Capítulo XXIII
Então, depois que Teodósio Alexandrino foi enviado para o exílio, um certo Paulo, principal prior dos monges de Tabenensio, é ordenado bispo para a sé de Alexandria, pela intervenção do aprocrisário (1) Romano Pelágio, sendo ele totalmente ortodoxo e seguidor do sínodo de Calcedônia. Foi ordenado por Mena de Constantinopla, estando presentes ao mesmo [evento] Pelágio, em nome de Vigílio, e aprocrisários de Efrém de Antioquia, e aprocrisários de Pedro de Jerusalém.
E, também, Severo de Antioquia fora condenado e Antimo de Constantinopla o fora por Agapeto, o papa romano, e por Mena de Constantinopla, em razão de panfletos contra eles dados ao imperador Justiniano pelos dirigentes dos mosteiros da Primeira e Segunda Síria e os dos mosteiros de Jerusalém e Eremo; então dessa forma a unidade das Igrejas é alcançada ao décimo ano do glorioso reinado de Justiniano Augusto.
Esse Paulo era desprezado em Constantinopla, diz-se, por causa de alguns monges seus (2), e viera a Constantinopla a fim de se dirigir ao imperador. Como o comando do trono [episcopal] achava-se vazio, ele recebeu por meio do diácono Pelágio o episcopado de Alexandria; e aceito pelo imperador – o responsável sobre a ordenação dos chefes e tribunos -, para que afastasse os heréticos e ordenasse ortodoxos no lugar deles; por meio daqueles certamente o povo era fortalecido.(3)
Ele, indo para Alexandria com seu temor e seu zelo, levara todos os cidadãos e todos os mosteiros a adotar o sínodo de Calcedônia, exceto se por uma intervenção tal do diabo uma pendenga aparecesse.
Quando pensou o bispo Paulo em expulsar o comandante militar Elias; Psoio – um certo diácono, administrador eclesiástico e amigo de Elias, usando velocíssimos emissários a pé firme de correspondências, que os egípcios chamam de “símacos”, escreveu a Elias sobre todas as atividades de Paulo.
Porém veio Paulo a descobrir as cartas dele escritas em egípcio [copta] (4) e as ler: e temendo o que acontecera a Protério (5), ficou preocupado com o ocorrido, e pôs-se a forçar Psoio a dar prontas explicações à Igreja: levou-o à Justiça e relatou ao imperador sobre o mesmo.
Pela mesma época, Ródão era o governador em Alexandria, que o tomou sob guarda até ser dada instrução pelo imperador, tendo aceitado suborno, por ideia de certo prior civitatis (6), chamado Arsênio, sem o conhecimento do bispo (diz-se), levou-o à morte por meio de violenta tortura que durou a noite inteira.
Interpelando os filhos e parentes dele (7) ao imperador, sugeriram-lhe por qual rigor a dívida da morte de seu pai seria paga. Concordando o imperador com isso, chamou Libério e fez dele governador, enviando-o para Alexandria a fim de investigar o caso. Assim que chegou a tal cidade, ordenou que Ródão viesse a sua presença e indagou-lhe a respeito de que modo teria matado o diácono. Ele respondeu que aquilo fora feito por ordem do bispo: dizia ter consigo uma delegação do imperador: que ele cumprisse de todas as formas qualquer coisa que o bispo mandasse.
Porém com a negativa do bispo Paulo, e desconhecendo-se quem discordasse, o prior civitatis Arsênio foi considerado o mentor do homicídio (8), sendo condenado à morte.
Posteriormente, o bispo Paulo foi encaminhado para o exílio em Gaza, Ródão foi enviado para Constantinopla com cópia das atas do processo: cópia essa que foi lida dentro do palácio para o imperador (9), que ordenou que fosse levado pelo carrasco (10) e executado fora da cidadela real (11).
E após isso, o imperador enviou Pelágio – diácono e aprocrisário da primeira Sé de Roma – com clérigos seus, aos quais instrui para, junto com Efrém – também bispo metropolitano-, e Pedro de Jerusalém, e Hipácio de Éfeso irem para Gaza, e tomassem o pálio do bispo Paulo e o destituíssem.
Então Pelágio partiu para Antioquia e de lá para Jerusalém, chegou a Gaza com memoráveis patriarcas e certo número de bispos. E tirando o pálio de Paulo, o depuseram e no lugar dele ordenaram Zoilo, que o imperador, mais tarde, depôs em Constantinopla para ordenar Apolinário, que é o atual patriarca da Igreja de Alexandria.
