Publicado um adendo à resenha do livro Analisando as Traduções Bíblicas visando sanar as dúvidas de certo leitor.
Como Discordar
Por Paul Graham
Índice
- Introdução
- DH0. Xingamentos
- DH1. Ad Hominem
- DH2. Respondendo ao Tom
- DH3. Contradição
- DH4. Contra-Argumento
- DH5. Refutação
- DH6. Refutando o Ponto Central
- O que Isto significa
Introdução
A web está transformando o ato de escrever em uma conversa. Vinte anos atrás, os escritores escreviam e os leitores liam. A web permite que os leitores respondam, e eles o fazem cada vez mais – em tópicos de comentários, em fóruns, e em suas mensagens de blog.
Muitos que respondem a algo, discordam. Isso é de se esperar. Concordar tende a motivar as pessoas menos do que discordar. E quando você concorda, há menos a dizer. Você poderia expandir algo que o autor disse, mas ele provavelmente já explorou os pontos mais interessantes. Quando você discorda, está entrando em um território que ele pode não ter explorado.
O resultado é que há muito mais discordâncias, especialmente medidas pelas palavras. Isso não significa que as pessoas estão ficando mais irritadas. A mudança estrutural na forma como nos comunicamos é suficiente para explicá-la. Mas, ainda que não seja a raiva que esteja a dirigir o aumento de desacordos, há um perigo de que ela deixe as pessoas mais irritadas. Particularmente online, onde é fácil dizer coisas que você nunca diria cara a cara.
Se estamos todos em um caminho de maior discordância, devemos ter o cuidado de fazê-lo bem. O que significa discordar bem? A maioria dos leitores pode dizer a diferença entre meros xingamentos e uma refutação cuidadosamente fundamentada. Mas eu acho que iria ajudar, colocar nomes nas etapas intermediárias. Então aqui vai uma tentativa de uma hierarquia do desacordo (DH – Disagree Hierarchy):
DH0. Xingamentos.
Esta é a forma mais baixa de desacordo e provavelmente também a mais comum. Nós todos vimos comentários como este
Você é uma bicha!!!!
Mas é importante perceber que até mesmo o mais articulado xingamento, tem pouco peso. Um comentário como:
O autor é um diletante presunçoso.
Nada mais é do que uma versão pretensiosa de “Você é uma bicha”.
DH1. Ad hominem.
Um ataque ad hominem não é tão fraco como um mero xingamento. Ele pode realmente ter algum peso. Por exemplo, se um senador escreveu um artigo dizendo que o salário dos senadores deve ser aumentado, pode-se responder:
É claro que ele diria isso. Ele é um senador.
Isso não refuta o argumento do autor, mas pode pelo menos ser relevante para o caso. Mas ainda é uma forma muito fraca de desacordo. Se há algo de errado com o argumento do senador, você deve dizer o que é, e se não houver, que diferença faz se ele é um senador?
Dizer que um autor não tem autoridade para escrever sobre um tema é uma variante de ad hominem e particularmente inútil, porque as boas ideias muitas vezes vêm de fora. A questão é saber se o autor está correto ou não. Se sua falta de autoridade levou a cometer erros, aponte-os. E se não o fez, não é um problema.
DH2. Respondendo ao tom.
No próximo nível começamos a ver respostas para o que foi escrito, em vez do escritor. A forma mais baixa delas é a de não concordar com o tom do autor. Por exemplo:
Eu não posso acreditar que o autor rejeita o design inteligente de uma forma tão arrogante.
Embora melhor do que atacar o autor, esta é ainda uma forma fraca de desacordo. É muito mais importante se o autor está certo ou errado do que como o seu tom é. Especialmente porque o tom é difícil de se julgar. Alguém que tenha afeição sobre algum tópico, pode ser ofendido por um tom que parecia, a outros leitores, neutro.
Portanto, se a pior coisa que você pode dizer sobre algo é criticar seu tom, você não está dizendo muito. O autor é irreverente, mas correto? Melhor do que sério e errado. E, se o autor está incorreto em algum lugar, diga onde.
DH3. Contradição.
Nesta fase, finalmente, obtemos respostas para o que foi dito, em vez de “como” ou “por quem”. A menor forma de resposta a um argumento é simplesmente afirmar o caso oposto, com pouca ou nenhuma evidência de apoio.
Isso é muitas vezes combinado com declarações do tipo DH2, como em:
Eu não posso acreditar que o autor rejeita o design inteligente de uma forma tão arrogante. O design inteligente é uma teoria científica legítima.
A contradição, às vezes, pode ter algum peso. Outras vezes, apenas ver o caso oposto explicitamente é o suficiente para constatar que ele está certo. Mas geralmente uma evidência vai ajudar.
DH4. Contra-argumento
No nível 4, chegamos à primeira forma de desacordo convincente: contra-argumento. As formas até este ponto podem ser normalmente ignoradas, como podem não provar nada. Um contra-argumento pode provar alguma coisa. O problema é que é difícil dizer exatamente o quê.
Um contra-argumento é “contradição” mais “raciocínio” e/ou “provas”. Quando refuta diretamente o argumento principal, pode ser convincente. Mas, infelizmente, é comum que os contra-argumentos se destinem a algo um pouco diferente. Com boa frequência, duas pessoas discutem fervorosamente sobre algo, mas estão realmente discutindo sobre duas coisas diferentes. Às vezes elas até concordam uma com a outra, mas estão tão envolvidas em sua disputa que não percebem isso.
Pode haver uma razão legítima para argumentar contra alguma coisa ligeiramente diferente do que o autor original disse: quando se sente que ele perdeu o cerne da questão. Mas quando se faz isso, deve-se dizer explicitamente que o está fazendo.
DH5. Refutação
A forma mais convincente de desacordo é refutação. É também a mais rara, porque é mais trabalhosa. Na verdade, a hierarquia do desacordo forma uma espécie de pirâmide, no sentido de que no mais alto estão as instâncias que se vão menos encontrar.
Para refutar alguém, você provavelmente terá de citá-los. Você tem que encontrar um ponto falho, uma passagem em que você possa discordar com o que você sente que é errado e, então, explicar por que ele está enganado. Se você não consegue encontrar uma citação real para discordar, pode estar discutindo com um espantalho.
Enquanto uma refutação geralmente implica em citar, citar não implica necessariamente numa refutação. Alguns escritores citam partes de coisas que eles discordam para dar a aparência de refutação legítima, então seguem com uma resposta tão baixa como DH3 ou mesmo DH0.
DH6. Refutando o ponto central
A força de uma refutação depende do que você refutar. A forma mais poderosa de desacordo é refutar ponto central de alguém.
Mesmo na DH5, ainda vemos algumas vezes uma desonestidade deliberada, quando, por exemplo, alguém escolhe pontos sem importância de um argumento e os refuta. Às vezes, o modo como isso é feito faz com que seja mais uma forma sofisticada do ad hominen do que uma verdadeira refutação. Por exemplo, corrigir a gramática de alguém, ou insistir em pequenos erros em nomes ou números. A menos que o argumento contrário realmente precise de tais coisas, a única finalidade de corrigi-los é desacreditar o adversário.
Refutar verdadeiramente algo requer refutar o seu ponto central, ou pelo menos um deles. E isso significa que tem de se expor explicitamente qual é o ponto central. Então, uma refutação verdadeiramente eficaz seria algo como:
O ponto principal do autor parece ser x. Como ele diz:
<citação>
Mas isso é errado pelas seguintes razões …
A citação que você apontar como equivocada não precisa ser realmente o ponto principal do autor. Basta refutar algo do qual ele dependa.
O que isso significa
Agora, temos uma maneira de classificar formas de desacordo. E o que há de bom? Uma coisa que a hierarquia desacordo não nos dá é uma maneira de escolher um vencedor. Os níveis DH apenas descrevem a forma de uma declaração, não se ela está correta. Uma resposta DH6 ainda poderia estar completamente enganada.
Embora os níveis de DH não definam um limite inferior no convencimento de uma resposta, eles definem um limite superior. Uma resposta DH6 pode ser convincente, enquanto uma resposta DH2 ou inferior é sempre inconvincente.
A vantagem mais óbvia de classificar as formas de desacordo é que elas vão ajudar as pessoas a avaliar o que leem. Em particular, elas irão ajudá-los a ver através de argumentos intelectualmente desonestos. Um orador eloquente ou escritor pode dar a impressão de derrotar um oponente apenas usando palavras fortes. Na verdade essa é provavelmente a qualidade de um demagogo. Ao dar nomes para as diferentes formas de desacordo, damos aos leitores críticos um alfinete para estourar esses balões.
Esses rótulos podem ajudar os escritores também. A maior parte da desonestidade intelectual não é intencional. Alguém argumentando contra o tom de algo que ele discorda pode acreditar que está realmente dizendo algo. Diminuir o zoom e ver sua posição atual na hierarquia de desacordo pode inspirá-lo a tentar mover-se para contra-argumento ou a refutação.
Mas o maior benefício de discordar bem não é apenas que vai fazer conversas melhores, mas fará as pessoas mais felizes. Se estudar as conversas, você achará muito mais maldades baixas em DH1 do que em DH6. Você não tem que ser mau quando tem um verdadeiro ponto a defender. E na verdade não quer. Se você tiver algo real a dizer, bancar o malvado apenas atrapalha.
Se subir na hierarquia do desacordo torna as pessoas menos malévolas, isso fará a maioria delas mais feliz. A maioria das pessoas realmente não gosta de ser má, elas o são porque não conseguem evitar.
Agradecimentos a Trevor Blackwell e Jessica Livingston por lerem os rascunhos disto.
* * *
Baseado na tradução de Song Fuê constante em Destinatário Théo
Link para o texto original de Paul Graham.
“Tá Serto!”
- Eu atesto que os judeus primitivos creem na preexistência da alma: Tudo bem, e daí? Isso só será problema se todos os evangélicos forem traducianistas, i.e., acreditarem que a alma é gerada junto com o corpo. Qualquer grau de criação prévia já é um tipo de preexistência. A questão é que em nenhum instante a ela implica em reencarnação, digo, múltiplas existências terrenas. No portal já havia textos remetendo ao pseudoepígrafo II Baruque (I século), que combina preexistência, vida única, apocalipse, ressurreição e redenção (ou danação) eterna. Só faltou Jesus como Messias para ser um texto evangélico/católico.
- O Cego de nascença: Um dos textos que disserto sobre a preexistência é justamente o desse episódio. E ainda há outra explicação possível.
- Eu digo que Orígenes defendia que João Batista era Elias: É? Onde? Alguém me indique, por favor!
O que eu falo realmente é como uma certa escritora espiritualista pinçou um texto de Orígenes para dar justamente esse efeito. Vejamos o que o alexandrino tinha a dizer sobre o assunto:Nosso primeiro erudito, cuja visão da transcorporação vimos ser baseada em nossa passagem, pode prosseguir com um exame mais detalhado do texto e argumentar contra seu antagonista que se João foi o filho de um homem como o sacerdote Zacarias e se nasceu quando seu pais já eram ambos idosos, contrariando todas as expectativas humanas, não é provável que tanto judeus em Jerusalém o desconhecessem, ou os sacerdotes e levitas por eles enviados não estariam a par dos fatos de seu nascimento. Não declara Lucas que “o temor veio sobre todos os que viviam por perto” (Lc 1:65), – claramente nas proximidades ao redor de Zacarias e Isabel – e que “todas essas coisas foram divulgadas por toda terra montanhosa da Judeia”? E se o nascimento de João a partir de Zacarias foi matéria de comum conhecimento e os judeus de Jerusalém já enviaram sacerdotes e levitas para perguntar, “És tu Elias?” então está claro em dizer que eles consideravam a doutrina da transcorporação com verdadeira e que ela era uma doutrina corrente de seu país, e não estranha aos seus ensinos secretos. João, portanto, diz, “Eu não sou Elias”, porque não sabe sobre sua vida prévia. Estes pensadores, assim, cogitam uma opinião que não deve de forma alguma ser desprezada. Nosso membro da Igreja, contudo, pode replicar à alegação e perguntar se é digno de um profeta, que é iluminado pelo Espírito Santo, que foi previsto por Isaías, e cujo nascimento por pressagiado antes que sucedesse por tão grande anjo, que recebeu da plenitude de Cristo, que partilha de tal graça, que sabe que a verdade vem por meio de Jesus Cristo e ensinou coisas tão profundas a respeito de Deus e do unigênito, que está no seio do Pai, é digno de tal indivíduo mentir ou mesmo hesitar, em razão da ignorância do que era. Pois com relação ao que estava obscuro, ele deveria ter se abstido de confessar, e não ter nem afirmado, nem negado a proposição que foi posta. Se a doutrina [da transcorporação] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento (grifo meu).
Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7
E Orígenes sustenta, sem querer, a tese da entrada tardia da reencarnação no judaísmo. E ele viveu em Alexandria – onde havia uma numerosa comunicada de judia -, e em Cesareia, na Palestina, portanto contato com judeus não lhe faltou. Eis outro texto dele:
Alguém pode dizer, porém, que Herodes e parte da população mantinham o falso dogma da transmigração de almas para os corpos, com a consequência de que eles pensassem que o antigo João apareceu outra vez devido a um novo nascimento e tinha vindo da morte para a vida como Jesus. Mas o tempo entre o nascimento de João e o de Jesus, que não foi mais que seis meses, não permite se dar crédito a esta falsa opinião. E talvez fosse melhor que outra ideia estivesse na mente de Herodes – os poderes que operaram com João tivessem passado para Jesus – fazendo que ele fosse visto pelo povo como João Batista. E pode-se usar a seguinte linha de raciocínio: apenas por causa do espírito e poder de Elias, não pela alma dele, que se diz de João: “Este é o Elias que deve vir“.
Comentário sobre Mateus, livro X, cap XX
Aí entra uma sutileza da língua grega usada por Orígenes, que é a distinção entre “espírito” (pneuma) e “alma” (psyché). Para ele, só haveria sentido em falar de “transcorporação” se fosse essa última, que seria a portadora da individualidade. Em hebraico, também existe, grosso modo, essa mesma separação entre rouach e nephesh. Dependendo do contexto, rouach pode, contudo, assumir significados distintos (sopro, vento, espírito). Mesmo quando ele é traduzido por espírito não significa que seja exatamente a consciência sempre, mas o princípio que nos anima (Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10). Em se tratando de Elias:
Sucedeu que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito [rouach] sobre mim.
2 Re 2:9Vendo-o, pois, os filhos dos profetas que estavam defronte em Jericó, disseram: O espírito [rouach] de Elias repousa sobre Eliseu. E vieram-lhe ao encontro, e se prostraram diante dele em terra.
2 Re 2:15Observando-se isoladamente 2 Re 2:15, poder-se-ia até pensar em incorporação mediúnica, porém, juntado 2 Re 2:9, fica difícil achar que se trata do significado espiritualista da coisa e só forçando a barra é que é possível ver reencarnação nisso.
Todo esse ecletismo viria a irritar Saadia Gaon (século X) pelo jogos de palavras que seus respectivos oponentes faziam. Já na época de Orígenes (século III), uma capacidade similar na língua grega foi usada para confundir, como ele insinua em suas refutações a pagãos e gnósticos. Seus Comentários apologéticos, em particular, mostram que a associação de João Batista com uma reencarnação de Elias é bem antiga, assim como as respostas (proto-)ortodoxas para ela. E os flame warriors ainda não se fartaram disso.
- Flávio Josefo descreveu a reencarnação entres os judeus do século I: Vejamos o artigo ofertado:
Desde os tempos do finado GeoCities, já havia um artigo aqui falando de Flávio Josefo e a crença dos fariseus, que foi totalmente desconsiderado. Juntando isso com a deturpação das ideias de Orígenes, fico com a séria impressão de que o forista espírita, na melhor hipótese, apenas passou os olhos por este portal. Recomendo a leitura desse artigo, mas, caso não tenha tempo, fica este aperitivo: por que o retorno à vida é para os bons e não para os maus que, pela lógica espírita, precisariam mais?
- Jesus disse que João Batista era Elias e eu não falo nada do assunto: E se eu falasse, que diferença faria? Falei a opinião de Orígenes sobre o assunto e ela foi distorcida. Falei de Josefo e fui desconsiderado. Poderia acontecer uma dessas opções com o que eu dissesse sobre João Batista ou … uma nova exigência ser feita! Agora, vem cá: Jesus realmente disse isso? “Sim, lá em Mt 11:14 …” Não. Isso é o que foi registrado por Mateus. Por acaso você me garante que o Jesus Histórico – o ser de carne e osso que andou entre nós – disse algo próximo a tal?
Essa é uma das razões por que não considero pesquisa séria boa parte da apologia espírita: ela praticamente trata os evangelhos como documentos históricos, sem o menor critério para distinguir o que pode ter um fundo de verdade do que é puro mito. Convenhamos que isso é útil no debate contra os “fundamentalistas”, a fim de prendê-los em nós difíceis de desatar, embora não condiga com um credo com pretensões racionalistas. O efeito colateral é produzir um Jesus à própria imagem e semelhança.
Índice
No meio de uma Flame War
Em meio a pesquisas que fiz pela internet a respeito deste mesmo portal, encontrei as seguintes pérolas em certo fórum de debates.
Que foi respondido por um apologista espírita com:
E segue-se um artigo de seu grupo apologista falando de Flávio Josefo e outro sobre Hebreus 9:27.
Bem, de qual deles vou tomar partido? Nenhum, em princípio. Ambos estão errados a respeito o que realmente trata este portal.
[topo]
Ser Judeu: Ontem e Hoje
Em se tratando do apologista evangélico, eu jamais disse que os cabalistas não pertencem à “comunidade rabínica organizada”, que são menos judeus por isso ou são reles “feiticeiros”. Para ser sincero, qualquer religião, em sua pior forma, pode ser reduzida a um amontoado de superstições. Que o diga a Cabala, em seu fabrico de amuletos, os evangélicos, em suas quase circenses manifestações “do Espírito Santo” e “os espiritões”. Por outro lado, em sua melhor forma, a maioria das religiões pode se tornar filosofia de qualidade. Não que eu concorde com as premissas delas.
O fato é: há judeus modernos que creem na reencarnação e outros não. Quem quiser, acesse o portal Ser Judio – Vida y muerte ou leia O Judaísmo Vivo, de Michael Asheri, cap. XLI, pp. 251-2 , para verificar que a aceitação da reencarnação ou gilgul neshamot não é universal entre os judeus atuais. Leia Jewish View of the Afterlife, de S.P. Raphael, cap. VIII, pp. 314-20 para uma análise histórica e mais aprofundada. Curiosamente, esses dois autores também tocam na possibilidade, em alguns círculos cabalísticos, de reencarnação em corpos de animais. Duvido que os espíritas comprem essa ideia ou digam que ela está na Bíblia.
Essa diversidade de opiniões pode soar estranha a cristãos (ou neocristãos, como os espíritas), pois, historicamente, seus embates são travados em torno de dogmas da fé. Óbvio que o judaísmo também possui um “núcleo duro”, só que é muito mais eclético em todo o resto. O historiador Paul Johson assinalou que:
[Na Idade Média] Havia uma tal variedade de opiniões sobre o Messias no judaísmo que era quase impossível ser herético nesse assunto. O judaísmo dizia respeito à Lei e sua observância. O cristianismo dizia respeito à teologia dogmática. Um judeu podia atrapalhar-se quanto a um ponto delicado da observância do sábado que a um cristão pareceria ridículo. Por outro lado, um cristão podia ser queimado vivo por sustentar uma ideia sobre Deus que a todos os judeus pareceria um assunto de opinião legítima e de controversa.
Johson, Paul; A História dos Judeus, Imago, 1995, parte III, p. 228.
O que ressalto no artigo sobre Saadia Gaon é que a crença na gilgul foi uma inovação medieval. Esse rabino foi testemunha ocular de sua chegada e difusão na região onde viveu (o atual Iraque), mesmo antes da codificação da Cabala. Por isso, também discordo do forista evangélico quanto à exigência de uma opinião judaica “tradicional”, visto que a crença a gilgul não é exclusiva de “místicos”, como outros na discussão lembraram. Aliás, muito do que ele chama de misticismo só o é para quem está de fora. Por outro lado, também é totalmente sem sentido usar a opinião de judeus modernos para abalizar teses espíritas, já que há não razão alguma para acreditar que algum grupo judaico tenha permanecido estático desde a época de Jesus. Muito pelo contrário: mesmo o dito conservador “judaísmo ortodoxo” é o produto de quase dois milênios de evolução.
O procedimento correto seria buscar a opinião de judeus do século I, quem sabe antes ou um pouco depois. Para isso existe a literatura intertestamentária e o Antigo Testamento, que são silentes sobre o assunto. A não ser, claro, que você lance mão de alegorias (o que Gaon tanto repudiou) ou de preciosismos gramaticais duvidosos.
É errado alegorizar? Falando como cético, o problema das alegorias é que elas podem tornar qualquer discussão num verdadeiro “vale tudo”. Judeus reclamam do uso cristão de suas Escrituras para justificar Jesus como o Messias (como Isaías 53). Depois cristãos ortodoxos se irritaram quando gnósticos começaram a elucubrar com os evangelhos (João em especial) para explanar seus “segredos”. Os espíritas são apenas os recém-chegados da especulação teológica.
O que se pode pesquisar é o que determinado grupo cria sobre certo assunto. Deixar o “texto explicar o texto” pode ser contraproducente, porque a Bíblia não é intérprete de si mesma. Em compensação, pode-se pesquisar a palavra de intérpretes antigos sobre o assunto. Um nome que veio à baila foi ninguém menos que Orígenes.
[topo]
Sabendo mais que Eu …
… a respeito de meu próprio portal.
Vejamos o forista espírita:
Os apóstolos criam no retorno dos profetas, tais como Elias, Jeremias e outros mais. Nem preciso citar passagens aqui para provar-lhe algo, você já sabe onde encontrá-las. O caso de Jesus afirmar que João Batista era Elias e o diálogo entre Jesus e Nicodemos, fora os exemplos do cego de nascença e do homem coxo. Saiba que a sua fonte do site Falhas do Espiritismo do Cyrix atesta que os judeus primitivos creem na pré-existência da alma, Orígenes defendia Elias ser João Batista, se é que você percebeu isso e nem se dá conta que o Cyrix nem aborda o fato de João Batista e Elias, portanto, não poderá afirmar que não há reencarnação na Bíblia, por ser sua análise parcial. Acaba que “o tiro sai pela culatra”, sem falar de Flávio Josefo do século I. Ademais, sobre ele, tem o artigo abaixo para apreciação.
Bem, em instante algum se questionou o valor histórico do relato de Gaon. Ele foi, simplesmente, desconsiderado. Outras coisas que me chamaram atenção:
Distorção de fatos, falácias e grande má vontade em simplesmente ler as informações que tenho a oferecer. Às vezes tenho a impressão que muitos dos que se propõe a me combater, refutam outro portal. Um portal mais fácil em que eles podem escolher o que responder e se responder. Afinal, jogaram fogos diversivos e nada se falou a respeito de Saadia Gaon. Perda de tempo.
Atendendo a pedidos, será feita uma breve preleção sobre o tema Elias/João Batista, que, obviamente, não será tudo o que gostaria de dizer.
O Outro Outro Mundo dos Espíritas
Por Acauan Guajajara, do Religião é Veneno
E tem um terceiro.
Um outro outro mundo, exclusivo dos espíritas e invisível para quem não o é, mas mais próximo e compreensível para os terrenos do que o etéreo entre o nirvana e o umbral, onde karmas se cumprem obedecendo a enredos parecidos com os das novelas mexicanas.
O interessante do segundo outro mundo dos espíritas é que, ao contrário do primeiro, ele é repleto de realizações positivas aferíveis pelos prosaicos observadores deste plano.
Este outro mundo manifesta-se no nosso através dos Centros Espíritas. Não… não pensem de início em lugares onde apenas se dão passes e gente morta manda recados sobre o quanto estão felizes e bem lá do outro lado.
Os Centros Espíritas são complexos impressionantes, pelos menos os grandes Centros, que agregam, além das atividades típicas requeridas pela doutrina kardecista, as ações de caridade exigidas por ela.
Os grandes Centros Espíritas são de matar pastor de igreja neopentecostal de porta de garagem de inveja. Enquanto estes espremem o dom de apascentar que lhes é dado pelo Espírito Santo para tentar recolher até o último centavo de dízimo que lhe permita pagar o aluguel do mês daquele espaçozinho sem graça, os espíritas se dão ao luxo de manter prédios no porte e forma parecidos com escolas públicas, onde, além de exercitarem seus iniciados no diálogo com o além-túmulo, mantém uma enormidade de atividades sociais que muitas vezes incluem creches, orfanatos, escolas de deficientes e coisas do tipo.
Estou certo que todo mundo sabe que manter estas coisas é caro. Talvez nem todo mundo saiba que manter estas coisas é muito, muito caro.
Há Centros Espíritas que mantém creches para carentes, escolas para excepcionais, lares para órfãos ou asilos para idosos dotados de toda a infraestrutura e tocados por profissionais especialistas remunerados. O custo mensal disto tem muitos zeros a direita da primeira cifra.
Mas segundo o IBGE os espíritas são uma percentagem pequenininha da população e não cadastram seus adeptos para pingar o dim-dim do fim do mês nos cofres das lideranças religiosas sob a pena de terem o devorador comendo suas rendas caso não o façam (hei, hei, fiz piada com vocês sabem quem…).
Como então conseguem manter tantas obras, cujo funcionamento exige uma garantia de recursos fluindo todo quinto dia útil do mês para pagar folhas de pagamento e toda semana para pagar alimentos, materiais de consumo e serviços de manutenção? E para complicar parece que ainda sobra para campanhas várias, da Páscoa ao Natal.
A resposta é o que os espíritas mantém uma enorme, silenciosa e extremamente organizada rede de coleta e distribuição de recursos que não só fazem fluir quantidades imensas de dinheiro e donativos para a manutenção de suas obras como mantém um gerenciamento eficiente na aplicação destes recursos.
Os grandes Centros Espíritas são reflexo disto. Todos funcionais, limpinhos e ascéticos.
Cheios de salas, algumas de portas trancadas embaixo das quais sempre olho para ver se tem ectoplasma escorrendo pela fresta. Quadras de esportes, cantinas e anfiteatros completam o pacote.
Os espíritas brasileiros que sustentam tudo isto estão concentrados na classe média, mas a comunidade abrange empresários e profissionais liberais bem sucedidos que de modo notavelmente discreto estão por traz das contas que não fechariam sem a contribuição deles.
Lembro-me de uma muito conhecida família de advogados criminalistas de São Paulo que assumia pessoalmente a direção de uma grande creche mantida pelos espíritas. Nunca entendi como tinham tempo para dar atenção aos seus casos jurídicos cuidando de todos os pepinos que aquele abacaxi lhes proporcionava.
Como empresário espírita não bota neon na fachada de suas empresas anunciando que “Deus é Fiel”, como fazem prosélitos de outras crenças, ninguém sabe que eles existem. Mas há muitos. Talvez o seu patrão seja um deles, vá saber.
Um conselho: não tentem fazer marketing social em instituições espíritas dando algum dinheiro para ostentar faixas do tipo “a empresa tal mantém esta instituição”. Para quem não sabe, os espíritas não aceitam isto. Se quiser doar dinheiro eles agradecerão e dirão que o donativo será tratado com discrição, mesmo que sua intenção ao doar fosse fazer o máximo possível de propaganda da sua bondade.
Alguns Centros Espíritas são mantidos exclusivamente pelos chamados servidores, membros da comunidade que realizam todos os serviços para manter a instituição – da contabilidade a lavar banheiros – sem receber um centavo por isto.
E há também empresas mantidas e tocadas por espíritas cujo objetivo é levantar fundos para manter as obras da comunidade. Um grau de especialização e sofisticação que parece planejado por alguma administração central.
Só que os espíritas não têm organização central nenhuma.
O consenso mais próximo que os espíritas parecem ter quanto à uma autoridade reconhecida por todos é que todos parecem concordar que a Federação Espírita Brasileira não é esta autoridade.
E quem é?
Ninguém.
É isto que torna o outro outro mundo dos espíritas um fenômeno digno de nota. A mais pura expressão do Laissez-faire transferida para o mundo da religião.
* * *
Do administrador: um bom Natal e feliz ano novo!
Inacabados
Igreja da Sagrada Família, em Barcelona, Espanha. Até o presente momento (2015), o mais belo canteiro de obras do mundo.
- Um estudo sobre a evolução do Espírito Santo no cristianismo primitivo (concluídas as cartas paulinas e adicionada uma análise de Hb 9:27);
Uma revisão e expansão de A Preposição da Discórdia. Falta um capítulo com o toque final;- A transformação de Elias de ex-tutor e rival em um precursor de Cristo;
- Algumas observações sobre o pré-existencialista Filo de Alexandria;
Fazer um inventário das citações bíblicas contidas no ESE. Os dados até estão à mão, ofertados pela FEB, por isso acabo procrastinando;Discorrer acerca das origens do batismo cristão e o esforço da ortodoxia kardecista em desqualificá-lo como fraude de uma tradução enviesada;Dar uma resposta sincera a uma singela dúvida de um leitor (e a mim mesmo).
Isso não quer dizer que esteja eu parado, apenas que outras prioridades surgiram no mundo real. Pelo menos a página de “Sobre” progrediu um bocado e o primeiro artigo está bem avançado. Não tenho compromisso em terminar rápido, até porque sei que os últimos 10% de cada trabalho consumirão tanto ou mais que os primeiros 90%.
Vim apenas dizer que ainda estou “encarnado”.
Prezado Fred…
Índice
- Um Inusitado Admirador
- Origens
- Flame Wars: a Era dos Fóruns
- Um Caso de Amor e Intrigas
- Uma Descida ao Abismo
- O Livro que Ninguém lerá
CinquentaQuatorze Anos depois…- Réquiem
Um Inusitado Admirador
Quero deixar aqui minha admiração a este “anônimo” adversário da Doutrina Espírita. Nunca vi alguém estudar com tanto afinco para contrapor uma filosofia. Você é um ser com uma capacidade de raciocínio e de argumentação incrível, e eu como espírita, não tenho sequer coragem de arriscar algum argumento em defesa da Doutrina Espírita, diante de suas argumentações e documentações apresentadas. Minha argumentação e conhecimentos seriam simplórios diante da astúcia com que você se desenvolve em suas argumentações. Eu não tenho experiências espirituais que comprovem sequer o que eu acredito, apenas meus parcos estudos dentro da Doutrina. Portanto, só o que há em mim que possa abonar minha crença, é a fé. Talvez, como já falou aquele carinha famosinho, este seja o meu “ópio”, mas eu prefiro isso, do que enfrentar o vazio da incerteza. Quanto a você, meu irmão “anônimo”, não compreendo onde tudo isso o está conduzindo. Não compreendo qual a vantagem de dispensar tanta energia em um combate como este. Como escreveu o @Claudio, é uma das filosofias de amor mais coerentes que eu conheço. Ainda concordando com a colocação de nosso amigo Claudio, não compreendo porque você não empreende melhor todo este seu dom e toda esta energia, de um modo mais positivo em favor de você e de nossa humanidade. Com sinceridade, tenho muito respeito pelos teus textos, teus argumentos, tuas pesquisas, pois são de uma lucidez muito grande, ainda que eu não compreenda onde você quer chegar com isso, e qual a vantagem que almeja. Eu compreenderia se você me dissesse que está defendendo a sua religião ou a sua filosofia, mas não consigo entender o motivo desta guerra sem objetivo. Da minha parte, o que digo é que a Doutrina Espírita não precisa ser defendida, e que toda a verdade desta filosofia se constata em pouco tempo, que é o nosso pós-tumulo. Eu compreendo que há muita verdade no trabalho que você tem feito, mas também acredito que algumas verdades também deve haver na filosofia Espírita, bem como em tantas outras filosofias espiritualistas espalhadas pelo mundo. E a única argumentação que tenho, e que para você não deve significar nada, é a minha fé. Se você está em busca de alguma verdade, desejo que a encontre, e que compartilhe conosco quando a encontrar. (Comentário postado em Vinde Espírito Santo)
É Fred (posso te chamar assim?), você merece uma resposta. Até porque não deve estar sozinho. Vou deixar este fixo no topo por uns tempos até ter encerrado. Seus comentários serão os únicos que autorizarei, ao menos de início.
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Origens
Quem viu esse filme talvez possa perceber algo a ver …
As coisas começaram, de certa forma, bem antes de nascer. Não falo de planejamento reencarnatório em alguma colônia etérea ou coisa assemelhada, mas na minha figura paterna. Em sua juventude ele chamara a atenção de seus pares veteranos. Muito culto e inteligente, podia-se dizer que ele era uma promessa para o movimento espírita. E, realmente, foi só isso mesmo: ao falecer tragou toda sua cultura para o túmulo. Por outro lado, o fato de ele ser quem era rendeu-me um ambiente culturalmente rico, com boa oferta de livros e, às vezes conversas, longas sobre os assuntos mais aleatórios que uma curiosidade infantil permitisse.
Minha apresentação ao espiritismo foi feita por ele mesmo, baseada numa espécie de “catecismo” antigo que possuía. Por sinal, ao contrário de outros familiares de minha faixa etária, não frequentei nenhuma sala de evangelização. Não sei se por alguma implicância com a orientação do Centro mais próximo, alguma sensação de autossuficiência ou qualquer outra razão oculta, preferiu-se um home schooling. Não sei quanto essa relação mestre/discípulo pode ter emulado as escolas catequéticas católicas ou as dominicais dos protestantes, mas já ouvi (fico te devendo de onde) que relações mais horizontais, lúdicas e com outras crianças teriam sido melhores. Bem, agora só me restam cogitações.
Definitivamente, não éramos da mesma espécie, mas a gente se entendia.
O que ele não contava era ter um aluno … “questionador”, principalmente ao chegar ao começo puberdade. Por exemplo, quando chegamos à parte “Fora da caridade não há salvação” no Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE), perguntei algo como ”como praticar a caridade sem ter interesse em me salvar, pois do contrário não é caridade?”. Em outras palavras, perguntei se existia altruísmo genuíno ou sempre haveria um interesse subjacente. Não quero começar uma discussão filosófica aqui, pois diferentes respostas já escutei. Basta saber que por esse tipo de pergunta meu velho não esperava e tive um bom número de evasivas. Às vezes, buscava respostas sozinho, o que me levou a ler o Pentateuco por conta própria. Para o quê fui fazer isso: O Céu e o Inferno me encheu de horror em sua segunda parte. Hoje, claro, já não teria esse efeito, mas naquela época … Conforme cresci, o controle paterno se afrouxou e fui naturalmente me afastando. E, respondendo a sua pergunta, não, nunca tive nenhuma experiência “sobrenatural”. No máximo ouvia histórias e “causos” que ele presenciara, mas não se emprestam vivências. Aliás, o que eu realmente quase não li, nem muito me interessei, foi o Livro dos Médiuns (LM).
Mas Falhas do Espiritismo ainda estava um pouco longe… o que aconteceu foi em seguida foi uma espécie de comportamento ciclotímico que, hoje, nem entendo como aconteceu. Bem, tal como uma criança chora por um brinquedo quebrado – que alguns anos depois não daria a mínima –, o que senti na época foi importante. Já por volta da maioridade e sem contar mais com a presença da figura paterna, levada de forma súbita, fui tomado por um processo de, digamos, “aborrescência”, catalisado por experiências negativas. Tornei-me arisco e recluso, mas não depressivo ou inerte. O fim dos laços sociais, pelo menos, deu-me tempo de sobra para focar nos estudos, o que me permitiu passar pelo funil do vestibular com até mais de uma opção. Mudei de ares com a entrada no ensino superior, mas não de cabeça. Continuava alguém de “mal com a vida”, uma presa interessante para quem me desse uma proposta capaz de me fazer sentir especial: os evangélicos, por exemplo.
Longe de serem aqueles estereotipados pregadores em cima de um banquinho, no meio da rua, clamando em voz alta: eles eram seus próprios cartões de visita. No meio da loucura do corpo discente das universidades, eles eram uma ilha de sanidade para pessoas de formação mais “tradicional”, como a minha. Não era apenas isso. Sentia neles uma alegria de viver, uma autoconfiança, uma garra que me causava m uma certa inveja, não algo mesquinho, mas a vontade partilhar disso também. Fiz sinceras amizades naquele meio e, entre uma conversa e outra, assuntos religiosos acabam por aflorar. Não, não conheci nenhum daqueles clássicos “ex-isso”, “ex-aquilo”, todos, que eu me lembre, haviam sido criados assim de berço ou, pelo menos, muito cedo. O que me mostraram foi outra forma vivência, com um relacionamento com o Divino em nada racional, porém muitíssimo pessoal. O batismo, como de praxe, dado na adolescência parece um rito de passagem extremamente marcante a eles. Um verdadeiro “renascer”, bem distinto daquele aprendido na “catequese doméstica”. Foi de histórias como essas que comecei a entender o significado de transcendência, embora jamais viesse a me sentir tocado por algo além de meu ego humano. Também foi deles a sensação de acolhimento que precisava: no âmbito doméstico, nas poucas vezes em que pensei me abrir com outros parentes, a resposta era sempre algo como “você que escolheu isso” ou “essas foram as consequências de seus atos”, e “não estou aí para seus dramas existenciais”. Doía ouvir isso de gente que visitava orfanatos, hospitais, fazia trabalho voluntário, sempre lidando abnegadamente com desconhecidos e, ao mesmo tempo, sendo dura com alguém que conheceu de berço e até dividiu o teto. Fazer o quê? O espiritismo, em si, é uma meritocracia. O que os evangélicos me traziam, por sua vez, era bem diferente: eu poderia ser especial, mesmo sem merecer, aliás, mérito não fazia sentido nessa teologia. Eu não precisava estar pronto para ser acolhido: se acolhesse a oferta, eu que seria preparado. A porta deles sempre esteve aberta, não se precisava bater. Se eu havia cortado laços, outra comunidade muito maior estava prestes a me chamar de “irmão”. Não tinha em conta que estava imerso em um jogo de sedução (no bom sentido) muito bem orquestrado, que quase funcionou. Quase. Até hoje penso que, tivesse eu me entregado, não teria vivido mais feliz. Mas eles cometeram um erro sério no processo: exageraram na dose.
Havia alguns entre eles que eram criacionistas da “Terra Jovem”, adeptos de uma interpretação literal do livro de Gênesis. De início achei divertido discutir com eles, tamanha era a ignorância que tinham sobre o assunto. Depois fiquei um pouco preocupado, pois não eram ignorantes como pessoas, muito pelo contrário, mas tinham escolhido voluntariamente antolhar a mente num tema específico. Isso por si só não seria o bastante para prevenir uma possível conversão – também havia conciliadores entre ciência e fé -, pois o verdadeiro tiro pela culatra ocorreu quando me apresentaram o livro O Império das Seitas, de Walter Martin, volume 4. Um capítulo inteiro era dedicado ao Espiritismo. Se as dúvidas já haviam me afligido durante a catequese paterna, aquilo foi um choque: o autor reunira diversos absurdos científicos, inconsistências, argumentações fracas, interpretações enviesadas da Bíblia (afinal, era um livro da ortodoxia cristã) e rixas internas do espiritualismo de século XIX. Fiquei com a impressão de que havia tanto de apelação no espiritismo como no protestantismo. Passado o impacto inicial, entrei numa espécie de “negação”, não podia admitir que a “fé racionada” tivesse alicerces tão frágeis. Fiz, então, algo inédito em minha vivência religiosa: adentrei um centro espírita.
Ficava a algumas quadras de casa. Lembro ainda menino, em um passeio a pé pelas redondezas, de lhe perguntar por que ele não o frequentava. Não recordo, porém, da resposta, apenas da sensação de ele querer desconversar. Não sei se não gostava dos dirigentes, da dinâmica do trabalho ou se apenas não queria se envolver. O que quer que fosse não era nada fidagal, tanto que outros parentes próximos o frequentaram sem que ele implicasse. Nunca me encaminhou, porém, nem eu fizera questão. Como se diz no meio, já que não me voltava a Deus por amor, estava voltando pela dor, ainda que fosse uma dor emocional.
Olhei na fachada um cartaz com a programação semanal e soube quando eram as reuniões de mocidade (embora, tecnicamente, já fosse adulto jovem). Na reunião seguinte, estando a porta aberta, entrei e sentei-me ao fundo. Não demorou a minha presença ser notada e ser convidado a chegar à frente (cf. Lc 14:7-10). Posso dizer que fui bem recebido e o pessoal da mocidade não deixava nada a desejar em termos de acolhimento em relação aos evangélicos. Revi até alguns colegas de ginásio, pois a escola em que estudamos também era no mesmo bairro. A única diferença que vi entre os dois grupos – além das doutrinárias, claro – é a ausência do proselitismo dos últimos nos espíritas. Bem, isso não vem ao caso aqui. Coincidência ou não, minha chegada permitiu que os organizadores formassem um pequeno grupo com outros recém chegados (uns quatro, acho, contando comigo) a serem apresentados mais formalmente à doutrina. No essencial, não me mostraram nada de novo; mas, como modesto calouro, recomecei do zero. As novidades se encontravam naquilo que “não estava escrito”: os jargões, práticas e maneiras, enfim, tudo o que faz um membro de um grupo reconhecer outro sem grandes formalidades. Por exemplo, foi aí que descobri que “Pentateuco” era usado como sinônimo das obras básicas da codificação, em vez de meramente os cinco primeiros livros da Bíblia.
Passada a fase de apresentação, as coisas transcorriam mais ou menos assim em cada reunião:
- Alguma dinâmica de grupo para descontrair ou integrar, concluída com um prece;
- Partida dos grupos de estudo cada um para sua sala, conforme o grau de adiantamento. Se não me engano eram dois apenas;
- O estudo em si era dividido em dois tempos: um para algum capítulo de um livro do Pentateuco, artigo da RE ou o OQEE, seguido por outro para a leitura de algum romance psicografado, um daqueles “clássicos”: Memórias de um Suicida, Nosso Lar, Ação e Reação, etc;
- Uma reunião de despedida, como anúncios de caráter geral, um esboço para a próxima semana e uma prece final.
Íamos, também, visitar uma instituição de amparo pelo menos à tarde de um domingo do mês. Às vezes, numa frequência que não me lembro agora, também chegávamos mais cedo à reunião semanal para uma espécie de faxina no centro. Durante as férias de verão, havia uma programação mais leve, com a leitura de livros de pequenos contos, como alguns do Richard Simonetti, seguidas por dinâmicas calcadas na história lida.
Foram três anos eu acho. Melhor, quatro incompletos. Tive um entusiasmo inicial, admito, chegando a argumentar melhor com os crentes da faculdade e até a distribuir alguns exemplares de bolso do ESE (não para esses últimos, claro). Não era difícil, como a maioria dos apologistas já o sabe, usar contradições bíblicas contra eles. Se minha passagem por lá serviu de algo, foi para me convencer de que o espiritismo não se trata de “artimanha de satanás”. Por outro lado, ainda não estava convencido que fosse algo divino, ou pelo menos obra feita sob orientação superior. A fé não precisa de coerência para se manter firme, precisa de motivos e esses podem muito bem ser reunidos num ente misterioso chamado “inspiração divina“. Já a razão exige coerência, mesmo que se calque em premissas falsas. Uma “fé racionada” deveria ir pelo mesmo caminho, supunha. Só que as contradições científicas e filosóficas do Espiritismo continuavam a me assombrar e minha empolgação foi arrefecendo paulatinamente. Tentei trazer uma ou outra vez algum ponto à discussão, mas geralmente se preferia não interromper o fluxo do estudo do dia. Quando isso ocorria, era costume algum gentil veterano dar uma explicação à parte para mim, após a prece final. Achava um tanto fracos os argumentos, mas acatava. Não queria entrar num embate. Não lá dentro. Não me sentia à vontade. Essa era outra questão e aflição.
