The Origenist Controversy – The Cultural Construction of an Early Christian Debate

Por Elizabeth Ann Clark, Princeton University Press.

The Origenist Controversy - visão lateral

Orígenes como você nunca viu (ou leu)!

É muito comum se usar em diversos debates usar um estratagema desonesto chamado de “rótulo odioso”: atribui-se ao oponente algum adjetivo tido como repugnante à plateia. Nos anos 60, quem que defendesse a reforma agrária, mesmo que não fosse compadre do Brizola, podia ser acusado de ter com o comunismo, de ser financiado pelo “ouro de Moscou”. Após a volta da democracia, o perigo está em atacar os ex-guerrilheiros de esquerda e, então, tornar-se suspeito de ser “filhote da ditadura”. Besteira. Achar que pegar em armas era a melhor – ou mesmo a única – maneira de combater os milicos é esquecer dos esforços dos vários políticos cassados do MDB, a ação da OAB pelos direitos humanos e a resistência passiva da Igreja Católica brasileira (já sua irmã argentina…). Chamar de herói quem só combatia uma ditadura de direita para impor outra de esquerda é, no mínimo, equivocado. A pior situação do rótulo odioso é quando o debate é ao vivo. Nessa circunstância, o calor das emoções embota o raciocínio e o tempo para o acusado ressaltar suas diferenças em relação ao atribuído é exíguo.

Por que estou relembrando essas histórias? Talvez seja uma atitude defensiva minha, mas já preparo terreno para o que pode vir. Desqualificam traduções porque o tradutor talvez tivesse interesses em defender certa facção, sem analisar o próprio texto traduzido. Um historiador não pode ser usado por ser membro do grupo vencedor (algum não é?). Um católico/protestante/ateu não pode criticar o espiritismo por ser fanático ou detrator. Assim, fica fácil. Porém é bem mais difícil acusar quem é do meio, ainda mais se for respeitado. Por isso, ninguém melhor para falar de Orígenes do que uma estudiosa declaradamente simpática a ele. Elizabeth Ann Clark (favor não confundir com a Prophet):

Minha abordagem, como mesmo um leitor desatento poderá notar logo, é admitidamente partidária. Trouxe todos os documentos que conheço para sustentar minha interpretação dos eventos, Estive ciente do começo ao fim de fazer uma leitura simpática do lado origenista do debate. Evágrio Pôntico, Rufino e os pelagianos são, portanto, os “heróis” de meu relato – e não Epifânio, Jerônimo e Agostinho. A minha abordagem não é a mesma da maioria dos livros-texto de teologia. É, em vez disso, uma tentativa de promover, por consideração, a teologia derrotada que, por alguns anos, moveu o mundo cristão em direção a uma nova criatividade intelectual.

Introdução.

Curiosamente, Clark fala pouco de Orígenes, dedicando-se mais a contar o que foi feito dele após sua morte. Ele é analisado de forma retrospectiva a partir das críticas de grandes antagonistas dos séculos IV e VI e de seus defensores. Como a própria diz na introdução:

Ainda permanece uma pergunta irritante: o debate era realmente sobre Orígenes? Por alguns ângulos, a resposta é não: “Orígenes” servia como uma palavra-código para vários tópicos problemáticos aos cristãos na virada do século V.

No primeiro capítulo, a autora ambienta o leitor com as relações de mecenato existentes ao fim do século IV. Muitas das personagens envolvidas nos ácidos debates (Jerônimo e Rufino, por exemplo) gozavam de generoso patrocínio de viúvas ricas. Mulheres a maioria das vezes desconhecidas para o grande público, mas que, por causa das redes socais de amizade e antagonismo que teceram, contribuíram para dar à crise origenista do século IV um tom extremamente vigoroso, para não dizer passional. Além de motivos teológicos, houve razões de cunho bem pessoal para que seus protegidos se empenhassem tanto; afinal, num mundo bem mais religioso que o nosso, era de vital importância garantir que realmente representava e defendia o “lado ortodoxo” da questão.