Mas ao retornar a Constantinopla, monges também vindos de Jerusalém, pelos quais Pelágio havia cruzado (12) a caminho de Gaza, vieram com ele em comitiva portando capítulos de uma coletânea de livros de Orígenes, desejosos em ter uma audiência com o imperador para que Orígenes fosse condenado com tais capítulos.
Então, Pelágio, que tinha uma rivalidade com Teodoro – o bispo de Cesareia da Capadócia (13) – desejando que eles causassem prejuízos a ele (que seria um defensor de Orígenes) solicitou ao imperador, aliado ao arcebispo de Constantinopla Mena, que mandasse ser feito o que os monges demandavam, a fim de que Orígenes fosse condenado e os próprios ensinos de tais capítulos. Contente por conduzir tais questões jurídicas, o imperador facilmente atendeu: por sua ordem é feito um decreto sobre Orígenes e a condenação anatematizou aqueles capítulos, ao qual assinaram, junto com o arcebispo Mena, os bispos presentes em Constantinopla.
Em seguida, ela foi encaminhada para o bispo de Roma, Vigílio, Zoilo de Alexandria, Efrém de Antioquia e Pedro de Jerusalém, que concordaram com ela e assinaram, estava morto o Orígenes condenado, que quando vivo já fora condenado anteriormente. (14)
Capítulo XXIV
E tornado público o ataque aos adversários da Igreja, assim como a condenação póstuma, Teodoro de Cesaréia da Capadócia – bispo prezado e confidente do casal imperial, membro da seita dos acéfalos, além de ardoroso defensor de Orígenes e rival de Pelágio – soube que Orígenes fora condenado. Condoído pela condenação dele, ficou empenhado, para a inquietação da Igreja, em causar uma condenação a Teodoro de Mopsuestia (15); pelo fato de que Teodoro teria publicado muitos pequenos tratados contra Orígenes, era considerado odioso e repreensível pelos origenistas (16); e principalmente porque o sínodo de Calcedônia, como se constata, reconheceu suas glórias em três cartas: Teodoro conseguiu que a condenação dele fosse lembrada por meio de grande tramoia.
Com o tratado do imperador contra os acéfalos, em defesa do sínodo de Calcedônia, reuniu-se o próprio Teodoro da Capadócia junto com seus seguidores, que beneficiavam (17) os acéfalos sob o nome católico. Com o favorecimento de Teodora Augusta (18), foi sugerido ao imperador que ele não tinha a obrigação de empreender o trabalho de escrever [um tratado], quando podia lucrar se trouxesse todos os acéfalos para sua comunhão. “Já que eles, diz-se, por causa disto sentem-se ofendidos com o sínodo de Calcedônia, que reconheceu as glórias do bispo Teodoro de Mopsuéstia, e a carta de Iba (19), que são tidos por todos como nestorianos, o próprio juízo deles quanto ao sínodo o terá considerado ortodoxo. Nesse caso, se Teodoro, junto com suas palavras, e essa carta forem anatematizados, o sínodo, assim revisado e expurgado, será aceito através de todos eles e entre eles todos. Por eles, permita vossa piedade trabalhar pela união da Igreja Católica, com o contentamento da Igreja Universal, a glória de vossa clemência será eterna“.
Ao escutar (20) isso, o imperador, e sem perceber nem um pouco da artimanha das artimanhas, aceitou com prazer a sugestão deles, e isso ele próprio prometeu executar prontamente.
E também lhe pediram mais uma vez por fraude ardilosa, para que fizesse um decreto em condenação aos três capítulos: no qual seu decreto irá expor e manifestar a todo mundo. “Enquanto enrubescer o imperador em se retificar, uma decisão irrevogável ele tomou; certamente sabiam que o imperador, com o escândalo (21) que surgia, podia rever sua opinião com a volubilidade costumeira e levar a si mesmo ao perigo.”
O imperador concordou com eles, e se comprometeu a implantar isso com prazer, e abandonando seu entusiasmo pela obra [contra os acéfalos], fez um tratado apenas em condenação dos três capítulos, em vez dos nossos delitos, [o que foi] notoriosíssimo a todos nós.
Certamente as demais coisas que se seguiram com relação aos bispos e à Igreja Católica foram feitas pelo mesmo príncipe, de forma que os bispos que concordaram com o tarefa de condenar os três capítulos foram enriquecidos, os que não concordaram, ou foram depostos e enviados ao exílio, ou alguns, que se esconderam fugindo, empreenderam na adversidade uma saída feliz, considerando que são [essas coisas] conhecimento de todos, acho que agora cabe a mim silenciar.
