E quanto aos essênios?

Carvernas onde foram encontrados os manuscritos do Mar Morto.

As Cavernas de Qumran: a Arca de Noé dos manuscritos essênios.

Vamos supor que você faça uma viagem ao extremo oriente e visite um templo budista. Fica admirado com a sinceridade do voto de pobreza dos monges, as vestimentas despojadas e características, suas cabeças raspadas, seu trabalho social, horas gastas em estudos doutrinários, hierarquia interna, atitudes contemplativas e meditação. Voltando aqui para o ocidente, é interpelado por um colega seu que é totalmente ignorante quanto aos hábitos fora de sua cultura. Sabendo que seu colega é católico, ou tenha algum conhecimento sobre o catolicismo, manda-lhe uma comparação com algo que mais familiar: “os monges budistas vivem como os frades franciscanos”.

Obviamente, foram ignoradas diferenças enormes: meditar não é orar (se bem que o efeito cerebral parece ser semelhante), a coroinha dos franciscanos não chega a ser uma cabeça totalmente pelada, os budistas não prestam contas ao Vaticano e, principalmente, o conceito de vida única não condiz com os ciclos de renascimento. Visto que a intenção foi apenas ilustrar, até que não foi nada de mais.

Seria perigoso, com tão pouca informação, deduzir as crenças budistas usando os franciscanos como referencial. Então, por que extrapolar que a seita dos essênios do século I acreditavam em reencarnação a partir de uma frase tão curta:

Estes homens [os essênios] levam o mesmo estilo de vida daqueles a quem os gregos chamam de pitagóricos.

Josefo, Antiguidades Judaicas, XV, cap.10.

Isto quer dizer que eles viviam em comunidades religiosas e reclusas, se assemelhando ao estilo de vida dos pitagóricos; ou que eles também professavam suas crenças na reencarnação? Ou melhor: na metempsicose, com a possibilidade de uma alma humana habitar um corpo animal.

No Preceito da Guerra (1QM II,1), há uma alusão a sacrifícios rituais: “Os sacerdotes-chefes ministrarão durante o sacrifício diário diante de Deus…” foram encontrados 26 depósitos de ossos de diversos animais em Qumran. Seria estranho se eles acreditassem em metempsicose e matassem animais, coisa que os pitagóricos evitavam. Mesmo para a alimentação. Vamos obter mais informação, então. Na continuação da mesma frase de Josefo em Ant. XV, 10; ele diz: “dos quais discursarei mais plenamente em outro lugar.” E aqui está esse “outro lugar”:

A doutrina dos essênios é esta: que todas as coisas são melhor atribuídas a Deus. Ensinam a imortalidade das almas, e consideram que as recompensas da retidão são zelosamente adquiridas com esforço, e quando enviam o que dedicaram a Deus para o templo, não oferecem sacrifícios porque têm mais pura lustração por conta própria; razão pela qual são excluídos do pátio comunitário do templo, mas oferecem sacrifícios por si mesmos; embora seu estilo de vida seja melhor que o dos outros homens; e eles se entregam inteiramente ao zelo da atividade econômica. Também merece nossa admiração o quanto eles excedem todos os homens que se entregam a virtude, e isto em correção e em tal grau que nunca apareceu entre qualquer grupo de homens, quer gregos, quer bárbaros; não, não for pouco tempo, visto que isto tem durado bastante entre eles. Tal fica demonstrado pela sua instituição, que nada sofrerá para impedi-los de ter todas as coisas em comum; de forma que o rico não desfrute mais de suas fortuna do que aquele que nada tem. Há cerca de quatro mil homens que vivem desta forma, que nem se casam, nem desejam manter servos; pensando que a última tenta os homens a serem injustos e a primeira dá espaço a disputas domésticas; mas como eles vivem por conta própria, ensinam um para o outro. Também indicam certos administradores para receber os lucros de suas rendas e dos frutos da terra; tal qual bons homens e sacerdotes, que aprontam seu trigo e alimento para eles. Não se diferem nenhum deles dos outros essênios em seus estilo de vida, mas se assemelham aos dacas, que são chamados polistas (citadinos*).

Antiguidade judaicas, livro XVIII, cap I
(*) Os dacas eram membros de uma seita pitagórica. Pouco se sabe quanto ao ramo dos polistas, se realmente viviam de forma monástica ou nas cidades, como o próprio nome diz.

Fica patente, aqui, que os essênios criam na imortalidade da alma, mas sem a ressurreição farisaica no fim dos tempos. A semelhança com os pitagóricos é quanto ao seu estilo de vida, não com as suas crenças. A atitude de Josefo foi a de usar comparações a para auxiliar seu público helênico de leitores, como explica [Vermes, cap. III]:

Segundo Josefo, eles adotaram um conceito de imortalidade claramente helenístico, sustentando que a carne é uma prisão da qual a alma indestrutível dos justos escapa para um êxtase infinito, “num lugar além do oceano”, depois de sua libertação final (1) (Guerra Judaica, II, 8).

A ressurreição, que significa o retorno do espírito ao corpo material, não pode assim fazer parte deste esquema.

Os manuscritos nada ajudaram neste particular, até recentemente. Encontramos afirmações tais como “Içai uma bandeira, ó vós que jazeis no pó! Ó corpos roídos pelos vermes, erguei um estandarte…!” (1QH VI, 34-5; cf. XI, 10-14), o que pode ter uma conotação de ressurreição corporal. Por outro lado, a linguagem poética pode ser apenas alegórica. Há mais informações sobre a imortalidade distinta da ressurreição. Elas confirmam a descrição de Josefo, embora – o que não é de surpreender – sem qualquer coloração tipicamente helenística (sem dúvida introduzida por ele para agradar a seus leitores gregos).