Eu simplesmente não conseguia me integrar. Ao contrário dos religiosos da faculdade, cujo convívio era quase diário, os membros da mocidade só se encontravam uma vez por semana e nem sempre eram os mesmos cada vez. Na faculdade era nítido que estávamos no mesmo barco apesar de nossas diferenças, enquanto no centro, com toda comunhão de ideias, ainda me sentia um estranho. Muitos dos demais estavam lá desde a época de evangelização (i.e., cresceram dentro do centro), mesmo os que eu já conhecia do ginásio, estavam apenas para colegas de classe que amizades profundas. Os coordenadores até sentiam isso e estimularam a participação em outros grupos para aumentar a interação (biblioteca, distribuição de cestas, etc.). Participei de um deles e penso que até a proposta era boas, porém chegou um tanto tarde para mim. Era complicado me envolver mais quando, internamente, a sensação de deslocamento aumentava mais e mais.
Percebendo essa contradição, brequei qualquer passo na direção de um envolvimento mais profundo e fui me afastando gradualmente. Comecei a ir semana sim, semana não, em seguida mensalmente, até sumir. Sim, fui embora sem dizer adeus. Se me arrependo, não sei. Meu eu antigo precisava sair, mas se acovardou. Ainda esbarro com um outro dos antigos contemporâneos de mocidade por essas andanças da vida e, se me reconhecem, devolvem ao menos um aceno. Acho que deixei boas lembranças, mas me constrange quão ignoram o que fiz.
No período em que fiquei, não tive nenhuma experiência, digamos, sobrenatural. Não era meu foco quando entrei e, quando próximo a sair, já não acreditaria nos bastidores do fenômeno. “Tomei passe” apenas uma vez e nada senti, até talvez porque já estivesse meio cético.
Já formado, encontrava-me sozinho de novo, por escolha própria outra vez, só que agora o cenário era outro: a internet começava a explodir e com ela as primeiras páginas pessoais e fóruns. Os primeiros autores e foristas que li eram ex-religiosos de origem católica ou protestante, sem muito em comum com minha vivência pessoal. Os únicos a realmente debater com espíritas eram os ainda religiosos, mas eram de um indigência intelectual de dar pena. Até que depois de muita busca encontrei um ex-espírita a criticar racionalmente o espiritismo. Tentei trocar ideias com ele, mas nada. Hoje, relembrando o fato, creio que ele já tivesse outros afazeres, assim como eu não respondo a vários dos que me escrevem também, mas na época essa pequena frustração foi a gota d’água para que eu decidisse agir por conta própria.
Resolvi criar minha própria página pessoal, inicialmente no domínio hpg e, logo depois, no GeoCities (ambos já extintos). No começo, o material não passava de uma coletânea que fiz do supracitado livro de Walter Martin, mas já era um bastante para um objetivo duplo: melhorar a argumentação de evangélicos e católicos, além de deixar espíritas na defensiva. Isso foi uma atitude calculista de minha parte? Sim, foi. A ideia era dar aos espíritas adversários à altura, a fim de os forçar a responder as dúvidas que me afligiam, ou, quem sabe, produzir mais céticos “ex-píritas” como eu mesmo, assim não ficaria mais sozinho. Estava disposto a acender a centelha de uma guerra ideológica ou, pelo menos, de uma corrida armamentista.
Assim surgiu “Falhas do Espiritismo”. Parti com as aspirações de glória de um recruta, mas o veterano que agora te escreve, preferiria a paz. Na época, não tinha ideia do que estava por vir.
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Flame Wars: a Era dos Fóruns
The winter is coming!
Entrar na Internet é fácil, fazer-se notar que é difícil. Então fui espalhar minhas sementes por aí. Criei o nick de “Cyrix”, que nada mais é que o nome de antiga uma empresa de processadores de baixo custo (uma “prima pobre” da Intel) cujo um dos produtos movia um laptop que usava. Coisa bem nerd, reconheço, e a maioria hoje não o deve saber sem pedir ajuda a um motor de busca. Bem, foi esse o “nome de guerra” que adotei no fórum Sociedade Terra Redonda (STR), talvez um dos primeiros fóruns céticos virtuais do país, ao lado do ainda ativo Religião é Veneno.
Adicionei um link para o portal em minha assinatura da STR, mas o resultado inicial foi um tanto pífio: o foco do fórum estava no combate a radicais católicos, evangélicos, criacionistas de ambos os grupos e ufólogos. Os tópicos que abri para divulgá-lo não iam além de algumas postagens. Tentei repassar o material para outros portais que abrissem espaço para a paranormalidade, como o finado “A Busca da Verdade”, como algum sucesso e olhe lá. Cheguei ao cúmulo de postar na caixa de entrada de portais de centros espíritas pedindo ajuda para refutar minha própria criação, fingindo ser um pobre adepto em crise de fé. Quase todos, porém, me recomendaram buscar orientação e estudo num centro espírita.
As coisas começaram a mudar após um debate entre o cético Cláudio Loredo e o espírita Marcus Arduin a respeito da “vida após a morte”, moderado pelos administradores da STR. Isso colocou esse fórum cético/materialista no radar dos espíritas. Por meio de alguns espíritas que lá aportaram, tomei ciência do sítio Portal do Espírito (ainda ativo) e de seu fórum. Registrei-me lá também, porém um perfil falso chamado “Círius”, com o qual pratiquei uma espécie de “trollagem moderada”. Explico: não abria tópicos com a intenção de implicar, mas alfinetava dentro de outros já abertos por outros foristas declaradamente “do contra”. Tanto que a moderação local criou uma seção justamente com esse nome por lá. Ficava eu mais como uma espécie de vírus incubado, esperando o momento certo de agir. Os que realmente abriam pegavam material de meu portal, mas os foristas locais não respondiam, pois havia outra pessoa a fazer isso por eles, à qual eles apenas linkavam.
Inimigos também podem guardar respeito, ainda que a contragosto.
Chamo-o momentaneamente de V., pois talvez eu fale sobre coisas particulares de uma outra pessoa à qual não pedi autorização. Para resumir, diria que foi uma das poucas interações produtivas que tive ao longo da última década. Eu já tinha ciência de sua existência, pois ele já tentara dialogar com A Busca da Verdade, mas foi uma perda de tempo, devido, ao que eu que me lembre, à “falta de modos” dos administradores daquele portal. Então, decidi dar-lhe uma nova oportunidade quando me enviou um “e-mail resposta”. Logo percebi a razão do pouco interesse dos espíritas pelo meu portal: estava tudo muito cru e facilmente contra-argumentável. Foram duas ou três rodadas de respostas e réplicas, que me valeram para incrementar o próprio portal. Durante esse período, travei contato com o trabalho de nomes como Pastorino, J.R. Chaves, Severino Celestino da Silva, Paulo Neto e outros escritores, divulgadores e apologistas espíritas. Constatei ainda ter muito a me aperfeiçoar e, ao mesmo tempo, um amplo campo por onde expandir. No balanço final, eu diria que levei a melhor na crítica à reencarnação na história e ele em na defesa dela como fato. V. também aproveitou o material que produziu para a criação de se seu próprio portal, que depois foi reformulado para outro em formato de blog, dedicado à análise de evidências quanto à existência de espíritos e de casos de recordações de vidas passadas, além de fazer avaliações críticas dos romances psicografados considerados clássicos entre os espíritas. Não sei se ele ainda se declara espírita, mas gostaria que existissem mais como ele.
Algum tempo depois, por motivos técnicos (problemas com a hospedagem) e brigas internas por motivos que já não me lembro mais, a STR se desagregou. Parte de seus foristas fundaram o Clube Cético (ainda ativo) e outra migrou para o supracitado Religião é Veneno. Criei perfil no primeiro e já tinha um no segundo, pois ambos tinham estilos bem diferentes. O “Clube Cético” (CC, para os íntimos) manteve a postura de “rédea curta” em termos de moderação da STR, que sempre evitou uma escalada exagerada das discussões, ao passo que o “Religião é Veneno” (RV, para os íntimos) era bem mais anárquico. Havia moderação, sim, e ela agia (e ainda age) prontamente quando uma postagem descambava em algum crime contra a honra da pessoa real por trás da tela (injúria, calúnia e difamação), de ódio e/ou racismo. Agora, quando o único afetado era um “nick”, então a pancadaria era livre! Trollagem era tolerada? Digamos que em um nível muito maior que no CC, mesmo assim um bom número de foristas conseguiu a proeza de torrar a paciência da moderação e ser banido.
“Dizem que se um debate no Religião é Veneno não tiver pelo menos três mortes, ele é considerado chato.”
Foi no RV que conheci alguém que se propunha ser uma espécie de Nêmesis meu (e de outros, quem sabe). Seu nome, bem, para protegê-lo, será “Kevin”. Era um ex-membro de uma seita evangélica e prosélito do espiritismo, um caso raro em minha vivência. Segundo testemunho seu, em outro fórum (de orientação evangélica), fora uma espécie de apologista cristão contra o espiritismo, como tantos outros, que, quando teve o senso de dúvida despertado indiretamente pelos próprios espíritas que atacava, entrou em crise fé. De um crente devoto, tornou-se kardecista igualmente fanático devoto, sem deixar de agir como um pretenso teólogo. Óbvio que eu era uma presa cobiçada e ele estava em fóruns alheios justamente para refutar, desprezar e escrachar os que se opusessem a sua nova fé, como um bom troglodita.
Só que ele não sabia como a banda tocava ali. Ninguém ali estava preocupado em “salvar a alma” ou praticar a “reforma íntima”, enfim, os céticos/materialistas não faziam a menor questão de bancar os bonzinhos. Muito menos alguém ali acreditava na Inerrância Bíblica para defender se esta ou aquela interpretação era a mais piedosa. Os sentidos mais crus e ásperos para nós eram os mais prováveis, principalmente se estivessem a serviço da mitologia nacional do Antigo Israel. Vendo a incapacidade de se fazer notar, tentou mudar de tática, atendo-se aos aspectos mais, digamos, “científicos” do espiritismo ou criticando os adeptos a parapsicologia “quevedista”, que ninguém de fora levava a sério, mas que nos divertiam com suas teorias ridículas sobre o inconsciente. Comigo, não conseguiu ir muito longe, pois, primeiramente, não oferecia eu combate aberto, adotando mais a tática do Picador. Ainda assim, consegui surpreendê-lo refutando textos de Aksakof, besteiras sobre a Patrística e o II Concílio de Constantinopla. E, em segundo lugar, outros fóruns em que postava, de perfis religiosos, consumiam mais de suas energias.
Nem tudo foi ruim com a presença de espiritualistas: o fórum, por algum tempo, foi um interessante lugar de debate entre a “hipótese psi” (a versão séria) e a de “sobrevivência”, i.e., a separação entre mente e corpo, mas foi impressionante a incapacidade dos kardecistas ortodoxos em acrescentar algo. Houve duas honrosas exceções, mas jamais os classificaria como ortodoxos, tal como Kevin era. Esse começou a se incomodar com um forista cético que bancava o papel de Palhaço Malvado, não que os argumentos desse fossem grande coisa, mas evidenciavam como Kevin caía muito fácil em “zoações”. Ele gostava de bater com seus punhos de aço, mas detestava que lhe arranhassem o queixo de vidro.
Sabendo disso, revolvi me aproveitar e dar-lhe o sabor do próprio veneno: registrei-me em um fórum evangélico do qual ele participava e comecei a abastecer os foristas religiosos com os “furos” na doutrina espírita e em suas defesas apologéticas. Não demorou muito para a irritação dele dar sinais de que iria rebentar. Retirei-me discretamente antes de uma “guerra aberta” (que não conseguiria manter, afinal ele tinha boa retórica, embora prolixo demais) e deixei que os “donos da casa” cuidassem do resto. Fiquei por um tempo restrito ao Religião é Veneno, até porque meu perfil fake fora descoberto no Portal do Espírito. Estava eu a fim de “dar o troco” em um forista espírita com quem me desentendi no Clube Cético, de certa forma, fui traído pela própria demonstração de conhecimento quando debatedores melhores lá chegaram e fui “convidado” peitá-los. No RV esteve mais do mesmo algum tempo, até que, em um fatídico dia Kevin, cometeu um erro fatal.
– Seu maldito! Kardec é inatacável!!
-Ah, vai te catar!
Ele caiu numa armadilha colocada pelo supramencionado evil clown: as polêmicas declarações da codificação quanto à inferioridade de negros (e asiáticos, também) em relação aos europeus. Em vez de dar uma daquelas respostas-padrão de que Kardec estava preso no século XIX e, sendo assim, portaria o “ranço” de sua época, etc. e tal, ele corroborou e quis provar que isso não era racismo porque essa superioridade existiria de fato (e da pior maneira possível). Não contava, porém, com a emergência de outro forista muito mais competente que ele em eloquência e, para seu azar, membro de uma etnia tida por inferior na codificação. Foi um massacre. Nenhum dos demais espíritas foi em seu socorro para defender o indefensável e os demais céticos, como eu, ficamos assistindo de camarote Kevin ser humilhado, com uma ou outra provocação manifestação ocasional. Kevin não sumiu de imediato depois dessa, mas sua participação diminuiu significativamente, até se extinguir. Bem mais tarde, em buscas no Google, fiquei se sabendo que desenvolvera uma doença autoimune. Já estava melhor, porém havia passado por maus bocados. Não sei se, de certa forma, isso foi uma somatização de seu próprio jeito irascível de ser ou mero azar (karma?), o que posso dizer é quanto a mim: minha primeira reação íntima não foi de pena, nem de escárnio, mas de apreensão. O receio de que, em um possível reencontro virtual, ele estivesse pior ainda (como pessoa, não de saúde), afinal o sofrimento nem sempre é um bom professor, muito pelo contrário. No momento em que escrevo, tal encontro jamais ocorreu, mas Kevin deixara uma espécie de escudeiro em meu encalço. Chamá-lo-ei de “Jaime”. De início, achei que ele seria um adversário promissor, mais tarde percebi que jamais sairia da aba de alguém que fosse maior que ele, seja o Kevin, outro apologista, ou até mesmo todo um bando de asseclas. Não sei o que houve, mas acho que lhe dava mais excitação intelectual que crentes do Fórum Evangelho. Tal como um antagonista de cinema, passou a amar me odiar.
Nem sempre fui bem no RV e em pelo menos dois episódios levei a pior. O primeiro foi com um meteórico forista que chamarei de “Rodger”. Ele apareceu do nada, procurando diretamente por mim para uma “contenda”. Ele avisou, logo de início, que iria responder “como espírita” e eu aceitei (ou pelo menos não rejeitei) essa condição. Foi um erro fatal. Achei poderia contradizer o espiritismo com ele mesmo, mas esqueci que ele não se resume apenas ao Pentateuco kardecista. É todo um contexto criado ao longo de 150 anos, que foi lapidado para ter coerência interna. De certa forma, permiti a Rodger que fizesse inúmeras petições de princípio ao deixar que presumisse diversas hipóteses ad hoc que só eram válidas dentro de um centro espírita e as usasse como argumento. Quando tentava eu apontar para esse “pormenor”, Rodger já passava para outro assunto. Por fim, rebaixei-me ao nível dele ao postar textos enormes para que refutasse (o que não fez, claro). Quando já cansado dessas sandices, abandonei unilateralmente e deixei que tivesse a última palavra, o que deve ter deliciado uma invisível plateia. Não me lembro de Rodger ter postado mais no fórum. Uma das lições que aprendi, ruminando as mensagens daquele tópico, foi a necessidade de transcender a condição de espírita se quisesse ainda peitar a ortodoxia kardecista. A verificação de sua (in)validade estaria fora dela e os ortodoxos jamais sairão da zona de conforto voluntariamente.
O outro envolveu um forista que chamarei de Williams. De certa forma, lembrava Kevin no objetivos, porém desprovido do menor estilo. Parecia mais um hidrófobo Barnabé anticatólico, antievangélico e, moderadamente, anticético. Controlava-se lá, apenas, por estar em casa alheia, mas, para perder as estribeiras, bastavam apenas alguns cutucões. Como bom “picador” costumava também a mostrar os furos dos autores espíritas que utilizava. Contudo, e também diferentemente de Kevin, era impossível que alfinetadas evoluíssem para uma verdadeira “tourada”. A postura era mais a de um feirante a querer ganhar discussões no grito e a depreciar o argumentador, não o argumento (algo proibido na finada STR e no CC, mas liberado no RV). Quando, por fim, reparando que xingar não bastava, tomou uma medida diversiva: mandou-me falar com os próprios autores criticados por mim e (alguns) usados por ele. De nada adiantou oferecer minhas fontes para que lesse e verificasse que não estava de bravata (Kevin o faria, ao menos), só os autores originais seriam autorizados a dar a última palavra sobre os assuntos que escreveram. Sinceramente, hoje isso para mim é uma declaração tácita de derrota, pois se você não é capaz de abalizar uma posição com seus próprios argumentos ou entender o cerne dos que tomou emprestado para defendê-la, então você não passa de um papagaio a repetir o que escuta achando que as compreende. Pode-se até repetir coisas certas, mas a discussão já terá acabado para ti. Só que àquela época não tinha essa visão e, com o orgulho ferido, fui atrás de um desses escritores, no Portal do Espírito (e Williams conseguiu o que queria: tempo).
Se não tiver a menor chance, duele por procuração…
Retornei ao Portal do Espírito, só que dessa vez sem perfil fake, e sim como Cyrix, mesmo. E já cheguei atirando. Fui, primeiramente, atrás de um dos autores usados por Williams: alguém, segundo o raivoso forista, cuja réplica seria “arrasadora” e a quem chamarei de Apostol. Cheguei bem no momento quando ele destroçava um forista evangélico não muito capacitado se valendo justamente da tese da remoção da reencarnação no século VI. Ataquei-o com um dos argumentos que Williams recusou a lidar – a inexistência de um testemunho de época quanto aos fatos alegados – e o fiz de forma nem um pouco educada. Para a minha surpresa, a postura dele foi a de um genuíno “lorde inglês” e solicitou tempo para buscar tais fontes. Para isso, foi falar com outro articulista espírita – que chamarei de Klés – também utilizado por Williams e que, naquele momento, gozava de bem mais projeção que o primeiro, inclusive com uma coluna semanal em jornal de grande circulação em certo estado importante da Federação. Havia, também, outra diferença crucial entre ambos: apenas Klés havia sido criticado em meu portal, até porque apenas ele possuía obras impressas (minhas preferidas), ao passo que Apostol ainda estava se fazendo no meio virtual e como palestrante. As coisas estavam prestes a tomar uma dimensão inesperada.
Algum tempo depois (uma semana ou duas), Apostol me apareceu com a notícia de que Klés publicara em sua coluna um artigo falando sobre meu portal – com direito a link, inclusive -, mais especificamente sobre minha crítica à história de Teodora e o suposto assassinato de 500 prostitutas a seu mando como gatilho para o V Concílio e a supressão da reencarnação do cristianismo. O problema é que no exíguo espaço pré-definido de uma coluna não foi possível dar uma resposta que prestasse. No máximo, diria que foram repetidos os mesmos chavões de um modo um pouco diferente. Por outro lado, foi a maior propaganda gratuita que já recebi, incrementando muito meus acessos por quase uma semana. Redigi uma resposta a Klés no meu portal e encaminhei-lhe o link, a tréplica – se é que posso chamar assim – foi o repasse de um e-mail congratulatório de uma terceira pessoa a sua coluna. Apostol até tentou ser uma ponte entre nós, mas nada de nada adiantou: continuei sem saber quais eram as fontes dele em seu livro, aumentando as suspeitas de que tudo não passava de teoria conspiratória, boato. Não fiquei mais a incomodar Klés e Apostol deixou uma promessa vaga de averiguar os fatos daquele longínquo passado.
Após apresentar o artigo do jornal e mencionar minha troca de correspondência com os dois acima, Williams simplesmente zombou afirmando que isso não era grande coisa, dado que a querela não foi levada aos holofotes, i.e., ao próprio jornal onde Klés publicava. De início, senti-me logrado pelo “aumento da exigência” e com a sensação de estar diante de uma arapuca: levar aquele debate à imprensa de massa podia gerar consequências inesperadas com as quais temia lidar, enquanto ele ficaria ileso. Williams se aproveitou do que viu ser uma demonstração de fraqueza – ainda que ele mesmo não desse o exemplo – e tripudiou em cima com diversas acusações a mim ou à forma como redigia, não abordando argumento meu algum. Respondi a essa série de ataques ad hominem rebaixando-me ao mesmo tom que ele. Não foi um momento do qual me orgulhe de lembrar e saí realmente chamuscado. Minha participação no RV foi, a partir daí, minguando até enfim sumir. Esse fórum trocaria de servidor e nem sei se meu perfil foi migrado. Não fiz nenhuma despedida choramingona como alguns – esses sempre voltam -, simplesmente me desinteressei. Senti-me, também, desmotivado por uma espécie de “falta de corporativismo” por parte dos céticos locais, havendo quem perfilasse com Williams em alguns ataques. Fazer o quê? A briga era minha e aquele era o RV: se quiser bater, se disponha a apanhar, como Kevin descobrira de uma maneira ainda pior. Havia outros “ex-píritas” por lá? Sim, mas podiam ser contados nos dedos de uma só mão e esses poucos já não participavam muito, pois certo processo já estava em andamento: a ascensão das redes sociais.
É uma cilada, Bino!
Pode ter sido coincidência, mas acho que não postaria ativamente em fóruns por muito tempo de qualquer jeito, pois começava o fim de uma era. Os perfis do Orkut acabaram com as páginas pessoais e suas comunidades com os fóruns, drenando boa parte dos antigos foristas, só que não eles não se mudaram para criar algo análogo. Houve uma espécie de “feudalização” das relações virtuais, em que pessoas se agrupam segundo suas afinidades. Não há mais tanto do “balaio de gatos” que eram os fóruns. Em seguida, o Facebook sucedeu ao Orkut e o material discutido se perde rapidamente nas timelines. Além da concorrência, houve uma saturação dos temas. Hoje tanto o RV como o CC discutem mais política que religião ou ceticismo, pois parece que tudo já foi dito sobre esses temas e nenhum teísta ou esotérico vem trazer algo diferente, ao passo que Brasília não se cansa de fornecer “novidades”. No RV a sangria foi até maior, quer por abandono de alguns (meu caso), brigas internas (que levaram uns para o CC), ou a simples expulsão dos que eram radicais até para os padrões do RV. Alguns desses exilados fundaram um fórum alternativo – o Realidade -, que por algum tempo manteve a tradição de “arranca-rabos” até decair, também. O Portal do Espírito, coitado, hoje parece mais uma daquelas cidades fantasmas dos filmes de faroeste. Paralelamente, surgiu em terras lusitanas o Fórum Espírita, que ainda está melhor que o Portal, mas, com o perdão do trocadilho, não possui mesmo “espírito” de seu irmão mais velho.
Hoje encaro um pouco os fóruns como aqueles colégios internos ou escolas militares dos filmes de época: locais onde se faz amigos, inimigos, intrigas e muitas experiências (boas e más), contudo eles são uma fase que, após terminada, você gosta até de relembrar, porém não tem o menor desejo de voltar àquele tempo, principalmente se for no mesmo papel. Houve outras personagens que marcaram, sim, e no sentido positivo do termo. Aqui gostaria de citar seus nicks, e agora uso as versões originais ou apelidos íntimos, pois não há nada de errado em elogiar. Começando pelo Portal do Espírito: Lelê, a mãezona do lugar e uma lembrança de que os kardecistas não têm monopólio do espiritismo; Pedro, pois sei que, apesar do jeito bronco, tem bom coração; Marcelo, outro admirador inusitado do Cyrius/Ethos; Rhea, uma pequena anja adoçando a vida por lá; Aridi, sempre a cair fácil “na pilha” e proporcionando momentos engraçados; Virgílio, que tenha ido em paz e que sua memória permaneça sempre entre nós; Leafar, que teve uma paciência comigo maior do que eu merecia (e uma estranha obsessão em saber no quê eu acreditava); e Douglas, u’a mão que se estendeu a mim, mas, na época, não tinha a menor condição de aceitar. Do lado do RV, minhas lembranças para Apodman, com uma trajetória de vida com pontos em comum com a minha; Anna, sempre cheia de simpatia e conhecimentos sobre teoria da evolução (por onde andas?); FlavioChecker, todo zen e grande moderado daquela selva; Res, que sempre dizia o que ninguém tinha coragem; o “Gavião que caminha”, com sua retórica que dava gosto de ouvir mesmo quando não concordava com nada; Vitor, que marcou com os embates sobrevivência X psi; e Botanico, um espírita que se fez respeitar pelos céticos sem ser babaca (muito pelo contrário).
Às vezes, da mais dura perda e da mais amarga lição, se originam as chaves para a próxima etapa!
As Flame Wars acabaram discretamente e terminei sem nenhuma condecoração ou algo para me orgulhar. Muito pelo contrário, olhando para trás sinto vergonha de mim mesmo, de como me portei, seja com os mais fortes ou com os mais fracos. A Internet tem esse poder de liberar nossos piores instintos, mas ela é apenas uma tentação. Nossas tendências é que nos fazem ceder a ela. Contudo, esses embates me legaram um caso de estudo. Era um assunto que minha intuição dizia ter certeza de que eu estava certo e os espíritas redondamente enganados. Com o orgulho ferido, pus mãos à obra numa tarefa que seria um marco na trajetória do portal.
Um Caso de Amor e Intrigas
Antigo (1954), esquecido, não muito fiel aos fatos, cheio de licenças poéticas,
e ainda assim toda a fibra de Teodora está lá.
As brigas nos fóruns legaram um mistério para averiguar: a suposta supressão da reencarnação do cristianismo pelo casal de monarcas Justiniano e Teodora, no século VI. Em meus contatos com os evangélicos, nos tempos de faculdade, já havia reparado a irritação deles quando versículos de seu livro sagrado eram utilizados pelos espíritas de forma “heterodoxa”, apesar de terem feito algo parecido com o Antigo Testamento, há dois mil anos. Posteriormente, com meus próprios estudos, percebi que não há como a sério a ideia de que os primeiríssimos cristãos fossem reencarnacionistas, visto que possuíam uma grande urgência escatológica: para eles o mundo, tal como conheciam, acabaria ainda na geração deles, o Reino de Deus seria instaurado sobre a Terra e o Mal eliminado. Bem, assim aparece o recado em Marcos, Mateus, um pouco em Lucas, e nas (genuínas) cartas de Paulo. Ainda que houvesse, em alguns casos, retorno à carne nos moldes de certos pagãos antigos ou dos espíritas modernos, em pouco tempo não deveria haver mais nenhum. Os evangélicos estão certos nesse ponto, embora continuem tendo de explicar porque o fim não veio ainda.
Mesmo com uma constatação simples, convencer nem sempre é fácil, em especial aqueles que chamo de Barnabés, i.e., os que defendem que a ortodoxia cristã seria uma fraude história e o e espiritismo a verdadeira expressão da mensagem de Jesus e dos apóstolos. Faço isso em homenagem à Epístola de Barnabé, um pseudo-epígrafe cristão que pretendia fazer algo parecido, só que com o judaísmo. Um ponto de partida para a tarefa foi a única referência dada por autores espíritas a um cronista da época: Procópio de Cesareia. Segundo esses autores (dentre eles, Klés) esse historiador teria relatado que Teodora fora filha de um criador de ursos, usados para a diversão do populacho no “pão e circo” de Constantinopla. Até aí nada de mais ou inverídico. O problema surge quando se atribui a ela – sem uma menção direta a Procópio – a execução de 500 prostitutas da capital, antigas colegas de ofício. Teodora teria ficado com medo de expiar por esse crime reencarnando como escrava e, então, fez a cabeça de seu marido para que convocasse um Concílio cuja principal pauta era banir a doutrina da reencarnação da Igreja, junto seu principal postulante: o teólogo do século III Orígenes. E assim foi feito.
Tirando a origem do meretrício, nada disso tem base documental. Aliás, Procópio relatava algo diferente: Teodora teria trancafiado 500 prostitutas num convento chamado Arrependimento. Algumas teriam morrido ao tentar escapar de lá, descendo pelas muralhas. E só. Contudo, isso dá margem a divagações como as hipóteses de que as internas eram maltratadas, mortas longe dos olhos e ouvidos da capital, ou simplesmente preferiam uma vida de incertezas a um noviciado forçado. De qualquer forma, não havia nenhuma vinculação disso com o II Concílio de Constantinopla e nem poderia: Teodora morrera em 548 d.C., cinco anos antes. Como até mesmo encontrei espírita apelando com a tese de Teodora ter agido como obsessora do marido na erraticidade, não houve outro jeito senão buscar quais foram as reais causas do referido Concílio e da suposta condenação de Orígenes.
Encontrei várias referências para fontes primárias sobre o assunto se encontram no artigo Orígenes e Origenismo. O problema, como quem acessá-lo poderá perceber, é que ele faz parte da Catholic Encyclopedia, uma fonte totalmente confessional. Alguns autores espiritualistas já a utilizaram assim mesmo, quando ela parecia lhes corroborar, mas isso não seria argumento aceitável por muitos, não importando quão boa fosse a qualidade do referido artigo (e é bom). Portanto, decidi me debruçar diretamente sobre as fontes indicadas, começando pela mais extensa delas: A Vida dos Monges da Palestina, de Cirilo de Citópolis. Comprei o livro e fiquei tentado simplesmente a escanear e disponibilizar os capítulos de A Vida de São Saba. O problema era que estava tudo em inglês e um dos murmúrios constantes dos apologistas que evitam “olhar para fora da caverna” era justamente a ignorância desse idioma (ou de qualquer outro). Arregacei as mangas e me pus a um trabalho paciente de tradução. Como já havia falado de Procópio e a questão de Teodora em um artigo do portal, criei um novo: Contendas do Deserto, em alusão às batalhas ideológicas (e físicas) entre os monastérios do deserto palestino do século VI.
Foi interessante ler sobre a instalação dos primeiros origenistas bem embaixo das barbas de Saba em um dos mosteiros por ele fundado – o Nova Laura – e sua súbita expansão após sua morte (532 d.C.). Seu biógrafo se esmerou por realçar suas qualidades pias, contudo pode ter equivocadamente passado a impressão de frouxidão. Cirilo até relata que Saba apresentara sua preocupação com o origenistas (e outros grupos heréticos) diretamente ao imperador Justiniano, que aparentemente nada fez contras os insubmissos na ocasião. Curiosamente, Saba peitou a imperatriz Teodora recusando-lhe dar uma bênção para engravidar.
“Não me lembro de nada disso nos clássicos greco-latinos“
Somente após os origenistas palestinos partirem para a uma campanha de conquista de “corações e mentes” nos mosteiros da região é os ortodoxos buscaram apoio em Constantinopla, desencadeando o Sínodo de 543 d.C., que não passou de uma condenação protocolar. Os dez anos seguintes marcaram o apogeu do partido origenista da região, quando conseguiram manobrar massas para encurralar os ortodoxos em poucos redutos ainda fiéis. Apenas quando surgiu uma nova e firme liderança, aliada a um cisma entre os origenistas – com muitos deles retornando à Igreja – é que se iniciou a reação da ortodoxia. Por fim, outra vez a questão foi levada à capital, aproveitando-se do V Concílio, em pleno andamento. O origenismo fora condenado mais uma vez e, agora, com uma ação militar que desalojou os insubmissos de Nova Laura.
Li uma versão fatos um pouco diferente em outro cronista – Liberato de Cartago, também apresentado pelo mesmo artigo da Catholic Encyclopedia. Nela, o pedido de condenação a Orígenes em 543 não teria ido diretamente dos clérigos palestinos para Constantinopla, mas teve um intermediário – Pelágio, o “embaixador” da cúria romana em Constantinopla – que viu numa condenação a Orígenes a oportunidade para se vingar de um bispo da Ásia Menor: Teodoro Ascidas. Esse, além de origenista, também era monofisita, uma heresia cristológica que incomodava Roma. Pelágio conseguiu o que queria, mas Ascidas deu respondeu à altura: como o sínodo de 543 abriu precedente para anatematizações póstumas, ele sugeriu ao imperador que condenasse as obras de três teólogos acusados de nestorianismo (um deles antigo opositor de Orígenes) e assim angariar a simpatia dos monofisitas (cuja cristologia era incompatível com a dos nestorianos) e fazê-los voltar à comunhão com a Igreja. Com o auxílio de ninguém menos que a imperatriz Teodora (também monofisista), Ascida conseguiu seu intento. Contudo, apesar de realmente, sob um olhar posterior, terem flertado com o nestorianismo, esses teólogos morreram em paz com a Igreja; o que levou à rejeição do decreto imperial por muitos bispos. Começava a Questão dos Três Capítulos, a principal razão para a convocação do II Concílio de Constantinopla.
Ainda traduzi um pequeno trecho do tratado Em Defesa dos Três Capítulos, do bispo norte-africano Facundo de Hermiano, que, junto com Liberato, demonstra que a Igreja Latina não se importava nem um pouco com os origenistas, aliás, até se irritou com a confusão por eles provocada.
Apenas com esse (imenso) material, já era possível dar ao público uma boa ideia do que aconteceu tanto em Bizâncio como na Palestina do século VI, só que isso não era o bastante. Precisava destrinchar como a situação chegara àquele estado de contendas. Já havia descrito alguns vislumbres portal, baseado numa tese redigida em inglês pela Igreja Copta do Egito intitulada Deans of The School of Alexandria, cujo segundo volume trata de Orígenes. Decidi aprofundar um pouco mais a questão indo atrás das fontes por eles utilizadas e um nome muito citado era o de Henri Crouzel, um jesuíta francês e professor na Pontífica Universidade Gregoriana de Roma. Crouzel fez, de fato, uma pesquisa ampla e profunda, mas é preciso tomar certo cuidado com ele. Uma coisa é reconhecer que Orígenes tomou liberdades numa época em que a ortodoxia cristã ainda não estava plenamente definida em determinados pontos, outra é achar que tais liberdades ainda poderiam ser tidas por razoáveis numa época posterior. Houve um Pai da Igreja chamado Pânfilo, do começo do século IV, que procurou o mais possível apresentar o pensamento de Orígenes como ainda válido para a ortodoxia da época de Niceia e o que não fosse aproveitável seria obra da corrupção de seus escritos por hereges ou de uma leitura enviesada deles. Pânfilo fez escola nos séculos IV e V, legando dedicados defensores da memória de Orígenes, como Rufino, e Crouzel (falecido em 2003) é seu mais recente herdeiro. Procurando um estudo um pouco, digamos, menos “entusiasta”, deparei-me com The Origenist Controversy, Elizabeth Ann Clark. Já sabia, pela Catholic Encyclopedia, que houve duas “crises origenistas”: a segunda é a que os escritores espiritualistas adoram apontar com “a supressão da reencarnação no cristianismo”, sem o menor conhecimento do assunto, a primeira é geralmente desconsiderada por eles. A Catholic Encyclopedia a apresentava como um difuso embate entre teólogos dos séculos IV e V; precisava, portanto, aprofundar-me mais sobre esse período.
Foi uma frustração inicial seguida por grata e impressionante surpresa. Não encontrei nada acerca do Orígenes de carne e osso que viveu na Alexandria do século III, nem sobre os conflitos na Palestina do século VI. Ainda que não fossem da proposta do livro, mereceriam uma abordagem maior. Por outro lado, devo reconhecer que The Origenist Controversy é uma obra acadêmica feita para acadêmicos, ou ao menos estudantes; ou seja, gente que já conhecia algo do assunto, para os quais ela preferiu não repetir pormenores que já esperava que soubessem. Isso permitiu que ela focasse no período que vai do século IV a meados do V e daí que veio minha surpresa: não imaginava que daí viriam tão ricas discussões a respeito do velho Alexandrino. Para ser sincero, pouco se debateu acerca do Orígenes histórico, mas de como ele era lembrado por suas especulações numa época de consolidação do cristianismo como religião oficial. Assim, todos que procuravam estar do “lado certo” do pensamento religioso acusavam os adversários de alguma heresia; e um lugar comum se tornou a acusação de ser “origenista”, pouco importando se Orígenes concordaria com o acusado. Mal comparando, seria como alguém nos anos 60 do século XX ser tachado de comunistas por apenas demonstrar alguma preocupação com a questão social. Do outro lado, estavam os partidários de Orígenes tentando explicar que os verdadeiros hereges faziam mal uso do seu teólogo preferido. Chegou-se ao cúmulo de um mesmo texto seu poder ser usado tanto contra como a favor de sua reputação. No final, excetuando Pelágio e seus seguidores, nenhum dos antiorigenistas adversários conseguiu dar uma resposta à altura da dele para a questão do Problema Mal: o porquê de um Deus Bom ter criado um mundo de sofrimento. O melhor que se conseguiu foi a doutrina do “pecado original” de Agostinho de Hipona, que, de certa forma, é um leve origenismo, como observou a autora. Enfim, o II Concílio de Constantinopla empalidece diante da efervescência intelectual (e política) de 150 anos antes.
“Go, Theodora! Go!“
Percebendo a complexidade do tema “Orígenes e Origenismo”, decidi fazer toda uma revisão profunda em torno do tema. Aproveitando-me de um câmbio monetário um pouco mais favorável, maltratei meu cartão de crédito como nunca em livrarias virtuais – como Amazon, Abe Books e Alibris – atrás muitas vezes de livros raros e/ou esgotados, cuja existência soube por meio de obras mais acessíveis. No rol das aquisições estavam exemplares da série Origeniana de colóquios, traduções inglesas de Orígenes mais recentes, confiáveis e comentadas que as já de domínio público da Internet, estudos sobre a teologia de Orígenes, obras de bizantinólogos famosos do passado (como J. B. Bury) e da atualidade (James A. S. Evans), biografias de Teodora, fontes primárias disponíveis apenas em livros físicos (como Crônicas, de João Malalas) e estudos sobre a evolução do cristianismo, em particular sobre o período do século IV ao VI. De posse de todo esse material, propus-me ao seguinte plano de desenvolvimento:
- Um sumário das teses de Orígenes, em especial sua teodiceia e soteriologia;
- O surgimento do “Orígenes lembrado” nos séculos IV e V que, no meio do cabo de guerra entre detratores e apoiadores, começava a se distanciar do indivíduo de carne e osso que andou pela Alexandria do século III;
- O superorigenismo dos místicos do deserto dos séculos V e VI, codificado no desconhecido e impressionante Livro de Hierotheos. Sinceramente, depois de ler suas páginas tenho certeza de que os espíritas não têm a menor, a mais ínfima noção do que estava em jogo ao se lamentarem pelo V Concílio;
- Uma apresentação do meio ambiente onde o origenismo e suas crias se evoluíram: o império romano em progressiva cristianização declínio, até a queda de sua metade ocidental ante os bárbaros;
- O pano de fundo em que a segunda crise origenista: o reinado de Justiniano no Oriente e sua tentativa de restauração de um império ao redor de toda orla do Mediterrâneo, unido espiritualmente por uma fé única e monolítica;
- Uma apresentação à imperatriz Teodora. Sinceramente, uma das maiores calúnias já feitas pelos movimentos espiritualistas foi contra esta pessoa. Já vi discretos alertas para que se interrompessem as acusações sem base, mas ainda estou por encontrar um sincero mea culpa por parte deles;
- Apresentação das fontes primárias da questão da prostituição e do tráfico de escravas sexuais no governo de Justiniano;
- Exposição das análises feitas por historiadores modernos (Paolo Cesaretti, J.A.S. Evans, etc.) sobre as duas questões acima e a conclusão: Justiniano e Teodora tentaram inicialmente extinguir o tráfico sexual por bem – comprando a liberdade das cativas e indenizando seus “credores” -, para depois, vendo que essa abordagem não surtira efeito, combater ferozmente traficantes e rufiões, ao passo que tentaram proteger as prostitutas, ainda que não da melhor forma;
- Apresentação das fontes primárias para o V Concílio Ecumênico. Exceção feita para o imenso relato de Cirilo de Citópolis, que é apenas descrito no corpo do texto e posto integralmente em um dos apêndices;
- Exposição de análises de historiadores (e de um espiritualista que estudou ao menos um mínimo) sobre o desenrolar dos fatos do V Concílio;
- Análise pormenorizada dos anátemas do sínodo de 543 d.C. e os do V Concílio para averiguar suas reais relações com as ideias originais de Orígenes ou com as de seus continuadores;
- Averiguação do real impacto da condenação de Orígenes no V Concílio na História do cristianismo. Resposta: nenhuma, pois o origenismo já não fazia mais parte da corrente principal dos cristianismo havia tempos;
O estudo foi publicado de forma folhetinesca, o que deu tempo para uma resposta espírita. Embora eu tenha visto uma considerável e positiva mudança de opinião, velhas práticas entre os autores espíritas persistiam, com nenhuma literatura especializada no Alexandrino sequer, muito menos a leitura direta de Orígenes ou de cronistas bizantinos. O próprio biógrafo de Teodora usado – Carlo Maria Franzero – estava mal traduzido em sua edição brasileira. Adicionei mais um capítulo rebatendo esses comentários e decidi incluir mais outros dois que foram frutos de um amadurecimento ocorrido durante a pesquisa. Primeiramente, houve a constatação de que Orígenes, Teodora e o V Concílio compunham, na verdade, um “mito auxiliar” para complementar outro mito, o de que o cristianismo primevo era uma espécie de protoespiritualismo, isso, sim, fundamental a muitos espíritas. A necessidade de mais um mito advinha de uma pergunta quase natural provocada pelo primeiro: “se a reencarnação estava entre os ensinamentos do cristianismo, por que foi abandonada?” Um curso alternativo da História – em que Orígenes chegasse inconteste ao século VI, Teodora agisse como louca sanguinária e a anatematização da preexistência fosse a questão central do V Concílio – viria bem a calhar.
– Oh, “Justi”, não sabia que você era tão galante!
– É que andei lendo Ovídio fim de semana passado, querida.
O primeiro acréscimo girava em torno de um ensaio do historiador britânico Eric Hobsbawm (“Dentro e fora da História“) sobre diversas tentativas de políticos, ideólogos e religiosos de moldar o passado à própria imagem e semelhança. Sua maior sacada está aqui resumida:
O passado legitima. O passado fornece um pano de fundo mais glorioso para um presente que não tem muito o que comemorar.
Uma síntese que cai como uma luva para as mistificações em torno do V Concílio. O segundo “extra” foi uma busca pelo real passado do cristianismo, pelo que as primeiras gerações de cristãos realmente ansiavam. Ajudou-me nisso o “maior biblista do mundo” (aspas, pois são palavras de Klés) Bart Ehrman, que em seu livro Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millennium (sem tradução em português, creio), expôs o caráter apocalíptico da mensagem evangélica, que me convenceu. Sei que existem outras visões quanto ao Jesus Histórico, mas mesmo esses pesquisadores alternativos (como os do Jesus Seminar) concordam que João Batista, Paulo de Tarso e a comunidade marcana foram apocalipsistas. Aí que está o X da questão: se os primeiros cristãos acreditavam que o cosmos, tal como o conhecemos, chegaria a um término em pouco tempo com a instauração do Reino de Deus, então a reencarnação perdia a razão de ser. Foi esse contexto histórico que me propus a resumir no segundo extra.
Encerrei o estudo falando sucintamente do destino do Império Romano do Oriente no longo prazo, com o sonho de Justiniano de um novo Mare Nostrum destruído por sucessivas invasões, bem como o de uma Igreja unida sob o Patriarcado de Constantinopla. Nesse caso, o movimento monofisita prosseguiu firme e forte na Síria e no Egito, onde se beneficiou imensamente da conquista islâmica. Contudo seus libertadores terminaram por asfixiar lentamente os antigos protegidos de Teodora, em razão de um fluxo contínuo de conversões ao Islã. Se por um lado esses dois sonhos se extinguiram como o fogo de uma vela, também terminou gradualmente o pesadelo Orígenes. Redescoberto no Renascimento, suas apologias e comentários remanescentes o reabilitaram no seio da Igreja Católica, que hoje apenas deixa de lado seu papel de “teólogo investigativo”. Muito de sua obra se foi, com certeza, mas o resta ainda é impressionante. Lê-lo é como visitar um sítio de ruínas da Antiga Roma: tem-se a sensação paradoxal de se estar diante de uma grandeza ao mesmo tempo perdida e perene.