Rufino, Jerônimo e vários outros contendedores foram monges e promoveram comunidades monásticas em determinada etapa de suas vidas. Pois é pelo monacato oriental que surgiu outra faceta da primeira crise origenista, discutida no capítulo II. Entre os monges eruditos do deserto, a teologia origenista evoluiu para formas mais radicais, representadas principalmente na Kephalaia Gnostica de Evágrio Pôntico. O homem ainda mantinha ou não a imagem e semelhança de Deus ou as perdera depois da queda, quando teria recebido o invólucro carnal? Que repercussões isso teria para o sacramento da Eucaristia? O corpo de Deus (Cristo) poderia ser representado lá? Muitos historiadores da Igreja, como assinala Clark, acusam a repressão promovida pelo patriarca de Alexandria, Teófilo, aos monges do mosteiro de Nítria em 399 d.C. como motivada por fins políticos. Sua brevidade sugere que ela não era sincera ou motivada por fins exclusivamente teológicos. Ainda que fosse assim, as acusações de origenismo podiam, sim, ter certa razão, baseando-se na difusão que o evagrianismo alcançou nos mosteiros dos desertos.

Teófilo, por outro lado, pode ter apenas reproduzido um comportamento que já era recorrente desde meados do século IV: acusar adversários teológicos (ou políticos) de origenismo. Por incrível que pareça, a acusação de ser “origenista” se tornara um “rótulo odioso” tal qual comentado acima. Orígenes escreveu sua obra para uma realidade em que o gnosticismo era o principal desafio à teologia ortodoxa, mas após cem anos o panorama mudara bastante. De seita marginal, o cristianismo passou a ser a religião imperial e seus principais antagonistas também já não eram os mesmos. A controvérsia cristológica de Niceia ainda não estava bem resolvida e, por muito tempo, o arianismo rivalizou ombro a ombro com os trinitários; no campo pagão e sincrético, o determinismo do qual alguns gnósticos eram acusados ressurgia no maniqueísmo. Seria o subordinacionismo (hierarquia entre Pai, Filho e o Espírito Santo) de que Orígenes era acusado uma característica ariana? Se o corpo físico era um resultado da queda das almas, então a reprodução humana era algo ruim, como alguns grupos maniqueus pensavam? Que lugar teria o corpo na ressurreição? Sua restauração universal conflitava com a teoria de Jerônimo da hierarquia celestial baseada no mérito da renúncia ascética? Como essas diversas questões mexeram com a cabeça dos antiorigenistas é o assunto do capítulo III, quando é feito um retrospecto das acusações de origenismo feitas de 370 até cerca de 450 d.C., passando de Epifânio até o longevo Shenute [também grafado Shenoute ou Shenoud. Não encontrei sua versão em português]. A conclusão desse apanhado é que a definição do origenismo e seus pontos problemáticos era extremamente elástica. Nas próprias palavras da autora:

Uma passagem cronológica pelos escritos de Epifânio, Teófilo, Jerônimo e Shenute que dizem respeito ao origenismo proverá uma indicação surpreendentemente próxima de como temas da teologia de Orígenes faziam interseção com questões religiosas de suas próprias épocas. (…) Pelo exame dos escritos de cada autor na ordem de sua composição, podemos notar os pontos exatos em que novas referências surgem e lançar algumas hipóteses sobre as razões do surgimento delas.

Nem só da fala dos opositores foi feita a primeira crise origenista. De seus defensores, destacam-se os grandes nomes de Pânfilo e Rufino. Pânfilo defendeu em Apologia em prol de Orígenes que, onde soava mais herético, o teólogo alexandrino apenas expressara uma opinião pessoal acerca de temas que Igreja ainda não tinha uma tese definida – como a origem das almas – e para tanto usou o próprio prefácio de De Principiis. Citou largamente tratados de Orígenes para assegurar que ele atacava grupos hereges notórios, defendia uma visão ortodoxa da Trindade e tinha uma visão tradicional da ressurreição. A ironia (capítulo IV) é que uma das obras usadas por Pânfilo para defender a questão da ressurreição (Comentário sobre o I Salmo, v. 5) é a mesma que Epifânio se valeu para acusar Orígenes de uma opinião heterodoxa. Cada lado via o que queria! Quanto a Rufino, sua participação se deu em longa e tensa controvérsia com Jerônimo. Por estranho que pareça, ambos foram amigos e Jerônimo deveu muito ao estilo de interpretação alegórico de Orígenes em suas primeiras obras. Quando Rufino lançou sua tradução latina de De Principiis e incluiu o nome de Jerônimo em seu prefácio, dando a entender que ele também era simpatizante, Jerônimo se alarmou: sua reputação como ortodoxo poderia estar em risco. Jerônimo providenciou sua própria tradução (da qual resta apenas a sinopse contida em sua carta a Ávito) e acusou Rufino de despudoradamente editar o texto grego, eliminando suas partes mais heréticas. Rufino defendeu sua tradução em um tratado onde alegava que boa parte dos textos de Orígenes já estava corrompida e apenas tentou restaurar o texto de suas fases espúrias, dando razoáveis justificativas para isso. Traduziu, também, a Apologia de Pânfilo e escreveu seus próprios ataques a Jerônimo.