Outro texto importante de Qumran, “O preceito da comunidade” (1QS), cap. IV, assim descreve:

O julgamento divino de todos que caminham com este espírito será a saúde, uma vida longa em grande paz, e abundância, junto com todas as bênçãos eternas e alegrias infinitas numa vida sem fim, uma coroa de glória e uma vestimenta majestosa de luz infinda

Mas os caminhos do espírito da falsidade são estes: ganância e negligência na busca da retidão, maldade e mentiras, arrogância e orgulho, hipocrisia e engano, crueldade e mal abundantes, mau humor e muita insensatez e descarada insolência, atos abomináveis (cometidos) com espírito de luxúria, e conduta lasciva a serviço da impureza, uma língua blasfema, cegueira do olho e surdez o ouvido, cerviz dura, dureza de coração, assim caminha, assim caminha este homem para as sendas das trevas e do logro.

E o julgamento de todo aquele que caminha com este espírito trará incontáveis flagelos por intermédio dos anjos destruidores, maldição eterna por causa da ira vingativa de Deus, tormento eterno e desgraça infinita junto com a extinção vergonhosa do fogo das regiões escuras. Todas as suas gerações futuras decorrerão em tristes lamentações e amarga miséria, e em calamidades tenebrosas até que sejam todas destruídas, sem deixar rastro ou sobreviventes.

Fica nítida a crença em redenção e danação eternas, bem como uma crença das gerações seguintes pagando pelo pecado das outras. Curiosamente, os essênios poderiam ter um ponto em comum com os fariseus:

A liberação dos manuscritos em 1991 revelou, todavia, um texto poético, usualmente chamado de “fragmento da Ressurreição” (4Q521) que, fazendo eco com Isaías LXI, 1, descreve Deus na idade do Messias curando e revivendo os mortos. Se este poema for uma composição essênia, pode-se dizer que um dos 813 manuscritos de Qumran definitivamente comprova a crença da seita na ressurreição do corpo.

[Vermes, cap. III]:

E por falar em fariseus, é bom que se diga que os essênios não foram a única seita judaica da qual Josefo fez paralelos com a cultura grega:

Quando tinha eu cerca de dezesseis anos, tive a ideia de provar das diversas seitas que existiam entre nós. Havia três delas, a dos fariseus, os saduceus e a dos essências, como frequentemente lhes disse. Pensava que me familiarizando com todas elas, poderia escolher a melhor. Então me entreguei às asperezas, e me submeti a grandes dificuldades, e passei por todas elas. Nem mesmo me contentei em experimentar apenas dessas três, pois quando tomei ciência daquele cujo nome era Bano, que vivia no deserto, e não usava outra vestimenta senão o que crescia sobre as árvores, e não tinha outro alimento senão o que crescesse por conta própria, e se banhava em água fria frequentemente, tanto de dia como de noite, a fim de se purificar. Eu o imitei nessas coisas e fiquei com ele três anos. Então, quando tinha realizado os meus intentos, voltei para a cidade, estando agora dezenove anos de idade , e comecei a me conduzir conforme as regras da seita dos fariseus, que é aparentada à seita dos estoicos, como os gregos os chamam.

Flávio Josefo, Autobiografia, segundo parágrafo

Nem por isso cabe se considerar os fariseus como uma versão judaica dos estoicos ou será que até isso irão apelar? O que Josefo queria passar a seus leitores originais é que os essênios estariam mais para um grupo monástico e místico, ao passo que os fariseus continuavam integrados à sociedade e com um perfil mais racionalista.

Notas:

(1) Transcrevendo o texto completo:

Pois sua doutrina é esta: que os corpos são corruptíveis e que a matéria de que são feitos não é permanente; mas que as almas são imortais e continuam para sempre; e que vieram do mais sutil ar e são unidas a seus corpos como a uma prisão, a que foram arrastadas por um espécie de atração natural; mas quando são libertadas dos laços da carne, então elas, como libertas de um longo cativeiro, regozijam-se e ascendem. E isso é como as opiniões dos gregos, que boas almas têm suas moradas além do oceano, numa região que não é oprimida nem pelas tempestades de chuva ou neve, nem com calor intenso, mas esse tal lugar é refrescado por uma suave brisa de um vento do oeste, que sopra perpetuamente do oceano; ao passo que designam para as almas más um antro escuro e tempestuoso, cheio de castigos incessantes. E de fato os gregos aparentam-me seguir a mesma noção, quando designam as ilhas dos abençoados para seus bravos homens, a quem chamam de heróis e semideuses; e para as almas dos iníquos, a região dos ímpios, no Hades, onde suas fábulas relatam que certas pessoas, tais como Sísifo, e Tântalo, e Ixíon, e Títio, são punidos; que está assentada sobre essa primeira suposição, que as almas são imortais; e daí são reunidas as exortações à virtude e dissuasões da iniquidade; pelas quais bons homens são aperfeiçoados na conduta de sua vida através da esperança de terem uma recompensa após suas mortes; e pelas quais a veementes inclinações dos maus ao vício são restringidas através do medo e da expectativa em que se encontram de que, apesar encobrirem nesta vida, devam sofrer castigo imortal após suas mortes. Essas são as doutrinas divinas dos essênios sobre a alma, que lançam uma irresistível isca para os que uma vez que tiveram uma amostra de sua filosofia.

Guerras, livro II, cap. VIII

Para saber mais:

– Vermes, Geza: Os Manuscritos do Mar Morto, Ed. Mercuryo.

– Flusser, David; O Judaísmo e as origens do cristianismo, vol. I, ed. Imago.

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