No total, foram quase três anos de trabalho exclusivos sobre o tema (novembro de 2007 a setembro de 2010), do quais não desenvolvi nenhum outro grande assunto no portal. Pelo contrário: esse artigo é que serviu de base para o aperfeiçoamento dele. Foi algo que me encheu de orgulho por ter feito o que ninguém da intelligentsia espírita se dispusera até então, aliás, eu acabara por realizar um serviço que deveria ter sido deles. Meu portal, que antes apenas catalogava e listava erros, pela primeira vez estava agregando conhecimento aos que o liam. Não chegou a ser uma pesquisa genuína – afinal nada de original foi apresentado sobre o tema -, mas senti que quase esgotara o material disponível sobre a questão. De certa forma, ficou faltando uma coisa: descobrir de onde surgiu o boato, algo um tanto difícil sem a colaboração dos espíritas que o repassaram, e não querem me ver nem pintado de ouro.
– Que cara é essa, meu bem?
– Tive um sonho horrível: parecia que, num futuro distante, uma seita falaria mal de ti…
– Ah, querido! Você sabe como as seitas são: sempre querendo se apropriar do passado alheio.
– Hehe, tens razão.
Por mais que neguem, o boato desmascarado em Contendas do Deserto é um equivalente espírita do Homem de Piltdown dos biólogos. Não chegaram a abalar, respectivamente, os pilares do espiritismo (como gostariam muitos cristãos fundamentalistas), nem os da Teoria da Evolução (idem), porém demonstram o quanto de credulidade podem existir entre os “adeptos da razão”. A única diferença a apontar é que os próprios cientistas detectaram a fraude de Piltdown, ao passo que para o V Concílio e a reencarnação foi necessária a intervenção de um “detrator”. Nenhum biólogo mais tenta salvar as aparências daquele fóssil forjado, já quanto à história do V Concílio Ecumênico…
Esse trabalho me encheu de orgulho, o que, no fim das contas, não me foi muito benéfico.
Uma Descida ao Abismo
– Say my name!
– Cyrix.
– Goddamn right!
Durante o período de redação de Contendas do Deserto, encerraram-se as atividades do GeoCities, que fora incapaz de concorrer com o formato blog e outras modalidades de hospedagem. Migrei para o domínio “6te.net” e adotei o livro de visitas da DreamBook, o que foi muito bom, pois tinha agora um endereço mais enxuto e uma caixa de comentários eficiente. Paralelamente, afastei-me dos fóruns, postando uma ou outra trivialidade ocasionalmente em intervalos espaçados. Produzi até um boletim de atualizações numa área reservada do fórum Portal do Espírito para postagens “do contra”. Salvo uma forista, ninguém demonstrou maiores interesses. Contudo “não demonstrar” não significa “não possuir”, pois encontrava meus textos pela Internet afora. Um caso curioso se deu no fórum Ex-testemunhas de Jeová quando um forista, que, por sinal, havia conhecido do Portal do Espírito, usou meus textos sobre Orígenes, admitindo que era de “um site contrario ao espiritismo“, porém sem dar nenhum link para a fonte. Citava-me porque concordava parcialmente com ele, apesar de nossas diferenças, mas por que não me referenciava? Talvez para não aumentar o número de referências ao meu portal em motores de busca, ou uma simples referência seria como abrir uma “Caixa de Pandora” cheia de questionamentos embaraçosos. Senti-me como o vilão de Harry Potter, Voldemort: “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”. Só de provocação, cadastrei-me apenas para postar os links omitidos.
Finda a publicação de Contendas…, comecei a colher os frutos de um serviço bem feito. Era progressivamente mais citado na rede social Orkut que, com suas comunidades, havia substituído boa parte dos fóruns independentes e decidi acelerar o processo. Dessa vez, porém, não me envolveria em discussões propriamente ditas. Repetindo o que fizera no Ex-testemunhas…, buscava por discussões onde houvesse alguma menção a Teodora e Orígenes, lançava nelas o link para minha criação e deixava os contendores locais se digladiarem. Assuntos como “Teoria da Beleza” e vida extraterrena também eram bem prolíficos em acirradas flame wars.
– Mais um artigo pronto!
– Yeah, Mr. Cyrix, science!
Por essa época, tomei conhecimento que, pouco tempo antes, Klés lançara um livro com uma coletânea dos artigos de sua coluna. A crítica ao meu portal era logo uma das primeiras. Se eu já desfrutara de meus 15 minutos de fama anos antes em terras mineiras, agora podia já sonhar com alguma nota de rodapé na trajetória do espiritismo brasileiro. Aos poucos, o vaticínio que fizeram sobre meu pai se cumpria em mim, ainda que de uma forma bem torta. De certa forma, ajudei-o comprando um exemplar do livro e lhe reservando um lugar de destaque em minha estante, aberto justamente na página de meu interesse. Era estranho, mas esse reconhecimento a contragosto afagava meu ego como nunca e me desconfortava ao mesmo tempo. Algo como almejar a fama de um gangster: que me quisessem mal, contanto que falassem de mim.
No mundo real, paguei com frieza o desdém que recebi julguei receber nos meus tempos estudantis: qualquer pedido de ajuda dos familiares ainda envolvidos com o espiritismo era simplesmente desconsiderado se envolvesse assuntos dos seus respectivos centros. Mesmo a jantares beneficentes – com direito a churrasco e show de mágica – recusei-me atender. Havia particularmente um parente adepto de métodos coercitivos de “motivação” – uma semelhança flagrante entre religiosos e mafiosos – e, irritado com minhas negativas sucessivas, passou a me intimidar com insinuações de que uma temporada no umbral me purgaria de meu egoísmo. Engoli sapo uma ou duas vezes até que respondi com veemência: “Com certeza seria muito bom, pois assim ficaria livre e longe de hipócritas com você!” Ainda bem que havia mais pessoas por perto para acalmar os ânimos na ocasião.
I’m not in danger. I am the danger!
Meu campo de atuação até ensaiou se expandir um pouco, ocorrendo, inclusive, um convite de V. para fazer parte de um grupo de estudo da “hipótese sobrevivência”; algo que, em tempos modernos, representaria melhor o espírito (com o perdão do trocadilho) dos investigadores da segunda metade do século XIX e do começo do XX. Aproveito aqui a oportunidade para tecer minha desculpa a V. por não ter sido lá um membro dos mais atuantes. Embora eu reconheça a importância da iniciativa, simplesmente era uma área que não me empolgava. Cheguei a colaborar com a revisão da tradução de uma obra do final do século XIX – um estudo sobre a médium Leonora Piper -, mas minhas energias estavam focadas em projetos mais pessoais. Basicamente, ambicionava transformar Contendas do Deserto em livro. Não seria tarefa fácil, pois teria de situar o leitor no contexto do problema do revisionismo histórico do espiritualismo moderno e daí mostrar o que aconteceu de forma didática. A “didática” era o X da questão, afinal, não podia simplesmente tascar as inúmeras citações de pesquisadores e fontes primárias tal como fizera na internet. O objetivo não era mais esmagar apologistas e, sim, instruir e seduzir o leitor com uma história contada com minhas próprias palavras. Decidir o que deixar, o que tirar não era nada fácil, mas ainda assim continuava motivado: era uma chance que vislumbrava de sair de trás da tela e assumir meu nome verdadeiro, além de minha descrença, em grande estilo. Bem diferente do que meramente colocar em meu cartão de visitas o link para um portal especializado em catalogar erros e bancar o chato. As coisas não saíram exatamente como planejado, contudo.
Um baque veio numa reunião em família. Conversa vai, conversa vem, caímos no “assunto” remoção da reencarnação na Bíblia pela Igreja Católica. Sim, espíritas, new agers e ascensionados também possuem seus carolas, a se esquecem de que outros assuntos e, principalmente, outras vivências religiosas existem. O boato, daquela vez, mudara de Concílio, retrocedendo uns duzentos anos para o de Niceia. No caso, a remoção da reencarnação teria se dado pela escolha de um cânon livre de referências a ela, algo ao estilo O Código da Vinci. Tentei me conter, mas chegou a hora me que não suportei mais ouvir tamanha quantidade de abobrinhas e perguntei se alguém lera realmente as atas de tal Concílio. A composição do cânon sequer foi assunto tratado lá! Aproveitando a oportunidade de eu ter me manifestado, aquele parente com quem discutira antes voltou a provocar, insinuando não querer eu mais do que bancar um sabichão metido a historiador. “Antes isso que um ignorante como você” e comecei a relatar diversas das imposturas espíritas que havia catalogado ao longo dos anos, tudo cobrando explicações que ele era incapaz de fornecer. E jamais forneceria, afinal a discussão foi interrompida quando uma série de gemidos oriundos de um canto da sala chamou a atenção dos presentes, que, em seguida, lançaram seus olhares de reprovação em mim.
Eu tinha acabado de fazer alguém chorar.
Tentei, em vão, retratar-me, e, por fim fui, convidado a me retirar. Voltei para casa mais silencioso que um túmulo. Por dentro, ressoavam em meu ouvido o riso de meu desafeto e o choro de alguém que poderia muito bem ter dormido sem esse freak show. Naquela noite, o primeiro me incomodou mais; ao fim de uma semana, era o último. Era uma experiência que não os fóruns não podiam dar: a existência de alguém do outro lado da tela. Enquanto matutava sobre isso, eis que em minha caixa de comentários aparece Jaime – o subalterno de Kevin – cobrando que eu escrevesse algo sobre Elias e sua (suposta) reencarnação em João Batista. Dei-lhe como resposta algo que nas redes sociais de hoje poderia até ser chamado de “textão”, mas cujo efeito foi simplesmente o de lhe irritar. Ele insistia ad nauseam numa resposta binária para a questão, sem se mancar de que não falava com um crente. Para meu desgosto, um pequeno e infrutífero debate surgiu, sendo que no meio dele aparece uma curta mensagem de “Douglas” me atacando. Seria aquele mesmo Douglas que quis me ajudar durante minha “infiltração” no “Portal do Espírito”? Não conhecia outro, o fato de os dois estarem juntos não seria mera coincidência. Então, por que estava tão diferente? O que Kevin e seus asseclas fizeram com ele? O que eu fiz a ele?
A conversa acabou por pura saturação, como tantos outros embates sem mediação. Não julgo que fui mal, mas estava arrasado. Era esse tipo de gente que eu atraía: hipócritas querendo aumentar seu valor diminuindo o dos que lhes cercam, nanicos ambicionando parecerem mais altos me usando como escada e ex-empáticos transformados em inimigos? E quanto a quem eu repeli … ou magoei – mesmo não nunca tendo visto a vermelhidão em seus olhos -, que ganhei com isso? Por que Falhas do Espiritismo deveria continuar a existir, se tinha caído a ficha de resultados tão chifrins?
Por alguns dias, tirei o portal do ar. Precisava encontrar ao menos algumas respostas.
O Livro que Ninguém lerá
Afinal, o que é o sucesso? Sucesso para quem?
Foi uma espécie de crise existencial em menor escala. Pretendi bastante com o portal e, como uma facada no ego, não tive o retorno esperado. Sem contar que ele me tomava tempo, sim, o único ativo neste mundo que é irrecuperável; desperdiçado com algo que não me dava dinheiro, nem contatos (por uma postura minha), e que poderia ser gasto no convívio com os meus, aperfeiçoando-me profissionalmente, ou, simplesmente, em bons e saborosos momentos de ócio. Tentei me desintoxicar à maneira que diversos tabagistas tentam largar o cigarro: abstinência radical o quanto puder, porém sem direito a adesivos de nicotina. Tal como muitos deles, falhei miseravelmente. Não eram só os pensamentos a respeito dos artigos que ainda queria escrever, mas também uma reflexão sobre os já escritos: eram rasos, sem nada acrescentar além de apontar erros. A única exceção era Contendas do Deserto, mas mesmo ele não me agradava mais tanto assim. Seu crescimento um tanto desordenado, as misturas de pedantismo e falas coloquiais, além do fato de, no afã de ser exaustivo no tema, ser capaz de exaurir quem o lesse; davam-me vontade de refazê-lo do zero. Era, em parte, a proposta do livro que planejava escrever, mas se agora já não tinha tanta motivação, constatava que não tinha condições para redigir algo que prestasse. Seria uma versão cética dos mesmos sujeitos que criticava.
– Suas notas foram horríveis!
– Graças ao senhor, mestre!
Eu precisava me reinventar se não quisesse perecer ante à malícia externa e ao inferno interior que eu mesmo criei. Começando pela casca, abandonei o formato “puro html” do “6te.net” – que já estava irritando com seus anúncios e pop-ups – e comecei a migrar meu conteúdo para um blog do WordPress. Escolhi um tema elegante e enxuto, pagando por um domínio “.org” para possuir um link mais compacto e me ver livre de propagandas. Enfim, o novo “Falhas do Espiritismo” tinha de ser agradável à visão do leitor. Como lema, subintitulei-o com os dizeres “entender, desconstruir, reconstruir“. Sim, confesso que o plagiei de uma animação japonesa – outro escapismo meu – e não me envergonho: tinha tudo a ver com a nova proposta, embora o contexto fosse outro.
Primeiramente, entender por que uma falha, equívoco, engano, etc. ocorre. Todo erro tem uma história para contar, as motivações de seus personagens, o ponto de partida que tiveram, as bifurcações com que se depararam e, claro, as escolhas que tomaram. A escola nos dá a ilusão de um progresso linear do conhecimento quando, na verdade, aquilo que chamamos de Ciência deveria ser apelidado de “cemitério de ideias”: uma imensidão de equívocos oriundos de uma eterna “bateção” de cabeças. Kardec estava preso no século XIX, então o que era tido por científico naquela época? Quais eram os principais programas de pesquisa, suas dúvidas e escolas concorrentes? Simplesmente apontar-lhe erros é não deixar ao cidadão do Segundo Império Francês a oportunidade de falar por si mesmo.
– Por que não consigo tocar esta passagem?
– Você está com tanto medo de errar que se esquece de se divertir.
Existe, também, o atemporal fator humano. Os que dão ao Codificador o atributo de “Bom Senso Encarnado” mal têm ideia do quão há de enganoso nesse título. Podemos ser tudo, menos genuínos animais racionais capazes de discernimento imparcial. A Emoção e a Intuição são as verdadeiras molas mestras de nossa existência. Aquilo que chamamos de “racionalidade” é apenas uma ferramenta a serviço dessas duas; que pode usada para arranjar comida, traçar estratégias com o inimigo, alcançar status num grupo, codificar uma nova doutrina ou escrever um blog. Enfim, a razão serve para descobrir a melhor maneira de dar vazão a nossas fortíssimas paixões. Kardec, Léon Denis, “Klés” e “Kevin”, nenhum deles esteve imune à própria condição humana que lhes antolha a vista, dá falsas heurísticas, muitas convicções e poucas provas. Tudo metodicamente explicado e justificado. Entender por que caímos nessas armadilhas com o devido cuidado para não tropeçar em outras é um outro desafio do “entendimento”.
Já desconstruir é um pouco mais complicado. Isso poderia até ser um sinônimo pós-moderno para “crítica construtiva”, se não fosse o problema de inexistir tal coisa. Afinal de contas, toda crítica visa destruir. Por outro lado há destruições e destruições: pode-se usar dinamite para explodir uma construção ou retirar-lhe tijolo por tijolo. Isso implicou, para mim, em revisar cada um dos artigos. Como não gostaria mais de ferir corações sensíveis, reduzi bastante o grau de ironia e sarcasmo (para não dizer deboche, mesmo) que um dia aqui abundou. Alguns comentários continuam a apontar a presença de um tom que lhes desagrada. A seus autores, respondo que já foi bem pior.
– Professor, é o seguinte: todos os livros que concordam com a Codificação são desnecessários, os que discordam são horríveis, então…
– Pode parar, rapaz! Na última vez que alguém falou algo assim, começou a Idade das Trevas.
Por outro lado, não tenho a menor intenção de proteger egos sensíveis. Até porque seria muita pretensão querer estar de bem com todo mundo, ainda mais quando credibilidades são postas em xeque, reputações questionadas, falta de solidez nos argumentos evidenciada e, principalmente, as “vacas sagradas” de muitos são transformadas em churrasco. Por mais que eu tente separar as pessoas de suas obras, é difícil alguém não se ressentir. Ou que um terceiro tome suas dores e tente justiçá-lo. Em ambos os casos estão envolvidos sentimentos de vergonha e humilhação, quer contra si mesmo ou contra a comunidade à qual pertence.
Já me apoquentei um bocado com tal situação, mas hoje estou mais tranquilo e até me divirto um pouco. Reparei, muitas vezes, que suas reações não são contra mim, mas direcionadas a uma visão distorcida que tem a meu respeito. Uma caricatura mais fácil de responder, carente dos pontos mais espinhosos apontados pelo original, cujas críticas objetivas sequer são ao menos explicitamente enunciadas em diversas ocasiões. Assim é tão mais fácil…
– Nosso grão-mestre-articulista-mor vai acabar contigo!
– Quando ele aprender a interpretar textos, quem sabe…
Se apenas ficasse refutando textos como na época dos fóruns, jamais partiria para reconstruir. Para tanto, posso dizer que Contendas do Deserto me ajudou, não exatamente com seu material, mas como modelo. No princípio, não fazia coisas muito diferentes das que encontrei no fatídico O Império das Seitas: catalogar erros e zombar. Com os próprios pressupostos que assumi acima, decidi partir em busca das histórias por trás desses erros – em que pé estava a ciência vitoriana, o que significava ser cristão no tempo dos apóstolos, a razão de certas opções equivocadas serem tão sedutoras, etc. – para depois analisar porque é tentador se apropriar de um passado que nunca existiu numa forma de autoafirmação. Acredito que, não só para o espiritismo como para qualquer filosofia ou ideologia, será mais producente buscar uma identidade própria mirando no futuro, no lugar de sair atrás de uma mítica “Era de Ouro” ou “Paraíso Perdido”.
Em seguida, cada artigo, quando possível, deve vir com uma explanação sobre o que é agora considerado o certo e por quê. Parece simples, mas nem sempre o é, afinal, pela nossa educação escolar, temos a ilusão de um desenvolvimento linear da ciência, numa acumulação de conhecimento sempre crescente. Pouco se fala dos “becos sem saída” ou das ideias estapafúrdias outrora respeitáveis, embora constituam grossa parte do que a humanidade já pensou. Enfim, é preciso “contar histórias” de forma simples sem perder o rigor, o que acrescenta mais um desafio a ser vencido. O resultado final são artigos, em média, bem maiores, uma redação melhor elaborada e um intervalo bem mais longo entre um artigo concluído e outro. Sem contar que brindo meus leitores com uma bibliografia bem mais profunda e farta ao final de cada artigo, para que possam prosseguir com seus próprios pés.
– Me disseram que, quando o espiritismo concorda com a Ciência, só fica demonstrado o quanto ele é demais. Quando discorda, é porque a Ciência é algo falível.
– Já entendi porque você voltou aqui para aprender os passos básicos de Ciência.
Paulatinamente, os resultados começaram a surgir na forma de retornos positivos de meus leitores. Poucos, mas ainda assim significativos comentários interessados – como o seu – indicam que meu novo direcionamento ao menos é melhor que o anterior, pois nos tempos do GeoCities eles praticamente inexistiam: ou eram críticas iradas de espíritas ressentidos ou elogios de fanáticos cristãos “tradicionais” e céticos militantes. Houve, inclusive algumas propostas de parcerias, locais de hospedagem e até financiamento para publicações. Alguns declinei polidamente, outros (desculpem) sequer respondi. A todos digo, agora, que Falhas do Espiritismo é um projeto pessoal e intransferível: é minha forma de vivenciar a religiosidade e desejo plena liberdade nisso, mesmo que implique em tocá-lo sozinho. Não é por mal, nem por esnobismo, apenas prefiro as coisas assim. Há outras formas pelas quais posso ser ajudado, sem que eu me sinta afetado por riscos de ingerências.
– Venha comigo, professor. Com minha voz e sua música seremos uma dupla imbatível.
– Desculpe, querida, mas acho que isso vai dar ruim. Muito ruim.
Infelizmente, em uma coisa vou te decepcionar: jamais irei muito a fundo na tarefa de reconstruir. Justamente por minha postura de “lobo solitário”, o trabalho se torna gigantesco demais para mim, e nem Kardec fez tudo sozinho. O máximo que pretendi fazer é um pouco de terraplanagem e fincar alguns alicerces para os que viessem a auxiliar os que realmente estivesse a fim. Só isso já consome tanto de meu “tempo inútil” (como dizia o utilíssimo Kevin) que desisti de redigir meu ambicioso livro. Contudo, ainda sonho que ele seja concluído, não por mim exatamente, mas por todos aqueles leitores a quem eu conseguir cativar. Quero que ninguém passe por aqui ileso, que sentimentos de amor e ódio permeiem a todos, nunca a indiferença. Assim terei marcado seus corações de alguma forma. Tal como na parábola do semeador, sei que a maioria das sementes que eu lançar em nada dará, porém cruzo os dedos desejoso em viver o suficiente para topar pelas andanças da vida com algumas das que vingarão.
“Humm, conheço essa ruiva de algum lugar…”
Também sei que muitas delas serão ervas daninhas loucas para me envenenar lentamente. Fazer o quê: ao arrancar ídolos de pedestais é óbvio que seus adoradores iriam gemer, ainda mais quando caem em cima deles. Não há muito o que fazer quanto a eles. Por outro lado, aposto que muitos dos “irados” na verdade estão apenas perplexos, que, uma vez passado o impacto inicial, podem começar a me dar razão em alguns pontos após investigar por conta própria, tentando contra-atacar. Conto com a colaboração inclusive deles para que a proposta de Falhas do Espiritismo se torne uma grande obra coletiva e fique maior que qualquer coisa já imaginada desde quando aqui comecei.
Enfim, quando as luzes se apagarem e o pano descer em meio a uma cacofonia de vaias, eu gostaria de poder ouvir ao fundo os lábios que verdadeiramente me entenderam:
“Bravo! Bravo!“
Assim, creio que metade ou mais de minha vida não terá sido vão. A torcida contra é grande, mas estou esperançoso porque, graças à nova abordagem tomada, não preciso vencer. Basta apenas existir e persistir, pois a intransigência dos fanáticos idólatras só fará o tempo jogar a meu favor.
Quatorze Anos depois
Sinto que falta algo, você também não? Não teria chegado até aqui se simplesmente minha motivação fosse externa, uma vontade de ver o Espiritismo mais dinâmico. Eu poderia simplesmente reconhecer que ele perdeu o bonde da história e seguir em frente. Não me é tão fácil. Sinceramente, acho que ainda sou assombrado pelas mensagens da segunda parte de O Céu e o Inferno ou das regiões umbralinas da literatura posterior. A distorção apropriação que o espiritismo fez da terceira Lei de Newton nunca me desceu pela goela. O destino dos suicidas – com direito a uma região trevosa especial para eles onde são tratados como os piores dos criminosos em vez de pessoas necessitadas de ajuda – é simplesmente horrorizante. Enfim, a solução para o Problema do Mal talvez seja o que mais me desagrade, no fundo.
Talvez eu não quisesse aceitar a solução espírita sem que alguém me desse garantias de não estar sendo enganado. Vendo o majestoso edifício kardecista ter tantas rachaduras, ficaria aliviado se o que não consigo averiguar – sua soteriologia – fosse comprometido pelos buracos do “Consenso Universal dos Espíritos”. Ironicamente, as propaladas pesquisas de Ian Stevenson não indicam a existência de um “karma retributivo” ou de um vale dos suicidas. Óbvio que ninguém mete o dedo nessas discrepâncias dentro do movimento enquanto enaltecem seus “casos sugestivos de reencarnação”.
Uma hora acordo desses pesadelos e inspeciono esses ecos do passado, só para constatar que, em meu íntimo, eu sou e sempre serei espírita. Por mais que tente renegá-lo, por mais que me esforce para que me chamem de detrator, essa é minha identidade. Não é possível arrancá-la de mim. Só me resta reelaborá-la.
Aconteça o que acontecer, sempre me lembrarei de onde vim. Com direito a um sorriso nostálgico.
Nesse meio tempo, procurei novos ambientes, fiz novos amigos e, com o passar dos anos, a presença do Espiritismo ficou um tanto tênue em meu cotidiano e só não desapareceu de vez pelos parentes espíritas que possuo, mas com os quais já não convivo tanto. Um mundo se abriu, de certa forma, pois conheci novas maneiras de vivenciar a fé; particularmente a busca pela transcendência, algo desconhecido em Centros Espíritas (pelo menos nos que adentrei) e que embasbaca até este descrente que vos fala. Também foi com eles que passei a compreender a mitologia cristã, que é fundamental para a compreensão da História do Ocidente. Jamais aprenderia isso com livros preocupados em (autodefensivamente) demolir esses mitos em vez de explicá-los a leigos.
E, ainda, sou muito grato a um segmento dos cristãos, pois partiram dele as mãos que se estenderam quando eu mais precisava. Se foi uma ajuda de interesse missionário, que seja. Os religiosos que conheci antes deles achavam ser de minha única responsabilidade me reerguer, ainda que estivesse com as pernas quebradas. Jamais esquecerei ambas as atitudes.
Conheci entre eles indivíduos sofridos, cada um a sua maneira. Muitos deles só não fizeram besteira pela fé que adotaram. Não me admira que, quando a viram ser vilipendiada, acusada de inculta e mentirosa; tenham ficado refratários a qualquer ideia vinda de grupos externos, ainda mais de um que lhes queira tomar o lugar como “verdadeiro cristianismo”. Embora o material deste portal não lhes sirva completamente, sou de pleno acordo que utilizem a parte que lhe adequar em sua própria defesa apologética, afinal eles terão sido as vítimas.
Minha ajuda talvez nem seja tão mais necessária assim. Eles estão alcançando seus irmãos norte-americanos e já desenvolveram seu próprio núcleo de elite, sendo capazes de se defender intelectualmente em grande parte sozinhos. A arraia miúda é que ainda apanha em discussões virtuais, o que dá aos apologistas da ortodoxia espírita uma falsa sensação de força. Às vezes, pergunto-me se possuo um prazer sádico em destronar presunçosos. Talvez eu e Kevin tenhamos mais em comum do que imaginemos, incluindo nosso jeito de extravasar o excesso de testosterona. A questão é como sublimar isso?
Por outro lado, também sei que vítimas e algozes têm o estranho hábito de trocar constantemente de posições. É tudo uma questão de quem tem a oportunidade de estar com o poder. Nessa hora, meu passado me chamará e hei de enfrentar meus novos companheiros. Essa briga já dura mais de 150 anos e acho que as atuais gerações sequer lembram quem começou o quê.
Nesse ínterim, casei com uma mulher não espírita e isso me fez bem, entre outras coisas, ao me afastar um pouco de discussões familiares. A religiosidade dela não me incomoda, enquanto mantenho um respeitoso agnosticismo “não praticante”. Se eu me relacionaria com uma espírita … bem, estaria mentindo se dissesse que não rolaram alguns flertes em meus tempo de mocidade. Por sorte saí antes que algum ficasse sério demais. Minhas divergências com o movimento seriam uma pedrinha no sapato a corroer lentamente qualquer possível relacionamento afetivo. Reconheço que minha calmaria atual pode ser ilusória. Como um lago plácido, porém cheio de lodo no fundo, basta uma pedra bem arremessada para fazer toda a sujeira aflorar à superfície. Sabe, parte de mim quer “chutar o balde”, assumir meu nome verdadeiro e encarar as consequências, dentre elas a rejeição definitiva e (talvez) recíproca de metade de minha família. A outra quer “deixar quieto”, sublimar e apaziguar.
Difícil. Em mais de uma década fiz churrasco das “vacas sagradas” do Espiritismo. A maioria dos espíritas – os seguros de sua fé – simplesmente tocará sua vida sem me importunar. Já os ressentidos não irão perdoar. Para esses, deixar-me impune será um crime maior que o de se suicidar. Bem, se é para enxergar um lado bom, então de alguma forma para eles sou importante, antes o ódio que a indiferença.
Agora, a você, Fred, ou a qualquer um que tenha aguentado até aqui ouvindo meus lamentos, é chegada a hora de nos despedirmos.
Sei que é um tanto abrupto, mas espero que compreenda que estou sendo chamado com certa urgência.
Afinal, o ciclo da vida está para completar mais uma volta. Tenho fé (fé cega, mesmo) nesta nova geração. Que eles sejam os próximos trabalhadores da última hora e saibamos lhes ceder o lugar.
Réquiem
A distância traz a saudade, nunca o esquecimento.
Se você ainda existir de alguma forma, fique tranquilo…
…, pois Cyrix está em casa!
Adeus, professor!
[topo]
O Rival Cooptado (Rascunho)
A Pregação de João Batista, por Domenico Ghirlandaio
Índice
Anunciando o Fim do Mundo. Tal como o Conhecemos.
Antes de começar a análise do relacionamento entre João e Jesus, convém saber um pouco a respeito do contexto histórico e social em que viveram.
O Clamor à Retidão
A tradição judaica fala que Iahweh estabeleceu uma Aliança com o povo hebreu: seria seu único Deus, zeloso e protetor, em troca de sua devoção, que deveria ser expressa na obediência à Lei que lhes enviara. Quando os dois reinos hebreus caíram, um após o outro, sob o domínio do Império Babilônico e boa parte do povo foi levado em cativeiro para o centro do Império, esse entendimento ficou em xeque. Haveria seu deus lhes abandonado? Eram os deuses do conquistador mais fortes? Por essa época um adveio um “movimento profético”, com nomes como Jeremias e Isaías, que levou a uma saída incomum para uma situação dramática que sempre afligia os povos conquistados: não fora Iahweh que os abandonou, nem ele era menor; foi o povo hebreu que lhe dera as costas e, por isso, perdeu sua
proteção. O sofrimento cessaria por intervenção divina tão logo o povo retornasse à Lei que lhes fora dada.
Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. Falai benignamente a Jerusalém, e bradai-lhe que já a sua milícia é acabada, que a sua iniquidade está expiada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor, por todos os seus pecados. Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus. Todo o vale será exaltado, e todo o monte e todo o outeiro será abatido; e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará. E a glória do Senhor se manifestará, e toda a carne juntamente a verá, pois a boca do Senhor o disse. Uma voz diz: Clama; e alguém disse: Que hei de clamar? Toda a carne é erva e toda a sua beleza como a flor do campo. Seca-se a erva, e cai a flor, soprando nela o Espírito do Senhor. Na verdade o povo é erva. Seca-se a erva, e cai a flor, porém a palavra de nosso Deus subsiste eternamente.
Seca-se a erva, e cai a flor, porém a palavra de nosso Deus subsiste eternamente.
Tu, ó Sião, que anuncias boas novas, sobe a um monte alto. Tu, ó Jerusalém, que anuncias boas novas, levanta a tua voz fortemente; levanta-a, não temas, e dize às cidades de Judá: Eis aqui está o vosso Deus.
Eis que o Senhor DEUS virá com poder e seu braço dominará por ele; eis que o seu galardão está com ele, e o seu salário diante da sua face.
Como pastor apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos, e os levará no seu regaço; as que amamentam guiará suavemente.Is 40:1-11
O Filho do Homem
A visão de Daniel das quatro bestas. Por Hans Holbien, o Jovem.
Mesmo com o retorno do cativeiro, os problemas de Israel não cessaram efetivamente, muito menos retornou a uma suposta “Era de Ouro” como nos tempos de Davi e Salomão. Durante a maior parte do período do “Segundo Templo”, não foi plenamente independente, submetendo-se à suserania de sucessivos povos imperiais: persas, macedônios, selêucidas e, por fim, romanos. A abordagem profética em, digamos, “colocar a culpa na vítima” começou a desagradar algumas mentes pensantes judaicas. Nos últimos séculos antes de Cristo, surgiu um tipo de literatura conhecido como “apocalíptica” (do grego apokalypsis: “revelação”) que tinha como linha mestra a existência de um planejamento secreto divino. Por motivos não muito claros, Iahweh haveria permitido a disseminação do Mal para no momento devido esmagá-lo de forma retumbante, seguindo-se a instauração do “Reino de Deus” sobre a Terra. O pessimismo reinante seria um indício de que o acontecimento era breve, mas, até lá, as pessoas continuariam a dever seguir a Lei para estarem do “lado certo”. Para instaurar e governar o “Reino de Deus”, entraria em cena uma figura mítica conhecida como o “Filho do Homem”. No Antigo Testamento, essa expressão com seu sentido escatológico só aparece no apagar das luzes de sua literatura, no livro de Daniel:
No primeiro ano de Belsazar, rei de babilônia, teve Daniel um sonho e visões da sua cabeça quando estava na sua cama; escreveu logo o sonho, e relatou a suma das coisas.
Falou Daniel, e disse: Eu estava olhando na minha visão da noite, e eis que os quatro ventos do céu agitavam o mar grande.
E quatro animais grandes, diferentes uns dos outros, subiam do mar.
O primeiro era como leão, e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, e foi levantado da terra, e posto em pé como um homem, e foi-lhe dado um coração de homem.
Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou de um lado, tendo na boca três costelas entre os seus dentes; e foi-lhe dito assim: Levanta-te, devora muita carne.
Depois disto, eu continuei olhando, e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha quatro asas de ave nas suas costas; tinha também este animal quatro cabeças, e foi-lhe dado domínio.
Depois disto eu continuei olhando nas visões da noite, e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha dentes grandes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres.
Estando eu a considerar os chifres, eis que, entre eles subiu outro chifre pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava grandes coisas.
Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou; a sua veste era branca como a neve, e o cabelo da sua cabeça como a pura lã; e seu trono era de chamas de fogo, e as suas rodas de fogo ardente.
Um rio de fogo emanava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e milhões de milhões assistiam diante dele; assentou-se o juízo, e abriram-se os livros.
Então estive olhando, por causa da voz das grandes palavras que o chifre proferia; estive olhando até que o animal foi morto, e o seu corpo desfeito, e entregue para ser queimado pelo fogo;
E, quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia foi-lhes prolongada a vida até certo espaço de tempo.
Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele.
E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído.
Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi abatido dentro do corpo, e as visões da minha cabeça me perturbaram.
Cheguei-me a um dos que estavam perto, e pedi-lhe a verdade acerca de tudo isto. E ele me disse, e fez-me saber a interpretação das coisas.
Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que se levantarão da terra.Daniel 7:1-17
O número 4 é recorrente nesse livro, refletindo por vezes o padrão “três mais um” encontrado em outros livros da Bíblia – como Amós (cap. 1 e 2) – em que, após três repetições de algo, uma quarta assinala um tipo de mudança. No caso, as bestas apresentadas na visão representam os “quatro reinos” (cf. Dn 2) que sucessivamente dominaram Israel: o primeiro, a Babilônia, é fácil de identificar, assim como último e penúltimo – a Grécia, precedida pela Pérsia. A identidade do segundo ainda é discutida (talvez o Império Medo, antecessor do Persa), mas certo é que o fim do quarto reino seria marcado pelo começo da soberania eterna do Filho do Homem e o fim do sofrimento para o povo de Deus.
A figura do “Filho do Homem” prossegue no período intertestamentário, notadamente no I Livro de Enoque, em que também é chamado de “Messias” (Ungido) e apresentado como um ser angélico ou, pelo menos, mais que um mero humano.
E, naquela hora, o Filho do Homem era mencionado diante do Senhor dos Espíritos, e o seu Nome era referido diante do Ancião. Antes que fossem criados o sol e os signos, e antes que fossem feitas as estrelas do céu, o seu Nome era pronunciado diante do Senhor dos Espíritos.(…)
Naqueles dias, os reis da terra e os poderosos que possuem esta terra ficarão com o semblante abatido por causa das obras das suas mãos. no dia da sua angústia e privação não poderão salvar a alma. Eu os entregarei então nas mãos do meu Escolhido; eles arderão como palha ao fogo na presença dos Justos e submergirão como chumbo n’água diante dos Santos, e não se encontrará mais sinal deles. No dia da sua tribulação, estabelecer-se-á a paz sobre a terra; cairão na presença deles e não mais poderão levantar-se. Ninguém então se apresentará para tomá-los pela mão e reerguê-los, porque eles negaram o Senhor dos Espíritos e o seu Ungido. Louvado seja o Nome do Senhor dos Espíritos.
cap. 58:3,5-7. Fonte: [Tricca, vol. III, pp. 143]
(…)Grande alegria reinava entre elas [as criaturas fiéis a Deus], e bendiziam, louvavam, glorificavam e rejubilavam-se, porque o Nome daquele Filho do Homem lhes foi desvelado. Ele assentou-se sobre o trono da sua Glória; e então foi confiada a Ele, o Filho do Homem, a condução do Julgamento, e fez com que desaparecessem da terra os pecadores e os perversos do mundo. Eles serão postos em grilhões e encerrados no lugar comum da sua destruição. todas as suas obras desaparecerão da terra. De agora em diante, o corruptível deixará de existir, pois aquele Filho do Homem apareceu e assentou-se sobre o trono da sua Glória, e diante da sua face todo o mal se dissipa e desaparece. E a voz daquele Filho do Homem se fará ouvir e será poderosa diante do Senhor dos Espíritos. Esta foi a terceira alegoria de Enoque.
cap. 69:14-6. Fonte: [Tricca, vol. III, pp. 160]
Embora a expressão irmã “Filho de Deus” pudesse se referir a um membro da corte angélica de Javé [Jó 1:6, 2:1; 38:7], curiosamente, ela aparece na literatura hebraica clássica muitas vezes com um sentido quase oposto: o de um humano comum em relação íntima com o Divino. Era, por exemplo, o título dado aos reis hebreus quando ascendiam ao trono [cf Is 9:6; Sl 2:7; 89:27], baseado numa promessa dada a Davi de seus herdeiros serem considerados “filhos” de Deus, a começar por Salomão [2 Sm 7:14; 1 Cr 17:13]. A palavra “filho” também é usada de forma coletiva para ser referir a Israel como um todo, quer no singular [Ex 4:22; Os 11:1; Jr 31:20] e no plural [Os 2:1; Is 1:2; Jr 3:19]. Desenvolveu-se, também, a noção de que, dentre os Filhos de Deus, um “Messias terreno” emergiria. Duas vertentes dessa figura surgiram: a primeira era o Messias Davídico, o futuro rei de Israel e descendente de Davi que expulsaria os invasores estrangeiros de Israel e os subjugaria. Nos Salmos de Salomão, um documento do primeiro século antes da Era Comum, encontra-se uma resposta judia ao domínio romano e uma esperança da vinda desse novo regente de uma antiga linhagem:
Senhor, tu escolheste Davi rei sobre Israel, e prometeste-lhe acerca de sua descendência para sempre, de que seu reino nunca iria te desapontar.
Mas devido aos nossos pecados, pecadores levantaram-se sobre nós, nos atacaram e nos expulsaram. Àqueles aos quais não deste promessa com violência nos roubaram, e não glorificaram o teu precioso nome.
Com glória puseram um rei por causa de seus proeminentes; desolaram o trono de Davi como preço da arrogância.
(. . . )
O inimigo arrogantemente e com indiferença agiu, e seu coração era indiferente com relação ao nosso Deus.
Assim ele fez em Jerusalém todas as coisas que os gentios fizeram nas cidades de seus domínios.
E os assenhorearam os filhos da aliança no meio dos povos promíscuos. Não havia entre eles um que fizesse misericórdia e verdade em Jerusalém.
Aqueles que amam as sinagogas das santos fugirão deles como os pássaros fogem de seus ninhos.
Eles vagueiam nos desertos para salvar suas almas do mal. A alma salva deles era preciosa aos olhos do exílio.
Por toda a terra foi a dispersão deles causada pelos ímpios, por que o céu reteve a chuva de cair sobre a terra.
Fontes foram interrompidas, desde os permanentes dos abismos até aqueles nas altas montanhas, pois não havia um dentre eles que praticasse a justiça e o juízo.
Desde o governante deles até o menor do povo estavam em toda espécie de pecado; o rei em transgressão da lei, o juiz em desobediência, e o povo em pecado.
Veja, Senhor, e levanta-lhes o rei deles, filho de Davi, para reinar sobre Israel, seu servo, no tempo que escolheste, Deus.
Guarneceste-o com o poder para destruir os governantes injustos, para purificar Jerusalém dos gentios que a pisaram para destruir.
(. . .)
E ele será um rei justo sobre eles, instruído por Deus. Não haverá injustiça no meio deles nos seus dias, pois todos serão santos, e seu rei será ungido do Senhor.
Porém ele não confiará no cavalo, nem no cavaleiro e nem no arco, nem multiplicará seu ouro e sua prata para a guerra, nem a muitas nações estreitará as esperanças para dia de guerra.
O próprio Senhor é o seu rei, a esperança do forte. Mediante a esperança em Deus mostrará misericórdia a todas as nações que estiverem diante dele em temor.
Pois ele golpeará a terra com a palavra de sua boca para sempre, ele abençoará o povo do Senhor com sabedoria e júbilo.
E ele próprio será purificado de pecados, a fim de governar um grande povo, para lançar ao opróbrio os governantes e remover os pecadores pelo poder da palavra.
E ele não enfraquecerá naqueles dias, graças a seu Deus, pois Deus o fará poderoso pelo Espírito Santo e sábio pelo conselho do entendimento, com poder e justiça.
Cap. XVII, vv. 4-6, 13-22 e 32-7
Vale reparar que, ao contrário do violento Messias angélico de Enoque, o dos salmos salomônicos seria pacífico, afinal cumpriria sua missão sem derramar sangue, o que não significa que inexistissem versões guerreiras para o próximo sucessor de Davi. A segunda vertente de Messias humano era a do Aarônico, um novo sumo sacerdote que restauraria o Templo. Uma figura que já aparecia de forma discreta na Bíblia ao lado do Messias Davídico:
Então ele disse: Estes são os dois ungidos, que estão diante do Senhor de toda a terra.
Zc 4:14E fala-lhe, dizendo: Assim diz o SENHOR dos Exércitos: Eis aqui o homem cujo nome é RENOVO; ele brotará do seu lugar, e edificará o templo do SENHOR. Ele mesmo edificará o templo do Senhor, e ele levará a glória; assentar-se-á no seu trono e dominará, e será sacerdote no seu trono, e conselho de paz haverá entre ambos os ofícios. E estas coroas serão para Helém, e para Tobias, e para Jedaías, e para Hem, filho de Sofonias, como um memorial no templo do Senhor.
Idem 6:12-14
A tese de dois Messias reaparece em apócrifos intertestamentários como Testamento dos Doze Patriarcas e em Qumran, assinalando uma certa popularidade da ideia. No primeiro, o leitor é apresentado a um Messias sacerdotal oriundo de Levi e outro, com papel de realeza, de Judá:
Uma vez castigados pelo Senhor, ele suscitará para o sacerdócio um novo sacerdote: a Ele serão reveladas todas as palavras do Senhor. Ele impedirá, em muitas oportunidades, que sobrevenha um julgamento justo sobre a terra. Eis que a sua estrela brilhará no céu, semelhantemente à de um rei. A luz da sabedoria resplandecerá como o sol ao meio-dia. Será glorificado no mundo inteiro. Ele brilhará como o sol sobre a terra, dissipará todas as sombras que nela existem, e por toda parte reinará paz.
Nos seus dias, os próprios céus rejubilar-se-ão; a terra se alegrará; e exultarão as nuvens. Naqueles dias, o reconhecimento do Senhor derramar-se-á sobre a terra, como a água nos mares. Com Ele alegrar-se-ão igualmente os Anjos da Glória que estão na presença do Senhor. Os céus abrir-se-ão. E do Santuário da Glória descerá sobre Ele a santidade, numa voz paternal, como a de Abraão e Isaac.
A Glória do Altíssimo ser-lhe-á adjudicada, e o espírito do entendimento repousará n’Ele, da mesma forma como o espírito da santidade [na água]. Ele transmitirá realmente aos seus descendentes a majestade do Senhor, para sempre. Todavia, não será sucedido por ninguém, até os tempos mais distantes. No seu reino, os pagãos sobre a terra crescerão em conhecimentos, iluminados pela graça do Senhor. No seu sacerdócio cessarão os pecados. Não haverá mais o mal da desordem e da anarquia. E os justos encontrarão n’Ele a paz.