No balanço geral, Rufino levou a pior na briga contra Jerônimo. No ocidente, a teologia origenista entrou em rápido declínio com a morte de seus principais partidários pouco após o saque de Roma pelos visigodos (410 d.C.), entre eles, Rufino. Mesmo assim diversas questões levantadas pelos origenistas ainda estavam em aberto, em especial, o Problema do Mal; afinal como conciliar a bondade divina com a maldade do mundo? No vácuo deixado pelo origenismo, Clark narra no capítulo V a ascensão de uma novo sistema teológico que também condenava origenismo, mas se dispunha a tapar o buraco deixado por sua rejeição: o pelagianismo. Sem explanar sua teologia em detalhes aqui, pode-se adiantar que Pelágio e seus continuadores conseguiram criar um sistema coerente que conseguia solucionar boa parte da questão do Mal sem apelar para preexistência. Baseavam-se grandemente no livre-arbítrio humano: cada bebê nasceria puro como Adão antes da queda, mas tal como ele, cometeria pecados ao longo da vida. Cabia a fiel zelar por todos os mandamentos e se abster de pecar. Cristo mostrou como isso era possível. A questão dos gêmeos (Esaú e Jacó), por exemplo, foi respondida valendo-se do atributo de onisciência divina: Deus teria antevisto tudo o que cada irmão faria por espontânea vontade e daí escolhido seu preferido. Apesar não terem obtido uma explicação satisfatória para o sofrimento infantil, não tinham medo de encará-la e matutaram longamente sobre a questão. Sua ênfase na responsabilidade individual em seguir os mandamentos ou pecar e, portanto, ser senhor de sua própria salvação se chocava com a opinião de teólogos do ocidente como Agostinho de Hipona. Onde ficaria a graça divina nesse sistema? Mas graça não envolvia um bem imerecido, uma espécie de determinismo tão criticado pelos pelagianistas? A solução aceita pela ortodoxia foi sintetizada por Agostinho em sua teoria do pecado original que, de certa forma, sugeria que a queda de Adão era transmitida a seus descendentes. Mesmo fazendo essa observação, Clark repara no igualitarismo da humanidade em sua condição de pecadora e na recusa sistemática do teólogo latino em tomar uma posição quanto à origem da alma, o que a leva a não crer que tenha sido essa a mensagem implícita dele. Ao fechar o capítulo, faz uma declaração que vale alguns minutos de reflexão:

Mais apropriadamente, seu postulado de pecado original “representa” uma teoria de preexistência da alma e queda no corpo. Foi a surpreendentemente única reconstrução agostiniana da teodiceia de Orígenes que iria influenciar toda a posterior teologia do ocidente.

Repare nas aspas. É provável que Agostinho negasse isso até a morte, mas ele teve que aceitar algum grau de origenismo ainda que fosse para criar um sistema meia-boca. Tal como o Evangelho de João foi o “gnosticismo” de adentrou na ortodoxia, a solução de Agostinho foi o origenismo aceito por ela. Como não faz sentido falar em um e, sim, em vários sistemas origenistas nos séculos IV e V, não há razão para negar ao agostinianismo um lugar na família. Será que se vivesse em Roma, em vez do norte africano, ou lesse mais avidamente os materiais gregos ele teria uma postura diferente? Conforme Clark assume na conclusão, esta é uma pergunta “perturbadora” e “irrespondível”.

O pelagianismo foi rechaçado no Concílio de Éfeso (431 d.C.) e desapareceu como seita herética. Mas a história não acaba aí, já que o origenismo oriental continuou a existir no deserto egípcio ao longo do alto rio Nilo durante o século V. Sua versão radical se instaurou na Palestina do século VI, mais especificamente no panteísmo final do partido “isocrista”. A briga deste com os origenistas moderados marcou o colapso do movimento após o II Concílio de Constantinopla.

