O origenismo se propagara principalmente no mosteiro Nova Laura, próximo a Jerusalém. Origenismo, ou melhor, evagrianismo, também se propagou entre os monges palestinos que viviam em mosteiros sob a supervisão de St. Saba. A principal expressão de sua doutrina está no Livro de S. Hieroteos, o trabalho do monge sírio Estevão bar Sudaile, que agravou o “escolaticismo” origenista de Evágrio em um panteísmo radical. Entre as duas intervenções de Justiniano, estes origenistas teriam se dividido em duas facções. J. Meyndorff declara que recentes estudos lançaram nova luz sobre Evágrio Pôntico, que foi o grande intérprete no século IV das ideias origenistas aos monges palestinos e egípcios. Ele e não Orígenes é o responsável pelo sistema origenista. Diz ele: “A recente publicação dos ‘Capítulos Gnósticos’ de Evágrio Pôntico, na qual a doutrina condenada em 553 é encontrada, faz possível medir toda a significância das decisões do quinto concílio. O alvo da assembleia não era um fantasma do origenismo, mas as doutrinas genuínas de um dos mestres do monacato oriental, Evágrio”.

Entre os dois grupos citados em (5), o partido radical dos monges de Jerusalém – chamados de Isochristi – é aquele cujo origenismo se presume ter sido alvo da condenação do imperador Justiniano.

Jerônimo de Estridão

Quanto ao elaborador da Vulgata, Léon Denis diz em Cristianismo e Espiritismo que ele “afirma que a transmissão das almas fazia parte dos ensinos revelados a um certo número de iniciados”, porém não faz nenhuma alusão à fonte. O livro O Espiritismo e as Igreja Reformadas (de Jayme Andrade, editora EME, quarta edição) dedica o capítulo VII, parte 3 ao estudo da reencarnação na história e lá preenche tal lacuna:

São Jerônimo afirmou (Hyeron, Epistola ad Demeter) que a “doutrina das transmigrações era ensinada secretamente a um pequeno número, desde os tempos antigos, como um verdade tradicional que não devia ser divulgada”. Esse mesmo Pai se mostra crente na preexistência, em sua 94ª Carta a Ávitus.

José Reis Chaves, em A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, 7ª ed., ebm, cap VI; faz coro com Andrade :

São Jerônimo (…) também aceitava a reencarnação. Aliás talvez seja por isso que a Igreja pouco fale de São Jerônimo.

Ele afirma que a transmigração das almas foi ensinada durante um longo tempo na Igreja. (9)

Muito do que escreveu São Jerônimo escreveu está em forma de cartas. Em suas Cartas a Avitus, imperador romano, Jerônimo fala sobre a reencarnação (transmigração das almas) (10).

E eis o que escreveu São Jerônimo: “A transmigração das almas é ensinada secretamente a poucos, desde os mais remotos tempos, como uma verdade não divulgável”.(11)

As notas de rodapé são:

(9) Evangelho Esotérico de São João, pág. 68, Paulo le Cour, São Paulo, 1993.

(10) Vidas Passadas – Vidas Futuras, pág. 237, Dr. Bruce Goldberg, Editorial Nórdica Ltda. Rio de Janeiro, 1993.

(11) O Mistério do Eterno Retorno,pág. 123, Jean Prieur, Editora Best Seller, São Paulo, SP.

Sinceramente, estranhei quando foi atribuído a Jerônimo um perfil pró reencarnação. Ao contrário dos citados acima, Jerônimo já é um Pai pós-nicêno e, portanto, viveu numa época em que a fluidez teológica já diminuíra bastante. Bem, começando com a carta a Demetrius, pode-se constatar, procurando diretamente na tal carta, que NÃO existe tal referência elogiosa à doutrina da transmigração na carta a Demetrius. Pelo contrário, o que se encontra é:

Este ensinamento perverso e ímpio foi anteriormente amadurecido no Egito e no Oriente e agora que embosca secretamente como uma víbora em sua toca muitas pessoas daquela região, corrompendo a pureza da fé e gradualmente tocando conta de forma silenciosa como um mal hereditário, até atacar um grande número.

Isto é, Jerônimo está fazendo alusão à disseminação do origenismo no meio sírio-egípcio, um dos ingredientes da primeira crise origenista. Continuando: a Carta a Ávitus é de número 124 (desconheço outra sequência que a enquadre na 94ª posição), bom… são detalhes. O que começa a chamar atenção seria é o título de imperador desse tal de Ávitus. Jerônimo nasceu em 340, no ano da morte de Constantino II (imperador do ocidente) e subida ao trono de Constante (340-350). O oriente era governado pelo irmão de ambos Constâncio II. Em 350, Magnêncio toma o trono do ocidente, mas no ano seguinte Constâncio II o derrota e governa o império todo até 360 (ano de batismo de Jerônimo) quando é derrubado por Juliano (360-363). Seguem Valentiano I (364-375), tendo como co-imperador Valente (364-378) e Teodósio – o último a governar um império indiviso (378-395). Seu filho Honório ficou com o ocidente (395-423) e Arcádio com o oriente (395-408). Este foi substituído por Teodósio II (408-450). Jerônimo morreu em 420, não conhecendo nenhum imperador de nome Avitus. O cidadão a que ele faz menção deve ter sido o mesmo que o apresentou a uma mulher de nome Salvina na carta 79ª, datada em 400 d.C. A carta a Avitus é datada em 409-10. De fato, existiu um imperador romano de nome Avitus (Marcus Maecilius Flavius Eparchius Avitus) que reinou em 455-6 no ocidente, mais de trinta anos após a morte de Jerônimo. Ele nasceu em 395, logo era muito novo quando Jerônimo conheceu Salvina por intermédio do outro Avitus e um rapazola quando a carta em questão foi escrita. Voltando ao que interessa, J.R. Chaves acerta quando diz que que Jerônimo escreveu sobre a “transmigração das almas” para Avitus. Só esqueceu de dizer que ele desceu o sarrafo em tal doutrina a carta inteira! Isso parece um típico caso de informação que se corrompeu ao passar de mão em mão. Na verdade, Jerônimo faz uma sinopse ácida para Avitus de sua tradução latina de De Principiis, a mais polêmica obra de Orígenes, em contraposição à versão feita por Rufino, e acusa (erroneamente) Orígenes de ser crente na transmigração e não se mostra nem um pouco a favor da preexistência como diz Andrade. Maiores comentários em dessa briga no artigo sobre o Concílio de Constantinopla.