Ele mesmo abrirá as portas do Paraíso, afastará a espada que foi brandida contra Adão, e aos santos dará de comer da Árvore da Vida; sobre eles repousará o Espírito da santidade. Ele acorrentará Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os espíritos maus. O Senhor alegrar-se-á com os seus filhos, e seus bem-amados gozarão do seu beneplácito eterno, e, com isso, exultarão Abraão, Isaac e Jacó; eu também me alegrarei, e todos os santos cantarão de júbilo.
Testamento de Levi, cap. XVIII. [Tricca]
Então sairá de Jacó uma estrela que vos trará a paz. Surgirá um Homem da minha estirpe que será como o sol da justiça; Ele habitará entre os filhos dos homens em mansidão e justiça, e nenhum pecado será encontrado n’Ele. Eis que os céus se abrem sobre Ele, derramando o espírito e a bênção santa do Pai.
Ele mesmo derramará sobre vós o espírito da graça; vós sereis seus filhos em verdade, e seguireis os seus Mandamentos, da manhã à noite. Este é o Rebento do Deus altíssimo, fonte da vida para toda carne.
Então luzirá o cetro da minha realeza; o Rebento florescerá da vossa raiz. D’Ele procederá um cetro justo para os pagãos, para julgar e salvar a todos que invocam o Senhor.
Testamento de Judá, cap. XXIV. [Idem]
Um dos mais antigos Manuscritos do Mar Morto, o “Preceito da Comunidade” (ou 1QS), já trazia uma rápida menção aos dois Messias e no pequeno documento 4QFlorilegium (ou 4Q174), o Messias Aarônico é chamado de “intérprete da Lei” e novamente ladeado pelo regente davídico.
Quanto à propriedade dos homens da santidade que caminha na perfeição, não será unida às dos homens da falsidade que não purificaram suas vidas por não se terem separado da iniquidade e não terem andado pelo caminho da perfeição . Eles não deverão afastar-se de nenhuma das recomendações da Lei para caminhar na obstinação de seus corações, mas serão regidos pelos preceitos primitivos nos quais os homens da Comunidade for instruídos em primeiro lugar, até que venham o Profeta e o Messias de Aarão e Israel.
1QS, IX. Fonte: [Vermes, p. 133].
O Senhor te diz que Ele te construirá uma Casa (II Sm 7:11). Farei permanecer tua linhagem (7:12). Estabelecerei [para sempre] o trono do teu reinado (7:13). [Serei] para ele um pai e ele será para mim um filho (7:14). Este é o Reino de Davi que surgirá com o Intérprete da Lei [para governar] em Sião [no final] dos tempos. Como está escrito: Erguerei a tenda desmoronada de Davi (Am 9:11). Isto quer dizer: a tenda desmoronada de Davi é aquele que surgirá para salvar Israel.
4QFlor. Fonte: [Idem, pp. 389-90].
A ideia de separação entre as funções sacerdotal e régia entre dois Messias não é tão estranha assim caso se observe que, na história do antigo Israel, as funções de sumo-sacerdote e de rei geralmente andavam separadas, pois seus titulares seriam oriundos, respectivamente, da casa de Levi e de Davi. As coisas começaram a mudar a partir do rei asmoneu Aristóbolo (105 – 103 a.C.), o primeiro a acumular os dois papéis e cuja linhagem produziu outros nessa situação. É possível então, que a hipótese de um único Messias humano tenha começado a deixar de ser tabu, mas a comunidade de Qumran ainda impunha uma condição:
Nenhum dos homens que ingressam na Nova Aliança na terra de Damasco, e que novamente a traem e se separam da fonte das águas da Vida, será contado no Conselho dos povos ou sequer inscrito em seu Livro, desde o dia da reunião do Mestre da Comunidade até a vinda do Messias, procedente de Aarão e Israel.
Preceito de Damasco, IX. Fonte: [Vermes, p. 153].
Ou seja, ele deveria portar as duas ascendências previstas. Nada disso era necessário para o Messias angélico e Qumran também produziu sua versão dele. No um tanto fragmentado manuscrito 11QMelch (11Q13), o antigo rei-sacerdote da cidade de Salém Melquisedeque – a quem o patriarca Abraão deu um décimo de um butim de guerra (Gn 14:17-20) – é retratado como um poderoso juiz escatológico celestial, com atributos muito semelhantes ao Filho do Homem de I Enoque.
(. . .)
E isto [ocorrerá] na primeira semana do Jubileu que segue os nove Jubileus. E o Dia da Reconciliação é o f[inal] do décimo [Ju]bileu, quando será feita a expiação por todos os filhos de [El/Luz] e o os homens da parte de Mel[qui]sedeque. [E] há um estatuto a respeito deles [para for]necer-lhes suas recompensas. Porque este é o momento do Ano da Graça para Melquisedeque. [E el]e, por meio de sua força, julgará os santos de Deus, exercendo o julgamento como está escrito a seu respeito nos Salmos de Davi, que disse: “Elohim tomou o seu lugar no conselho divino; ele julga em meio aos deuses” (Sl 82:1). E é a respeito dele que ele disse: “(Que a assembléia dos povos) volte às 11 alturas acima deles; El (deus) julgará os povos” (Sl 7:7-8). Quanto ao que Ele d[isse: “Até quando] julgareis injustamente e sereis parciais com relação aos ímpios? Selah” (Sl 82:2), sua interpretação diz respeito a Satanás e aos espíritos de seu partido [que] se rebelaram ao abandonar os preceitos de Deus para (…) E Melquisedeque exercerá a vingança dos julgamentos de Deus (…) e ele [os] arrancará [da mão de] Satanás e da mão de todos os esp[íritos de ] seu [partido]. E todos os “deuses [da justiça“] virão em seu auxílio [para] participar da des[truição] de Satanás. E “a altura é (…)” todos os filhos de Deus (…) este (…) Este é o Dia da [Paz/Salvação] a respeito do qual [Deus] falou [através de Isa]ías, profeta, que disse: “[Quão] graciosos, sobre os montes, são os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz boas novas e anuncia a salvação, e que diz a Sião: Ó teu Elohim [reina]” (Is 52:7). Sua interpretação: “as montanhas são os profetas (…) e o mensageiro é o Ungindo do espírito, a respeito de quem Dan[iel] disse: [Até que um ungido, um príncipe (Dn 9:25)] (…) [E aquele que traz] boas [novas], que anuncia a [salvação]“: é a respeito dele que está escrito (…) “[Para confortar todos os que estão enlutados, para conceder àqueles que estão enlutados em Sião]” (Is 61:2-3). Para consolar [“os que estão enlutados“: sua interpretação], para fazê-los entender todas as eras dos t[empos] (…) Em verdade (…) abandonarão Satanás (…) pelos julgamento[s] de Deus, com está escrito a respeito dele, “[que diz a Sião]: o teu Elohim reina (Is 52:7). Sião é (…)“], aqueles que sustentam a Aliança, que deixam de caminhar [pelo] caminho dos povos. E “teu Elohim” é [Melquisedeque (?), que os salvará da ] mão de Satanás. Quanto ao que Ele disse: “Então no [sétimo] m[ê]s farás vibrar [o toque] da trombeta” (Lv 35:9) (…)
11QMelch. Fonte: [Vermes, pp. 396-7].
Dado que Abraão pagou dízimo a Melquisedeque, o patriarca do judaísmo se colocou abaixo dele. Por essa lógica, Levi, seu descendente, também era inferior ao sacerdote de Salém. Contudo, apenas com o material contido em Gênese, Melquisedeque ainda seria mero humano. A chave para sua promoção a juiz parece estar no salmo 110 (ou 109), mais especificamente no versículo quarto: “Jurou o Senhor, e não se arrependerá: tu és um sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque“. Uma leitura mais apressada deixa de perceber uma certa ambiguidade nesse versículo: afinal o sacerdócio do Messias seria eterno simplesmente porque Iavé o determinou ou como uma consequência da indicação à ordem de Melquisedeque, que daria esse atributo? Houve quem preferisse a segunda opção e desenvolveu-se um tradição acerca de de Melquisedeque que o colocava no mesmo patamar de Enoque, como humano feito imortal (cf. [Flusser, cap. XII]). Um documento que chegou até nós – o apócrifo II Enoque – relata o nascimento miraculoso de Melquiseque a partir do cadáver da esposa de Nir, irmão de Noé. A criança foi concebida sem conjunção carnal e se desenvolveu aceleradamente no ventre da mãe, que se surpreendeu ao se descobrir em gestação avançada, e após o nascimento, a ponto de já ser encontrada por Noé e Nir declarando louvores a Deus. Pouco depois foi levada pelo anjo Gabriel para o Jardim do Éden a fim de ser poupada do dilúvio iminente e de lá sairia para ser “ o cabeça
dos sacerdotes em outra geração”. Não há como saber se os sectários de Qumran tinham conhecimento dessa lenda. Por outro lado, a existência de uma tradição escatológica para Melquisedeque, aliada a histórias lhe dando uma origem sobrenatural, lança uma luz sobre o enigmático versículo de Hb 7:3
Sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.
* * *
Após esta um tanto longa exposição acerca da figura Filho do Homem/Messias, tem-se um mosaico de expectativas diferentes quanto a seus atributos:
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- Humano ou sobre-humano: ele poderia ser uma pessoa comum com qualidades excepcionais e, possivelmente, poderes especiais pela graça divina ou alguém que teve sua natureza transformada para algo comparável ou superior à dos anjos;
- Pacífico ou guerreiro: o Messias poderia libertar Israel e subjugar os pagãos por meio de um magnetismo pessoal ou pela força das armas;
- Um ou dois Messias: as funções de sacerdote e rei poderiam ser desempenhadas por indivíduos diferentes ou por incorporadas em um único;
- Uma ou duas vindas: esta é capciosa, mas uma consequência indireta do item anterior, pois o Messias poderia vir desempenhar uma das funções num momento e só depois assumir a outra. Há um testemunho disso nos Salmos de Salomão 18:5, pois o texto grego (único remanescente) admite duplo entendimento:
Para que Deus purifique Israel para o dia da misericórdia, para o dia da eleição quando trará de volta/apresentará Seu ungido.
Ao menos no judaísmo helênico, isso poderia fundamentar uma dupla vinda do Messias.
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Ainda há uma característica do Messias por discutir: sua chegada teria ou não um aviso prévio? E quem seria o mensageiro. Essa discussão merece um tópico próprio.
Anunciando o Reino de Deus
Eram os deuses Era Javé astronauta?
Mais de uma vez, na literatura hebraica, apareceu a tese de que a subjugação dos opressores de Israel não viria sem um aviso prévio, e esse anúncio poderia vir pelos lábios de alguma figura notável. Judas Macabeu, um dos líderes da revolta contra o domínio selêucida, teria levantado o moral de seus companheiros de luta, após um revés, graças a um estimulante sonho:
Tendo, pois, armado a cada um deles, menos com a segurança dos escudos e das lanças do que com o conforto das boas palavras, referiu-lhes ainda um sonho digno de fé, uma espécie de visão, que os alegrou a todos. Ora, este foi o espetáculo que lhe coube apreciar: Onias, que tinha sido sumo sacerdote, homem honesto e bom, modesto no trato e de caráter manso, expressando-se convenientemente no falar, e desde a infância exercitado em todas as práticas da virtude, estava com as mãos estendidas, intercedendo por toda a comunidade dos judeus. Apareceu a seguir, da mesma forma, uma homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a palavra, disse Onias: “Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e por toda a cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus.” Estendendo, por sua vez, a mão direita, Jeremias entregou a Judas uma espada de ouro, pronunciando estas palavras enquanto a entregava: “Recebe esta espada, presente de Deus, por meio da qual esmagarás teus adversários!”
II Mac 15:11-6
Os livros de Macabeus visam ser épicos históricos permeados por teologia, já a literatura apocalíptica aumentou a experiência do retorno dos profetas para muito mais que uma visão em sonho, rompendo a barreira da morte:
Assim diz o Senhor a Esdras:
“Diga a meu povo que lhe darei o reino de Jerusalém, que eu teria dado a Israel. Também tomarei sua glória para mim e darei estes tabernáculos eternos, que preparei para ele. Terá a árvore da vida para uma unção de doce sabor; não terá de trabalhar, nem se fatigar. Vai e receberás. Ora por alguns dias por ti, para que eles possam ser encurtados: o reino já está preparado para ti, veja. Toma o Céu e a Terra por testemunhas; pois quebrei o mal em pedaços e criei o bom: pois eu vivo.” Diz o Senhor.“Mãe, abrace teus filhos e os crie com alegria, e faça os pés deles tão firmes quanto um pilar: pois eu os escolhi.” Diz o Senhor.
“E os que estão mortos e reerguerei de onde estiverem e os tirarei dos túmulos, pois fiz meu nome conhecido em Israel. Não tema, ó mãe, por teus filhos, pois eu os escolhi.” Diz o Senhor.
“Para seu amparo enviarei meus servos Esaú e Jeremias, de cujos conselhos santifiquei e preparei para eles doze árvores carregadas com diversos frutos, o mesmo total de fontes a verter leite e mel, e sete imponentes montanhas sobre as quais crescem rosas e lírios, por onde encherei teus filhos com alegria.
Sê correto com a viúva, justo com o bastardo, dá ao pobre, defende o órfão, veste o nu, cuida do machucado e do fraco, não ri para escárnio do manco, defende o aleijado, e deixa o cego vir para vista de minha clareza. Guarda o ancião e o jovem dentro de tuas muralhas. Onde quer que encontre os mortos, toma-os e os enterra, e te darei o primeiro lugar em minha ressurreição.”
IV Esd 2:10-23
O texto acima foi extraído do Apocalipse Judaico de Esdras. Não é uma história como Macabeus, mas um conjunto de sete visões atribuídas a esse profeta e as explicações dadas pelo anjo Uriel. A nomenclatura desse livro é um pouco complicada, correspondendo aos capítulos 3-14 do livro 2 Esdras das edições de pseudoepígrafos feitas por protestantes, 3 Esdras nas igreja eslavas e a 4 Esdras na Vulgata de Jerônimo. Datado do final do I século, esse apocalipse faz coro com II Baruque na tentativa de amparar uma comunidade em choque com a destruição do II Templo.
Os sectários de Qumran também tinham suas próprias expectativas quanto ao mensageiro. No Preceito de Damasco, é feita uma reinterpretação do livro de Números à luz de seu próprio apocaliptismo:
o poço que os príncipes cavam, que os chefes do povo perfuram com o cajado (Nm 21:18).
O poço é a Lei, e aqueles que o cavaram eram os convertidos de Israel que saíram de Judá, permanecendo por algum tempo na terra de Damasco. Deus denominou-os a todos príncipes porque iam ao encontro dEle, e ninguém questionava sua reputação. O Cajado é o Intérprete da Lei de quem Isaías dissera: Ele fabrica uma ferramenta para a Sua obra(Is 54:16); e os chefes do povo são aqueles que vieram para cavar o Poço com os cajados, com os quais o Cajado ordenou que caminhassem durante toda a era da iniquidade – e sem estes não achariam nada -, até que venha aquele que ensinará a retidão no final dos tempos.
Preceito de Damasco 6:4-11. Fonte: [Vermes].
O fim dessa passagem talvez remeta ao Mestre da Retidão, apresentado na exortação inicial do manuscrito como aquele posto por Deus para ”guiá-los pelos caminhos de Seu coração” e que ”revelou às gerações posteriores aquilo que Deus fizera à última geração [i.e., o Cativeiro de Babilônia], a congregação dos traidores, àqueles que abandonaram o caminho” (Idem 1:11). Essa figura misteriosa poderia ter sido o fundador da comunidade, algum de seus notáveis líderes ou ainda um cargo repassado entre seus sucessores. Embora esteja associada ao “fim dos tempos” é difícil dizer, com o material disponível, se seria alguém a retornar por algum modo não especificado (imortalidade, ressurreição ou reencarnação) ou um novo indivíduo com equivalência funcional.
Embora tenha permeado o imaginário de Qumran, o Mestre da Retidão não teve vez fora dos limites da comunidade. Os profetas de Macabeus, por sua vez, tiveram seus nomes grafados em grego. Seu público alvo eram os judeus de Alexandria, com uma mensagem edificante sobre as guerras de libertação de seus irmãos da Palestina. Não deve ter sido um livro que os contemporâneos e conterrâneos de Jesus tenham lido. O Apocalipse de 4 Esdras não o foi com certeza, por razões óbvias. Há outra fonte hebraica sobre profecia iminente que foi, esta sim, a usada pelos evangelistas:
Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim; e de repente virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais; e o mensageiro da aliança, a quem vós desejais, eis que ele vem, diz o Senhor dos Exércitos. Mas quem suportará o dia da sua vinda? E quem subsistirá, quando ele aparecer? Porque ele será como o fogo do ourives e como o sabão dos lavandeiros.
Ml 3:1,2
Porque eis que aquele dia vem ardendo como fornalha; todos os soberbos, e todos os que cometem impiedade, serão como a palha; e o dia que está para vir os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que lhes não deixará nem raiz nem ramo. Mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, e cura trará nas suas asas; e saireis e saltareis como bezerros da estrebaria. E pisareis os ímpios, porque se farão cinza debaixo das plantas de vossos pés, naquele dia que estou preparando, diz o Senhor dos Exércitos. Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, que lhe mandei em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos. Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor; e ele converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus pais; para que eu não venha, e fira a terra com maldição.
Ml 3:19-24 (ou 4:1-6)
Há um intrigante pormenor que surge ao se emparelhar essas passagens de Malaquias, que escapa à maioria dos religiosos judaico-cristãos: falariam elas da mesma pessoa? Seria o “mensageiro” de Ml 3:1 o Elias de 4:5? Bem, Ml 4:1-6 (ou Ml 3:19-24) tem a estrutura de um pequeno apêndice a uma obra que poderia terminar em Ml 3:18. Seu editor pode muito bem ter copiado material de Ml 3:1 para forçar uma identificação. Contudo, as tarefas atribuídas ao enviado em cada passagem não são exatamente as mesmas. Assim, por mais estranho que isto pareça aos fiéis modernos – espíritas inclusive -, é possível uma leitura de Malaquias que compreenda dois mensageiros distintos: um de preparação para o caminho do Senhor e outro para a vingar desrespeitada aliança entre Javé e seu povo. Se assim for, com qual deles seria feita a identificação com Elias? O deuterocanônico Eclesiástico, que dedica seu capítulo XLVIII à volta de Elias, aparenta preferir identificá-lo com o último, ou pelo menos – supondo-se um único mensageiro – enfatizar o aspecto vingativo de sua missão. Um ponto curioso é que em instante algum um Messias é mencionado: os (terríveis) prodígios são realizados por Elias em pessoa:
1. Suas palavras queimavam como uma tocha ardente. Elias, o profeta, levantou-se em breve como um fogo.
2. Ele fez vir a fome sobre o povo (de Israel): foram reduzidos a um punhado por tê-lo irritado com sua inveja, pois não podiam suportar os preceitos do Senhor.
3. Com a palavra do Senhor ele fechou o céu, e dele fez cair fogo por três vezes.
4. Quão glorioso te tornaste, Elias, por teus prodígios! Quem pode gloriar-se de ser como tu?
5. Tu que fizeste sair um morto do seio da morte, e o arrancaste da região dos mortos pela palavra do Senhor;
6. tu que lançaste os reis na ruína, que desfizeste sem dificuldade o seu poder, que fizeste cair de seu leito homens gloriosos.
7. Tu que ouviste no Sinai o julgamento do Senhor, e no monte Horeb os decretos de sua vingança.
8. Tu que sagraste reis para a penitência, e estabeleceste profetas para te sucederem.
9. Tu que foste arrebatado num turbilhão de fogo, num carro puxado por cavalos ardentes.
Ou seja, nesse deuterocanônico, Elias é o grande protagonista do “terrível dia do Senhor”. Talvez por focar no aspecto religioso (cf. cap. XVII), um novo rei davídico não lhe fosse crucial.
Uma razão de por que é tentadora a identificação entre [um dos] o inominado[s] mensageiro[s] (do grego αγγελος, “anjo”) e Elias é o fato de poderem ter a mesma origem; afinal este, junto com Enoque e Melquisedeque, fazia parte de um seleto grupo de humanos que ascendeu aos Céus sem conhecer a morte. Como bem lembrou o autor de Eclesiástico, ele teria ascendido para lá levado por uma “carruagem de fogo”:
E Elias disse: Fica-te aqui, porque o Senhor me enviou ao Jordão. Mas ele disse: Vive o Senhor, e vive a tua alma, que não te deixarei. E assim ambos foram juntos.
E foram cinquenta homens dos filhos dos profetas, e pararam defronte deles, de longe: e assim ambos pararam junto ao Jordão.
Então Elias tomou a sua capa e a dobrou, e feriu as águas, as quais se dividiram para os dois lados; e passaram ambos em seco.
Sucedeu que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim.
E disse: Coisa difícil pediste; se me vires quando for tomado de ti, assim se te fará, porém, se não, não se fará.
E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho.
O que vendo Eliseu, clamou: Meu pai, meu pai, carros de Israel, e seus cavaleiros! E nunca mais o viu; e, pegando as suas vestes, rasgou-as em duas partes.
Também levantou a capa de Elias, que dele caíra; e, voltando-se, parou à margem do Jordão.
E tomou a capa de Elias, que dele caíra, e feriu as águas, e disse: Onde está o Senhor Deus de Elias? Quando feriu as águas elas se dividiram de um ao outro lado; e Eliseu passou.
Vendo-o, pois, os filhos dos profetas que estavam defronte em Jericó, disseram: O espírito de Elias repousa sobre Eliseu. E vieram-lhe ao encontro, e se prostraram diante dele em terra.II Reis 2:6-15
Um problema surge ao se tratar com o arrebatamento: o corpo humano está sujeito ao desgaste e à deterioração. Como, então, poderia Elias (ou os outros arrebatados) permanecer indefinidamente no Céu? Uma sugestão foi dada pelo pseudoepígrafo judaico-cristão Ascensão de Isaías (séc. I ou II), em que é relatada uma jornada desse profeta pelas várias regiões celestiais. Essa viagem não se enquadra bem como um caso de “arrebatamento” porque se tratou de uma visão: Isaías não esteve lá em corpo físico. Mesmo nessa “visão”, ele precisou colocar uma veste a partir do sétimo Céu para poder prosseguir e ela o deixou similar aos anjos. Já no sétimo Céu, ele encontrou … Enoque, que trajava o mesmo tipo de veste! Não é impossível que seu autor tenha se inspirado em um trecho de I Enoque (62:10), onde se lê de forma poética:
Serão [os justos] recobertos com as vestes da glória, que são as vestes da Vida do Senhor dos Espíritos. Vossas vestes não envelhecerão e vossa glória não passará na presença do Senhor dos Espíritos.
Ao contrário da volta de Jeremias ou Esaú, a crença em Elias como mensageiro do “Mundo Vindouro” persiste até hoje nas principais correntes do judaísmo. Note que todas essas figuras estavam para alertar para o fim dos tempos. A vinda do Filho do Homem (ou do Messias terreno) é que fazia parte desse contexto. O que teriam feito os cristão dela ao se destacarem do judaísmo?
Chegando sem Avisar
A Destruição do Templo em Jerusalém, por Francesco Hayez (1867).
Nem sempre era necessário que um profeta anunciasse o Fim dos Tempos. Um exceção notável é O Apocalipse de Baruque (ou II Baruque), que traz um Final dos Tempos arrasando os incautos. Quem estiver vivo, deverá se dar conta no meio do processo.
XXV – O Julgamento do mundo
Ele falou: “Também tu também serás mantido até aquele dia, como testemunha da ação do Altíssimo sobre os habitantes da terra. E este será o sinal: os habitantes da terra, acometidos de espanto terrível, cairão em muitas privações e em profundíssimos sofrimentos. E quando disserem entre si, na sua necessidade extrema: ‘Que o Altíssimo zele constantemente pela terra’, então o novo tempo se inaugurará”.
XXVI – A Duração das Tribulações
Eu falei: “Permanecerá então por longo tempo aquela calamidade? E durará muitos anos aquele tempo de privações?”
XXVII – Doze Períodos de Calamidades
Ele falou-me: “De doze partes se compõe aquele tempo: cada uma delas está reservada para o que lhe foi previsto. O primeiro período marcará o início das inquietações; no segundo acontecerá a matança dos poderosos; no terceiro, a morte de muitos; no quarto, o desembainhar das espadas; no quinto, fome e dilúvios de chuva; no sexto, terremotos e horror; no sétimo, (…) no oitavo, aparições e encontros com espíritos; no nono, queda de fogo do alto; no décimo, muitos saques e opressões; no undécimo, crimes e devassidão; no duodécimo, mistura e superposição de todos os precedentes.
No princípio, esses períodos serão separados, depois eles se misturarão e se completarão entre si […] Pois uns não se exaurem de uma só vez, e terão como acrescentar aos outros; outros completam-se a si mesmos e complementam ainda aos demais, de sorte que os habitantes da terra não perceberão de que se trata do fim dos tempos.”
XXVIII – Nova Reflexão
“Mas aquele que perceber estará de sobreaviso. No que se refere porém à medida e números de tempo, haverá dois períodos, que são semanas de sete semanas cada uma.”
Eu falei: “Será bom que um homem experimente e presencie isso; mas melhor seria que não alcançasse esse tempo, para não sucumbir ao horror. Agora pergunto ainda o seguinte: porventura aquele que vai sobreviver terá desprezo pelo que é condenado e pelo destino que lhe é reservado? Será ele o único a usufruir a imortalidade? Meu Senhor, se efetivamente chegará aquilo que agora me antecipaste, e se porventura encontrei graça aos teus olhos, revela-me ainda o seguinte: acontecerá isso só num país, talvez numa única região, ou se estenderá a toda terra?”
XXIX – O Messias
Ele falou-me: “O que vai acontecer atingirá toda a terra; dessa forma, experimentá-lo-ão todos os que estiverem em vida. Mas naquele tempo eu protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste país [Sião]. Uma vez cumprido aquilo que deve acontecer nos períodos do tempo, o Messias começará a sua revelação. Também Behemoth virá dos seus domínios, e Leviatã se levantará do mar; os dois imensos monstros marinhos por mim criados no quinto dia da Criação, e que reservo para aqueles dias; eles servirão de alimento para todos os que sobreviverem.
“Então a terra produzirá os seus frutos ao cêntuplo; numa cepa de videira haverá mil ramos, um ramo carregará mil racimos, e um racimo mil bagos, e um bago data até quarenta litros de vinho. Os que sofreram fome comerão regiamente, e a cada dia lhes estão reservadas novas maravilhas.
“Pois de mim procederão ventos que trarão todas as manhãs o perfume de frutos saborosos, e farão gotejar ao final do dia o orvalho salvífico. Do alto cairá de novo grande quantidade de maná; dele comerão eles naqueles anos, por haverem participado do final dos tempos”.
XXX – Ressurreição dos Mortos
“Terminado o tempo vigente do Messias, Ele voltará de novo à glória do céu. Então haverão de ressuscitar todos aqueles que outrora adormeceram na esperança. Naquele tempo acontecerá que se abrirão as câmaras onde se demoram as almas dos piedosos; elas sairão, e todas essas numerosas almas, como uma legião de um só coração, apareceram todas juntas, abertamente. As que foram as primeiras, alegrar-se-ão; as que foram as últimas, não estarão tristes.
“Cada uma delas sabe que foi chegado o tempo, previsto como o fim de todos os tempos. As almas dos pecadores perder-se-ão em angústia, ao presenciarem tudo isso. Pois elas já sabem que o tormento as atingirá, e que a hora da sua condenação é chegada.”
Fonte: [Tricca, vol. III, pp. 315-7]. Cf. [Charlesworth, pp. 630-1].
O Messias não seria uma figura meramente passiva, a produzir maravilhas por sua simples presença. Em outras duas passagens, ele é apresentado, também, como um líder guerreiro:
XL – O Último Príncipe Será Morto pelo Messias
“O último rei permanecerá com vida, mesmo tendo perecido a multidão dos seus súditos. Então ele será acorrentado e conduzido ao monte Sião, e ali o meu Ungido lhe pedirá contas de todos os seus atos de prepotência, e, juntamente com as obras de toda a sua multidão, o aniquilará na sua presença.
“Depois disso, Ele o dará à morte, e assim protegerá o restante do meu povo, que se encontra na terra por mim escolhida. E o seu reino durará para sempre, até o final do mundo perecível, quando então completar-se-ão os tempos predeterminados.
“Foi essa a tua visão e o seu significado.”
LXXII – O Messias
“Toma conhecimento também daquele raio, que deverá vir ao final, após a água negra! Ele representa o seguinte: depois dos sinais prodigiosos, que há pouco foram mencionados, quando os povos forem lançados na confusão, e chegar o tempo do meu Ungido, este convocará a todas as gentes. A umas conservará em vida, a outras eliminará. Aos povos por ele poupados acontecerá o seguinte: todos aqueles que não chegaram a conhecer Israel, e que nunca oprimiram a raça de Jacó, serão conservados em vida e separados dentre todos os povos, submeter-se-ão ao teu povo. Mas todos aqueles que outrora vos dominaram, ou que inutilmente vos conheceram, cairão em conjunto sob a espada.
E esse Messias guerreiro teve uma contrapartida real: durante a revolta judaica de 132-5 d.C., seu líder Simão bar Kochba foi declarado o Messias por ninguém menos que o famoso rabi Aquiba, após algumas campanhas bem sucedidas contra os romanos, o que deu mais ímpeto à rebelião. Contudo, os romanos contra-atacaram e o final foi desastroso para os revoltosos, para Aquiba e para o povo judeu como um todo, que foi definitivamente posto em diáspora.
Teria Aquiba cometido um erro crasso de avaliação? Hoje, olhando em retrospectiva, sabe-se que sim, mas e àquela época? Aquiba já conhecera ao longo da vida duas revoltas fracassadas antes dessa e sabia que um sucesso inicial podia nada significar ante o poderio romano. Talvez a presença de uma liderança realmente carismática e centralizada – algo ausente nas anteriores – o fez pensar que “dessa vez seria diferente”. Há quem diga [Gruber] que Aquiba estava ciente de que Bar Kochba não reunia os atributos esperados, como outros rabinos alegavam, mas o utilizou assim mesmo como braço armado para eliminar seitas avessas à primazia rabínica, entre elas o judeu-cristianismo.
De fato, nenhum profeta viera e o mundo não passava por calamidades, mas essas expectativas eram apenas algumas das diferentes existentes, numa época em que o judaísmo tinha mais divergências de opiniões do que teria na subsequente. Para ir atrás delas é tão preciso buscar os livros ficaram fora do cânon judaico. Afinal, a a Bíblia não é o bastante.
O Sacerdócio Eterno
Quanto às origens do profeta Elias, pouquíssima informação há na Bíblia:
Então Elias, o tisbita, que habitava em Gileade, disse a Acabe: Vive o Senhor, Deus de Israel, em cuja presença estou, que nestes anos não haverá orvalho nem chuva, senão segundo a minha palavra.
I Re 17:1
Então veio a palavra do Senhor a Elias, o tisbita, dizendo:
I Re 21:17
A única informação existente é o gentílico “tisbita”. Flávio Josefo (Ant., VIII, 13) dá sua origem no vilarejo de Thesbon, no país de Gileade, que também é transliterado para Tesbe ou Tisbe. A falta de qualquer informação biográfica deu margem para a multiplicação de tradições quanto ao passado do profeta, algumas tão inusitadas como esta:
Eu não sei como os hebreus começaram a falar que Fineias, filho de Eleazar, que admitidamente prolongou sua vida ao tempo de muitos dos juízes, como lemos no Livro de Juízes (Jz 20:28), para dizer o que agora menciono. Dizem que ele foi Elias porque Deus lhe prometera imortalidade, devido à aliança concedida a ele (…) .
Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7
A aliança da qual o teólogo do III século Orígenes fala é a seguinte: E ele, e a sua descendência depois dele, terá a aliança do sacerdócio perpétuo, porquanto teve zelo pelo seu Deus, e fez expiação pelos filhos de Israel (Nm 25:13). Isso não é garantia de identificação entre Fineias e Elias e, dependendo de como se leia, nem de imortalidade. Entretanto, o que o alexandrino não sabia é que essa tradição tinha raízes extrabíblicas, sendo fixada em traduções aramaicas mais livres da Escritura:
E os anos de vida de Kehath, o santo, foram cento e trinta e três anos. Ele viveu para ver Fineias, que é Elias, o Grande Sacerdote, que será enviado ao cativeiro de Israel no fim dos dias.
Targum Pseudo-Jonatas Ex 4:13 e Ex 6:18
E ungirás o altar de oferendas queimadas e todos os seus vasilhames, e consagrarás o altar, que ele seja um santíssimo altar, em razão da coroa do sacerdócio de Aarão, e de seus filhos, e de Elias, o grande Sacerdote, que será enviado ao fim do cativeiro.
Idem Ex 40:10
Ainda que possais estar dispersos até os confins dos céus, de lá o Verbo do Senhor vos congregará juntos pela mão de Elias, o grande sacerdote , e de lá Ele vos trará pela mão do Rei Meshiha .
Idem Dt 30:40
Essas paráfrases já bastam para identificar Fineias com Elias, mas a natureza desse relacionamento é definida em outra:
E o Senhor falou com Moisés, dizendo: Fineias, o zeloso, o filho de Eleazar bar Aharon, o sacerdote, afastou minha ira dos filhos de Israel, de modo que, quando zeloso com Meu zelo, massacrou os pecadores que estavam entre eles; e por sua causa não destruí os filhos de Israel em Minha indignação. Jurando por Meu Nome, digo-lhe: “Eis que declaro Minha aliança de paz e fá-lo-ei um anjo da aliança, que ele viva para sempre, para anunciar a Redenção no fim dos dias.”
Lembrando que “anjo (mensageiro) da aliança” foi o título dado a Elias em Ml 3:1. Outra corroboração para a tradição descrita por Orígenes se encontra no apócrifo judaico Liber Antiquitatum Biblicarum (“Livro das Antiguidades Bíblicas”), datado do primeiro século e pseudonimamente atribuído a Fílon de Alexandria:
Também, naquela ocasião, Fineias deitou-se para morrer e o senhor lhe disse: “Eis que ultrapassaste os 120 anos que foram estabelecidos para todo homem (Gn 6:3). Agora levanta e vai-te daqui para residires sobre o monte Danaben e lá resida por muitos anos. E ordenarei a minha águia (cf. I Re 17:4) e ela te alimentará por lá e não descereis à humanidade até o tempo chegar e será provado naquele tempo; e fecharás, então o céu e por tua boca ele se abrirá. E depois serás erguido para o lugar onde os que antes de ti foram erguidos, e lá ficarás até que Eu me lembre do mundo. Então farei todos vós virdes, e provareis o gosto da morte”. E Fineias subiu e fez tudo o que o Senhor lhe ordenou. Entretanto, nos dias que o indicou para ser sacerdote, ungiu-o em Siló (cf. Gn 49:10).
Palavras e expressões como “redenção”, “fim dos dias”, “lembrar-se do mundo” transmitem a visão apocalíptica de que o término do sofrimento do povo de Deus se daria pela direta intervenção divina, numa data ignorada, mas certa. Fineias – e outros profetas, segundo Antiguidades Bíblicas – eram esperados por essa época, tal como Elias também o era segundo Malaquias. A harmonização dessas duas tradições teria produzido um indivíduo extremamente longevo, oculto boa parte do tempo, e que não se apresentava necessariamente com o nome original.
Houve outras tradições a respeito da origem de Elias. Numa direção menos, digamos, sobrenatural, o heresiólogo do século IV Epifânio de Salamina (Panarion, sç IV, “melquizedequianos”, pp. 79-80) afirmou ter tomado conhecimento de uma tradição que ligaria a ascendência de Elias a Aarão, passando por Fineias. No outro extremo, existe outra que o considera com uma materialização do arcanjo Sandalphon, o que explicaria a ausência de uma origem, seus milagres e a ascensão ao céu (cf. [Ginzberg, vol. IV, cap. VII]).
[topo]
Em Busca da Figura Histórica
O historiador judeu do final do primeiro século Flávio Josefo deixou um relato sobre um popular pregador que viveu à época de Herodes:
Alguns judeus pensavam que a destruição do exército de Herodes veio de Deus, de forma justa, como punição pelo que ele havia feito contra João, chamado Batista: pois Herodes o matara, ele que era um homem bom e pregava para que os judeus praticassem a virtude, tanto pela justiça de uns para com os outros, como pela reverência a Deus, para isso vindo ao batismo. Esta lavagem era aceita por ele, não se fosse para terem alguns pecados perdoados, mas para a purificação do corpo. A alma devia estar purificada antes pela retidão. Quando muitos vieram em multidão até João, movidos por suas palavras, Herodes, que temia a grande influência de João sobre o povo, o que permitiria que estimulasse uma revolta (pois pareciam prontos a fazer o que ele dissesse), pensou ser melhor matá-lo. Isto impediria qualquer ação contrária causada por João e não traria dificuldades para o rei, que poderia arrepender-se muito tarde de tê-lo deixado vivo. Assim, foi aprisionado em Maqueronte, castelo que mencionei antes, e morto. Os judeus consideraram que a destruição do exército de Herodes foi uma punição, para mostrar o desagrado de Deus
Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap. V
Montanha da antiga fortaleza de Maqueronte, nas proximidades do Mar Morto.
E isso é tudo o que sabemos sobre João Batista de uma fonte não (muito) religiosa. Qualquer conhecimento extra tem de ser extraído dos sinópticos, do evangelho de João e dos ditos não gnósticos de Tomé. Como a maior quantidade de dados que temos disponível sobre o “Jesus Histórico” se encontra nos sinópticos, boa parte das informações de sua relação com João e até a respeito do próprio estará neles. Ao lida com esse material, é preciso ter em mente que:
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- Não são independentes: conforme a hipótese mais aceita hoje, Marcos é o mais antigos dos três e forneceu o fio narrativo comum a eles. Lucas e Mateus adicionaram aos seus relatos elementos exclusivos e uma boa quantidade de outros tomada a partir de uma suposta fonte de ditos comum, chamada de Q (do alemão Quelle, “fonte”). Portanto, as referências aqui usadas não são exatamente os sinópticos, mas a narração de Marcos (Mc), o material exclusivo de Mateus (M), o exclusivo de Lucas (L) e a fonte Q;
- Não são biografias de Jesus: São obras de fé que queriam convencer seus primeiros leitores de uma imagem derivada do verdadeiro Jesus Histórico. Elementos dele se encontram nos evangelhos, permeados elementos míticos e, para separar um pouco “o joio do trigo”, esse material deve ser analisado e filtrado por critérios como o da múltipla atestação, da conformidade social e o da dissimilaridade (1).
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A mensagem
Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados.
E toda a província da Judeia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.Mc 1:4-5
E, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus, que vinham ao seu batismo, dizia-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?
Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento;
E não presumais, de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão.
E também agora está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo.Mt 3:7-10
Dizia, pois, João à multidão que saía para ser batizada por ele: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?
Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque eu vos digo que até destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão.
E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo.
E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois?
E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira.
E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer?
E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado.
E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.Lc 3:7-14
Não é difícil compreender porque a mensagem do Batista (“o imersor”, em grego) alcançou uma considerável popularidade. Seus princípios simples contrastavam com a sofisticação de regras dos “doutores da Lei”. A pureza ritual era alcança uma única vez, dispensando as sucessivas purificações exigidas pela letra da Lei para as mais diversas e repetitivas circunstâncias, pois a principal pureza era a moral. Era desvinculada do Templo de Jerusalém, que intermediava o perdão divino por meio de sacrifícios de animais. Sem dúvida, para os mais humildes era confortador e libertador não ter que aturar a arrogância dos doutos, poupar suas escassa água e não ter que pagar o tributo ao Templo.
Pelos resquícios que nos restam, fica patente que João Batista tinha pressa em chamar o povo ao arrependimento, pois “a ira” estava prestes a cair. Uma mudança abrupta em todo o status quo. Assim, pode ser considerado como um pregador escatológico, como outros de seu tempo foram.
O Discípulo maior que o Mestre
No meio da multidão que ouvia sua mensagem e recebia seu batismo, estava um jovem artesão chamado Yeshua ben Yosef, que boa parte da humanidade, a partir de alguns séculos depois, passaria a ter como o Messias (“Ungido”) esperado para a instauração do Reino de Deus.
Esta cena foi verídica. Contudo, editamos a pombinha, pois sua aparição não passa no princípio da dissimilaridade.
O batismo de Jesus, filho de José, por João e sua morte na cruz são umas das poucas certezas que temos em sua biografia. Ambas por um motivo similar: foram passadas adiante pelos evangelistas, mesmo sendo potencialmente constrangedoras. Talvez por serem notórias aos contemporâneos, fossem impossíveis de omitir. O embaraço da crucifixão é óbvio, afinal como o Messias poderia ter tido um fim tão ignóbil. Se você se declarasse um seguidor de Jesus por volta do anos 40-50 da Era Comum, muito provavelmente seria alvo de chacota. A solução foi “fazer um limonada desse limão” e enquadrar esse aparente fracasso como a conclusão da primeira etapa do plano de salvação da humanidade. A história da Ressurreição de Jesus – calcada em uma crença já existente entre os judeus pós-exílio – foi fundamental para tanto. Mas isso é outro assunto…
Embora o batismo não fosse tão catastrófico quanto à morte na cruz, ainda assim gerava uma dificuldade: caso se presuma uma superioridade moral do imersor em relação ao imergido, então por que Jesus se deixou batizar e não o contrário? Houve quem realmente descartasse essa hipótese:
A mãe do Senhor e seus irmãos lhe disseram: “João Batista batiza pelo perdão dos pecados; vamos e sejamos batizados por ele.” Mas ele lhes respondeu: “De que forma eu pequei para que devesse ir e ser batizado por ele? A não ser que, talvez, o que eu acabei de dizer seja um pecado de ignorância.”
Fragmento do Evangelho do Hebreus, preservado por Jerônimo em Contra Pelágio, livro III, parágrafo 2.
A solução adotada pelos evangelistas foi tornar João Batista precursor de Jesus, e não seu mentor, assim invertendo a ordem hierárquica entre eles. Por exemplo:
Então veio Jesus da Galileia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado por ele.
Mas João opunha-se-lhe, dizendo: Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim?
Jesus, porém, respondendo, disse-lhe: Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele o permitiu.Mt 3:13-15
Esse dito aparece apenas em Mateus e isso não é de se estranhar, pois, tal como a Paixão, a Ressurreição e a expulsão dos vendilhões, os evangelhos concordam na existência de certos episódios comuns, mas destoam nos pormenores. Por outro lado, uma fala comum a todos os sinópticos é:
E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
Mc 1:7-8. Cf Lc 3:16 e Mt 3:11
Não se deve, entretanto, ver muito nisso. Essas palavras são exclusivas de Marcos e copiadas quase ipsis literis nos outros dois. Elas também não passam pelo critério da dissimilaridade, pois vão ao encontro do que os primeiros cristãos gostariam de ouvir. Elas representam o esforço dos primeiros cristãos – os evangelistas em especial – de subordinar o mestre ao discípulo.
Os Sinópticos sobre o Mestre
Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus;
Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu anjo ante a tua face, o qual preparará o teu caminho diante de ti.
Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, Endireitai as suas veredas.
Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados.
E toda a província da Judeia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.
E João andava vestido de pelos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre.Mc 1:1-6. Cf. Mt 3:1-5, Lc 3:3-4
Marcos, copiado depois pelos demais sinópticos, faz nítida associação entre João Batista e a profecia de Isaías supracitada. Quando surgiu pela primeira vez um profeta guiando o povo no deserto, veio a destruição para as nações que ocupavam a Terra Prometida. Um novo fim batia à porta (2). É curioso notar também outra associação feita, menos explícita.
E eles lhe disseram: Era um homem peludo, e com os lombos cingidos de um cinto de couro. Então disse ele: É Elias, o tisbita.
II Reis 1:8
A associação mais forte com Elias só é feita na metade desse evangelho, após o episódio da transfiguração:
E, descendo eles do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, até que o Filho do homem ressuscitasse dentre os mortos.