Acredito que isso esteja claro a todos, que esse escândalo foi introduzido na Igreja por meio do diácono Pelágio e do bispo Teodoro de Cesareia da Capadócia: ainda mais que o próprio Teodoro conclamou publicamente a si e a Pelágio para provocar os vivos, através dos quais ele colocou esse escândalo no mundo.
Notas:
(1) Título eclesiástico utilizado no baixo-império e início da Idade Média. Equivaleria ao atual “núncio”, uma espécie de embaixador papal. Esta pessoa em questão se tornará o Papa Pelágio I.
(2) Em nota, Migne sugere que isso poderia se dever, em parte, a algumas simpatias a Orígenes e Dióscoro (origenista do mosteiro de Nitria e personagem da primeira crise) encontrada entre os monges de Tabenensio.
(3) “o povo era fortalecido” – Migne sugere que este trecho esteja corrompido (de fato, não faz sentido um ortodoxo elogiar a ação de hereges sobre o povo) e propõe a leitura: “hoeretici invalescebant”. Podemos, também, levar em consideração que os pronomes ille/illa/illo começaram a ficar intercambiáveis com hic/haec/hoc no latim medieval (Sidwell, p. 365, G.11), o que justificaria a tradução “por meio destes…”.
(4) Psoio teria esquecido importante detalhe: o patriarca era seu conterrâneo e entendia o idioma local, coisa que nem sempre ocorria com os de origem grega.
(5) Protério foi o patriarca de Alexandria imposto por Calcedônia. Sofreu forte oposição dos partidários do monofisismo, que elegeram um bispo alternativo, e acabou assassinado.
(6) Prior Civitatis – ao pé da letra, “principal dos cidadãos”.
(7) [Procópio/Niebuhr, p. 463] traz a leitura variante “cujus”.
(8) “prior ille civitatis Arsenius, homicidii illius auctor inventus” – O uso dos demonstrativos ille, illus seria perfeitamente dispensável aqui. Talvez estivesse para ênfase ou fazendo às vezes de artigo definido, algo comum no baixo-latim.
(9) Princeps e imperator não significam, respectivamente, “príncipe” e “imperador”, apesar de terem dado rigem a estas palavras neolatinas. O primeiro termo era o título “civil” dos antigos imperadores romanos (Primeiro [Cidadão]), que acumulavam também o posto de imperator: chefe militar. Aqui ambas são indistintamente traduzidas por “imperador”.
(10) Scurio/scurro, scurronis – palavra não constante em dicionários de latim clássico, provavelmente só existente em latim eclesiástico ou medieval. Seu sentido como carnifex (carrasco) consta no Hierolexicon de Domenico Carlo Magri e aqui usado. Migne também assinala uma leitura variante encontrada no Codex Tallerii :“obscurrone”, que Magri trata como uma variante. Provavelmente foi uma fusão com a preposição “ab”, seguida com uma confusão da letra “a” com “o”.
(11) Procópio de Cesareia dá um relato ligeiramente diferente deste episódio em A História Secreta, cap. XXVII. Segundo ele, Paulo foi realmente o mandante do assassinato de Psoio, sob influência de Arsênio. Ródão não teria sido preso e conduzido à capital imperial, mas ido espontaneamente para lá com treze cartas do imperador ordenando-o obedecer a Paulo. De nada adiantou: foi decapitado e Arsênio crucificado. Este último também aparece em Vida de Saba, cap. LXX, como um indivíduo de caráter questionável, assim como em História Secreta.
(12) “transitum habuit” um pretérito mais-que-perfeito composto é utilizado nesta passagem. Apesar de também aparecer em autores do período clássico, se torna mais comum no baixo-latim. “in Gazam” um exemplo ótimo da preposição latina in sendo usada para expressar uma ideia de direção quando rege o caso acusativo. É parecido com o expresso na Vulgata em At 8:26 “quae descendit ab Ierusalem in Gazam” (“que descia de Jerusalém a Gaza”). Ou você ainda acredita nas traduções latinas da Vulgata feita por autores espíritas em Ex 20:5 e 34:7?
(13) – Também conhecido como Teodoro Ascidas (ou Askidas). É o mesmo indivíduo que Cirilo de Citópolis apresenta no capítulo LXXXIII de A Vida de Saba.
(14) Provavelmente, refere-se ao episódio da execração de Orígenes pelo bispo de Alexandria, Demétrio, devido ao fato de ele ter sido ordenado presbítero na Palestina sem sua autorização. Demétrio pode ter sido movido por pura inveja e utilizou a castração a que Orígenes se submeteu voluntariamente na juventude em suas acusações.