Além de uma referência ao relato dado por Cirilo de Citópolis, Clark pouco fala dos episódios do século do VI. Eles transcendem o escopo do livro e, de certa forma, pouco têm a acrescentar. As ações dos monges do mosteiro Nova Laura e a intervenção de Justiniano tiveram lá sua importância histórica, mas empalidecem tremendamente diante da primeira crise origenista dos século IV e V. Foi essa época que gerou as mais intensas discussões teológicas, envolvendo personagens que viviam em lugares tão variados como Roma, Constantinopla, Alexandria, Jerusalém e África Romana. Grandes membros da patrística como Jerônimo, Rufino e Agostinho tomaram parte nelas e catalizaram o processo iniciado em Niceia de consolidação do credo ortodoxo. Mesmo declarando sua simpatia pelo origenismo (e pelagianismo), Clark, sem querer, deixa uma importante lição para aqueles que continuam a defender a teoria conspiratória de que “a Igreja até 553 acreditava na reencarnação e ela foi proibida por um casal de monarcas”. Primeiro que nem todos os sistemas origenistas advogavam a reencarnação e, segundo, quando o faziam, não era nos moldes espiritualistas modernos; terceiro, Orígenes nunca foi consenso, sendo que sua rejeição levou décadas de acaloradas discussões feitas por teólogos, não por imperadores; quarto, a consolidação da ortodoxia já havia se delineado pelo menos 120 anos antes. A segunda crise origenista foi uma erupção datada e de efeito local, um fenômeno mais especificamente palestino. Perto de sua antecessora, ela foi fim de feira.

Mas não há livros em português que também tratem essas duas crises de forma panorâmica? Pode ser que haja, mas os livros de grande aceitação junto ao público espiritualista não tratam o assunto dessa forma. Dou quatro exemplos: Holger Kersten (Jesus Viveu na Índia), Severino Celestino da Silva (Analisando as Traduções Bíblicas), José Reis Chaves (A Reencarnação na Bíblia e na Ciência) e Elizabeth C. Prophet (Reencarnação – O Elo Perdido do Cristianismo). Kersten e Celestino falam apenas da segunda crise e da nada embasada conspiratória do assassinato das 500 prostitutas pela imperatriz bizantina Teodora. Chaves também se restringe só a segunda crise, cita a conspiração sem chegar a endossá-la totalmente, mas ainda dá a Teodora uma importância que ela nunca teve. Os três dão a errônea ideia que o origenismo foi amplamente aceito, inclusive pela patrística ortodoxa, até o século VI. A abordagem “menos infiel” aos fatos é a de Prophet. Vale comentar que Clark consta na bibliografia de Prophet, mas a discípula não fez jus à mestra. Se o fizesse não usaria a tradução inglesa de De Principiis feita por Butterworth, a partir da desastrada reconstituição alemã de Koetschau (capítulo III, nota 1 de Clark); não dividiria simploriamente os monges egípcios em cultos (origenistas) e incultos (antiorigenistas), pois muitos dos antiorigenistas, egípcios ou não, eram monges de cultura (Jerônimo que o diga); nem esqueceria de dizer que a condenação de 553 contou com a sabotagem interna dos origenistas protoktistas (posfácio de Clark). Só que não é possível falar da rixa entre estes e os isocristas omitindo uma importante personagem: Evágrio Pôntico, pois foi derivado dele o origenismo rejeitado em 553. Uma simplificação menos radical, mas ainda indevida, dos fatos foi feita por Prophet, pois muitas vezes o “debate não era sobre Orígenes”.

O que torna Clark diferente desses quatro? É que, para ela, Orígenes não é um “mártir reencarnacionista”, e, sim, uma “chance perdida” e houve até uma segunda chance (Pelágio). Apesar de simpatizar com os origenistas, ela não demoniza seus adversários com atributos de “incultos”, “fanáticos”, “maus”. Muito pelo contrário, ela faz uma reconstrução em profundidade deles, buscando, na realidade de sua época, as razões para tenham agido de tal maneira. A consequência é que sua narrativa é bem mais profunda e muito menos emotiva que a de suas contrapartes espiritualista. Clark honra o passado tentando reconstitui-lo em toda sua complexidade, pesquisando em cerca de 250 páginas um período de tempo (350 – 450) que os demais não dedicaram nem um décimo em papel.

Avaliação: 9,0. Darei 10,0 se vier uma continuação. Não que eu assine embaixo de tudo que ela escreva, mas tenho de admitir sua tese foi extremamente bem defendida. Ah! Existe uma virtude grande nela: além de uma quantidade imensa de citações, a amostragem que fiz revela que são genuínas e devidamente contextualizadas. Isto é algo que ainda estou para ver em seus congêneres já editados em língua portuguesa.

Recomendado para: quem ainda considera Prophet, Chaves, Celestino e Kersten o supra-sumo da historiografia do tema.

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