E eles retiveram o caso entre si, perguntando uns aos outros que seria aquilo, ressuscitar dentre os mortos.
E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas que é necessário que Elias venha primeiro?
E, respondendo ele, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e todas as coisas restaurará; e, como está escrito do Filho do homem, que ele deva padecer muito e ser aviltado.
Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe tudo o que quiseram, como dele está escrito.Mc 9:9-13. Cf. Mt 17:10-3
Essa anedota foi registrada por Marcos e copiada por Mateus, com algumas (nada) sutis diferenças: ele retira a confusão dos discípulos quanto à “ressurreição dentre os mortos” do Filho do Homem e explicita a identificação ente os personagens, que Marco deixara nas entrelinhas.
Nenhuma dessas versões deve ter saído da boca de Jesus (3).
Em questões de fé, não se faz profecias em relação ao passado. O passado é justificado, o que é bem diferente. No caso dos primeiríssimos cristãos, eles tinham dois abacaxis para descascar: o martírio de João Batista e o de Jesus. Dois finais nada gloriosos. Tanto que a pergunta “por que dizem os escribas que é necessário que Elias venha primeiro?” deveria ser embaraço com que os membros da comunidade marcana eram confrontados. A solução foi enfatizar que João e Jesus foram realmente quem deveriam ser – o precursor e o Messias -, tanto que basta confrontar as palavras de Malaquias e Marcos:
Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim.
Ml 3:1 (i.e., diante de Deus)Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu anjo ante a tua face, o qual preparará o teu caminho diante de ti.
Mc 1:2 (i.e, diante de Jesus)
para constatar uma edição do Antigo Testamento em prol dessa nova doutrina; bastando interpretar “Senhor” não mais como Deus, mas como o Messias. A mudança de pronome seria “licença poética”…
Acontece que eles não desempenhariam esses papéis da forma que a maioria do judaísmo esperava e isso é um aspecto muito forte em Marcos. Embora esse evangelho afirme logo no primeiro versículo que Jesus é “Filho de Deus”, o comportamento dele descrito ao longo da maior parte da narrativa é o de alguém que tentava esconder isso ao máximo. Jesus não deixava que os demônios falassem “porque eles o conheciam” (1:34). Ao curar um leproso, advertiu-o não contar a ninguém (1:43-4), mandou expressamente que ninguém soubesse que ressuscitara a filha de Jairo (5:43). Quando Pedro o identificou como o Messias, ordenou que guardasse segredo dos demais discípulos (8:29-30). Após a transfiguração no monte, ordenou às testemunhas que não contassem a ninguém (9:9). Uma proposta radical para o “segredo messiânico” de Marcos foi feita no começo do século XX pelo erudito alemão William Wrede: o Jesus Histórico jamais exigiu segredo porque nunca viu a si mesmo como Messias. Foram seus seguidores que o consideraram com tal e tiveram que elaborar histórias explicando o fato de ele nunca haver se pronunciado a respeito disso. Não é preciso muito para imaginar o quanto de controvérsia isso gerou. Uma proposta mais amena seria considerar que Marcos apenas propôs um Messias humilde, servil e sofredor, em vez da visão de grandeza terrena para o Filho do Homem. De forma análoga, João Batista seria o Elias aguardado, ainda que ninguém se desse conta disso. Mateus, por sua vez, é bem mais enfático em associar Jesus com o Messias prometido, embora em uma roupagem inesperada. Para ele, não haveria o que esconder, mas realçar. O mesmo vale para Elias, tanto que faz um adendo à história para que ninguém se confundisse: “Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista” (Mt 7:13). Por outro lado, ambos têm algo em comum com relação a João: não lhe dão uma origem. Para eles o passado do Batista é tão misteriosos quanto fora o de Elias. Seria possível que partilhassem da crença no “sacerdócio eterno”, tendo o mesmo indivíduo Fineias/Elias/João atravessado séculos até o advento de Jesus.
Em Lucas, nenhuma vinculação de João a Elias é feita após a transfiguração (9:28-36), até por que uma já aparecera bem antes, na Natividade. Tanto Mateus quanto Lucas falam da concepção miraculosa de Jesus, cuja mãe, Maria, fora fecundada ainda virgem pelo Espírito Santo. Apenas Lucas, porém, fala que sua prima (4) Isabel também tivera um pouco antes uma concepção “fora do comum” – engravidara já com idade – e o pai, o sacerdote Zacarias, recebera a notícia de uma forma espantosa:
Segundo o costume sacerdotal, coube-lhe em sorte entrar no templo do Senhor para oferecer o incenso.
E toda a multidão do povo estava fora, orando, à hora do incenso.
E um anjo do Senhor lhe apareceu, posto em pé, à direita do altar do incenso.
E Zacarias, vendo-o, turbou-se, e caiu temor sobre ele.
Mas o anjo lhe disse: Zacarias, não temas, porque a tua oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará à luz um filho, e lhe porás o nome de João.
E terás prazer e alegria, e muitos se alegrarão no seu nascimento,
Porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre de sua mãe.
E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus,
E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto.
Disse então Zacarias ao anjo: Como saberei isto? pois eu já sou velho, e minha mulher avançada em idade.
E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres novas.Lc 1:9-19
Tal história existe apenas em Lucas (5), dando um problema a esse evangelista: se João teve um começo recente, como relacioná-lo ao “Elias oculto”, que não provara da morte? O jeito foi dar-lhe um papel simbólico de Elias – “no espírito e virtude (poder)”, – coisa que os outros dois sinópticos não fizeram ou, com certa boa vontade, deixaram nas entrelinhas. Existe, também, um evangelho apócrifo da natividade – o Protoevangelho de Tiago – que também fala da paternidade do sacerdote Zacarias, mas não entra em maiores detalhes.
Isabel e Maria, por Philippe de Champainge.
Quanto à historicidade dessa narrativa, os prognósticos não são bons. Dos canônicos, Lucas é o único a trazer essa história e, também, é o único a deixar transparecer que seu autor se valeu de fontes pregressas (Lc 1:1-4). É possível que ele tenha utilizado uma tradição comum ao Protoevangelho de Tiago – que também dá origem sacerdotal a João e relaciona sua mãe com Maria -, mas continuaria tendo elementos exclusivos dele, em especial o nascimento miraculoso (não tanto quanto o de Jesus), deixando de satisfazer o princípio da múltipla atestação. Isso enfraquece, sem dúvida, as chances de a natividade de João ter algum valor histórico em meios ao elementos da fé, sem, no entanto, refutá-la. O que realmente a compromete são elementos que parecem ter sido tomados do Antigo Testamento:
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-
- Isabel já é dada como estéril (Lc 1:17), assim como Sara (Gn 11:30);
- Como Abraão e Sara (Gn 13:11), Zacarias e Isabel (Lc 1:7) já estão velhos;
- Tanto para Abraão (Gn 17:16) quanto para Zacarias (Lc 1:13), um anjo anuncia a vinda de um filho;
- Em ambos os casos, o nome da criança é previamente anunciado (Gn 17:19 e Lc 1:13);
- Uma quebra dessa sequência é que a reação de Isabel ante a gravidez (Lc 1:25), que usa as palavras gratidão de Raquel (Gn 30:23), em vez do ceticismo de Sara (Gn 18:12).
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Enfim, Lucas retrata Zacarias e Isabel como novos Abraão e Sara, uma metáfora da (re)fundação de Israel, tornando-os mais próximos de figuras míticas que reais. O ápice da natividade de João se dá no encontro ente Isabel e Maria, que se revela mais do que uma reunião entre comadres:
E aconteceu que, ao ouvir Isabel a saudação de Maria, a criancinha saltou no seu ventre; e Isabel foi cheia do Espírito Santo. E exclamou com grande voz, e disse: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém isto a mim, que venha visitar-me a mãe do meu Senhor? Pois eis que, ao chegar aos meus ouvidos a voz da tua saudação, a criancinha saltou de alegria no meu ventre.
Lc 1:41-44
Ou seja, segundo Lucas, João Batista teria reconhecido e aclamado Jesus desde o tempo em que estavam ambos nos ventres de suas respectivas mães. Essa foi a solução dada por Lucas para a desconcertante inversão de papéis entre os dois por ocasião do batismo, ainda que assumisse o custo (ou não o pudesse recusar) de não mais permitir a volta do Elias original.
Não apenas por ocasião da transfiguração (Lc 9:28-36), a vinculação entre João Batista e Elias foi dispensada em Lucas – em razão de ter ocorrido logo no início -, mas também em outro discurso de Jesus. Compare as redações dadas por e Mateus para esta trecho de um discurso de Jesus:
E, desde os dias de João o Batista até agora, se faz violência ao reino dos céus, e pela força se apoderam dele. Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João. E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Mt 11:12-15
e
A lei e os profetas duraram até João; desde então é anunciado o reino de Deus, e todo o homem emprega força para entrar nele.
Lc 16:16
Ambos falam de João Batista como último profeta antes da chegada do Reino de Deus e da violência usada para se chegar a ele. A ordem de um está invertida em relação outro e, como não há terceira fonte para comparação, não é possível precisar o dito original, provavelmente extraído de Q. O trecho destacado sobre a identidade de João Batista com Elias possui forte cheiro de uma glosa posterior (oral ou escrita) que entrou no texto de Mateus, tal como Mt 7:13.
Será que algo que Jesus provavelmente disse sobre João que ficou registrado?
O Discípulo sobre o Mestre
Cena de Jesus de Nazaré (1977), de Franco Zefirelli. Mestre e discípulo face a face, pelas mãos de um mestre do cinema.
Uma passagem bem conhecida da tradição cristã – conhecida como “o Louvor de João” – ficou registrada em dois dos evangelhos, que devem tê-la extraído de Q. Ei-la:
Mateus 11:2-19 | Lucas 7:19-35 |
---|---|
E João, ouvindo no cárcere falar dos feitos de Cristo, enviou dois dos seus discípulos, A dizer-lhe: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide, e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes: “Os cegos veem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho.” E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim. E, partindo eles, começou Jesus a dizer às turbas, a respeito de João: Que fostes ver no deserto? uma cana agitada pelo vento? Mas, então que fostes ver? um profeta? Sim, vos digo eu, e muito mais do que profeta; Porque é este de quem está escrito: Eis que diante da tua face envio o meu anjo,que preparará diante de ti o teu caminho. Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele. E, desde os dias de João o Batista até agora, se faz violência ao reino dos céus, e pela força se apoderam dele. Mas, a quem assemelharei esta geração? É semelhante aos meninos que se assentam nas praças, e clamam aos seus companheiros, e dizem: “Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes.” Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. |
E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus, dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram: João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos. Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que “os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho.” E bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar. E, tendo-se retirado os mensageiros de João, começou a dizer à multidão acerca de João: Que saístes a ver no deserto? uma cana abalada pelo vento? Mas que saístes a ver? um homem trajado de vestes delicadas? Eis que os que andam com preciosas vestiduras, e em delícias, estão nos paços reais. Mas que saístes a ver? um profeta? Sim, vos digo, e muito mais do que profeta. Este é aquele de quem está escrito: Eis que envio o meu anjo diante da tua face, O qual preparará diante de ti o teu caminho. E eu vos digo que, entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João o Batista; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele. E todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido batizados com o batismo de João, justificaram a Deus. E disse o Senhor: A quem, pois, compararei os homens desta geração, e a quem são semelhantes? “Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes.” Porque veio João o Batista, que não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Tem demônio; veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores. Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos. |
Os textos em azul, em cada coluna, são os trechos em que os evangelhos destoam, talvez fruto de versões ou edições diferentes do texto de Q. O de Mateus foi avaliado no item anterior.
A resposta que Jesus dá aos discípulos de João está mais para uma apologia da comunidade de Q para justificar o ministério de Jesus como cumprimento de uma série de profecias contidas em Isaías:
Mateus 11:5 | Profecia |
---|---|
Os cegos veem, e os coxos andam; os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho [boa nova]. |
Is 35:5-6 – Is 29:18-9 Is 26:19 Is 61:1 |
Essa mesma lista aparece em Mt 10:8. Falta, contudo, uma menção profética à cura de leprosos, embora haja casos de cura mencionados no Antigo Testamento (por exemplo, II Re 5:1-19).
O trecho que realmente pode ter saído dos lábios de Jesus são as primeiras perguntas retóricas que ele fez à multidão a respeito de João Batista, contidas em Mt 11:7-8 e Lc 7:24-5, em virtude de possuírem um testemunho independente em Tomé, dito 78
78. Disse Jesus: Por que saístes ao campo? Para verdes um caniço agitado pelo vento? Ou um homem vestido de roupas macias? Os reis e os grandes vestem roupas macias – e eles não poderão conhecer a verdade.
Com exceção do fim da última frase – que tem um viés gnóstico – a identidade é clara. Em Tomé, falta um contexto que associe o dito 78 diretamente a João, mas, ainda que o “louvor de João” não constasse em Q, seria fácil reparar a oposição entre os adjetivos de suas perguntas e os atribuídos a João, preservados em outras partes. Para um texto enxuto desses merecer ficar registrado num evangelho de logias é bem provável que fosse usado de forma recorrente – tal qual as parábolas – como uma crítica à riqueza material e pobreza de virtudes da elite, conforme vários outros ensinamentos de Jesus. Além disso, não deixa de ser um elogio a um potencial rival (6). Os dois versículos que se seguem imediatamente (Q: Mt 11:9-10 e Lc 7:26-7), apontando João como “mais que um profeta“, trazem um elogio que talvez apenas Jesus fosse autoritativo de dar na Igreja primitiva, porém o último deles parece ser um fabrico bem ao gosto das comunidades dos evangelistas ao posicionar João como mero precursor, tal como no começo de Marcos:
Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus.
Is 40:3 (cf. Lc 3:4-6)Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim; e de repente virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais; e o mensageiro da aliança, a quem vós desejais, eis que ele vem, diz o Senhor dos Exércitos.
Ml 3:1Porque é este de quem está escrito:Eis que diante da tua face envio o meu anjo,que preparará diante de ti o teu caminho.
Mt 11:10 e Lc 7:27
No Antigo Testamento, o mensageiro prepararia a vinda de Deus, ao passo que a Fonte Q muda as possíveis origens da citação para o próprio Jesus! Se você considera Jesus como Deus, isso não é o problema, só que estamos tratando dos sinópticos, i.e., em textos de baixa cristologia, ao invés do Evangelho de João. A comunidade que compilou os ditos de Q mudou “o que estava escrito”, assim como a de Marcos.
O final do “louvor” provoca opiniões distintas entre os acadêmicos, principalmente por causa do uso que se faz da expressão “Filho do Homem” (7). Do jeito que está escrita, ela serve como um circunlóquio de terceira pessoa para Jesus se referir a si mesmo. Os adeptos do modelo de Jesus Histórico como um “mestre de sabedoria” desprovido de escatologia (Jesus Seminar, B.L. Mack, etc.) rejeitam prontamente qualquer sugestão de uso dela por Jesus. Os adeptos do Jesus como “profeta apocalíptico” (B. Ehrman) também não a aprovariam, por crerem que Jesus esperava outra pessoa para a instauração do Reino de Deus (retorno a esse assunto adiante). Um coisa, contudo, pode ter um fundo real: o contraste entre o ascetismo de João e o mundanismo de Jesus, uma diferença de ponto de vista que teria contribuído à separação dos dois.
Um olhar mais atento terá reparado que pulei algumas partes do “louvor”. São justamente as que expressam não os sentimentos de Jesus para com João, mas da rixa entre as comunidades que eles fundaram.
[topo]
A Batalha por Corações e Mentes
Mandeus: ainda hoje à beira d’água.
Retomando o “Louvor a João”:
Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele.
Q (Mt 11:11, Lc 7:28) e Tomé 46
Não sei se um elogio seguido de um escárnio seria uma atitude esperada de um “espírito evoluidíssimo”. Quem sabe de um pregador mais bronco e, muito mais provavelmente, de um rústico fiel defendendo sua crença. Esse versículo comum a Mateus e Lucas (obtido via Fonte Q com equivalente em Tomé) pode sugerir uma certa rivalidade entre o cristianismo nascente e os já constituídos discípulos de João.
De fato, logo no primeiro capítulo do evangelho de João, fala-se que os primeiros seguidores de Jesus também foram ex-discípulos de João Batista:
No dia seguinte João viu Jesus aproximando-se e disse:
“Vejam! É o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! Este é aquele a quem eu me referi, quando disse: Vem depois de mim um homem que é superior a mim, porque já existia antes de mim. Eu mesmo não o conhecia, mas por isso é que vim batizando com água: para que ele viesse a ser revelado a Israel”.Então João deu o seguinte testemunho:
“Eu vi o Espírito descer do céu como pomba e permanecer sobre ele. Eu não o teria reconhecido, se aquele que me enviou para batizar com água não me tivesse dito: ‘Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e permanecer, esse é o que batiza com o Espírito Santo’. Eu vi e testifico que este é o Filho de Deus”.No dia seguinte João estava ali novamente com dois dos seus discípulos.
Quando viu Jesus passando, disse: “Vejam! É o Cordeiro de Deus! ”Ouvindo-o dizer isso, os dois discípulos seguiram a Jesus.
Voltando-se e vendo Jesus que os dois o seguiam, perguntou-lhes: “O que vocês querem? ” Eles disseram: “Rabi”, ( que significa Mestre ), “onde estás hospedado? ”
Respondeu ele: “Venham e verão”. Então foram, por volta das quatro horas da tarde, viram onde ele estava hospedado e passaram com ele aquele dia.André, irmão de Simão Pedro, era um dos dois que tinham ouvido o que João dissera e que haviam seguido a Jesus.
O primeiro que ele encontrou foi Simão, seu irmão, e lhe disse: “Achamos o Messias” ( isto é, o Cristo ).
E o levou a Jesus. Jesus olhou para ele e disse: “Você é Simão, filho de João. Será chamado Cefas” ( que significa Pedro ).Jo 1:29-42
Além de João Batista praticamente “empurrar” alguns de seus discípulos para Jesus, algo mais impressionante é a declaração feita por ele no capítulo III.
Depois disso Jesus foi com os seus discípulos para a terra da Judeia, onde passou algum tempo com eles e batizava. João também estava batizando em Enom, perto de Salim, porque havia ali muitas águas, e o povo vinha para ser batizado.
( Isto se deu antes de João ser preso. )
Surgiu uma discussão entre alguns discípulos de João e um certo judeu, a respeito da purificação cerimonial. Eles se dirigiram a João e lhe disseram: “Mestre, aquele homem que estava contigo no outro lado do Jordão, do qual testemunhaste, está batizando, e todos estão se dirigindo a ele”.
A isso João respondeu:
“Uma pessoa só pode receber o que lhe é dado do céu. Vocês mesmos são testemunhas de que eu disse: Eu não sou o Cristo, mas sou aquele que foi enviado adiante dele. A noiva pertence ao noivo. O amigo que presta serviço ao noivo e que o atende e o ouve, enche-se de alegria quando ouve a voz do noivo. Esta é a minha alegria, que agora se completa. É necessário que ele cresça e que eu diminua. Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que é da terra pertence à terra e fala como quem é da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. Ele testifica o que tem visto e ouvido, mas ninguém aceita o seu testemunho. Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro. Pois aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, porque ele dá o Espírito sem limitações. O Pai ama o Filho e entregou tudo em suas mãos. Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele”.
Jo 3:22-36
Ou seja, João Batista decretara o fim de seu próprio movimento. Pode haver tanto de mito como verdade nessas passagens. A verdade estaria na maior facilidade de Jesus em angariar seguidores, mesmo tendo sido um retardatário. A chave pode estar na diferença de postura de cada um em relação ao mundo:
Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: “Ele tem demônio”.
Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: “Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e ‘pecadores “. Mas a sabedoria é comprovada pelas obras que a acompanham.
Q (Mt 11:18,9; Lc 7:33-6).
Enquanto João praticava uma espécie de ascetismo, Jesus ia em busca do mundo. Qualquer comparação com as diferenças de eficiência entre o marketing da Igreja Católica e o das seitas evangélicas, na história recente do Brasil, não será mera coincidência. O erro, entretanto, está em achar que João simplesmente abandonaria sua pregação em prol de outra com mensagem similar, mas métodos bem distintos dos seus. Se assim o fosse, haveria de se esperar um total desaparecimento dos discípulos de João após a morte do Mestre, absorvidos pelo cristianismo. Não foi o que aconteceu.
Em primeiro lugar, houve um movimento missionário entre os discípulos de João após sua morte. O próprio livro de Atos registra dois episódios de encontros entre eles e os apóstolos cristãos:
E chegou a Éfeso um certo judeu chamado Apolo, natural de Alexandria, homem eloquente e poderoso nas Escrituras. Este era instruído no caminho do Senhor e, fervoroso de espírito, falava e ensinava diligentemente as coisas do Senhor, conhecendo somente o batismo de João. Ele começou a falar ousadamente na sinagoga; e, quando o ouviram Priscila e Aquila, o levaram consigo e lhe declararam mais precisamente o caminho de Deus. Querendo ele passar à Acaia, o animaram os irmãos, e escreveram aos discípulos que o recebessem; o qual, tendo chegado, aproveitou muito aos que pela graça criam. Porque com grande veemência, convencia publicamente os judeus, mostrando pelas Escrituras que Jesus era o Cristo.
At 18:24-28
E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso; e achando ali alguns discípulos,
Disse-lhes: Recebestes vós já o Espírito Santo quando crestes? E eles disseram-lhe: Nós nem ainda ouvimos que haja Espírito Santo.
Perguntou-lhes, então: Em que sois batizados então? E eles disseram: No batismo de João.
Mas Paulo disse: Certamente João batizou com o batismo de arrependimento, dizendo ao povo que cresse no que após ele havia de vir, isto é, em Jesus Cristo. E os que ouviram foram batizados em nome do Senhor Jesus. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e falavam línguas, e profetizavam. E estes eram, ao todo, uns doze homens.Atos 19:1-7
Como material voltado ao público cristão, Atos sugere a conversão ao cristianismo como um passo natural aos discípulos de João Batista, embora não tenha isso sido regra. Em um documento de meados do século IV – Reconhecimentos Clementinos – um escritor ortodoxo descreve um suposto confronto entre os primeiros apóstolos e um discípulo do Batista:
E eis que um dos discípulo de João afirmou que João era o Cristo e não Jesus, visto que o próprio Jesus declarou que João era maior que todos os homens e todos os profetas.
– Se, então, – disse – ele for maior que todos, deve ser considerado maior que Moisés e que o próprio Jesus. Mas se for o maior de todos, então deve ser o Cristo.
Respondendo a isso, Simão, o Caanita, afirmou que João era, de fato, maior que todos os profetas e que todos os nascidos de mulher, embora não fosse maior que o Filho do homem. Portanto, Jesus é, também, o Cristo, enquanto João é apenas um profeta: e há tanta diferença entre ele e Jesus como entre o precursor e aquele de quem precursor ele é, ou entre o que dá a lei e o que guarda a lei. Tendo feito essas e similares declarações, o Caanita ficou em silêncio. Depois dele, Barnabé, que também é chamado Matias, que substituíra Judas como apóstolo [At 1:23-6], começou a exortar o povo de que não deveriam encarar Jesus com ódio, nem lhe maldizer. Afinal, seria bem mais adequado, mesmo aos que pudessem estar em ignorância ou em dúvida quanto a Jesus, amá-lo do que odiá-lo. Afinal, Deus afixou uma recompensa para o amor e uma penalidade para o ódio.
– Pois dado o fato – disse – de que ele assumiu um corpo judeu e nasceu entre os judeus, como isso não nos incitou todos a amá-lo?
Quando falara isso e mais para o mesmo efeito, parou.
Por último, vale a pena lembrar que ainda existem descendentes (indiretos, talvez) do antigo círculo de discípulos do Imersor. Tratam-se dos mandeus, uma minoria étnica estabelecida ao sul do atual Iraque e que toma João Batista como principal profeta, rejeitando Jesus (assim como, curiosamente, Moisés e Abraão). A origem deles é incerta, sendo uma das hipóteses a junção de um grupo de antigos batistas com algum gnosticismo judeu. Incerto, também,é seu destino com as atuais convulsões políticas do Iraque pós Saddam Hussein (cf. [Pereira]).
O Evangelho João: o Fim dos Imortais
Se o quarto evangelho é tido como “um estranho entre os canônicos”, sua versão do Batista não é menos díspare que a dos sinópticos:
João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça. Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou.
E este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és tu?
E confessou, e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo.
E perguntaram-lhe: Então quê? És tu Elias? E disse: Não sou. És tu profeta? E respondeu: Não.
Disseram-lhe pois: Quem és? para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes de ti mesmo?
Disse: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías.
E os que tinham sido enviados eram dos fariseus.
E perguntaram-lhe, e disseram-lhe: Por que batizas, pois, se tu não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?
João respondeu-lhes, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio devós está um a quem vós não conheceis. Este é aquele que vem após mim, que é antes de mim, do qual eu não sou digno de desatar a correia da alparca.Estas coisas aconteceram em Betabara, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando.
João 1:15-28
Esse extrato contém as duas únicas vezes em que o nome de Elias é mencionado nesse evangelho. Em nenhum outro trecho cogita-se identificar João Batista com ele, muito menos Jesus tenta lhe relacioná-lo. O batismo de Jesus é comentado de forma indireta em Jo 1:32-4 e o cárcere de João é apenas citado em Jo 3:24, sem menção à execução. O seu perfil muda bastante, como mostram as já transcritas passagens de Jo 1:29-42 e Jo 3:22-36, com um João Batista altamente cristianizado e chegando ao cúmulo de ordenar que seus discípulos o deserdem em prol de Jesus. A expressão “Cordeiro de Deus” (cf. Is 53) foi posta na boca de João, visto que reflete um desenvolvimento teológico posterior, quando o martírio de Jesus ganhou tão ou mais relevância que os princípios éticos e morais de sua pregação, algo condizente com a redação mais tardia desse evangelho. O mais discrepante, porém, é que, para este evangelista, seu xará não era Elias.
Isso também é reflexo da redação mais tardia do quarto evangelho. Um padrão observado, conforme se avança na estimativa da data do autrógrafo de cada evagelho, é uma progressiva perda do teor apocalípitico da mensagem da “boa nova”:
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- Em Marcos, durante o julgamento de Jesus perante o Sinédrio, o réu declara para o sumo sacerdore: “Eu o [o Cristo], e vereis o Filho do homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu” (Mc 14:62). Mensagem parecida se encontra em Mt 26:64;
- Lucas muda essa passagem de Marcos de forma curisosa “Desde agora o Filho do homem se assentará à direita do poder de Deus.” (Lc 22:69), ou seja, não é mais dito que o sumo sacertode chegaria a ver o fim daquela era. Ele deveria ter morrido;
- Em João (cap. 18), Jesus nada fala sobre a vinda do Filho do Homem perante o sumo sacerdote. No mesmo capítulo (v. 36), Jesus informa que seu reino “não é deste mundo“.
- Na terceira logia do evangelho gnóstico de Tomé, Jesus informa que o Reino já estaria presente, mas os não iniciados não o reconheceriam:” (…) Mas o reino está dentro de vós e está fora de vós. Se vos reconhecerdes, então sereis reconhecidos e sabereis que sois filhos do Pai Vivo. (…)“
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Ou seja, conforme se avança na data de redação de um evangelho, o advento do Reino de Deus progressivamente mais afastado, até praticamente inexistir (pois já estaria aqui) em Tomé. O evangelho de João, datado entre o final do primeiro século e começo do segundo, situa-se num período que deve ter sido crítico para as lideranças cristãs, quando a geração que conheceu Jesus já havia perecido sem conhecer a instauração do Reino de Deus na Terra. Com o “grande e terrível dia do Senhor” tardando em vir e João Batista morto há décadas, a associação entre ele e Elias se tornou problemática. As perguntas feitas pelos sacerdotes e levitas em Jo 1:21 deviam ser as mesmas que muitos fieis se faziam. Desvinculá-los e deixar o Reino para depois foram duas mudanças teológicas necessárias para os novos tempos, quando a função de João não era mais preparar o terreno, mas, sim, “dar testemunho“.
Outra mudança, contudo, não teve a ver com a simples passagem do tempo, mas com as próprias experiências da comunidade joanina. Expulsa da sinagoga e, em seguida, praticamente se definindo em oposição a ela (cf. Jo 8:31-59), ela rejeitou boa parte de seu legado judaico em prol daquele que fora o motivo de suas desavenças com seus antigos companheiros: Jesus. Para os membros dessa comunidade, o filho de Maria não era apenas o Messias, e sim algo muito maior:
Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu.
Jo 3:13
Agora, leiamos o Prólogo desse evangelho:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (…)
Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.Jo 1:1-5,9-14
Comparando-se as duas passagens, fica claro que o “Filho do Homem” não é mais uma expressão usada para designar um figura escatológica, como em algumas passagens dos sinópticos, mas um circunlóquio para o próprio Jesus. Ele, também sendo o Verbo de Deus encarnado, não admitia rivais em autoridade nem, como ser coeterno com Pai, um precursor. Isso gera conflitos com as supras mencionadas tradições judaicas de mortais ascendendo ao céu sem conhecer a morte – dentre eles Elias – e vinda de anunciadores. Como o assunto principal desse evangelho é o próprio Jesus – sua natureza e relação com Pai -, em vez da preparação para a chegada do Reino de Deus exposta nos sinópticos, isso não chega a ser um problema sério para João Evangelista, como o seria para o judaizante Mateus. Comentaristas ortodoxos deram (e dão) variadas harmonizações – como propor subdivisões celestes, deixando a última e mais refinada para Jesus -, entretanto nenhum desafio se compara a explicar como ser e ao mesmo tempo não ser Elias.
Nomes famosos se debruçaram sobre a questão.
Respostas da Ortodoxia Cristã
Limitando-se apenas ao canônicos, tem-se um panorama conflituoso quanto à relação entre João Batista e Elias:
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- Mateus e Marcos identificam diretamente os dois, não dando nenhuma origem a João. Possivelmente o Fineias/Elias imortal sob mais um nome;
- Lucas dá a João uma origem próxima a seus contemporâneos, não podendo mais relacioná-lo à tradição de Fineias/Elias. João passa a fazer uma papel simbólico de Elias;
- João evangelista nega que o Batista seja Elias.
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Então, há forte uma discrepância que precisaria ser sanada por quem quisesse usar os quatro evangelhos simultaneamente. A proto-ortodoxia cristã, como credo de compromisso entre diversas correntes cristãs que emergiram no começo do século II, aceitou esse desafio e criou curiosas harmonizações. Trago três dessas propostas feitas por membros da patrística, sendo dois deles especiais: um ainda é muito querido pelos espiritualistas mais desavisados e o outro – dizem – fazia parte da falange do Espírito da Verdade. Dado o desafio que encontraram, pode-se dizer que até se saíram bem.
Orígenes
Ainda tido erroneamente como adepto da reencarnação nos moldes do espiritualismo moderno, o sábio alexandrino é capaz de surpreender esses incautos:
Nosso primeiro erudito, cuja visão da transcorporação vimos ser baseada em nossa passagem, pode prosseguir com um exame mais detalhado do texto e argumentar contra seu antagonista que se João foi o filho de um homem como o sacerdote Zacarias e se nasceu quando seu pais já eram ambos idosos, contrariando todas as expectativas humanas, não é provável que tanto judeus em Jerusalém o desconhecessem, ou os sacerdotes e levitas por eles enviados não estariam a par dos fatos de seu nascimento. Não declara Lucas que “o temor veio sobre todos os que viviam por perto” (Lc 1:65), – claramente nas proximidades ao redor de Zacarias e Isabel – e que “todas essas coisas foram divulgadas por toda terra montanhosa da Judeia?” E se o nascimento de João a partir de Zacarias foi matéria de comum conhecimento e os judeus de Jerusalém já enviaram sacerdotes e levitas para perguntar, “És tu Elias?” então está claro em dizer que eles consideravam a doutrina da transcorporação com verdadeira e que ela era uma doutrina corrente de seu país, e não estranha aos seus ensinos secretos. João, portanto, diz, “Eu não sou Elias“, porque não sabe sobre sua vida prévia. Estes pensadores, assim, cogitam uma opinião que não deve de forma alguma ser desprezada. Nosso membro da Igreja, contudo, pode replicar à alegação e perguntar se é digno de um profeta, que é iluminado pelo Espírito Santo, que foi previsto por Isaías, e cujo nascimento por pressagiado antes que sucedesse por tão grande anjo, que recebeu da plenitude de Cristo, que partilha de tal graça, que sabe que a verdade vem por meio de Jesus Cristo e ensinou coisas tão profundas a respeito de Deus e do unigênito, que está no seio do Pai, é digno de tal indivíduo mentir ou mesmo hesitar, em razão da ignorância do que era. Pois com relação ao que estava obscuro, ele deveria ter se abstido de confessar, e não ter nem afirmado, nem negado a proposição que foi posta. Se a doutrina [da transcorporação] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.
Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7
É curioso que o próprio Orígenes assinale a inexistência da reencarnação entre os judeus contemporâneos seus, ao menos os que viviam no Egito e Palestina romanos, com os quais conviveu. E mais adiante:
Entretanto, um membro da Igreja, que rejeita a doutrina da transcorporação como falsa e não admite que a alma de João fosse a de Elias, pode se referir às palavras do anjo supra-citadas e assinalar que não é a alma de Elias que é dita ao nascimento de João, mas o espírito e poder (…)[τω προειρημενω λογω του αγγελου χρησεται ψυχην Ἠλιου μη ονομασαντος επι της Ἰωαννου γενεσεως αλλα πνευμα και δυναμιν].
Quanto aos espíritos dos profetas, estes são dados por Deus e são considerados como sendo, de certo modo, propriedades deles, como “Os espíritos dos profetas estão submissos aos profetas” (I Cor 14:32) e “o Espírito de Elias repousou sobre Eliseu” (2 Reis 2:15). Assim, diz-se, não há nada de absurdo supor que João, “no espírito e poder de Elias“, voltou o coração dos pais para os filhos e foi por causa deste espírito que foi chamado de “o Elias que deve vir”.
Idem. Texto grego de Migne, Patrologia Graeca, XIV, cols 219-220
Ao contrário do alguns alegam, o Comentário sobre João não está em contradição com as teses dele apresentadas em De Principiis, pelo contrário: Orígenes até defendeu, sim, a possibilidade de múltiplas existências corporais em Eras distintas, cada qual com sua própria criação e juízo final, mas haveria uma única existência física por Era! E pior: Orígenes não esteve sozinho nas distorções que a patrística sofreu nas mãos de escritores espiritualistas. Outra “vítima” famosa foi…
Agostinho de Hipona
Então o viram humilde e não o reconheceram. Mostrava-se a eles por meio de uma candeia [cf. Jo 5:35]. Pois em primeiro lugar ele, a quem ninguém superava entre os nascido de mulher, disse: “Não sou o Cristo“. E lhe disseram: “És tu Elias?“. Respondeu ele: “Não sou“. Já que Cristo enviou Elias antes dEle, e João disse “não sou“, e criou um problema para nós. Visto que é de se temer que os de pouco entendimento pensem que João contradisse o que Cristo falou. Pois em certo lugar, quando o Senhor Jesus Cristo disse algo no Evangelho sobre Si Mesmo, os discípulos Lhe responderam: “Como, então, dizem os escribas” – i.e, os peritos na lei – “que Elias deve vir primeiro?” E o Senhor disse: “Elias já veio e fizeram com ele o que quiseram“; e, se quereis saber, ele é Elias. O Senhor Jesus Cristo disse: “Elias já veio, e João Batista” é ele; mas João, sendo interrogado, confessou que ele não era Elias, do mesmo que confessou que não era Cristo. E como sua confissão de não ser Cristo era verdadeira, assim foi sua confissão de não ser Elias. Como, então, compararemos as palavras do mensageiro com as do Juiz? Longe de pensar que o mensageiro minta; visto que o que ouve do Juiz. Por que será, então, que aquele disse “não sou Elias” e o Senhor: “ele é Elias”? Porque o Senhor Jesus Cristo desejou prefigurar nele Seu próprio advento e assim dizer que João estava no espírito de Elias
[quia in spiritu Eliae erat Ioannes]. E o que João foi para o primeiro advento, tal será Elias para o segundo advento. Como há dois adventos do Juiz, assim há dois mensageiros. De fato, o Juiz era ele mesmo, mas dois são os mensageiros, não dois juízes. Era mister que na primeiro vinda o Juiz fosse julgado. Enviou antes dEle seu primeiro mensageiro; chamou o de Elias, porque Elias será no segundo advento o que foi João no primeiro.Tratado Sobre o Evangelho de João, IV, 5.
E o raciocínio de Agostinho talvez não seja original dele, pois, dois séculos e meio antes, alguém pensou algo parecido.
Justino
Justino, o Mártir, (100 – 165 d.C.) tido erroneamente por autores espiritualistas como crente na reencarnação, deixou o que talvez seja o relato mais antigo da opinião ortodoxa cristã a respeito do relacionamento Elias-João-Jesus.
Trifão replicou:
– Parece-me que os que afirmam que Jesus foi apenas homem e que por eleição foi ungido e tornado Cristo dizem coisas mais críveis do que vós, ao dizer o que dizes (*). Todos nós, com efeito, esperamos o Cristo, que nascerá como homem, de homens, e a quem Elias virá ungir. E este se apresenta como o Cristo, deve-se pensar absolutamente que é homem, nascido de homens. Contudo, pelo fato de Elias não ter vindo, afirmo que esse não é o Cristo.
Eu então perguntei-lhe novamente:
– A palavra de Deus, por meio de Zacarias, não diz que Elias virá antes do grande e terrível dia do Senhor?
Ele me respondeu:
– Certamente.
Eu continuei:
– Portanto, a palavra de Deus leva-nos a admitir que foram profetizadas duas vindas: uma, em que havia de aparecer passível, desonrado e disforme; outra, em que viria glorioso e como um juiz universal, como se demonstra pelos muitos testemunhos já alegados. Isso não nos leva a entender que a palavra de Deus anunciou que Elias seria precursor de Cristo na segunda vinda, isto é, do dia temível e grande?
Ele me respondeu:
– Certamente.
Eu continuei:
– Isso também nosso Senhor nos deixou em seus ensinamentos, quando disse que Elias devia vir, e nós sabemos que isso acontecerá quando nosso Senhor Jesus Cristo voltar do céu com glória. Na sua manifestação, o Espírito de Deus o precedeu como arauto, que esteve em Elias, também esteve em João, profeta do vosso povo, depois do qual nenhum outro profeta tornou a aparecer entre vós. Sentado junto ao rio Jordão, João gritava: “Eu vos batizo com água para a penitência; mas virá outro mais forte que eu, cujas sandálias não mereço carregar. Ele vos batizará com Espírito Santo e com fogo. Sua pá já está em sua mão, e ele limpa a sua eira, e reunirá o trigo no celeiro e queimará a palha com fogo inextinguível [Mt 3:11,2; Lc 3:16]”.
Vosso rei Herodes mandou prender no cárcere esse mesmo profeta e, durante a festa do seu aniversário, uma sobrinha sua o agradou muito com sua dança, ele falou que ela lhe pedisse o que desejasse. A mãe da jovem lhe sugeriu que pedisse a cabeça de João, que estava no cárcere; ela fez o pedido, e o rei mandou um carrasco e deu ordem que trouxesse a cabeça do profeta sobre uma bandeja. Foi por isso que o nosso Cristo, estando ainda sobre a terra, ao lhe dizerem alguns que antes do Cristo deveria vir Elias, respondeu: “Sim, Elias virá e restabelecerá tudo, mas eu vos asseguro que Elias já veio e não o reconheceram, mas fizeram com ele o que quiseram“. E está escrito que “então seus discípulos perceberam que ele havia falado de João Batista [Mt 17:11-3]”.
Trifão retrucou:
– Também me parece absurdo o fato de que digas que o Espírito profético de Deus, que esteve com Elias, também esteve com João.
Eu lhe respondi:
– Não te parece que o mesmo aconteceu com Josué, filho de Nave, que sucedeu a Moisés na direção do povo? Deus mandou que Moisés lhe impusesse as mão, dizendo: “Transferirei sobre ele parte do Espírito que há em ti [Nm 11:17]”.
– Certamente.
Eu continuei:
– Portanto, da mesma forma que, estando Moisés ainda entre os homens, Deus transferiu sobre Josué parte do Espírito que nele estava, assim também pode fazer que Elias o Espírito passasse para João. Assim como a primeira vinda de Cristo foi sem glória, também a primeira vinda do Espírito, apesar de permanecer sempre puro em Elias, foi sem glória, como a de Cristo. Com efeito, dizem que o Senhor guerreava contra Amalec com mão oculta. Entretanto, não podes negar que Amalec caiu. Se apenas com a vinda gloriosa de Cristo se dissesse que Amalec deveria ser combatido, que sentido teria a Escritura que diz: “Deus guerreia contra Amalec com mão oculta? [Ex 17:8-16]”. Portanto, podeis compreender que o Cristo crucificado teve alguma força oculta de Deus, pois diante dele os demônios e todos os principados e potestades da terra estremecem.Diálogo com Trifão, cap. XLIX
(*) Justino comentara, ao final do capítulo precedente, a existência de uma cristologia adocionista – Jesus se tornara Filho de Deus por ocasião do batismo, com a descida do Espírito Santo sobre ele – entre os judeus-cristãos. Justino, por sua vez, parece já professar uma alta cristologia (Jesus, de alguma forma, como Deus).
* * *
Se você partilha da fé desses pais da Igreja, então os argumentos estão até elegantes e bem estruturados. Do contrário, pouco pode ser feito e inúmeras explicações alternativas podem surgir, como todo sistema lógico é recriado após uma mudança em seu conjunto de premissas.
O que chama atenção nesses dois extratos é que contêm muitos dos argumentos ainda utilizados no cristianismo tradicional. De certa forma, tudo já foi dito há pelo menos 1800 anos. E as querelas continuam.
Mestre e Discípulo: Unidos pela Fé
Jesus (1999), de Roger Young. Na telinha, um Jesus tão humano quanto nós e ao mesmo tempo tão encantadoramente divino.
O Jesus Histórico, mantendo-se o olhar como profeta apocalíptico, e, com certeza, as primeiras comunidades cristãs advogavam a instauração do Reino de Deus na Terra pela chegada poderoso juiz escatológico chamado o Filho do Homem, mencionado acima. Contam-nos isso as mais antigas fontes sobre a pessoa de Jesus, a saber: Marcos, Q, L (o material exclusivo de Lucas) e M (o material exclusivo de Mateus):
Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos. Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder.
Mc 8:38-9:1
Ora, naqueles dias, depois daquela aflição, o sol se escurecerá, e a lua não dará a sua luz. E as estrelas cairão do céu, e as forças que estão nos céus serão abaladas. E então verão vir o Filho do homem nas nuvens, com grande poder e glória. E ele enviará os seus anjos, e ajuntará os seus escolhidos, desde os quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu. (…)Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam.
Mc 13:24-27, 30
Porque, como o relâmpago ilumina desde uma extremidade inferior do céu até à outra extremidade, assim será também o Filho do homem no seu dia. (…)E, como aconteceu nos dias de Noé, assim será também nos dias do Filho do homem. Comiam, bebiam, casavam, e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio, e os consumiu a todos. (…) Assim será no dia em que o Filho do homem se há de manifestar.
Q (Lc 17:24,26-7, 30)
Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até ao ocidente, assim será também a vinda do Filho do homem. (…)E, como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem. Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do homem.
Q, mesma passagem anterior, porém extraída de (Mt 24:27, 37-9)
Assim como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será na consumação deste mundo. Mandará o Filho do homem os seus anjos, e eles colherão do seu reino tudo o que causa escândalo, e os que cometem iniquidade. E lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá pranto e ranger de dentes. Então os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
M (Mt 13:40-43)E olhai por vós, não aconteça que os vossos corações se carreguem de glutonaria, de embriaguez, e dos cuidados da vida, e venha sobre vós de improviso aquele dia. Porque virá como um laço sobre todos os que habitam na face de toda a terra. Vigiai, pois, em todo o tempo, orando, para que sejais havidos por dignos de evitar todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar em pé diante do Filho do homem.