(15) Este Teodoro (350-428) foi bispo da localidade de Mopsuéstia, na província de Cilícia, pertencente ao sul da Turquia atual. Foi prolífico escritor e um típico representante da escola exegética de Antioquia, caracterizada por sua oposição ao alegorismo de Alexandria e estabelecer a plenitude da natureza humana de Cristo e sua indiferença com a divina. Permaneceu tido como ortodoxo durante toda a sua vida e só após a erupção da controvérsia nestoriana seus escritos foram considerados heréticos pelos monofisistas. Por outro lado, foi reabilitado pelo partido ortodoxo no Concílio de Calcedônia. Teodoro de Mopsuéstia era também um universalista, mas por um caminho bem diferente do de Orígenes, não dando tanta ênfase ao livre-arbítrio para admitir um direcionamento de Deus, por meio de seus castigos, rumo à santidade. Um extrato seu obtido indiretamente em [Ballou, cap. VIII, p. 253-4] nos informa:
Eles, que escolheram o bem, serão, no futuro, abençoados e honrados. Mas os iníquos, que cometeram o mal por todo o período de suas vidas, serão punidos até aprenderem que, por continuarem no pecado, apenas continuam na miséria. E quando, por esse meio, forem trazidos ao temor a Deus e a estimá-lo com boa vontade, obterão o gozo de sua graça. Pois ele nunca teria dito “Até que tenhas pagado o último centavo”(Mt 5:26) a não ser que pudéssemos ser libertados do sofrimento, depois de termos sofrido adequadamente pelo pecado; nem teria dito “Bater-se-á nele com muitas chibatadas”, e ainda: “Bater-se-á nele com poucas chibatadas” (Lc 12:47-8) a não ser que as punições a serem suportadas pelo pecado tenham um término”.
Fonte [desfeitas as abreviaturas]: Bibliotheca Orientalis Clementino-Vaticana, Giuseppe Simone Assemani, tomo III, parte I, p.323
Outra fonte fornecida pelo mesmo livro e, agora, confirmada independentemente é a entrada número 177 da Bibliotheca de Fócio (Contra aqueles que dizem que os homens pecam por natureza e não por intenção):
Por outro lado, isso não é sempre o caso, mas ele nos aparenta, em muitos lugares, enredar na heresia nestoriana e faz eco à de Orígenes, ao menos no que diz respeito ao fim da punição.
Pode-se intuir que Teodoro de Mopsuéstia estaria comprando briga com contemporâneos seus com ideias similares as de Agostinho de Hipona.
Quanto a Hoseas Ballou, ele foi um pastor da “Igreja Universalista” e escreveu Anciente History of Universalism para mostrar que, no começo do cristianismo, a danação eterna não era crença unânime. Quando se dedica a narrar os fatos do século VI, usa largamente Cirilo de Citópolis, porém inverte o sentido do tom: enaltece ascensão origenista e lamenta sua queda.
(16) A maior parte da obra de Teodoro de Mopsuéstia se perdeu. Um de seus trabalhos antiorigenistas é conhecido apenas através de breve alusão feita por Facundo no seu “Em Defesa dos Três Capítulos”, (livro III, cap. IV): “(…) Idem Theodorus in Libro ‘de alegoria et historia’ quem contra Origenem scripsit (unde et odium Origenorum incurrit)”. Disponível em Patrologia Latina, vol. 67, col. 602.
(17) O Codex Tellerii possui a leitura favebant – favoreciam, promoviam.
(18) A imperatriz Teodora ajudando um origenista! Agora você já viu de tudo e pode desencarnar.
(19) A Carta de Iba de Edessa a Mari, junto com as condenações de Teodoro de Mopsuéstia e Teodoreto de Ciro, compõem os famosos “Três Capítulos”.
(20) “Audiens” o uso do particípio presente para representar uma circunstância de atos passados, algo mais comum no baixo-latim. Ver a Vulgata: “sicut enim homo proficiscens vocavit servos suos” (Mt 25:14).
(21) “Escândalo”, aqui, tem o sentido de algo que induz ao erro, uma tentação. Ver Mt 5:29.
Fontes auxiliares
– Ballou, Hoseas, The Ancient History of Universalism. Ed. Z. Baker, 2ª ed., 1842.
– Procópio de Cesareia, parte II, vol. III, Corpus Scriptorum Historiae Byzantinae, ed. Niebuhr, Barthol Georg; Ed. Weber, Bonn, 1838
– Sidwell, Keith, Reading Medieval Latin, Cambridge, 2005.