L (Lc 21:34-36)
A pregação escatológica de Jesus ou, pelo menos, das primeiras comunidades cristãs, remete à profecia de Daniel, quanto à chegada do Filho do Homem. Isso não difere de outros exemplares da literatura intertestamentária, como o supracitado I Enoque. O pormenor dos evangelhos é que neles encontra-se, também, uma identificação entre Jesus e o Filho do Homem: em certas passagens Jesus aparenta estar falando a seus ouvintes de uma terceira pessoa, noutras “Filho do Homem” é usado como um circunlóquio para ele mesmo. Afinal, o Jesus Histórico se via ou não como o esperado Juiz Escatológico?
A resposta pode estar nos próprio evangelhos, se repararmos as mudanças de redação que certas passagens sofreram ao longo do tempo. Por exemplo, em Mc 8:27, no mais antigo dos sinópticos, Jesus indaga: “Quem dizem os homens que eu sou?“, uma expressão que se repete de forma similar em Lc 9:18: “Quem diz a multidão que eu sou?“, entretanto em Mt 16:13 aparece “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?“. Lucas e Mateus absorveram essa passagem de Marcos, tanto que as respostas que os discípulos dão são as mesmas, porém Mateus trocou eu por Filho do homem. De forma análoga, em Mc 8:38 lê-se “qualquer que (…) se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele“, leitura acompanhada em Lc 9:26, ao passo que em Mt 10:33 está “qualquer que me negar diante dos homens, eu o negarei também diante de meu Pai, que está nos céus.“, não necessitando mais Jesus do intermédio do Filho do Homem. Na passagem de Q reconstituída acima com (Lc 17:24,26-7, 30)/(Mt 24:27, 37-9), foi excluído o versículo Lc 17:25 “mas primeiro convém que ele [o Filho do Homem] padeça muito, e seja reprovado por esta geração“, uma associação direta entre Jesus e o Filho do Homem que está ausente no capítulo XXIV de Mateus. Ou seja, houve uma tendência entre as comunidades cristãs a identificar Jesus com o Filho do Homem, especialmente por ocasião de sua esperada segunda vinda, conforme o tempo avançou. O Jesus Histórico, portanto, não se via como o Filho do Homem, mas anunciava sua vinda.
No caso de João Batista, segundo os sinópticos, ele teria pregado explicitamente a vinda de outro mais poderoso que ele:
Mc 1:7,8 | E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo. |
Mt 3:11,12 (Cf. Lc 3:16,17) |
E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que nunca se apagará. |
As fontes M e Q apresentam uma justaposição aqui, com um acréscimo na parte final de Q unida à anterior pelas palavras “e com fogo“. Alguns podem ver nisso uma alusão à descida do Espírito Santo em línguas de fogo no dia de Pentecostes (At 2:1-5), mas há um pormenor crucial aqui: a imersão no fogo é uma forma de castigo. A literatura apocalíptica do século registra algo assim:
1. Depois de sete dias eu tive um sonho durante a noite;
2 e eis que um vento surgiu do mar e despertou todas as suas ondas.
3. E olhei, e eis que esse vento fez algo parecido com a figura de um homem vir do coração do mar. E olhei, e eis que o homem voou com as nuvens do céu, e onde quer que ele virasse o rosto para olhar, tudo sob o olhar tremia,
4. e sempre que a voz era emitida de sua boca, todos os que ouviram a voz dele derreteram como cera derrete quando sente o fogo.
5. Depois destas coisas olhei, e eis que uma multidão inumerável de homens estava reunida desde os quatro ventos do céu para fazer a guerra contra o homem que veio do mar.
6. E olhei, e eis que ele esculpiu para si próprio uma grande montanha, e voou em cima dela.
7. E eu tentei ver a região ou local em que a montanha foi esculpida, mas não consegui.
8. Depois destas coisas olhei, e eis que todos os que estavam reunidos contra ele, para travar a guerra com ele, estavam com muito medo, ainda se atreveram a lutar.
9. E eis que, quando viu a investida da multidão se aproximando, ele não levantou a mão nem empunhava uma lança ou qualquer arma de guerra;
10. mas eu só vi como ele lançou de sua boca algo como se fosse um rio de fogo, e de seus lábios um hálito flamejante, e de sua língua, ele lançava uma tempestade de faíscas.
11. Todos esses foram misturados juntos, o fluxo de fogo e do hálito flamejante e a grande tempestade, e caíram sobre a multidão crescente que estava preparada para lutar, e queimaram-nos todos, de modo que de repente, nada foi visto da multidão inumerável mas apenas a poeira de cinzas e o cheiro de fumaça. Quando eu o vi, fiquei espantado.
(…)
21. “Eu vou dizer-lhe a interpretação da visão, e também vou explicar-lhe as coisas que você mencionou.”
(…)
35. Mas ele deve estar no topo do Monte Sião.
36. E Sião virá e se manifestará a todas as pessoas, preparada e construída, como você viu a montanha esculpida sem mãos.
37. E ele, meu filho, vai reprovar as nações reunidos para a sua impiedade (isto foi simbolizado pela tempestade),
38. e irá repreendê-las para o seu rosto com os seus maus pensamentos e os tormentos com que estão a ser torturado (que eram simbolizados pelas chamas), e vai destruí-los sem esforço pela lei (que foi simbolizado pelo fogo) .4 Esdras, cap. XIII
Com um pouco de conhecimento da lei mosaica, sabe-se que ela não é nem um pouco clemente com os que andam fora dela. Não é para se tomar João como um crente em alguma versão das visões de 4 Esdras, mas tanto ele como o anônimo autor desse livro anunciavam a vinda de um poderoso juiz escatológico, uma ideia que remonta a Daniel. Tal como fazia Jesus, que herdara essa mensagem de seu mestre. Como o nazareno se tornou o Filho do Homem após a crucifixão é que é outra história…
Mestre e Discípulo: Separados pelo Ministério
O Banquete de Levi, de Paolo Veronese (1573)
Nos sinópticos, após a execução de João Batista, somos apresentados à história da reação de Herodes Antipas aos primeiros rumores sobre Jesus em sua corte:
E ouviu isto o rei Herodes (porque o nome de Jesus se tornara notório), e disse: João, o que batizava, ressuscitou dentre os mortos, e por isso estas maravilhas operam nele. Outros diziam: É Elias. E diziam outros: É um profeta, ou como um dos profetas. Herodes, porém, ouvindo isto, disse: Este é João, que mandei degolar; ressuscitou dentre os mortos.
Mc 6:14-16 (Cf. Mt 14:1-2; Lc 9:7-9).
O fato de Jesus chegar a ser confundido pelo povo com João Batista (cf. Mc 8:27-8) sugere que ao menos em linhas gerais suas práticas (como o batismo) e pregação deveriam se assemelhar às dele. Contudo, algumas diferenças começaram a saltar aos olhos de quem o acompanhou de mais perto:
Ora, os discípulos de João e os fariseus jejuavam; e foram e disseram-lhe: Por que jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, e não jejuam os teus discípulos?
E Jesus disse-lhes: Podem porventura os filhos das bodas jejuar enquanto está com eles o esposo? Enquanto têm consigo o esposo, não podem jejuar;
Mas dias virão em que lhes será tirado o esposo, e então jejuarão naqueles dias.Mc 2:18-20 (cf. Mt 9:14-5; Lc 5:33-5)
O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo.
O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!L (Lc 18:11-13)
Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: “Ele tem demônio”.
Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: “Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores “. Mas a sabedoria é comprovada pelas obras que a acompanham.
Q (Mt 11:18,9; Lc 7:33-6).
João e os fariseus praticavam uma espécie de purgação espiritual por meio do jejum. Teria sido essa prática abandonada por Jesus ou pelos primeiros cristãos? Bem, condenada não foi, pois até mesmo no Sermão da Montanha ele não se opõe ao jejum, mas a regula como deveria ser:
Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que eles já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuardes, unge a cabeça e lava o rosto, com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.
Mt.6:16-18
O que ocorreu foi uma mudança foco: não era necessário que alguém se arrependesse para daí ser aceito no círculo de Jesus. Em vez de ser um mero “profeta ameaçador”, Jesus ia até “os pecadores” e se envolvia com eles, em vez de esperar que fossem atrás da “boa nova” por conta própria. Outro motivo seria que Jesus realmente gostava de comemorar a chegada do Reino:
“O tempo é chegado”, dizia ele. “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!” Mc 1:15, Mt 4:17
João também cria na iminência do Reino, mas há uma sutil diferença em relação a Jesus: enquanto o mestre acreditava numa intervenção unilateral divina para muito em breve, seu discípulo já defendia uma antecipação do Reino valendo já para seus ouvintes e até por meio deles. Só haveria amor no Reino de Deus, então as pessoas deveriam se amar desde já; não haveria miséria, então todos já partilhariam os bens com os necessitados; como o Mal seria derrotado, que os demônios já fossem expulsos; não haveria doença, que as pessoas fossem curadas desde já; e, por fim, não haveria mortes, o que seria evidenciado pela ressurreição de alguns.
Óbvio que exorcismos, curas, ressurreições e outros prodígios estão no domínio da fé e nem há como avaliar sua veracidade, mas atestam como Jesus era visto pelos seus seguidores: um emérito produtor de sinais, coisa que, aparentemente, João Batista nunca foi e os seguidores de Jesus aproveitavam isso para cutucar os de Elias (cf. Q – Mt 11:4,5 e Lc 7:21,2). É um traço que distingue o mestre de Elias – que também foi milagreiro, porém em grau bem mais modesto – e que contribuiu para o discípulo ser confundido com o tisbita.
Infelizmente para ambos, o Reino de Deus não veio. O “noivo” foi tomado dos seguidores de Jesus e eles voltaram a jejuar (8).
De Mestre a Precursor, de Discípulo a Messias
Jesus reinando no Céu, ladeado por Maria e João Batista: detalhe de mosaico da fachada da Basílica de S. Marcos, em Veneza.
Mal comparando, se tanto o Jesus Histórico, quanto o João Batista Histórico fossem quebra-cabeças de 1000 peças, eu diria que do primeiro restariam 100 e do último apenas 10. Desses valores, claro, foram expurgadas peças alienígenas inseridas pelas primeiras comunidades cristãs, que queriam deixá-los mais próximos do que lhes convinha. Quanto à imagem do retrato de cada um constante na embalagem, que nos ajudaria a remontá-los, restam as bordas: o contexto social do judaísmo do primeiro século. Fazendo um balanço desse material, o que pode ser dito, com alguma certeza, a respeito do Mestre?
Bem:
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- Existiu um pregador contemporâneo de Jesus chamado João: isso parece um truísmo, nas não o é. Diversos personagens da Bíblia, inclusive do Novo Testamento, tem sua historicidade posta em dúvida modernamente, como José de Arimateia. A múltipla atestação de João Batista (Marcos, Q, Josefo e, de certa forma, Tomé), o relato do Batismo de Jesus por ele (fato embaraçoso aos primeiros cristãos, mas não negado por eles) e o teor da mensagem condizente com as expectativas da época são pontos positivos para atestar sua existência concreta;
- Era judeu: não esquecendo que era um judeu do primeiro século, quando o cânon ainda estava em aberto, havia um maior pluralismo teológico – inclusive no significava “seguir a Lei” -, além de grande expectativa escatológica. Tudo isso mudou após as revoltas fracassadas contra o domínio romano, com a dispersão do judeus, destruição do Templo e consolidação da autoridade rabínica. Daí seguiram-se quase dois mil anos de evolução em separado do judaísmo. Avaliar o judaísmo do Segundo Templo com base nos ortodoxos modernos é preciso quanto avaliar os primeiros cristãos a partir do catecismo católico de hoje;
- Era apocalipcista: além de estar em conformidade com o espírito (e literatura) da época, suas palavras remanescentes nos sinópticos têm esse enfoque;
- Pregava o arrependimento: consequência direta da expectativa da vinda iminente do Reino de Deus;
- Tal arrependimento estava associado ao ritual do batismo: a ideia da água como elemento purificador ou mediador da purificação é recorrente no judaísmo, sendo encontrado na literatura hebraica clássica (Lv 15:5-27, Nm 19:19, 2 Re 5:10-15), em Qumran (1QS 3:5-9 e 5:13-14, 4Q414 e 4Q512) e até no Novo Testamento, mesmo em passagens sem relação com o Batista (Jo 5:1-9). O diferencial dele era realizar uma única e definitiva vez o ato, como uma espécie de rito de passagem. Um legado dos batistas originais ao cristianismo;
- Teve discípulos e houve, por algum tempo, um movimento batista: diferentes fontes, canônicas e não, fazem alusão a discípulos de João interagindo com os de Jesus;
- Pregava nos sertões da Palestina: também multiplamente atestado;
- João batizou Jesus: como já explicado, um indivíduo com um status religioso inferior (embora ainda notável) iniciando outro com um muito superior teria sido constrangedor aos primeiros cristãos. Como não esconderam o fato (provavelmente porque seriam denunciados) e, em vez disso, o reinterpretaram, isso deve ter acontecido;
- Jesus considerava João uma grande figura: as alusões quanto à humildade de João – Q (Mt 11:7-8, Lc 7:24-5) e Tomé 78 – e seu elogio como o “maior entre os nascidos de mulher” – Q (Mt 11:11, Lc 7:28) e Tomé 46 – , apontam nessa direção. O demérito que o exclui do Reino de Deus nessa última passagem, por sinal, aparenta ser um acréscimo dos primeiros cristãos a competir com os batistas;
- João foi preso e executado a mando de Herodes Antipas: episódio com várias atestações distintas, a questão são os pormenores dessa execução;
- João entrou em choque com Herodes Antipas: se fosse um mero sábio a dar conselhos morais, não havia motivo algum para sua prisão. É provável que sua crítica ao casamento com Herodias estivesse entre um de seus ataques;
- Sua mensagem teve grande alcance: além do testemunho de Josefo, essa conclusão também deriva da própria execução de João, do contrário ele não representaria perigo.
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Ao lado dessas, existe um conjunto de afirmações prováveis a respeito de João Batista:
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- Pregava a vinda de alguém maior que ele (Mc 1:7, Lc 3:16 e Mt 3:11): Como judeu apocalipcista do primeiro século, é bem provável que anunciasse a vinda do Filho do Homem;
- Jesus foi discípulo de João: os sinópticos mostram o batismo de Jesus como uma espécie de “investidura do cargo”, confirmada pela descida do Espírito Santo. O provável é que um operário de pouca instrução recebesse alguma iniciação de um mentor, cuja mensagem ética e profética absorveria e, em seguida, levaria a um novo patamar. Isso não significa necessariamente que tenha sido um companheiro itinerante por longo tempo, mas que, de início, aceitou as premissas do movimento;
- Jesus teve alguma experiência visionária: o batismo marcano, a transfiguração e as tentações no deserto são as únicas narrativas evangélicas que podem ser classificadas como visões (Lc 10:18 está mais para simbolismo). Não faço juízo de valor quanto a fatualidade dessas visões, pois elas podem ser extremamente reais para quem as vivencia e serem ignoradas por todo o resto. Esse número de visões registradas é pequeno para se dizer que elas eram corriqueiras na experiência de vida do Jesus Histórico. Entretanto, o legado dos evangelhos possui um pano de fundo de curas, longas orações e um relacionamento especial com Deus e o sobrenatural (seja ele real ou não) que aumenta a probabilidade de ter havido uma experiência de “chamamento para a ação”. Só é duvidoso que esse chamado veio na forma de pomba no instante exato do batismo, para todos os presentes;
- Jesus rompeu deliberadamente com os batistas: os sinópticos partem direto do batismo de Jesus para uma estadia no deserto e, daí, a pregação de Jesus na Galileia (região ainda intocada pela mensagem do arrependimento), Josefo nada fala do relacionamento entre Jesus e João, em Q (Mt 11:2 e Lc 7:19) só no cárcere João toma conhecimento dos feitos de Jesus e em At 13:25 fica implícito que, ao menos para a comunidade de Lucas, os dois se encontraram já pelo fim da atividade de João. Jesus não foi importante para os batistas, sendo apenas mais um entre tantos, e sua saída não deve ter sido sentida no começo, nem motivada por algum cisma traumático. Do lado de Jesus e seus seguidores, em duas fontes distintas – Q (Mt 11:11, Lc 7:28) e Tomé 46 – Jesus tece elogio elevado seguido de uma depreciação. Ainda que possa haver um viés cristão na hora de depreciar, fica claro que o movimento iniciado por Jesus se via como superior e não uma mera franquia do original. É provável que Jesus tenha trilhado seu próprio caminho após se esgotarem as possibilidades que o movimento batista tinha a oferecer. Quando isso se deu é incerto, mas um evento candidato é a prisão de João;
- Alguns discípulos do Batista passaram a seguir Jesus: Apenas no quarto evangelho isso é dito claramente, com a escolha de André e Pedro por Jesus, que até então eram discípulos do Batista (Jo 1:40-2). Nos sinópticos, contudo, nada é dito da relação deles com o Batista quando Jesus os chama para serem “pescadores de homens” (Mc 1:17; Mt 4:18-19). Isso poder até ser harmonizado com pouco esforço especulativo, mas nada concilia o fato de que o ingresso deles no movimento de Jesus se dá antes da prisão de João Batista no quarto evangelho (Jo 3:22-4) e, no caso dos sinópticos, depois (Mc 1:14; Mt 4:12). O maior indício de que houve um afluxo de batistas para o cristianismo nascente deve estar em Lucas. Dos evangelistas, ele é o único a admitir que trabalhou com fontes prévias (Lc 1:1-4). Uma delas, cogitada pelos acadêmicos, é Marcos, que deu o fio narrativo, e outra são os ditos da hipotética “Fonte Q”. O restante é classificado genericamente como pertencente à “Fonte L” de versículos exclusivos de Lucas. Entre eles estão supostos ditos da pregação do Batista (Lc 3:10-4) que podem, sim, ter vindo discípulos dele. Não necessariamente foi, de início, uma “deserção”, mas uma sobreposição de pessoas que ouviam a mensagem tanto de um como do outro;
- Por algum tempo, o movimento batista competiu com o de Jesus: As alfinetadas que os evangelistas dão em João – desmerecendo-o pouco após elogiá-lo e aludindo a perda de fieis -, além de relatos da literatura patrística sugerem que sim. A questão em aberto é se essa rivalidade existiu ou não ao tempo em Jesus estava vivo. É possível que o discípulo, inicialmente, apenas preenchesse o vácuo deixado pelo mestre (na Galileia, por exemplo) e passado a agir entre judeus também após a execução de João.
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Agora, gostaria de relatar uma série de hipóteses plausíveis, mas que também ostentam uma grande interrogação perante nós:
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- João tinha origem sacerdotal: embora os pormenores da filiação de João, como visto acima, aparentem ser um fabrico, seu pano de fundo, não. O primeiro capítulo de Lucas traz descrição acertada da rotina dos sacerdotes do I século da Era Comum: a existência de divisões entre os sacerdotes (1:5, 8), a oferta de incenso (1:9), o fracionamento do tempo de serviço (1:8, 21), a tendência a casamentos endogâmicos entre as famílias sacerdotais (1:5), as moradias em regiões rurais (1:39, 65). Assim, embora não tenha mais de uma atestação, está conforme o contexto social da época. Essa precisão sugere uma fonte escrita de origem judaica (lembre-se: Lucas foi escrito em grego), quiçá batista, que foi posteriormente cristianizada;
- João Batista foi essênio por algum tempo: Uma Mensagem apocalíptica, o uso da água em purificação ritual e atitudes ascéticas no cotidiano são elementos que João possuía em comum com a seita do Mar Morto. O que não chega a ser uma prova de pertinência a essa facção, dado que podiam ser encontrados fora dela, também. Não há impeditivo para que João nascesse em família sacerdotal e, já crescido, passasse sua juventude entre os essênios, por conta própria;
- João Batista foi tido por Elias ainda em vida, de alguma forma: O Evangelho de João é o único em que o Batista é interrogado pessoalmente quanto a sua origem (Jo 1:20-28). Embora, não seja possível aventar a historicidade desse episódio, a negativa dele pode significar uma mensagem admoestadora aos seus discípulos, tal como a ordem atribuída a João para que o abandonassem e seguissem a Jesus (Jo 1:29-42). Supondo-se que os batistas ainda tomassem João por Elias na segunda metade do primeiro século, não muito diferente deveria ser com os antigos cristãos, como fica implícito em Marcos (Mc 9:9-13) e, quiçá, Q (Mt 11:12-15), porém não da mesma forma. Em Marcos, quando Jesus indaga quem o povo pensa que ele é, as respostas são variadas: João Batista, Elias, outro profeta (Mc 8:27-9). Nenhuma dessas especulações, obviamente, estava certa e apenas seus discípulos achegados sabiam que ele era o Cristo (o que não poderiam contar, conforme o “secretismo” marcano). Ora, se a massa do povo, sem conhecimento das origens de Jesus, atribuía-lhe diversas identidades, o mesmo não poderia ter sido feito a João Batista por aqueles que não lhe fossem próximos, como Marcos e Mateus, cujos evangelhos são desprovidos de uma natividade para João? Por outro lado, quem conheceu João Batista em sua intimidade, como seus discípulos, ou baseou-se numa (possível) fonte batista, como Lucas, não o poderia fazer. Pelo menos não como um retornado Fineias/Elias. Assim os ignorantes quanto ao passado de João o consideraram um Elias retornado, ao passo que seu círculo próximo o teve como um Elias em poder e espírito. O que deixa essa hipótese em dificuldade é que isso deveria ter ocorrido antes da decapitação de João, que lhe retirou as chances de ser associado a um profeta bem sucedido entre a população. Contudo, tanto a fala atribuída a Jesus após a transfiguração em Marcos (Mc 9:9-13) quanto a natividade de Lucas dão a entender que a associação entre Elias e João Batista não era ainda de aceitação geral durante seu ministério, um indício de que foi uma construção da Igreja primitiva;
- João Batista imitava Elias: Não é difícil encontrar paralelos feitos entre essas duas personagens:
- Eram profetas;
- Eram audazes (I Re 18:27/Lc 3:7);
- Passaram parte do tempo no deserto;
- Usavam vestes de pelo com um cinto de couro (II Re 1:8/ Mc 1:6 – Mt 3:4 );
- Entraram em choque com casais de regentes iníquos.
Seria possível, então, que João emulasse deliberadamente Elias para aumentar sua popularidade? Sim, seria possível. Também, claro, deveria se fazer vista grossa às diferenças. Algumas simples, como o estilo de alimentação e outras imensas, como a total ausência de milagres ou sinais atribuídos a João, ao passo que Elias teria feito vários. Ademais, Josefo identificou ao menos uma outra figura que também tinha similaridades com o Batista:
Quando tinha eu cerca de dezesseis anos, tive a ideia de provar das diversas seitas que existiam entre nós. Havia três delas, a dos fariseus, os saduceus e a dos essências, como frequentemente lhes disse. Pensava que me familiarizando com todas elas, poderia escolher a melhor. Então me entreguei às asperezas, e me submeti a grandes dificuldades, e passei por todas elas. Nem mesmo me contentei em experimentar apenas dessas três, pois quando tomei ciência daquele cujo nome era Bano, que vivia no deserto, e não usava outra vestimenta senão o que crescia sobre as árvores, e não tinha outro alimento senão o que crescesse por conta própria, e se banhava em água fria frequentemente, tanto de dia como de noite, a fim de se purificar. Eu o imitei nessas coisas e fiquei com ele três anos.
Flávio Josefo, Autobiografia, segundo parágrafo
Como a maioria dos leitores deve ter reparado, João não se vestiu exatamente com “cascas e folhas de árvores”, mas sua indumentária não deve ter sido exclusiva sua:
E acontecerá naquele dia que os profetas se envergonharão, cada um da sua visão, quando profetizarem; nem mais se vestirão de manto de pelos, para mentirem.
Zc 13:4
Assim, é possível que João Batista apenas seguisse as tendências comuns aos pregadores do deserto. O mais provável, contudo, é que Marcos (e, por conseguinte, Mateus) descrevesse João à semelhança de Elias propositadamente.
- João Batista cogitou ser Jesus seu sucessor: o fato de em Q (Mt 11:2 e Lc 7:19) João ter enviado discípulos para indagar qual à natureza da missão Jesus, contrasta com o suposto reconhecimento imediato pelo primeiro da superioridade do segundo por ocasião do batismo. Teria João ficado amnésico na prisão? Embora o batismo de Jesus por João tenha um bom grau de historicidade, a identificação da relação entre um e outro não o tem. Outra dúvida era qual o tipo de sucessor aguardado. Se ele aguardava algum tipo de messias aarônico é possível que o Jesus Histórico se enquadrasse nessa expectativa em virtude de sua pregação. Agora, um messias davídico é algo mais difícil na ausência de um poder militar, muito menos um angélico; que seria o mais provável da pregação apocalíptica do Batista. O Jesus da fé, contudo, só se tornou o escatológico Filho do Homem após a morte;
- Herodias instigou a execução de João Batista: em Antiguidades Judaicas, cap. XVIII, Josefo informa que Herodes Antipas era casado com uma filha do rei da Arábia Pétrea (que compreendia a península do Sinai e parte da atual Jordânia), antes de conhecer Herodias, numa estadia em Roma. Teria sido por exigência dela que se divorciou logo após retornar, o que desencadeou um guerra entre os reinos. Se a ascendência de Herodias sobre o novo marido era tão grande a ponto de ele se dispor a causar um conflito, muito menos difícil seria matar um profeta, não? Talvez nem tanto. Tal como houve uma tendência nos evangelhos a reduzir a responsabilidade dos romanos (i.e., o poder imperial) na condenação e execução de Jesus e aumentar a dos judeus, incrementar o peso da influência de Herodias na morte do João seria uma forma de aliviar a culpa de Herodes, governante local apoiado pelos romanos.
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Por fim, alguns fatos e episódios das narrativas evangélicas cuja historicidade pode ser dada como improvável:
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- Os pais de João Batista se chamavam Zacarias e Isabel: sem interferir na possibilidade de João ter tido origem sacerdotal e, tal como outros pormenores de sua natividade comentados anteriormente, os nomes de seus pais parecem ter sido escolhidos a dedo para realçar as qualidades dele como profeta. O anjo Gabriel utilizou as palavras de Malaquias (Lc 1:17) para se referir à missão da qual o filho de Zacarias seria incumbido. Ora, “Zacarias” é o profeta que intitula o livro que antecede o de Malaquias, na ordenação da LXX. Além disso, a abertura do ministério de João (Lc 3:1-2) tem uma estrutura similar (embora ampliada) a do primeiro versículo do livro de Zacarias. Assim, Lucas pretende mostrar que a nova aliança começa com o arauto de Malaquias, sucedido por um novo Zacarias e que “a lei e os profetas foram até João” (Lc 16:16). Outras “coincidências” também surgem: Zacarias foi o nome do último mártir do Antigo Testamento (II Cr 24:21,2), que também era sacerdote e profeta (II Cr 24:20), e Zacarias pertencia à ordem sacerdotal de Abias (Lc 1:5), a oitava da relação dada em I Cr 24, precedendo justamente a de Jesua. O nome de sua mãe também parece ser teologicamente motivado, pois por Isabel era chamada a esposa de Aarão (Ex 6:23) e a mãe do Batista era justamente uma das “filhas de Aarão” (Lc 1:5). Não apenas isso: a Isabel de Êxodo tinha uma parenta muito mais importante que era sua cunhada e profetiza Miriam, provável versão hebraica de Maria;
- Maria e Isabel eram aparentadas: e, por conseguinte, Jesus e João Batista. Primeiramente, isso só é atestado em Lucas, em uma única passagem (Lc 1:36). Nem por ocasião do batismo de Jesus (cap. 3) há alguma conversa “entre parentes”. E mais: a menção ao parentesco das duas aparece como um aposto feito pelo anjo Gabriel, em vez de algo explanado pelo narrador. Soa como se fosse um acréscimo feito pelo redator de Lucas à uma tradição prévia da Anunciação. Por fim, como explanado no item anterior, uma relação familiar entre ambas, estando Maria em posição superior, iria bem ao encontro dos interesses teológicos dos primeiros cristãos;
- João Batista era essênio por ocasião de seu ministério: uma das características das comunidades essênias era a vida apartada do restante da sociedade. João, em seu ministério, não era “mundano” como Jesus, mas também não era tão isolado como os membros da seita do Mar Morto. Vivia uma espécie de meio termo: longe das grandes concentrações o bastante para se dizer que pregava nos sertões, mas ainda perto o bastante para o povo poder ir até ele. Se João Batista foi essênio alguma parte da vida, já devia ter abandonado o movimento;
- João Batista era apenas um mestre de sabedoria, como o eremita Bano; se assim fosse, seria inofensivo e teria morrido de velhice ou doença, salvo algum atentado de criminosos comuns. João foi um mestre de sabedoria também, mas não somente isso;
- O Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma de pomba: Bem-vindos ao domínio da fé! Essa passagem está em Marcos, tendo sido copiada por Mateus e Lucas. O quarto evangelho, por sua vez, também faz uma alusão independente ao episódio (Jo 1:32), permitindo, assim, que seja dado como multiatestado. Isso poderia ser um ponto positivo para sua fatualidade caso ele ela não fosse, justamente, bem ao encontro da agenda teológica dos primeiros cristãos em retratar Jesus como o Messias esperado. Esse episódio estaria numa situação parecida com o da ressurreição de Jesus – algo que permeia a literatura cristã primitiva, mas sobre o qual pouco se pode afirmar de concreto – se não fosse a discrepância entre seus desdobramentos. A ressurreição é o “marco zero” do cristianismo, tenha sido ela real, uma alucinação coletiva ou, no pior caso, uma fraude. A crença de que Jesus, de alguma forma, venceu a morte foi o que garantiu continuidade ao seu movimento e evitou que ele se tornasse mais um dos profetas palestinos fracassados do primeiro século. Por outro lado, a descida do Espírito Santo por ocasião do batismo de Jesus deveria ter marcado o fim do movimento batista, afinal estaria apontado quem sucederia o Imersor. Não foi o que ocorreu. Chega até a ser contraditório que a fonte Q (Mt 11:2,3 e Lc 7:19,20) apresente João Batista ainda em dúvida se Jesus era quem ele esperava, após tão forte experiência. Outro João, o evangelista, escrevendo bem depois dos supostos fatos, pode ter reparado na incompatibilidade dessas duas tradições circulantes entre os cristãos e abandonou a segunda. Em seu relato, João Batista prontamente identifica Jesus e, na primeira oportunidade, fala para seus discípulos o seguirem. Enfim, se a visão da pomba ocorreu, é mais provável ter sido uma experiência pessoal de Jesus de Nazaré que algo compartilhado com João ou algum presente;De fato, em outro fragmento do supracitado Evangelho dos Hebreus (EvHeb), e também preservado por Jerônimo, aparece outra descrição do episódio:
Conforme o evangelho que, escrito em língua hebraica, é lido pelos nazareus, descerá sobre ele [Jesus] toda fonte do Espírito Santo … Além disso, encontramos escrito no evangelho que acabamos de citar:
“Aconteceu, porém, que ao sair o Senhor da água, toda a fonte do Espírito desceu sobre ele, repousando sobre ele, dizendo: ‘Meu filho, em todos os profetas eu esperava por ti, que tu viesses e eu repousasse em ti. Pois tu és o meu repouso, tu és meu primogênito, que reinas para sempre'”.
Comentário sobre Isaías cap. XII, vv. 1-2. (Original latino: Patrologia Latina, Migne, vol. XXIV, cols.144-5
(Embora fale “nazareus”, a crítica mais recente o considera como parte de EvHeb. Cf. [Klauck, p.57]).
Se formos conferir Is 11:2, leremos: “repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de conhecimento e de temor do Senhor“, que encontra eco em livros deuterocanônicos como:
Ela [a Sabedoria] se derrama de geração em geração nas almas santas e forma os amigos e os intérpretes de Deus. (Sb 7:27)
Entre todas as coisas procurei um lugar de repouso, e habitarei na moradia do Senhor. (Eclo 24:11)
Negligenciaste a fonte da sabedoria. (Br 3:12)
Assim, embora não haja pomba alguma e nem uma voz que ecoe do céu, essa versão judaizante do batismo de Jesus não é propriamente algo que se possa considerar com mais chances de ser verídico, visto que, em verdade, apenas substitui um mito cristão por outro sapiencial judaico;
- Salomé exigiu a cabeça de João Batista numa bandeja: história narrada em Mc 6:21-9, com paralelo em Mt 14:6-11, em que Herodias manipula Hedores por meio da filha que teve em seu casamento prévio, Salomé. Os pormenores do episódio espantam justamente por isso: como as minúcias dessa tramoia teriam chegado aos ouvidos alheios? Mãe e filha não teriam tomado cuidado para estarem a sós, longe de algum simpatizante do batista? Ainda que as paredes tivessem ouvidos, Flávio Josefo relatou que João fora trancafiado na fortaleza de Maqueronte, um local improvável para a realização de um banquete onde Salomé executasse uma dança para convidados nobres. Mais adequado seria o palácio real. Agora, algum estafeta sairia da corte para Maqueronte a fim de comunicar a ordem e voltaria a tempo com a cabeça, ou todos ficariam esperando por sua chegada? Ademais, Josefo também é silente quanto às circunstâncias da execução e Lucas, o evangelista que possivelmente se valeu de fontes batistas, coloca na boca de Herodes (Lc 9:7-9) a notícia da decapitação de João, desconsiderando sua esposa e enteada. Enfim, essa história tem forte cheiro de boato. Se há algo a dizer em favor de sua veracidade, seria o fato de a realidade, às vezes, conseguir ser mais bizarra que qualquer ficção e a possibilidade de Josefo estar errado, tendo sido João trancafiado num suposto calabouço do palácio (um lugar ruim para se manter um agitador). A título de curiosidade, o nome Salomé não aparece nos evangelhos, mas sim na obra de Josefo Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. V.
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Dadas essas considerações sobre o que pode ou não ter acontecido, venho propor uma sequência cronológica da possível evolução do contexto sociocultural em que viveu a dupla João Batista/Jesus de Nazaré, tendo-os tanto como agentes da História quanto pacientes dela.
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- VIII a.C.: conquista de Israel pelos assírios (732 a.C.), com a deportação de parte de sua população original e a colonização por povos aliados;
- VI a.C. – Cativeiro de Babilônia: Judá tem destino semelhante ao do seu irmão setentrional quando é conquistado pelo Novo Império Babilônico de Nabucodonosor: sua capital, Jerusalém, é saqueada e o Templo destruído. Parte da população foge para os reinos vizinhos – iniciando a diáspora judaica -, parte é deportada para o coração do Império conquistador e lá permanece por quase 70 anos (586 – 538 a.C.) e a parcela mais humilde é autorizada a ficar. Esse período se encerra com a conquista da Babilônia pela nova potência emergente do Oriente Médio: o Império Persa de Ciro, o Grande, que autoriza o retorno dos exilados e auxilia na reconstrução do Templo. Contudo, não é possível restaurar o antigo status quo plenamente: o novo Templo é inferior em grandeza ao primeiro, o hebraico cede progressivamente lugar ao aramaico como língua vernacular e o antigo Israel agora é habitado por um povo miscigenado – os samaritanos – que, embora ainda professasse uma religião parecida com a dos antigos hebreus, era visto com desconfiança pelos retornados por sua associação com os antigos senhores;
- V a.C. Os samaritanos constroem um templo rival sobre o monte Gerizim, assinalando a separação definitiva entre as duas comunidades;
- IV a.C. – II a.C.: conquista do Império Persa pelo helenizado macedônio Alexandre Magno (333 – 323 a.C.). Após sua morte, seus domínios são divididos entre seus generais, cabendo as regiões dos antigos reinos hebraicos ao Egito dos Ptolomeus, em cuja capital, Alexandria, se estabelece numerosa comunidade judaica. Ocorre grande difusão da cultura grega pela orla oriental do Mediterrâneo no chamado “Mundo Helenístico”;
- II a.C. – I d.C.: após o sucessivo domínio de diversas potências estrangeiras, surge a abordagem apocalítica para o entendimento da história judaica: Javé teria permitido a prosperidade dos inimigos de seu povo para, num momento devido, esmagá-los e instaurar o Reino de Deus na Terra. Desenvolve-se toda uma literatura sob esse viés, com obras como o canônico Daniel e os apócrifos I Enoque, Esdras e II Baruque, além de diversos exemplos da literatura essênia de Qumran. Surgem no ideário judaico as sobrepostas figuras do Filho do Homem e do(s) Messia(s), como instaurador(es) dessa nova Ordem Divina;
- Primeira metade do século II a.C.: os Selêucidas – a dinastia grega da Síria – derrotam o egípcios e tomam os territórios judaicos (198 a.C.), iniciando uma política de helenização forçada. Por essa época ou um pouco antes, um grupo de judeus aparta-se do convívio dos demais e funda comunidades nos sertões da Judeia. Era o começo da seita dos essênios;
- 163 a.C. – Revolta dos Macabeus: em uma guerrilha bem-sucedida, um exército nativo, liderado por Judas Macabeu, conseguiu uma vitória após outra contra as tropas selêucidas e, por fim, tomou Jerusalém. Fundação da dinastia Asmoneia, que restaurou a religião judaica, expandiu suas fronteiras e reduziu a influência estrangeira;
- Segunda metade do II a.C. – I a.C.: Emergem dois grandes “partidos”: o dos saduceus – ligados à casta sacerdotal e à aristocracia, adeptos de uma interpretação mais enxuta da Torá e da centralização da vida judaica no culto do Templo de Jerusalém – e o dos fariseus, que tinham um apelo mais popular, defendiam a existência de uma “tradição oral” da Torá, a explanar e complementar a escrita (algo negado pelos saduceus), além de ressaltar a importância do cumprimento da Lei Mosaica e não apenas dos ritos do Templo. Conforme a evolução do tabuleiro político-social, o regente da ocasião podia se valer do apoio de um grupo ou de outro;
- 88 – 63 a.C.: Série de três guerras entre a República Romana e Mitrídates VI, rei do Ponto (norte da atual Turquia). A vitória de Roma levou a uma campanha expansionista que fez suas tropas chegarem às bordas do reino asmoneu;
- 63 a.C.: O general romano Pompeu intervém numa guerra civil entre os irmãos Hircano (aliado dos fariseus) e Aristóbulo (partidário dos saduceus). Inicialmente, Pompeu fora chamado a pedido desse último, mas ficou tão irritado com suas maquinações políticas, que tomou partido do outro lado. O irmão rival assumiu o trono com o título de Hircano II, mas em troca, além de perder todas as províncias mais helenizadas, seu reino passou a ser vassalo de Roma;
- 37 a.C – 4 a.C.: Reinado de Herodes, o Grande. Filho de Antípater – o primeiro-ministro do fraco Hircano II -, Herodes se saiu vitorioso após três anos de guerra contra o último rei asmoneu, o anti-romano Antígono II, recebendo do senado da capital o título de “Rei da Judeia”. De início, tentou governar como “déspota esclarecido”, realizando grandes obras como a remodelação do Templo para proporções monumentais, a construção de cidade portuária de Cesareia, fortalezas e outros empreendimentos; não só em seus domínios, mas também fora deles em cidades como Antioquia, Beirute, Damasco, Rodes. Chegou, inclusive a patrocinar e presidir os Jogos Olímpicos. Por meio desse mecenato estendeu sua influência, podendo melhor amparar as comunidades da diáspora. Não só de obras públicas construiu seu prestígio, mas também de políticas de amparo, como a importação de trigo do Egito para aplacar a fome provocada por uma prolongada seca em 25-24 a.C. Contudo, Herodes não conseguiu resolver diversas contradições em seu governo, que terminaram por deixá-lo paranoico: sua origem idumeia provocava desconfiança aos olhos dos nativos, por mais que cumprisse a Lei mosaica à risca; casou-se com uma princesa asmoneia em busca de alguma legitimidade, porém matou parentes dela com medo de que reclamassem o trono ou lhe traíssem, a própria esposa por suspeita de adultério e, mais tarde, dois dos filhos que tiveram, por conspiração; procurou agradar aos judeus rigoristas ao mesmo tempo que fazia concessões ao culto ao imperador romano que eram intoleráveis aos seus súditos, e quem lhe desobedecesse era executado. Ao falecer, seu reino foi dividido entre os três filhos varões sobreviventes: Arquelau, Felipe e Herodes Antipas, cabendo ao primeiro a Judeia e, ao último, a Samaria;
- 27 a.C.: após eliminar seus rivais na disputa pelo poder no mundo romano, Caio Júlio César Otaviano – sobrinho-neto e, depois, filho adotivo do famoso conquistador da Gália, ditador da república e amante de Cleópatra – recebe do senado os títulos de Princeps, i.e., o primeiro entre os cidadãos, e o de Augusto, dado exclusivamente a divindades. Inaugurava-se o que viria a ser conhecida como a fase imperial de Roma, embora ainda se mantivesse uma fachada republicana;
- 6 – 4 a.C. – Nascimento de Jesus: a tradição cristã coloca o nascimento de Jesus no fim do reinado de Herodes. Contudo, um erro medieval na datação do falecimento do monarca adiantou o primeiro ano do calendário cristão;
- 6 d.C.: Por mostrar-se cruel e inepto, Arquelau é deposto pelos romanos a pedido dos judeus e a Judeia torna-se província romana, governada por um prefeito e subordinada à Síria. Em ato contínuo, uma reforma tributária feita por, Quirino, o legado romano na Síria, faz eclodir a revolta de Judas, o Galileu, que seria considerado o fundador da seita dos zelotes (ou zelotas), partidários da oposição armada ao domínio estrangeiro. Esse ano também é tido como o do nascimento de Saulo, na cidade de Tarso, próxima à costa meridional da atual Turquia;
- 14 – 37 d.C.: Tibério imperador romano;
- 26 – 36 d.C.: Pôncio Pilatos prefeito da Judeia;
- 27 – 28 d.C.: pregação de João Batista, com forte urgência apocalíptica e provável expectativa de um Messias angélico. Início do ministério de Jesus;
- 30 d.C – Morre Jesus, nasce o cristianismo: a crucifixão de Jesus deveria ter sido o fim ou, pelo menos, um baque no seu movimento, o que faria dele apenas mais um dos tantos “messias fracassados” da história do judaísmo. Entretanto, pouco após sua morte, uma nova esperança lhe daria vida extra:
E que [Jesus] foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos.
I Cor 15:4-7
Surgia, então, a seita dos nazarenos (cf. At 24:5) e a interpretação de como o ministério de Jesus e a crença em sua volta à vida se relacionavam com os planos divinos constituiu o desafio da construção da mitologia do nascente grupo religioso;
- 30- 34 d.C.: a nova seita se expande de aproximadamente 120 (At 1:16) para 8.000 indivíduos (cf. At 2:41 e 4:4). Ainda que os números estejam inflados, é possível que o carisma e independência dos seguidores de Jesus tenha alarmado os saduceus, que iniciaram a repressão;
- 34 – 37d.C.: lapidação do diácono Estevão, consentida pelo fariseu Saulo de Tarso, notório perseguidor dos cristãos. Pouco depois desse episódio, Saulo se converteu após uma experiência visionária e assumiu o nome de Paulo. Nunca ficou explícita – nem em suas cartas, nem em Atos – a motivação para a repressão aos seguidores de Jesus. Uma hipótese (Cf. [Ehrman (2008), cap. XIX, p.299]) é que, já por aquela época, Jesus fosse tido por eles como o Messias. Dado que todas as expectativas messiânicas indicavam essa figura como alguém glorioso e, às vezes, supra-humano, a vinda de um humilde pregador itinerante que acabou executado soava absurda. Para um zeloso seguidor da Lei, como antigo Saulo, havia uma particularidade nessa morte ignóbil que transformaria o absurdo em blasfêmia:
Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro;
Gl 3:13 (citando Dt 21:23)
A superação da Lei feita por Paulo disponibilizaria ao cristianismo todo um novo universo de potenciais prosélitos: os pagãos do Império;
- 37 – 41 d.C.: Calígula imperador romano;
- 40 – 80 d.C.: compilação dos ditos da Fonte Q, dentre eles o “Louvor a João” (Mt 11:2-19 e Lc 7:19-35), com sua mistura de reverência e rivalidade dos seguidores de Jesus para com os de João. Nele, é provável que João já fosse identificado com o precursor de Ml 3:1 (Lc 7:24 = Mt 11:7), contudo ainda não deveria ter sido feita a identificação com Ml 4:5, afinal Lc 7:29-30 ≠ Mt 11:12-5. Assinale-se que Mt 11:12-15 sem a menção a Elias é similar a Lc 16:16, indicando que esse passo seria dado por Marcos (cf. [Vassiliadis, p. 410]) e enfatizado por Mateus;
- 41 – 44d.C.: Herodes Agripa – neto de Herodes, o Grande – como rei da Judeia. A tradição cristã relata como mandante da morte de Tiago (irmão de João) e da prisão de Pedro (cf. At 12). Por outro lado, foi a última vez em que os judeus do Segundo Templo foram governados por alguém etnicamente afim e minimamente preocupado em não ferir suas sensibilidades religiosas;
- 41 – 54 d.C.: Cláudio imperador romano;
- 44 – 66 d.C.: Judeia novamente como província romana, em crescente tensão política;
- 45 – 52 d.C.: primeiras viagens missionárias de Paulo de Tarso, mal sucedidas entre os judeus da diáspora, porém com bom afluxo de conversos gentios;
- ca. 50 d.C.: nascimento de Akiba ben Joseph, futuro Rabi Akiba (ou Akiva), figura central na consolidação do poder dos “sábios da Lei”;
- 50 dC. – Concílio de Jerusalém: num relato do capítulo XV de Atos, Paulo e Barnabé, seu companheiro de missão, vão a Jerusalém discutir com os apóstolos originais se os gentios deveriam se tornar judeus antes de serem cristãos, o que implicaria em seguir a Lei Mosaica e suas práticas, como a circuncisão e as restrições dietéticas. Ficou decido que eles estariam dispensados de serem judeus, contudo deveriam abandonar certas práticas pagãs, abstendo-se “das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação” (At 15:29). Contudo, em sua carta ao Gálatas, Paulo se escandaliza ao saber que essa igreja recebera a visita de outros missionários com viés judaizante. Documentos mais tardios, como as Homilias Pseudoclementinas, também evidenciam a permanência de uma rixa entre cristãos judeus e helênicos. É possível que o alegado consenso do Livro de Atos nunca tenha sido pleno;
- 50 – 60 d.C. – Redação das genuínas cartas de Paulo: apesar de Paulo ser o mais prolífico autor do Novo Testamento, pouca informação pode ser obtida a partir de suas cartas sobre a vida e a mensagem de Jesus, o mesmo sendo verdade para quase todos os outros livros desse Testamento, à exceção dos evangelhos e Atos. Por outro lado, elas são uma fonte inestimável de como se desenvolvia a fé no “Cristo ressuscitado” nas primeiras décadas do cristianismo gentio. Havia:
- A expectativa de um retorno próximo de Jesus, com a ressurreição dos mortos e transformação dos vivos (cf. I Ts 4 e I Cor 15);
- Uma concepção de Jesus com um Messias do tipo angélico (cf. Fp 2:6-11);
- A tese da salvação calcada na fé em Jesus como redentor da humanidade por meio de seu sacrifício na cruz, em vez da prática da Lei Mosaica (cf. Gálatas e Romanos).
O apocalipsismo era comum entre os judeus do primeiro século de nossa Era, bem como a crença na ressurreição não lhes era estranha. Alguns grupos judaicos aceitariam um Messias sobre-humano e preexistente. Contudo, abster-se da Lei era renegar sua identidade judaica. A questão não era os gentios estarem dispensados dela para poderem ingressar no Mundo Vindouro, mas que nem judeus – os que aceitassem Jesus como Messias, inclusive – pudessem se valer dela. Essa foi uma das forças centrífugas entre os dois grupos;
- 50 – 95 d.C. – Hebreus: não chega a ser exatamente uma carta, mas um sermão ou homilia cujo autor é desconhecido. Foi aceito assim mesmo no cânon devido a uma crença no séculos III e IV de ter sido Paulo seu redator, possibilidade hoje descartada. Tampouco é possível dizer se o público alvo se compunha de judeus cristãos, o que se pode afirmar com alguma certeza é que seus membros haviam sofrido algum tido de perseguição (Hb 10:34-6) e adotar (ou voltar para) o judaísmo era tentador, pois esse gozava de proteção legal. Assim, seu anônimo autor admoesta seu público a permanecer firme na fé, pois o cristianismo seria ápice de todas as realizações e promessas do judaísmo. Ameaças à parte, é feita uma série de comparações para justificar tal superioridade e uma delas seria a posse de Jesus de um sacerdócio superior ao dos levitas, um “segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 7:21). Jesus, portanto, ganhara atributos de Messias sacerdotal nessa comunidade;
- 53 – 57 d.C. – Terceira viagem missionária de Paulo: durante esse episódio, o livro de Atos (cap. 18 e 19) relata a assimilação pelo cristianismo de alguns discípulos de João Batista residentes na diáspora. Um deles, Apolo, deve ter sido importante o suficiente para ter seu nome citado, tanto que reaparece em diversos capítulos da primeira carta aos Coríntios (1, 3, 4 e 16), sugerindo a existência uma certa rivalidade entre os admiradores dele e de Paulo naquela comunidade. O quarto evangelho também traz a captação de discípulos de João, porém logo no começo do ministério de Jesus e incentivados pelo próprio Imersor. Como discutido acima, dado que o movimento batista prosseguiu ao menos por um tempo, isso foi algo um tanto improvável. Já o relato de Atos conta com uma vantagem: seu “primeiro volume” – o evangelho de Lucas – traz dados sobre a origem de João (ainda que “floreados”) e fragmentos de sua mensagem, informações que poderiam ter sido obtidas graças a fontes batistas às quais a paulina comunidade lucana teve acesso;
- 54 – 68 d.C.: Nero imperador romano;
- 62 d.C.: martírio de Tiago, o “Irmão do Senhor” (cf. H.E. II.23);
- 64 d.C.: incêndio de Roma. Os cristãos da capital são usado como bodes expiatórios e perseguidos;
- 65 – 67 d.C.: martírio de Pedro e Paulo em Roma;
- 65 – 80 d.C – Evangelho de Marcos: Papias (citado por Ireneu em Contra as Heresias, 3.1.1) coloca a redação deste evangelho nas mãos de um discípulo de Pedro, tendo-a iniciado após a morte do apóstolo, ocorrida em Roma por volta do ano 65 d.C. segundo a tradição cristã. Como limite superior, teríamos as redações de Lucas e de Mateus, cujas estimativas mais antigas são de 80 d.C. e não poderiam ter sido feitas sem o relato de Marcos. Esse posicionamento cronológico permite enxergar o “pequeno apocalipse” constante em seu capítulo XIII como uma exegese da “Grande Revolta Judaica”, contemporânea de seus primeiros leitores e ouvintes, transformada num anúncio do fim iminente dos tempos.Escrito numa forma a apresentar Jesus como um “Messias incompreendido”, este evangelho levanta discussões sobre se o Jesus histórico se via realmente como o esperado libertador do povo judeu ou, em caso positivo, preferiu manter a sigilo para não ser tomado por um tipo de Messias que não coadunasse com sua proposta. Quer seja de um jeito ou do outro, esse evangelho deixa transparecer que João Batista não era tido como Elias pelos seus contemporâneos. Adaptando a tradição de Malaquias, Marcos fez de João o precursor de um Messias humano, e, tal como esse, vindo de uma forma distinta da expectativa geral;
- 66 – 70 d.C. – Grande Revolta Judaica ou Primeira Guerra Judaico-Romana: capitaneada pelos zelotes, uma insurreição armada tomou Jerusalém e algumas fortalezas, massacrou as guarnições romanas locais, para daí se espalhar pelos antigos domínios dos asmodeus. A reação romana não tardou e foi esmagadora. Embora duvidoso que os revoltosos conseguissem resistir ao avanço inimigo, muito de sua capacidade bélica foi desperdiçada numa verdadeira guerra civil a se desenrolar dentro das muralhas de Jerusalém. A tradição cristã informa uma fuga dos judeus cristãos de Jerusalém para a cidade de Pella, na região da Pereia (Eusebio, Hist. Ecles., III. V. 3; cf. Lc 21:20-2). Uma outra tradição, talmúdica desta vez, fala de Yohanan bem Zakkai, um rabino sobrevivente que escapara do cerco escondido dentro de um caixão, como se fosse um defunto. Ele teria recebido autorização dos romanos para se instalar em Yavneh (Jâmnia, em grego), onde fundou uma escola de estudos e instalou o Sinédrio.Ao fim do conflito, o Segundo Templo fora destruído, os saduceus desapareceram na luta entre as facções, e os zelotes foram exterminados pelos romanos. Os essênios esconderam seus manuscritos nas cavernas de Qumran até que a poeira baixasse e, aparentemente, nenhum deles sobrou para resgatá-los.Morria aí o mundo em que Jesus viveu;
- 69 – 79 d.C.: Vespasiano imperador romano;
- 70 – 73 d.C.: últimos focos de resistência judaica são eliminados;
- 70 – 135 d.C.: a Judeia é comandada por um legado romano, i.e., uma espécie de general a dispor das tropas necessárias para manter o controle da província. Paralelamente, começa a ascensão do partido farisaico, que, de certa forma, obtivera durante a guerra uma sanção romana para deliberar sobre os assuntos judaicos. A sinagoga substituiu o Templo como centro da religião e acelerou-se um processo de padronização do cânon, bem como seus textos e interpretações. Apenas um grupo ainda se interpunha a sua hegemonia: os nazarenos;
- 79 – 81 d.C.: Tito Flávio imperador romano;
- 80 – 100 d.C. – Evangelho de Mateus: Provavelmente composto a partir do fio narrativo de Marcos, os ditos de Q, mais algum material próprio (M). Em relação a sua autoria, há os que defendem ele ter sido redigido por um judeu e, depois, ter recebido acréscimos cristãos [Flusser (2002), pp. 95 – 103] ou seu autor adviria de uma comunidade cristã mista de judeus e gentios [Ehrman (2008), cap. VIII, 118-9], e buscava abarcar a ambos na “boa nova”. Independentemente de sua autoria, seu texto o revela como “o mais judaico” dos evangelhos: no sermão da Montanha (5:18-20) seus leitores são explicitamente instados a seguir os mandamentos da Lei, e de uma forma superior “à dos fariseus e mestres da Lei”. Isso também revela que seu entendimento da Lei era distinto desses dois grupos, pois Jesus teria mais autoridade que eles ao ser apresentado enfaticamente como o Messias Judaico. Logo no começo, Mateus inova em relação Marcos ao começar por uma narrativa do nascimento de Jesus e ali inserir a maior quantidade possível de profecias cumpridas: a concepção virginal (Is 7:14), o nascimento em Belém (Mq 5:2), ascendência davídica (II Sm 7:12-6) e sua estadia no Egito (Os 11:1). Juntando a Natividade com os eventos até o Sermão da Montanha, tem-se um inusitado retrato da pessoa de Jesus: um varão miraculosamente nascido de pais judeus fica log à mercê de um tirano disposto a destruí-lo. Por meios sobrenaturais a criança é protegida de qualquer agressão no Egito. Então deixa essa terra para passar pelas águas (do batismo) e é testado no deserto por um longo período. Por fim, sobe à montanha e entrega a Lei de Deus aos que o seguiam. Sim, para Mateus, Jesus é o novo profeta como Moisés prometido no capítulo 18 de Deuteronômio. Enquanto Marcos segue aos poucos clarificando o papel de Jesus, Mateus sempre é bem mais direto. Repare no acréscimo ao diálogo entre Jesus e seus discípulos logo após o episódio da transfiguração:
E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas que é necessário que Elias venha primeiro?
E, respondendo ele, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e todas as coisas restaurará; e, como está escrito do Filho do homem, que ele deva padecer muito e ser aviltado. Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe tudo o que quiseram, como dele está escrito.Mc 9:11-13
E os seus discípulos o interrogaram, dizendo: Por que dizem então os escribas que é mister que Elias venha primeiro?
E Jesus, respondendo, disse-lhes: Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas; mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem.
Então entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista.Mt 17:10-13
A vinculação entre João Batista e Elias fica explícita em Mateus, ao passo que estava subentendida em Marcos. Em ambos a origem do Imersor está em aberto, tal como foi a de Elias. Para eles isso não era significativo, contanto que essa simples identificação pudesse ser mais uma característica messiânica atribuída a Jesus. Se fosse o imortal Fineias ou um anjo materializado, pouco importava.
Essa ânsia de Mateus em provar a identidade de Jesus como o Messias deve ser reflexo da competição de sua comunidade com os fariseus, que, em seu evangelho, atinge o ápice nos “Sete Ais” do capítulo XXIII. Já antes de Jesus, os fariseus promoviam a prática de “cercar da Torá”, i.e. a elaboração de procedimentos estritos para que a Torá (Escrita) não fosse violada sequer por acidente. A “denúncia” da inutilidade desses rigorismos (cf. Mt 23:24) escancara a diferença de entendimento entre esses dois grupos do que seria “seguir os mandamentos“, já anunciada no Sermão da Montanha;
- 80 – 100 d.C. – II Tessalonicenses: ao lado de Efésios, de Colossenses e das pastorais, integra um grupo de documentos conhecido com cartas deuteropaulinas, i.e., textos tradicionalmente atribuídos a Paulo de Tarso cuja autoria, porém, é posta em dúvida por diversos fatores, que vão desde o de vocábulos gregos poucos usuais ao das cartas tidas como autênticas até doutrinas discrepantes com elas. No caso de II Tessalonicenses, chamam atenção os seguintes versículos:
Ora, irmãos, rogamo-vos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e pela nossa reunião com ele, que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto.
II Ts 2:1,2
Isso está em franco desacordo com I Ts 4:15-18 ou I Cor 15:51-2, em que Paulo garante que alguns membros de suas comunidades ainda estarão vivos por ocasião da parúsia e, portanto, não ressuscitarão, mas serão “transformados”. Ao que parece, já estava arrefecendo a expectativa de de um Fim dos Tempos para aquela geração;
- 80 – 110 d.C. – Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos: Seu redator é o único entre os evangelistas que assume ter se baseado em relatos prévios (Lc 1:1-4). Para seu evangelho, deve ter se valido também de Marcos e Q, além de algum material próprio (L), não compartilhado com Mateus. Atos também deve ter se baseado em fontes anteriores, porém mais difíceis de se delimitar e atualmente perdidas. É possível que tenha se baseado em um diário de viagens de Paulo ou algum acompanhante dele para construir um fio narrativo plausível e em tradições dos ensinamentos apostólicos para produzir os longos discursos que ocorrem no livro. Quanto aos eventos, tradições orais são candidatas e, inclusive, harmonizações entre elas (como as três versões ligeiramente diferentes da conversão de Paulo). A rigor, Atos também mereceria o status de evangelho ou de “segundo volume” de um deles, pois a mensagem de Lucas só está completa pela união desses dois livros: a salvação chegando para os judeus, sendo pela maioria deles rejeitada, e então partindo para o mundo. Dada a grande importância do “apóstolo dos gentios” dentro de Atos (presente em quase dois terços do livro), Lucas intencionava explicar a origem e difusão da própria fé ao um público majoritariamente não judeu. Faltam indícios de que Lucas tenha se valido das Cartas, pelo contrário: há incompatibilidades entre a narrativa de Atos e o que Paulo falou de si mesmo em sua correspondência. Talvez Lucas não tivesse acesso às cartas paulinas por elas ainda não circularem em grande escala, mas diversos elementos comuns com elas são encontrados: a ceia comunal como instituição cristã, a ampla atividade carismática do Espírito Santo, a liberação dos gentios das práticas da Lei, a soteriologia, apocalipsismo e aclamação de Jesus como o Messias prometido. Quanto a esse último item, as motivações de Lucas parecem se diferir das de Mateus. O último viveu num ambiente de competição com os fariseus, enquanto Lucas não os teve por oponentes. Seus adversários seriam outros pagãos, que viam o cristianismo nascente como mera superstição oriental, uma novidade suspeita. Na Antiguidade Tardia, antiguidade gerava respeito. Poucas criações realmente originais foram feitas em relação ao período em torno de 400 a.C., por outro lado, muitos comentários e reelaborações dos clássicos eram produzidos. Assim, apresentar-se como o prosseguimento de uma longa tradição permitia “queimar etapas” na busca por credibilidade. A identificação entre João Batista e Elias faz parte dessa apresentação do cristianismo como “cumprimento de profecias”, porém Lucas teve de adaptar Marcos de uma forma diferente da feita por Mateus. Como mencionado antes, Lucas pode ter utilizado fontes batistas. Sejam oriundas de prosélitos ou de remanescentes rivais, elas estariam acessíveis, também, a outros membros letrados de sua comunidade, expondo um dado com o qual Marcos e Mateus não precisaram trabalhar: João Batista teve uma origem recente. Não era mais possível identificá-lo com o longevíssimo Fineias/Elias. João, portanto, teve de fazer as vezes de Elias, reproduzindo seu ministério. Visto que a introdução de João Batista como um Elias alternativo já é feita durante a Natividade, não há mais a identificação entre ambos por ocasião da transfiguração (Lc 9:28-36).Lucas também conta com um “pequeno apocalipse” (Lc 21:7-32), com pontos comuns ao de Marcos, mas também diferenças significativas. A principal está na afirmação de que “o fim não virá logo” (Lc 21:9), ao contrário do fim iminente esperado em Marcos. É notável a mudança feita na conversa entre Jesus e o sumo sacerdote:
O sumo sacerdote lhe tornou a perguntar, e disse-lhe: És tu o Cristo, Filho do Deus Bendito?
E Jesus disse-lhe: Eu o sou, e vereis o Filho do Homem assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu.
Mc 14:61,62És tu o Cristo? Dize-no-lo.
Ele replicou: Se vo-lo disser, não o crereis; e também, se vos perguntar, não me respondereis, nem me soltareis. Desde agora o Filho do Homem se assentará à direita do poder de Deus.
Lc 22:67-69Parece que Lucas tinha ciência de que o sumo sacerdote não veria o Filho do Homem “fazendo e acontecendo”, afinal ele já devia ter morrido. Onde entraria, então, a profecia quanto ao retorno de Elias nesse contexto em que o fim era certo, mas a hora incerta, e seu profeta por procuração – João Batista – já falecera? Para o evangelista, Elias já estaria neste mundo desde a ocasião transfiguração: explicitamente ele apareceu “em glória” para Jesus, junto com Moisés; dois homens em “vestes resplandecentes” aparecem para as mulheres que encontraram o túmulo de Jesus aberto (Lc 24:1-7); e, já em Atos, dois homens “vestidos de branco” apareceram para os apóstolos logo após a ascensão de Jesus informando de seu retorno em glória. Coincidência? Provavelmente Lucas construiu sua narrativa para que tanto o maior legislador de Israel e seu maior profeta estivessem presentes em momentos-chave da trajetória de Jesus (anúncio da morte, ressurreição e arrebatamento), justificando o ministério dele pelas tradições judaicas. O dado adicional foi a evidência da difusão pelo cristianismo helênico da crença em um segundo advento de Jesus: uma ocasião adequada para que este assumisse o papel de Filho do Homem e Elias – o original – cumprisse integralmente a profecia;
- 81 – 96 d.C.: Domiciano imperador romano. Durante seu reinado, teria ocorrido uma segunda onda perseguições aos cristãos. Não resta nenhum documento oficial ou de cronista pagão relatando isso, ficando seu registro a cargo da patrística (cf. H.E., III.XV-XX). Eusébio (H.E. III.XX-5) informa que ela foi menos severa que a de Nero e, depois, suspensa pelo próprio Domiciano. Embora não chegasse a ser um programa de extermínio, foi opressora o bastante para levar à redação do livro bíblico do Apocalipse;
- ca. 90 d.C. – Birkat ha-Minim – “A Bênção dos Sectários”: no Talmude Babilônico (Berakhot 28b–29a), Gamaliel II teria perguntado: “Há alguém que saiba como compor uma bênção contra os minim (sectários, heréticos)?“. Samuel, o Pequeno, teria se prontificado a fazê-la, tendo sido acrescentada ao conjunto dezoito de orações recitadas nos serviços diários das sinagogas (Amidah) como a décima segunda da lista. Tal bênção, que mais parece uma maldição, possui diversas variantes muito similares umas com as outras, e uma proposta de reconstituição da forma original seria algo como:
Que não haja esperança para os separatistas, para os apóstatas e para os traidores, e os hereges [minim] hão de perecer como num instante, e o domínio da arrogância Tu prontamente erradicarás. Abençoado sê Tu, ó Senhor, que humilhas o arrogante.
Fonte: [Flusser (2002), cap. XIII – B, p.189]
Flusser [idem, p. 190] sugere que a “bênção” na verdade seria uma composição de três fórmulas derrogatórias prévias: uma para os separatistas, outra para os hereges. Por “hereges”, o alvo original poderiam ser os essênios, que não se davam com os fariseus, nem com os saduceus. Após a Grande Revolta e avançando pelo II século, os (judeus) cristãos se tornaram os principais candidatos a serem identificados com os minim.
Ainda é discutido se expulsão de cristãos da sinagoga mencionada em Jo 9:22 seria um reflexo da instituição oficial da 12ª bênção por Jâmnia ou uma mera revolta espontânea dos judeus não cristãos ante um mal-vindo proselitismo. Uma certeza é a disposição farisaica para fazer sua própria separação “do joio do trigo”;
- 90 – 120 d.C. – Evangelho de João: Herdeiro de tradições próprias, o quarto evangelho foi provavelmente escrito por uma comunidade de judeus helênicos que foi expulsa da sinagoga (c. Jo 9:22) e, em seguida, voltou-se contra ela (cf. Jo 8:44-7). Não tendo mais que buscar a aceitação de seus antigos pares, essa comunidade buscou encontrar uma nova identidade pela superação da antiga: Jesus não era “apenas” o Messias a trazer a nova revelação, ele era a Revelação, o preexistente e coeterno Verbo Divino encarnado. Não bastava somente aceitar sua mensagem, era preciso aceitar o próprio Jesus, e rejeitá-lo seria como rejeitar a Deus (cf. Jo 14:1-16). Essa elevação da figura de Jesus demorou a ser elaborada e, no tardio evangelho de João, esvanecera em sua comunidade a expectativa do “Fim dos Tempos” para a geração que conheceu pessoalmente Jesus, tal como fora nas comunidades paulinas e na marcana, ou para a sub-apostólica de Mateus e Lucas. Em vez da realidade terrena da apocalíptica judaica, o Reino de Deus foi transportado para o domínio espiritual (Jo 18:36) e o tempo restante deste mundo (tal qual conhecemos) ficou em aberto. Assim, com esse novo contexto, não havia mais razão para Elias retornar e “preparar o caminho” para o “terrível dia do Senhor” (Ml 3:1, 4:5); tanto que ele possui pouquíssimo espaço neste evangelho, sendo mencionado somente duas vezes (Jo 1:21,25). Em vez disso, veio João Batista, que não se identificava como Elias (Jo 1:21), pois sua principal tarefa era outra: dar testemunho de Jesus (Jo 1:7);
- 90 – 120 d.C. – I João: redigida na mesma comunidade do evangelho que leva seu nome (embora não necessariamente pelo mesmo redator dele) relata a existência de uma dissidência entre eles cuja principal divergência era a crença numa cristologia docética, i.e., Jesus não teria possuído um verdadeiro corpo carnal, apenas o aparentado (do grego dokeô, “parecer”). Como o mais antigo comentarista do quarto evangelho conhecido foi o gnóstico valentiano Heracleão (ca. 150 – 180 d.C.), fica a hipótese de que esses dissidentes tenham se unido a alguma outra seita religiosa e dado origem ao gnosticismo cristão;
- ca. 95 d.C. – Apocalipse: exilado na ilha de Patmos, talvez em razão perseguição de Domiciano, um certo João (que não era o autor do quarto evangelho) redige um conjunto de revelações que teve acerca do fim próximo da realidade que eles conheciam, com a subjugação e a destruição do Império Romano (identificado por vários e bizarros simbolismos), além da instauração do Reino de Deus. Impressionante é descrição que faz da parusia:
Vi ainda o céu aberto: eis que aparece um cavalo branco. Seu cavaleiro chama-se Fiel e Verdadeiro, e é com justiça que ele julga e guerreia. Tem olhos flamejantes. Há em sua cabeça muitos diademas e traz escrito um nome que ninguém conhece, senão ele. Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome é Verbo de Deus. Seguiam-no em cavalos brancos os exércitos celestes, vestidos de linho fino e de uma brancura imaculada. De sua boca sai uma espada afiada, para com ela ferir as nações pagãs, porque ele deve governá-las com cetro de ferro e pisar o lagar do vinho da ardente ira do Deus Dominador. Ele traz escrito no manto e na coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores!
Ap 19:11-16
Decididamente, esse Messias vingador não corresponde ao dos evangelhos, nem ao das cartas de Paulo, porém não era desconhecido na tradição intertestamentária. A opressão dos cristãos os levou a conceber uma imagem guerreira de Jesus, ainda que em sua segunda vinda. Apocalipse foi bastante controverso e sua aceitação como canônico demorou;
- 96 – 98 d.C.: Nerva imperador romano;
- 98 – 117 d.C.: Trajano imperador romano;
- 100 – 150 d.C – Cartas Pastorais: um subconjunto das deuteropaulinas (I e II Timóteo e Tito) em que são dadas recomendações a pessoas responsáveis pela condução de comunidades presumidamente fundadas por Paulo. Embora tradicionalmente atribuídas a esse apóstolo, é quase unânime a rejeição de sua autoria entre os acadêmicos, sendo considerados obras pseudônimas feitas por alguém tentando lidar com os problemas de sua(s) comunidade(s) se valendo da autoridade dele. Tanto os problemas vivenciados como as orientações dadas não coadunam com aqueles do ambiente em que Paulo pregou. Por exemplo:
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- Luta contra falsos ensinamentos: não eram apenas os judaizantes de Gálatas ou os superapóstolos de II Coríntios, mas principalmente os que falavam de “fábulas e genealogias intermináveis” (I Tm 1:4, cf. Tt 3:9). Possivelmente, seriam os primeiros gnósticos cristãos ou seus antecessores;
- Valorização de a hierarquia: com designação de cargos como bispos e diáconos (I Tm 3), em vez da estrutura mais horizontal guiada pelo Espírito Santo nas cartas genuínas;
- Redução do papel feminino: mulheres deveriam permanecer em silêncio na igreja (I Tm 2:11-5), ao passo que Paulo, embora já as subordinasse aos homens, reconhecia que podiam orar e profetizar (I Cor 11:3-16).
O que era sinal de uma progressiva mudança em certas comunidades cristãs helênicas, que se tornavam menos carismáticas e mais hierárquicas, menos igualitárias entre os sexos e mais patriarcais, menos abertas a experimentações e mais apegadas a tradições;
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- 111 – 112 d.C: Plínio, o Jovem, como governador da Bitínia (norte da atual Turquia), escreveu ao imperador Trajano (Cartas, 10.96-97) solicitando instruções de como lidar com uma perigosa superstição que se alastrava por sua província, permeando “as cidades, aldeias e fazendas”; cujos adeptos se denominavam “cristãos” e reuniam antes da alvorada para entoar hinos a “Cristo como a um deus”. A resposta do imperador foi sucinta, recomendando não fazer perseguições ativas, rejeitar denúncias anônimas e libertar prontamente os que aceitassem fazer oferendas aos deuses romanos, cuja recusa deveria ser o crime cometido por eles.No episódio do incêndio de Roma, os cristãos foram usados como mero bode expiatório; agora, surge uma evidência de que sua expansão começava a realmente a ser preocupação de estado;
- 115 – 117 d.C. – Segunda Guerra Judaico-Romana: também chamada de “Guerras de Kitos” – em alusão a Lúsio Quieto, um dos comandantes militares romanos – foi uma série rebeliões das comunidades judaicas de Chipre, Egito, Cirenaica (leste da atual Líbia) que, aproveitando-se do fato de a maior parte do exército romano estar combatendo os partas na Mesopotâmia, promoveram o massacre de cidadãos romanos (de língua grega) e quase cortaram o envio de trigo para as tropas na frente de batalha. Na Mesopotâmia, milícias judias atacavam pequenas guarnições romanas de retaguarda. Ao fim do conflito, diversas comunidades da diáspora foram exterminadas ou expulsas;
- 117 – 138 d.C.: Adriano imperador romano;
- 132 -135 d.C – Terceira Guerra Judaico-Romana: o elo se rompe. O imperador Adriano iniciou uma política de reorganização administrativa o império que, entre suas metas, advogava uma uniformização cultural, com medidas de helenizantes. Na Judeia, isso implicou na proibição da circuncisão e, por fim, a imposição de um altar dedicado a Júpiter no Monte do Templo. Essa foi a gota d’água para nova revolta que, a exemplo dos antigos Macabeus, e desta vez sob a liderança de Simeão bar Kochba, começou como uma guerrilha bem sucedida, conseguindo expulsar as legiões romanas e tomar Jerusalém. O ápice do prestígio de Bar Korcha ocorreu quando Rabi Akiba – a principal autoridade religiosa entre os rabinos – apontou-o com sendo o tão esperado Messias. A consequência imediata disso para os judeus cristãos foi colocá-los entre dois fogos: caso apoiassem o movimento, ainda que apenas colaborando no esforço de guerra à retaguarda, estariam negando a Jesus como Messias; se rejeitassem a autoridade do novo líder, podiam ser acusados de crime capital e executados. De qualquer forma, a retaliação romana foi tamanha que é duvidoso que a comunidade cristã de Jerusalém sobrevivesse ao fim do conflito. Num esforço para apagar o passado hebraico da região, a Judeia passou a se chamar Palestina, estando administrativamente integrada à Síria, e o processo de diáspora judaica foi completado. Os judeus foram proibidos de voltar a Jerusalém, que foi reconstruída como a colônia romana Aelia Capitolina, e uma nova comunidade de seguidores de Jesus floresceu, porém não eram mais os “nazarenos” e, sim, cristãos helênicos. O termo “fariseu” perdeu razão de ser, visto que não havia mais outra seita da qual se distinguir, e o judaísmo juntou seus cacos em torno da liderança dos rabinos. Comunidades de judeus cristãos – como os ebionitas – sobreviveram por séculos, porém passaram a ser vistas como heréticas pelos de origem gentia, cada vez mais numerosos. Cristianismo e judaísmo agora eram duas religiões independentes;
- Meados do século II – início do IV – Proto-ortodoxia: diversos “sabores” de cristianismo floresceram na primeira metade do II século da Era Comum. Desses começou a se destacar o conjunto de comunidades que:
- Não era judaizante: não afastando, assim, os possíveis prosélitos que até apoiariam a mensagem cristã, mas não práticas judaicas, como circuncisão ou restrições dietética;
- Se julgava herdeiro do judaísmo: alegando ser a concretização de uma antiga tradição, apropriando-se de sua respeitabilidade;
- Permitia voos intelectuais mais altos para adquirir um corpo de pensadores próprio;
- Não exagerava nesses mesmos voos, ao ponto de se tornar uma religião só para secretos iniciados;
- Possuía uma estrutura hierárquica que permitisse uma atuação organizada por todo Império Romano e além.
Tal grupo daria origem ao que hoje conhecemos como catolicismo romano;
- 150 – 160 d.C. – obras de Justino, o Mártir: um dos primeiros “Pais Apologéticos” relatou em seu Diálogos com o Judeu Trifão (cap. XLIX) uma opinião sobre João Batista extremamente próxima a da atual ortodoxia, com ele fazendo as vezes de Elias para o primeiro advento de Jesus, enquanto o original viria apenas no segundo. Contudo, Justino não parece fazer uso do quarto evangelho, sendo até hoje discutido se ele, pelo menos, conhecia tradições joaninas;
- 175 – 185 d.C. – Contra as Heresias, de Ireneu de Lião: estabelece o quarto evangelho como sendo canônico (C.E. III.11-1,8). Pela mesma época, o Diassetaron – uma edição harmônica dos evangelhos – faz uso de João e esse mesmo evangelho é relacionado no “Cânon Muratoriano”;
- ca. 232 – ca. 248 d.C. – Comentário sobre o Evangelho segundo João, de Orígenes: é apresentada uma combinação do quarto evangelho com os sinópticos (VI.7) para estabelecer como João Batista poderia ser e, ao mesmo tempo, não ser Elias, utilizando a natividade de Lucas como o cerne de sua interpretação;
- 313 d.C. – Edito de Milão: Constantino (regente do ocidente) e Licínio (oriente) concedem liberdade de culto a todas as religiões do império, cessando as perseguições aos cristãos, dos quais o primeiro se aproxima;
- 324 d.C. – Concílio de Niceia: Constantino, já como único imperador do mundo romano, convoca a primeira reunião geral de todos os bispos da ortodoxia para discutir a relação entre Jesus e o Pai. Seria o Filho tão divino quanto o Pai (do grego homoousius, “de mesma substância”) ou sua divindade seria em algum grau inferior e subordinada à dEle (homoiousius, “de substância similar”), como advogavam os partidários do padre alexandrino Ário? A vitória esmagadora coube aos homoousianos que, com o aval do imperador, reprimiram seus opositores. Contudo, Constantino foi gradualmente reabilitando clérigos arianos e deles se rodeando, ao ponto de ter sido batizado, no leito de morte, por um de seus bispos. Os sucessores de Constantino se aliaram aos arianos e as disputas político-teológicas entre a Corte e as províncias se estenderam por décadas, principalmente no oriente, onde diversas variedades de arianismo competiam com os homoousianos e ente si;
- 361 – 363 d.C.: Juliano, o Apóstata, como imperador. Em seu curto reinado houve uma já inviável tentativa de restaurar o paganismo como religião de Estado, embora nominalmente permacesse tolerante;
- 378 – 395 d.C.: Teodósio como imperador do Oriente e, por fim, de todo império (393 -395 d.C). Originário da Espanha, Teodósio foi criado dentro do credo no Ocidente, o niceno, o qual determinou que tornasse a religião oficial do império no Edito de Tessalônica (380 d.C.). Não apenas o arianismo se tornava ilegal, como paganismo perdia a proteção oficial. Após sua morte, o império foi dividido entre seus dois filhos – Arcádio (oriente) e Honório (ocidente) – e não mais ficaria sob as mãos de uma única pessoa;
- 408 – 420 d.C. – Tratados sobre o Evangelho de João, de Agostinho de Hipona: no quarto tratado, o principal teólogo da época no ocidente expõe uma interpretação quanto ao papel de João Batista e sua relação com Jesus idêntica a de Orígenes, mas agora com a chancela da ortodoxia nicena. Provavelmente, ele apenas relatou ou consolidou uma opinião que já era comum nesse grupo e vinha se desenvolvendo desde o século II.
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E assim, partindo de um contexto religioso apocalipcista, João Batista foi perdeu sua identidade própria como anunciador da chegada do Filho do Homem e profeta de Reino de Deus para precursor um novo Filho de Homem – Jesus – e fiador de uma nova religião – o cristianismo.
Um Alerta
Giovanni Fattori: São João Batista repreendendo Herodes
Tudo que se disse no capítulo anterior pode estar errado.
Como dito antes, o quebra-cabeça está incompleto demais. As peças remanescentes foram dispostas conforme as regras de arranjo disponíveis – o tempo (estimado) em que surgiram e o seu contexto social – e o resto ficou a cargo deste autor que vos fala. Não, não foi um amontoado de achismos meus, pois calquei-me em trabalhos de acadêmicos dedicados ao estudo do judaísmo intertestamentário e do cristianismo primevo. Apenas reconheço que não sou o dono da verdade, afinal a História não é uma Ciência exata e ela sempre permitirá a existência de um “talvez” em um ou outro ponto em que não há consenso entre os estudiosos. Uma bibliografia diferente – com outras premissas acerca do Jesus e do João Batista Históricos – levaria a resultados divergentes. Também assumo que uma nova descoberta pode mudar tudo que se pensava a respeito de algo. Talvez algum documento dos batistas originais (i.e. antes do gnosticismo mandeano) esteja perdido em algum local ermo, tal como os Pergaminhos do Morto ou a biblioteca de Nag Hammadi. Quiçá haja alguma carta do missionário Apolo, a explicar como ele relacionava Jesus com João, acumulando poeira em algum mosteiro. Torço para que sejam encontrados, por ora, só nos resta aguardar e lidar com o que temos.
Vale também lembrar que isso de forma alguma autoriza os que discordam das observações aqui feitas de descartá-las em prol de suas próprias opiniões sem que antes as respalde de forma mais sólida que uma assertiva confessional. De qualquer confissão.
A Malícia de Ontem e a de Hoje
– Mestre, seria João Batista a reencarnação de Elias?
– Raça de víboras, quem vos ensinou a criar arapucas em vez de procurar a verdade?
Uma das minhas passagens preferidas dos evangelhos é Mc 12:13-7 (cf. Mt 22:15-22 e Lc 20:20-6), quando os adversários de Jesus tentam encurralá-lo com um ardil:
E enviaram-lhe alguns dos fariseus e dos herodianos, para que o apanhassem nalguma palavra. E, chegando eles, disseram-lhe: Mestre, sabemos que és homem de verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas à aparência dos homens, antes com verdade ensinas o caminho de Deus; é lícito dar o tributo a César, ou não? Daremos, ou não daremos?
Mc 12:13,14
Percebem que a abordagem começa com um elogio fingido a fim de posarem, para o público, como moderados e respeitosos a alguém que detestam. A segunda e principal parte é uma arapuca: caso Jesus diga que sim, então é um traidor do próprio povo por fazer o jogo do dominador estrangeiro; a outra opção o torna automaticamente inimigo de Roma, passível de prisão imediata. A resposta de Jesus foi impagável:
Então ele, conhecendo a sua hipocrisia, disse-lhes: Por que me tentais? Trazei-me uma moeda, para que a veja. E eles lha trouxeram. E disse-lhes: De quem é esta imagem e inscrição? E eles lhe disseram: De César. E Jesus, respondendo, disse-lhes: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E maravilharam-se dele.
Mc 12:15-7
Ou seja, num tremendo golpe de gênio, Jesus devolveu a responsabilidade de tomar alguma ação à mão dos seus detratores e ainda por cima não respondeu à pergunta. Não posso deixar de dizer que a lapidar frase “dai a César o que é de César…” é tida como autêntica de Jesus.
Bem, por que estou fazendo tal desvio, já que este episódio nada tem a ver com João Batista? Por causa de uma indagação espírita que, guardadas as devidas proporções, reproduz perfídia similar à da “moeda do tributo”:
João Batista era (mesmo) Elias?
Se um membro da “ortodoxia cristã” disser que sim, então tem de admitir que ele seria uma reencarnação do profeta; e a outra opção – que veio no espírito e poder do antigo profeta – implica em dizer que Jesus não é o Messias, afinal Elias teria de “vir em primeiro”. Depois dessa, tenho que dar uma pausa
Bem, primeiramente, essa é uma tática duvidosa, pois só afeta um grupo: cristãos presos ao literalismo bíblico e sem a menor bagagem sobre sua própria teologia, um demográfico um tanto comum em fóruns de internet. Pegue-se alguém com melhor preparo e as coisas não serão tão fáceis assim. O pior acontece quando a outra parte sequer se enquadra nos paradigmas judaico-cristãos: para este que vos escreve, por exemplo, tal pergunta é tão significativa quanto seria “Maria permaneceu virgem após o parto?” ou “o Espírito da Verdade era Jesus?“.
Em segundo lugar, essa pergunta é uma falsa bifurcação pelo simples fato de ser anacrônica: não havia, no primeiro século da Era Comum, qualquer obrigatoriedade de Elias voltar antes do Messias. Um livro que se consolidou no cânon – Malaquias – assegura o retorno dele. Entretanto, se olharmos bem seu texto (Ml 3:1), ele viria preparar o terreno para o próprio Deus, em vez do Messias, como propôs o autor de Eclesiástico. Incluindo-se os livros apócrifos e sectários, então o Reino de Deus poderia vir sem anunciante (II Baruque) ou anunciado por outros profetas (Preceito de Damasco, IV Esdras); não se podendo esquecer, claro, do exemplo concreto da aclamação de Bar Kochba por Rabi Akiva.
Por Malaquias ter sido bem aceito entre os fariseus – tanto que permaneceu no cânon judaico criado por eles -, o processo de identificação entre Elias e João Batista progrediu na medida em que as comunidades nazarenas se opunham a esse grupo. Elas não criam ainda numa Nova Aliança a superar a primeira, pois não constituíam uma religião separada; tampouco numa Segunda Revelação integrante de um plano de longuíssimo prazo. Elas buscavam por aceitação.
Mal comparando, elas guardavam certa semelhança com algumas figuras atemporais:
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- Um novo rico a exibir de forma espalhafatosa ou brega sua fortuna recém auferida;
- Um ex-detento a fazer demonstrações constantes de prestatividade e honestidade;
- Um prosélito mais fervoroso e praticante que os nascidos num grupo religioso.
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Todos têm algo em comum: incomodam quem lhes cerca. Um novo rico é a evidência ambulante de que o motor principal da economia já pode ter trocado de mãos; um esforçado ex-detento serve de “grilo falante” a lembrar que a possível única diferença ele e uma pessoa “ficha limpa” é que uma foi pega pela Justiça e a outra se safou; e é vergonhoso para um veterano perceber que um novato possui melhor conhecimento que ele sobre o ambiente cultural onde cresceu. Não lhes tardam a chegar aos ouvidos frases depreciativas e preconceituosas como “o que vem fácil, vai fácil“, “uma vez bandido, sempre bandido” ou “vai virar ateu na primeira decepção“.
A recém nascida seita dos nazarenos enfrentou desafio semelhante, visto que ao se expandir entre os am ha’aretz – o inculto “povo da terra” -, muitas vezes indisposto com a autoridade rabínica -, ela começou a constranger sacerdotes e doutores da Lei. Segundo Atos, as reações mais extremas envolviam perseguições e até mesmo assassinatos de lideranças, porém um combate menos sangrento, apesar de igualmente feroz deve ter sido travado no campo das ideias, afinal não havia motivo algum para reconhecer Jesus como o Messias. Um nazareno poderia muito bem ser alvo de chacota ou escárnio de um fariseu ou escriba por julgar como Messias alguém cuja morte foi ignóbil e, portanto, um fracasso, visto que seu reinado deveria ser eterno (II Sm 7:12, Dn 7:13-4).
Não bastava aos nazarenos apenas terem em seu íntimo a convicção de Jesus era o Messias, era preciso fazê-lo parecer, também, a fim de fazer frente a outros grupos bem mais cosolidados que o deles. O mais antigo registro dessa reconstrução apologética de Jesus foi Marcos que, de um jeito tímido, mostrou um Messias incompreendido. As assertivas messiânicas se radicalizaram na medida em que o cristianismo se espalhava entre os gentios (Lucas) ou tinha de enfrentar a crescente dominância dos fariseus na Judeia (Mateus), até que surgiu uma ruptura (João) desistindo de convencer os outros da unção de Jesus para aclamá-lo como algo muito maior: o Verbo de Deus.
Conforme o papel de Jesus evoluía, atributos a ele eram acrescentados. Podiam ser prodígios, profecias cumpridas e até uma paternidade especial. Numa listagem de atributos esperados do Messias, seus novos seguidores buscaram assinalar item a item e um deles era reaparição de Elias no fim dos tempos. Não era obrigatório à época, mas contava pontos. No hipotético evangelho de Q, João Batista não tinha ainda essa identificação e a disparidade entre Mt 11:12-15 e Lc 16:16 sugerem que a comunidade mateana tomou alguma “licença poética” para si. A Identificação começa com a catástrofe da Grande Revolta Judaica, quando os batistas deixaram de ser rivais significativos e puderam, portanto, tornar-se ferramenta para a criação da mitologia cristã. Em Marcos, seu líder de rival passou a ser Elias, embora de um jeito incompreendido para seu contemporâneos, assim como Jesus não fora um Messias de modo claro e evidente.
Vale lembrar que Marcos é o mais antigo, enxuto e menos simbólico dos evangelhos. Possui apenas baixa cristologia, diria até um modo adocionista: Jesus teria se tornado Filho de Deus apenas por ocasião do batismo, não sendo, portanto, superior a João Batista antes disso. Com o surgimento dos outros dois sinópticos, outras tradições cristãs foram agregadas ao fio narrativo de Marcos, dentre elas, contos sobre a Natividade. Aí a relação entre João e Jesus ganha um complicador, pois o status especial de Jesus é assinalado desde o seu nascimento em razão da concepção virginal realizada pelo Espírito Santo. Então, como explicar que alguém inferior (João Batista) iniciasse quem lhe era superior (Jesus)? Mateus e Lucas deram, cada um, sua própria solução.
Dos evangelhos, Mateus é o que mais insiste no caráter judaico de Jesus e seu ministério, enfatizando muito o cumprimento de profecias, a prática da Lei (ou o entendimento que tinha dela) e seu antagonismo com os fariseus. A identificação entre João Batista e Elias é bem mais enfática que a de Marcos, afinal era mais uma profecia a contar pontos; contudo, como seu antecessor, continua sem dar uma explicação sobre sua origem (o imortal Fineias/Elias?). Por ocasião do batismo, a justificativa, ainda que vaga, dá-se também no afã de cumprimento de desígnios: “porque assim nos convém cumprir toda a justiça” (Mt 3:15). Assim como Mateus, Lucas acrescenta à narrativa de Marcos os ditos de Q, uma genealogia que passa por Davi e a natividade. Há relatos, porém, que lhe são únicos, como algumas falas de João Batista e uma natividade própria para ele. É possível que tivesse acesso a fontes batistas sobre a vida do Imersor, contudo – fictícia ou não – sua biografia foi cristianizada: as natividades de Jesus e João se entrelaçam e nesse momento Lucas subordina João a Jesus. O preço pago foi não poder mais relacionar João com o Elias original, mas, sim, “no espírito e no poder de Elias”. Ou, quem sabe, muito pelo contrário, esse evangelista teria feito “uma limonada a partir de um limão” ao transformar um fato difícil que não podia esconder (a origem recente de João Batista) numa solução para outro constrangimento (o batismo de Jesus por João).
A construção da mitologia cristã prosseguiu para além da cronologia contida nos evangelhos. A morte e suposto fracasso de Jesus como Messias foram reelaborados pela aceitação da crença em sua ressurreição, ascensão aos Céus e futura volta (parousia). Sua morte foi encarada como um sacrifício ofertado, parte de um plano maior para a salvação de toda a humanidade (cf.Romanos e Hebreus), fazendo de Jesus tanto oferenda como sacrifício, aproximando-o nesse aspecto da versão sacerdotal do Messias. Paralelamente, o ínterim entre a ascensão e o fim dos tempos era a oportunidade necessária para seus apóstolos e discípulos espalharem a “boa nova” e para Elias, desta vez o original (cf. Lucas 9:28-30; 24:1-7/Atos 1:10-1), preparar o terreno. O retorno de Jesus também sofreu a evolução conforme a perseguição aos cristãos crescia, partindo de uma tomada de poder aparentemente pacífica na Era Apostólica (cf. I Cor 15:24,25), como a dos Salmos de Salomão, para a entrada triunfal de um Messias guerreiro no livro de Apocalipse (Ap 19:11-16). Conforme o tempo passava, a geração que conheceu Jesus e seus discípulos originais se esvaía. O Reino de Deus tardava em chegar até que o senso de urgência dos apóstolos deixou de fazer sentido. No quarto evangelho, o mais tardio deles, o Reino já não era mais “deste mundo” (Jo 18:36) e, portanto, já não havia mais razão para Elias voltar. Nem para João Batista ser identificado com ele.
Vale lembrar que esse desenvolvimento não foi linear em toda as suas etapas. Pelo contrário, o cristianismo de se desenvolveu como um arbusto ramificado desde o início. Alguns ramos não citados acima mantiveram-se firmes no compromisso firmado na Primeira Aliança, exigindo que, antes de ser cristão, era preciso ser (ou tornar-se) judeu. No caminho oposto, outros, como Marcião, quiseram romper com a herança judaica e considerar apenas o Pai de que Jesus falava como Deus genuíno e tratar o Javé dos antigos hebreus como um demiurgo inferior. Os gnósticos, como uma terceira via, aprofundaram ainda mais essa ideia em sofisticados sistemas cosmológicos e místicos. Quem venceu a guerra “por corações e mentes” foi o grupo que evitou todos esses extremos e procurou fazer um grande credo de compromisso: o que hoje chamamos de proto-ortodoxia cristã. Estabelecendo os evangelhos em quatro e um conjunto autoritativo de cartas, seus pensadores procuraram criar uma teologia capaz uniformizar, dentro do possível, o que jamais deixou de ser uma enorme colcha de retalhos. No caso da identidade entre Elias e João Batista, temos Mateus afirmando enfaticamente que um era o outro num extremo e o quarto evangelho negando com a mesma veemência na ponta oposta. Como fiel da balança, escolheu-se Lucas, com seu “Espírito e Poder”, pois tal concepção permitia a João Batista ser Elias e ao mesmo tempo não o ser.
Mas a profecia afirmava que o próprio Elias tinha de voltar, não alguém como ele.
Em terceiro lugar, não há a menor razão para se rejeitar que João Batista fosse Elias de uma forma alternativa, porque já se aceitou que Jesus não era o Messias da maneira esperada. Ao menos em sua primeira vinda. Os judeus rejeitam Jesus como Messias por diversos motivos, dentre eles o fato de o Reino de Deus não ter se concretizado ainda, mas um cristão pode justificar essas inconsistências e atrasos fazendo uma releitura das Escrituras judaicas e usando a crença na ressurreição como fiadora de promessas pendentes. Apologistas espíritas, por sua vez, fazem uma releitura do Novo Testamento para ajustá-lo a sua teologia, porém uma interpretação um tanto literal de Malaquias para garantir a reencarnação de Elias em João Batista. Com duas metodologias discrepantes, acho difícil que se chegue a um consenso.
João Batista morreu decapitado porque, em sua encarnação como Elias, mandara degolar mais de 400 sacerdotes de Baal.
Isso me soa como uma versão espírita da falácia post hoc ergo propter hoc (“após isto, então por causa disto”): a simples atribuição de um relacionamento de “causa e efeito” para dois eventos, apenas por eles serem subsequentes, aqui com o agravante de estarem distanciados de alguns séculos. Vou te dizer uma coisa: até que João Batista teve sorte em ser decapitado, dado que outras opções de execução poderiam ser bem piores, como lapidação, eviceramento, crucifixão, etc. A tradição cristã [Atos de Paulo 10:3] diz que o Apóstolo dos Gentios também morreu decapitado, porém teve direito a esse tipo de execução por ser cidadão romano. Mortes cruéis e humilhantes ficavam para a ralé, como a de um tal de Jesus de Nazaré. Que teria ele feito na encarnação anterior para merecer tanto?
Jesus era um espírito evoluidíssimo e não tinha dívidas a pagar. Seu martírio foi algo necessário para o cumprimento de sua missão, como exemplo de perseverança e sacrifício para os discípulos < ou coloque qualquer outra desculpa que se queira>).
Ok, então por que não poderia valer o mesmo raciocínio para João Batista? Ele teria de morrer para que Jesus crescesse, simples assim. Ademais, por que se deveria aceitar uma visão tão tacanha da “lei” de ação e reação? O esforço que o Batista despendeu na seara do Amor não deveria amortecer a dívida a ser paga pela Dor? Seus critérios são bem arbitrários e convenientes.
Ora, Jesus disse que João Batista era Elias. Se ele falou, está falado!
Por acaso você é adepto da inerrância bíblica? Caso sim, não tenho o que discutir contigo. Do contrário, eis algumas perguntas: possuis em tuas mãos alguma antiga tabuleta de cera contendo a transcrição estenográfica dessa fala atribuída a Jesus? És membro de algum grupo de pesquisa em viagens no tempo, ao estilo do livro Operação Cavalo de Troia, e já foi à Judeia do primeiro século a fim de registrar tudo em equipamentos modernos? Acho meio difícil. Quem disse isso foi Marcos, que foi exacerbado por Mateus e reformulado por Lucas. Há, também, a possibilidade de sua “inerrância” ser seletiva. E, ainda que Jesus tivesse dito isto, poder-se-ia acrescentar mais uma pergunta: ele era Elias de qual modo?
Ademais, não custa lembrar que já no período pré-literário (30 – 65 d.C.) era encontrada em círculos cristãos a crença numa segunda vinda de Jesus, uma oportunidade teológica e tanto para emendar as pontas soltas de seu primeiro ministério, entre elas a vinda de Elias (o original, dessa vez).
Jesus deu diversas mostras do retorno de Elias nos evangelhos. Esse pensamento era compreendido pelos apóstolos e transmitido por eles, mas não tinham conhecimento profundo de como retornariam os profetas, ou melhor o processo reencarnatório. Foi justamente isso que Jesus nos queria ensinar, mas que não estávamos ainda preparados para receber.
Sem petições de princípio, por favor! Sequer ficou provado por A + B que João Batista era tido por Elias reencarnado (muito menos se era essa a intenção de Jesus) e já está usando isso em suas conclusões. Se está “jogando para a torcida”, favor procurar a arquibancada correta.
Você também não tem autoridade para dizer que ele não o era, ou que não há reencarnação na Bíblia!
Uma autoridade da qual nunca me arvorei, como certos autoproclamados biblistas do meio espírita, porém com objetivo oposto. Por outro lado, considero que tenho certa habilidade em detectar imposturas, como a exigência em demonstrar negativas usada como uma “inversão do ônus da prova” disfarçada. Imagine só como seria se nossos tribunais exigissem que os réus provassem não serem culpados? As caças às bruxas dos religiosos ou os tribunais jacobinos da França revolucionária eram assim. Deu no que deu. Em tempos mais saudáveis, o réu é considerado inocente (mesmo que não o seja de fato), e cabe à promotoria a tarefa de juntar evidências a favor de sua culpabilidade. A defesa, por sua vez, pode refutar o cerne do argumento da promotoria, ou demonstrar que as evidências apresentadas por ela não permitem um juízo “para além de qualquer dúvida razoável”.
Bem, como estamos nesse balanço? Seria possível que os judeus do primeiro século ou os primeiros cristãos tomassem João Batista pela reencarnação de Elias? Sim, seria possível. Provável? Não.
Possível porque mesmo num contexto não reencarnacionsita (neste caso, devido à urgência apocalíptica), a reencarnação pode ser cogitada para casos especiais. Um exemplo moderno seria o de grupos xiitas que aceitam a reencarnação de certos imãs, embora cogitem a vida única para todo o restante.
(Aposto que muitos citarão o parágrafo acima e esquecerão todo o restante do artigo, paciência.)
Improvável porque os próprios relatos evangélicos dão a entender que essa não seria a primeira opção. Marcos deixa nas entrelinhas que João Batista não era tido por Elias pelo grosso dos seus contemporâneos (até porque fracassou…). Tanto ele quanto Mateus não lhe dão uma origem, então o que seus supostos primeiros leitores deveriam esperar: uma reencarnação – crença cujas evidências dentro no judaísmo mainstream datam da Idade Média – ou no retorno de Fineias/Elias – que foi relatado por Orígenes (séc. III) como crença difundida entre os judeus e pode ser rastreada até o primeiro século (cf. Liber Antiquitatum Biblicarum)? Quando Lucas deu lhe uma origem e filiação, por que ele não foi mais assertivo em dizer que João era Elias reencarnado em vez de possuidor de atributos dele (“espírito e poder”)?
Assim, julgo como falsa a tese de que João Batista fosse originalmente tomado por Elias reencarnado, ao menos até que ela seja corroborada por evidências e análises mais contundentes que simples releituras do Novo Testamento ou argumentos falaciosos.
O regresso de Elias como João Batista, na época de Jesus, era tido como sendo por meio da ressurreição, mas o Consolador Prometido nos elucida o processo de reencarnação. Como a reencarnação não era compreendida no primeiro século da idade cristã, os apóstolos não estavam preparados para receber o que Jesus ainda tinha para nos revelar. A vinda do Consolador Prometido também era necessária após um amadurecimento da humanidade, a fim de que pudéssemos entender certas verdades, não reveladas nos dias do Mestre Jesus. Ele mesmo disse: “Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agora vocês não seriam capazes de suportar” (Jo 16:12).
Desconheço a surata do Alcorão em que Maomé explicou a reencarnação. Se não entendeu a ironia, clique no link anterior para para descobrir o quanto há de “narcisismo teológico” nessa história de “Consolador Prometido”.
Tomar partido na questão quanto ao regresso do profeta Elias como João Batista por meio de um processo reencarnatório ou não é uma posição que mesmo céticos têm que tomar. Este último posicionamento o tornará um fundamentalista, ou aceite o processo de reencarnação. Não há meio termo, mesmo sendo cético. Qual é o teu posicionamento?
“Você já parou de cometer assassinatos em série, sim ou não? Não há meio termo.”
Percebeste o efeito desastroso cruzamento de uma falsa dicotomia com a exigência de uma resposta simples para uma pergunta complexa? Em ambos os casos, a dicotomia surge por estar se presumindo algo que reduza a dois o número de opções. No exemplo que dei, você já teria tido ao menos um surto assassino; já na sua pergunta, uma profecia teria de ter sido cumprida e de um jeito específico. Para nossa sorte, não há razão alguma para assumir esses pressupostos.
Ainda que o ponto que eu defenda guarde semelhança com aqueles a quem chama de “fundamentalista”, isso não me torna um deles. A ortodoxia cristã é um pacote, um combo, e o fato de aceitar um dos itens de forma alguma significa que levei todos os demais. Se não, voltaríamos ao tempo das querelas teológicas dos séculos IV e V, quando alguém que cogitasse um término para a danação dos pecadores era acusado de “origenismo”; ou ficaríamos na mesma situação dos “comunistas” do século XX que apenas queriam um pouco mais de justiça social.
No que diz respeito à identidade João Batista/Elias, não há razão para eu, como cético, tomar posição a respeito disto, pois é uma questão que pertence ao domínio da fé. Como não possuo tal fé, a pergunta se torna sem sentido. O que não posso me esquivar é do personagem histórico, e este desagradará a espíritas e “fundamentalistas”. Há evidência de existiu alguém chamado João Batista na Judeia do começo do primeiro século, que foi influente e posteriormente transformado em precursor do Messias para os herdeiros da seita dos nazarenos. Qual foi o pano de fundo e dinâmica dessa transformação é o desafio que o pesquisador tenta responder. Se você chegou até aqui, pôde perceber que não é nada simples. Apenas os fanáticos reduzem todas as nuances envolvidas a um mero “sim ou não”.
Peraí, não sou devoto e nem um apaixonado por dogmas e religiões, mas um pesquisador que busca a verdade!
Eu fico realmente impressionado: você age exatamente do modo que nega. Para começo de conversa, violas o princípio básico de qualquer pesquisador do Jesus Histórico: o Jesus dos evangelhos é o da fé e muito do que é dito lá visa justificar o credo das comunidades em que viveram os evangelistas. O Jesus histórico só é extraído a partir de um senhor cruzamento de dados, análises da época em que viveu e um conjunto de critérios. O resultado, porém, é frustrante para muitos religiosos. Então meu caro, você não é pesquisador coisa nenhuma e, sim, um apologista de seu grupo religioso. Na melhor das hipóteses, és um pesquisador que produziu um Jesus “à sua própria imagem e semelhança”. Você deseja abrir os evangelhos e encontrar um pequeno espelho no canto de cada página.
(Em construção)
[topo]
Notas
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- Múltipla atestação: refere-se a elementos da vida e dos ensinos de Jesus que se repitam em mais de uma fonte, por exemplo, o fato de ele ter tido irmãos e um grupo seleto de discípulos mais achegados;
- Conformidade social: refere-se a elementos que se adaptam à realidade cultural e social em que Jesus viveu;
- Dissimilaridade: refere-se a elementos que não deveriam agradar quem os registrou e, justamente por isso, devem ser genuínos.
-
A crucifixão de Jesus é um exemplo claro de episódio que passa pelos três critérios, mas sua ressurreição não passa pela dissimilaridade. Não é que historiadores estejam negando um milagre, apenas dizendo que nada podem afirmar sobre ele. Ele pertence à fé. Da mesma forma, é possível que um elemento presente em uma única fonte tenha sido verídico, mas deveremos averiguar isso de outras formas.
(2)[Ehrman (1999), cap. VIII, pp. 137-8] e [Ehrman (2008), cap. XVI, pp.258-9]
(3) [Funk & Hoover, “Gospel of Matthew”, pp. 210-1]
(4) Na verdade, a palavra grega utilizada para expressar o relacionamento entre as duas (syngenes) pode significar qualquer relacionamento sanguíneo entre pessoas. Segundo a Catholic Encyclopedia, o entendimento de “primas” vem de uma tradição cristã que remonta aos tempos de Hipólito, pelo menos.
(5) Na verdade, existe uma menção a um Zacarias em Mateus
Para que sobre vós [escribas e fariseus] caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar.
Mt 23:35
Há um outro sacerdote de nome Zacarias que aparece rapidamente em II Cr 24:20-1, tendo sido morto por apedrejamento pouco depois de empossado, no pátio do Templo. O problema é que ele era filho de Joiada, não de Baraquias. O Protoevangelho de Tiago também relata que o Zacarias “pai de João” fora assassinado a mando de Herodes, durante o massacre dos inocentes. Entretanto, esse crime foi cometido lado do altar e nada sabemos sobre o avô paterno de João.
De qualquer forma, esse discurso não deve ser original de Jesus, pois contradiz a pregação para “amar os inimigos”, além que exigir que filhos paguem pelos pecados dos antepassados.
(6) Ainda que tivesse discordâncias com o antigo mestre, o Jesus Histórico poderia muito bem não tê-lo visto necessariamente como um competidor por “corações e mentes”. Essa corrida pode muito bem ter começado após a morte de ambos.
(7) Cf. [Funk & Hoover, “Matthew”, p. 180] e [Funk & Hoover, “Luke”, pp. 302-3]
(8) Há indícios de que os primeiros cristãos retornaram à prática de jejuns já pela fundação das primeiras comunidades helênicas:
E, servindo eles ao Senhor, e jejuando, disse o Espírito Santo: Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, jejuando e orando, e pondo sobre eles as mãos, os despediram. E assim estes, enviados pelo Espírito Santo, desceram a Selêucia e dali navegaram para Chipre.
At 13:2-4
Que os jejuns de vocês não coincidam com os dos hipócritas. Eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana. Vocês, porém, jejuem no quarto dia e no dia da preparação [sexta-feira].
Didaqué 8:1
No caso da Didaqué, seu autor queria diferenciar o nascente cristianismo do partido fariseu, a quem chama de “hipócritas”.
Para saber mais
– Charlesworth, James H.; The Old Testament Pseudepigrapha, Vol. I, Doubleday, 1983.Z
-Ehrman, Bart D.; Jesus: Apocalyptic Prophet of the New Millenium, Oxford University Press, 1999.
_______, The New Testment: A Historical Introduction to the Early Christian Writings, Oxford University Press, 4a. ed., 2008.
– Epiphanius of Salamis, Panarion, livros II e III (Sects 47-80 -, De Fide), tradução inglesa de Frank Williams, Nag Hammadi and Manichaean Studies, 1993.
– Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Novo Século, 1999.
– Flusser, David; O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, vol. I e III, Imago, 2000 e 2002.
– Funk, Robert W., Hoover, Roy W. & Jesus Seminar; The Five Gospels – What did Jesus really say?, Harper San Francisco, 1993.
– Ginzberg, Louis; The Legends of the Jews, Sacred Texts, acessado em 20/08/2015.
– Gruber, Daniel; Rabbi Akiba’s Messiah, Elijah Publishing, 2013.
– Klauck, Hans-Josef; Evangelhos Apócrifos, Loyola, 2007.
– Ireneu de Lião; Contra as Heresias, Coleção Patrística, vol. IV, Paulus, 2a. edição.
– Mack, Burton L.; O Evangelho Perdido: O Livro de Q e as Origens Cristãs, tradução de Sergio Alcides, Imago, 1994.
– Origen; Commentary on the Gospel according to John, Books 1 – 10, Coleção The Fathers of the Church, vol. LXXX, tradução em língua inglesa de Ronald E. Heine, The Catholic University of America Press, 1989.
– Pereira, Rosalie Helena de Souza; A Questão da Origem dos Mandeus, os Últimos Gnósticos, Revista de Estudos da Religião, junho de 2009. pp. 92-120.
– Tricca, Maria Helena de Oliveira; Apócrifos: os Proscritos da Bíblia, vol. III, Mercuryo, 1995.
– Vermes, Geza; Os Manuscritos do Mar Morto, Mercuryo, 4a. ed., 2004.
– Vassiliadis, Petros; The function of John the Baptist in Q and Mark, publicado em Theologia, vol. 46, pp. 405-413, Grécia, 1975
– Wilkinson, Josepha Josephine; John the Baptist: A Life and Death, Kindle Edition, 2012.
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Vinde Espírito Santo! – Um Artigo sobre o Artigo Grego (Rascunho)
Índice
- O Consolador Prometido Redux
- De Onde sopra o Espírito
- Se é qualquer Espírito, então não é Espírito Santo Algum
- Artigo Grego: a Sofisticação da Simplicidade
- A Presença dos Ausentes
- As Faces do Espírito
- Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ
- No Princípio era o Espírito
- Paulo: O Crescer do Espírito
- A Disparidade Sinóptica (em construção)
- Onde o Espírito fez a Curva
- O Julgamento Final
- Notas
- Para Saber Mais
O Consolador Prometido Redux
Retomando um trecho do Evangelho Segundo o espiritismo, tratado em outro artigo, com as seguintes palavras de Kardec:
3 – Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito da Verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece. Mas vós o conhecereis, porque ele ficará convosco e estará em vós. – Mas o Consolador, que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. (João, XIV: 15 a 17 e 26)
4 – Jesus promete outro consolador: é o Espírito da Verdade, que o mundo ainda não conhece, pois que não está suficientemente maduro para compreendê-lo, e que o Pai enviará para ensinar todas as coisas e para fazer lembrar o que Cristo disse. Se, pois, o Espírito da Verdade deve vir mais tarde, ensinar todas as coisas, é que o Cristo não pode dizer tudo. Se ele vem fazer lembrar o que o Cristo disse, é que o seu ensino foi esquecido ou mal compreendido.
O Espiritismo vem, no tempo assinalado, cumprir a promessa do Cristo: o Espírito da Verdade preside ao seu estabelecimento. Ele chama os homens à observância da lei; ensina todas as coisas, fazendo compreender o que o Cristo só disse em parábolas. O Cristo disse: “que ouçam os que têm ouvidos para ouvir”. O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porque ele fala sem figuras e alegorias. Levanta o véu propositalmente lançado sobre certos mistérios, e vem, por fim, trazer uma suprema consolação aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, ao dar uma causa justa e um objetivo útil a todas as dores.
(…)
Assim realiza o Espiritismo o que Jesus disse do consolador prometido: conhecimento das coisas, que faz o homem saber de onde vem, para onde vai e porque está na Terra, lembrança dos verdadeiros princípios da lei de Deus, e consolação pela fé e pela esperança.
O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VI.
A ideia básica acima, calcada em Jo 14:26, pode ser (e foi) utilizada por qualquer grupo que alegue ter com o consolador prometido. Três coisas eles possuem em comum:
- Mais de cem anos de distância da morte de Jesus (dando tempo para o “esquecer”);
- Ideias alienígenas (afinal, “toda as coisas” pode ser qualquer coisa);
- Uma boa dose de pretensão (afinal, eu que sou a terceira revelação, não os outros).
O corolário óbvio dessa postura é a rejeição da tradição cristã ortodoxa de considerar a descida do Espírito Santo em forma de “línguas de fogo” sobre apóstolos, no dia de Pentecostes (At 2), como cumprimento da profecia de João. No caso espírita, em particular, dois outros artifícios são usados:
- Jogos semânticos com a palavra “espírito”: consiste em equipará-la com o sentido espiritualista moderno de “alma” ou, mais tecnicamente, espírito + perispírito. Com isso, o episódio se aproxima de um manifestação mediúnica. Para se tornar uma de vez, falta a…
- Indeterminação do “espírito santo”: com letra minúscula, mesmo. Baseados em certa norma gramatical grega, apologistas espíritas alegam que se não houver um artigo (definido) antes de um substantivo, esse deve ser traduzido sem artigo ou com um artigo indefinido. Assim, os apóstolos teriam recebido “um espírito santo” qualquer em At 2:4 (και επλησθησαν απαντες πνευματος αγιου).
Ambas fazem parte de um não declarado programa para apresentar o cristianismo primevo como protoespiritualismo. Caso o entendimento que os judeus intertestamentários e dos primeiros cristão não coincidir com o proposto, então terá sido apenas mais um caso de anacronismo disseminado no movimento. Para tirar a prova real, será preciso mergulhar nos testemunhos do passado e, para tanto, o texto bíblico não será o bastante.
De Onde sopra o Espírito
– Vegeta, qual o nível de “espírito” desse cara ?!
– Mais de 9.000
Os fãs do anime Dragon Ball Z identificarão imediatamente a cena clássica mostrada acima, com a diferença de que, no original, a palavra usada para expressar o “poder vital” que os personagens extravasavam em suas pancadarias era o termo chinês ki, cujo sentido, grosso modo, corresponde também ao prana dos hindus. Para os ouvidos ocidentais modernos, acostumados a associar tratar a palavra “espírito” como um sinônimo para “alma”, esse trocadilho, além de sem graça, pode ter soado forçado, estranho. Contudo, um antigo hebreu não o acharia tão apelativo assim, pois, deixando de lado os socos e chutes, foi aproximadamente esse o significado na última conversa entre Elias e Eliseu:
Sucedeu que, havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que te faça, antes que seja tomado de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja porção dobrada de teu espírito sobre mim.
2 Re 2:9
A palavra “espírito” (pneuma em grego e rouach) literalmente significa “sopro”, “vento” e não necessariamente denota a consciência individual, mas o princípio que nos anima (Gn 7:22, Sl 146:4) e retorna a Iahweh após a morte (Ecl 12:7, o que não é panteísmo), o ânimo (Jz 15:19), “coragem” (Js 2:11), “raiva, exaltação” (Jz 8:3), ação sobre a mente (Ez 11:5), Iahweh e suas manifestações (Is 63:10). Já a expressão “Espírito Santo”, no Antigo Testamento, aparece apenas em três ocasiões:
- Sl 50(51 Heb.):11: “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu Espírito Santo”;
- e no já mencionado Is 63:10: “Mas eles foram rebeldes, e contristaram o seu Espírito Santo; por isso se lhes tornou em inimigo, e ele mesmo pelejou contra eles.” e
- no versículo seguinte: “Todavia se lembrou dos dias da antiguidade, de Moisés, e do seu povo, dizendo: Onde está agora o que os fez subir do mar com os pastores do seu rebanho? Onde está o que pôs no meio deles o seu Espírito Santo?”
E em todas ela é apenas outra maneira de referir ao próprio Javé. A tradição dos LXX traduziu a expressão como το πνευμα το αγιον, porém as paráfrases dos Targumim ora mudaram a expressão para “espírito de profecia“, usando-a recorrentemente em outros versículos, ora usaram “espírito santo” onde o massorético traz apenas “espírito” ou nem isso:
- Ex 33:16 “Pois como se saberá que encontrei misericórdia perante ti, eu e teu povo, a não ser que sua Shekinah fale conosco e maravilhas sejam realizadas por nós quando retirares o espírito de profecia das nações e falar no Espírito Santo a mim e a teu povo, de modo que nos tornamos diferentes de todos os povos que estão sobre a face da Terra?”
- 22:27 “O humilde comerá e se saciará; os que buscam o Senhor cantarão louvores em Sua presença; o espírito de profecia residirá nos pensamentos de seus corações para sempre.”
- 45:3 “Vossa beleza, ó Rei Messias, é maior que a dos filhos dos homens; o espírito de profecia foi posto nos vossos lábios, porque o Senhor vos abençoou para sempre.”
- 46:1 “Para louvar pelos filhos de Coré (cf. Nm 16), quando seu pai lhes foi oculto por meio do espírito de profecia, mas ele se salvaram e recitaram este cântico.”
- 49:16 “Davi disse no espírito de profecia: ‘Na verdade, Deus redimirá minha alma do julgamento de Geema, pois me ensinará sua Torá para sempre’.”
- 51:11 “Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu espírito santo de profecia.”
- 51:14 “Traga de volta vossa Torá para mim, para exultar em sua redenção; e que o espírito de profecia me ampare.”
- 68:34 Ao que senta em seu trono no céu dos céus; no princípio ele, por seu comando, deu através de sua voz o espírito de profecia aos profetas.
- 40:13 “Quem direcionou o Espírito Santo na boca de todos os profetas? Não e o Senhor? Ele faz conhecer as palavras de Sua vontade aos justos, aos servos de Seu Verbo.”
- 42:1 “Eis meu servo, a quem trago, meu escolhido em quem se compraz, quanto a meu Verbo, porei meu Espírito Santo sobre ele; Ele revelará meu julgamento às nações.”
- 44:3 “Assim como as águas são despejadas sobre a terra sedenta e são postas a fluir sobre a terra seca, assim darei meu Espírito Santo aos seus filhos, e minhas bênçãos aos filhos dos filhos.”
- 59:21 “Quanto a mim, esta é minha aliança com eles, diz o Senhor, meu Espírito Santo, que esta sobre você e as palavras de minha profecia que pus em tua boca, e não deixaram tua boca, nem as de teus filhos, nem as dos filhos dos filhos, diz o Senhor, desde agora para todo os sempre.”
- 63:10 “Mas eles foram rebeldes contra o verbo de seus profetas e blasfemaram, e Seu Verbo se tornou inimigo deles, e travou guerra contra eles.”
- 63:11 “E teve compaixão pela glória de seu nome, por causa da lembrança de Sua bondade de outrora, dos poderosos feitos que fez pelas mãos de de Moisés por seu povo; para que os gentios não dissessem: “Onde está agora o que os fez subir do mar? Onde está O que os guiou pelo deserto, como um pastor e seu rebanho? Onde está o que fez o verbo de Seus santos profetas residir entre eles?”
Em várias passagens das tradições targúmicas, o Espírito Santo (rouach haqqodesh) é tido como Javé comunicando-se diretamente sua vontade ao homem. É um dom concedido exclusivamente à Israel, após a entrega da Torá, e, em outras tantas, é semanticamente afim de “espírito de profecia” num sentido de um poder a guiar os homens a Deus, ao louvor e à profecia. Uma e outra expressão costumam vir acompanhadas de “Shekinah” (presença divina), “Dibbera” e “Memra” (ambas comparáveis a “Verbo”, “Palavra”), ressaltando o aspecto de interação comunicativa (Cf. [McNamara, cap. XI, 1]). Às vezes, “Espírito Santo” parece personificado, mas não cabe que aqui a enxergá-lo como a terceira hipóstase da Trindade, que nunca teve lugar no judaísmo.
Não é apenas nos targumim que se encontra um incremento no uso de “Espírito Santo”. Nos manuscritos deixados pela seita essênia nas cavernas de Qumran, ele não está apenas inspirando, mas também confortando:
- Preceito de Damasco II:12 “Ele sabia dos acontecimentos que lhes adviriam por todos os anos infinitos. E em todos, Ele criou para Si homens que tinham um nome, para que um remanescente pudesse permanecer na terra, e para que a face da terra pudesse ser preenchida com sua descendência. E Ele lhes revelou Seu Espírito Santo por intermédio de Seus consagrados, e proclamou (lhes) a verdade. Mas aqueles a quem odiava, Ele os descaminhou.”
- Hino de Ação de Graças (1QH): VII Agradeço a Ti, ó Senhor, por me apoiares com Tua força.
Derramaste Teu Espírito Santo sobre mim para que eu não tropece.
- Hino de Ação de Graças (1QH) IX: Tu me alimentaste com a verdade infalível;
Tu me deliciaste com Teu Espírito Santo
e [abriste meu coração] até o dia de hoje.
- Hino de Ação de Graças (1QH) XIII: Eu, o Mestre, conheço-Te, ó meu Deus, pelo espírito que tu me deste,
e pelo Teu Espírito Santo eu obedeci fielmente Teu conselho maravilhoso.
No mistério da Tua sabedoria Tu me abriste o conhecimento, e em Tua misericórdia
[Tu me descerraste] a fonte de Teu poder.
- Hino de Ação de Graças (1QH) XIV E eu sei pelo entendimento que vem de Ti
que em Tua bondade para com [as cinzas,
Tu derramaste] teu Espírito Santo[sobre mim]
para que eu chegasse mais perto de entender-Te.
- Preceito da Comunidade (1QS) IV: Deus então purificará cada ato do homem com Sua verdade; Ele irá sutilizar a estrutura humana, desarraigando todo o espírito de falsidade dos grilhões da carne. Ele irá limpá-lo de todos os atos iníquos, com o espírito de santidade; qual água purificadora, irá derramar sobre ele o espírito da verdade (para limpá-lo) de toda a abominação e falsidade.
- Preceito da Comunidade (1QS) IX: Quando estes se tornam membros da Comunidade de Israel de acordo com estes preceitos, deverão estabelecer o espírito de santidade em consonância com a verdade eterna. Deverão expiar a culpa pela rebelião e pelos pecados de infidelidade, para que possam obter a bondade para a Terra, sem a carne dos holocaustos e a gordura do sacrifício. E a oração oferecida da forma certa será como uma aceitável fragrância de retidão, e a conduta perfeita, como uma prazerosa oferenda de boa vontade.
Assinale-se a presença na seita essênia de um forte dualismo entre luz e trevas, limpeza e impureza, verdade e falsidade. Tais oposições não eram desconhecidas entre os primeiros cristãos, como o conceito dos “Dois Caminhos” encontrado em Barnabé e, notadamente, na Didaquê. Dos canônicos, chegou-nos uma pequena amostra disso na carta I João, quando seu autor alertou sobre os ensinos de um certo grupo de dissidentes daquela comunidade:
Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;(…) Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro.
I Jo 4:2,6
Isso não quer dizer que os autores de João, Barnabé e da Didaquê tenham sido essênios. O mais provável é que beberam água da mesma fonte: a cultura judaica intertestamentária, na qual o dualismo e conceitos de “espírito”, “santidade” e “verdade” estavam em voga [cf. Bauckham]. E embora João contenha passagens que hoje seriam tidas simplesmente como antijudaicas, como será discutido mais adiante, sua origem ainda é mais judaica que helênica. E, para tanto, não é preciso apelar para o canônico bíblico ou o esotérico de essênio, pois a literatura deuterocanônica e pseudoepígrafa dá sua cota de usos para esses termos que, curiosamente, está mais perto do que hoje chamaríamos de pentecostalismo que do espiritualismo:
- Sb 7:21-6 “Tudo sei, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou! Nela, há um espírito inteligentes, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, imaculado, amigo do bem, agudo, incoercível, benfazejo, amigo dos homens, firme, sereno, tudo podendo, tudo abrangendo, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros, os mais sutis. A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é um eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se introduz. Pois ela é um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua bondade.”
- Sb 9:17 “Quem conhecerá tua vontade, se não lhe dás Sabedoria enviando dos céus teu santo espírito?”
- Salmos de Salomão 17:37 “E ele [o rei] não enfraquecerá naqueles dias, graças a seu Deus, pois Deus o fará poderoso pelo Espírito Santo e sábio pelo conselho do entendimento, com poder e justiça.”
- José e Azenate 19:11 “Então José estendeu suas mãos e abraçou a Azenate, e Azenate a José, e se beijaram por um longo tempo, e ambos viveram de novo no espírito de ambos. E José beijou Azenate e lhe deu o espírito da vida, então, na segunda vez, lhe deu o espírito de sabedoria, e na terceira vez beijou a suavemente e lhe deu o espírito de verdade.”
- Livro dos Jubileus 25:12-5 “E [Rebeca] disse: “Bem dito seja o Senhor Deus, e que Seu nome santo seja bem dito para todo o sempre, que me deu Jacó como um filho puro e descendência santa; porque ele é Teu, e Tua será sua descendência continuamente e por todas as gerações para sempre. Abençoe-o, oh Senhor, e coloque em minha boca as bênçãos de justiça [verdadeira bênção], para que eu possa abençoá-lo.”E naquela hora, quando o espírito de justiça [espírito de verdade] desceu na boca dela, ela colocou ambas as mãos sobre a cabeça de Jacó e disse:”Bendito sejas tu, Senhor da justiça e Deus das eras. Que Ele te abençoe (Jacó) além de todas as gerações dos homens.
Que Ele te de, meu filho, o caminho da justiça, e revele justiça a tua descendência. E que Ele faça de teus filhos muitos durante tua vida, e que eles surjam de acordo com os meses do ano. E que os filhos deles se tornem muitos e muito além das estrelas do céu, e que seu número seja maior que o da areia do mar.”- Daniel 13:45 (A História de Susana) “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel.”
A importância desses paralelos encontrados em textos religiosos já do fim da Antiguidade é eles tapam parte do fosso existente entre os canônicos do Antigo e do Novo Testamentos, a começar pelo grande incremento de aparições da expressão Espíritos Santo nos dois livros atribuídos a Lucas, em especial Atos. Nesse, após Pentecostes, Pedro faz menção à profecia de Joel ao notar que o Espírito Santo recebido não foi exclusivo dos apóstolos, nem dos judeus:
E Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto.
Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: “Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel [Jl 2:28-32]:
‘E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, Que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; E os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, Os vossos jovens terão visões, E os vossos velhos sonharão sonhos; e também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima, no céu; E sinais em baixo na terra, Sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor; e acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.'”Atos 2:10-21
Seria a graça divina se espalhando para todas as nações a partir dos judeus, bem conforme a proposta de Lucas em suas duas obras. Três aspectos, contudo, diferem o “Espírito Santo” do nascente cristianismo de seus correspondentes judaicos: o primeiro é crença que a era messiânica, de certa forma, já começara e, segundo, o Espírito estaria fortemente vinculado à pessoa de Jesus. Por último, o ele seria uma espécie de promessa para a glória da consumação final [cf. Bruce, p. 55].
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Se é qualquer Espírito, então não é Espírito Santo Algum
Com um “zero infinito”, tudo é possível
Primeiramente, melhor se inteirar da opinião de dois autores espíritas, recorrentemente repassadas:
Como cada pessoa tinha e tem um Espírito Santo ou alma, no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão “Espírito Santo”, não se encontra o artigo definido grego “ho” (“o”), pois quando esse original foi escrito, os teólogos ainda não tinham instituído o Espírito Santo e a Santíssima Trindade, à qual Ele pertence. Por isso, não se dizia “o Espírito Santo”, referindo-se àquele definido e único da Santíssima Trindade, já que Ele não existia naquela época. Como vimos, só mais tarde o Espírito Santo e a Santíssima Trindade foram criados.
Destarte, quando na Bíblia, em Português, temos essa expressão Espírito Santo, o artigo Dele deve ser o indefinido “um” e não o definido “o”, para que a tradução seja fiel ao original grego: “um Espírito Santo de alguém”. Mas, infelizmente, todas as traduções foram adaptadas à nova doutrina do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e passaram a usar, erroneamente, a expressão “o Espírito Santo”, quando o certo é “um Espírito Santo”, a que a Bíblia se referia antes da instituição do Espírito Santo da Santíssima Trindade, e como está no original grego.
Fui repetitivo na explicação desse assunto, propositalmente, para que as pessoas de menos instrução possam também entendê-lo bem. E procurei ser também simples e claro o mais possível na exposição do assunto. E é por isso que deixei também para explicar, somente agora, uma outra faceta desse assunto.
No Grego não há o artigo indefinido “um”. Já o artigo definido “o” (“ho”) existe, e ele aparece normalmente. E, destarte, se no texto original grego se dissesse “o Espírito Santo”, essa expressão ficaria assim: “ho Pneuma Hagion” ou “ho Hagion Pneuma” (o Espírito Santo ou o Santo Espírito”). Acontece que os textos originais gregos vêm sempre sem o artigo definido “ho”, a saber: Pneuma Hagion, pelo que nunca podemos colocar nas traduções para o Português o artigo definido “o”, mas o indefinido “um”, que não aparece em Grego porque, como dissemos, ele não existe em Grego. Mas, como no Português, ele existe, temos que colocá-lo quando aparece a expressão Espírito Santo, ficando, pois, assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”.
Para complicar ainda mais as coisas, o Latim já não tem nem o artigo definido “o” nem o indefinido “um”. Por isso, na Vulgata, só aparece a expressão Espírito Santo assim: Sanctus Spiritus ou Spiritus Sanctus, mas no Português eles existem, e, portanto, temos que colocá-los, quando for o caso.
Sintetizando essa questão, dizemos que a expressão em Grego Pneuma Hagion deve ser traduzida corretamente para o Português assim: “um Espírito Santo”, e não “o Espírito Santo”, tradução que só estaria certa, se nos textos gregos originais bíblicos ela fosse assim: “ho Pneuma Hagion”. E a Vulgata complicou mais as coisas, pois, como foi dito, o Latim não tem nenhum tipo de artigo, nem o definido nem o indefinido. Mas em Português eles existem. E temos que ser fiéis ao original grego, cujo sentido “um Espírito Santo” e não “o Espírito Santo”.
E sobre o João Batista, temos um texto do anjo anunciador do seu nascimento: “…já desde o ventre de sua mãe, será cheio de um Espírito Santo”(Lucas 1,15). Esse Espírito Santo é o próprio espírito de João Batista. Portanto a tradução “do Espírito Santo” está errada. Aliás, como já vimos, segundo uma corrente de teólogos europeus, quando a Bíblia fala em anjo, ela se refere a espíritos iluminados de pessoas falecidas (padre François Brune, “Os Mortos nos Falam”).
E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada.
E, na verdade, quer se refira à expressão “o Espírito Santo da Trindade”, ao “um Espírito Santo de alguém” ou ao “o Espírito Santo de determinada pessoa definida, por exemplo:“o Espírito Santo de Daniel”, a expressão “Espírito Santo” representa o conjunto de todos os espíritos, estejam eles no Mundo Espiritual ou no Mundo Físico.
Mais um exemplo: “Onde está o que pôs nele o seu Espírito Santo?” (Isaias 63,11). Aqui está certo o artigo definido “o”, porque está definindo uma pessoa, isto é, Moisés. Mas, como se vê, não se trata também do Espírito Santo da Trindade.
Chaves, José Reis; A Face Oculta das Religiões, ebm, 2a. ed., 2006, cap. VII, pp. 142-4.
Parece que os exemplos foram escolhidos a dedo, até de Is 63:11 só foi citado o essencial. O resultado final é a diversificação o “espírito santo” de modo a deixar de ser um canal direto em Javé e os homens para uma multitude de intermediários ou enviados. Há outros questionamentos a se fazer, mas, antes, será apresentado outro autor:
Em João aparece uma só vez [a expressão to pneuma to hagion], e assim mesmo em apenas alguns códices tardios, havendo forte suspeição de haver sido acrescentado posteriormente (em 14:26).
– Pastorino, Carlos Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. V, 1964 p. 97,
Mais adiante (vers. 26) o Espírito verdadeiro, ou evocado, é dito “o Espírito, o Santo”, expressão que levou os teólogos a confundi-lo com a terceira “pessoa” da santíssima Trindade.
– Idem, vol. VIII, 1971 p. 9.
No movimento espírita, Pastorino está para língua grega assim como Severino Celestino da Silva está para o hebraico: são as fontes mais utilizadas para argumentos, digamos, de “autoridade” para calar qualquer debatedor. O problema é quando a destreza intelectual dos espíritas não consegue ir além do que suas fontes “clássicas” têm a oferecer e mesmo quando são indivíduos treinados – como foi o caso de Pastorino – isso não os impede de ver o que gostariam com o ferramental auferido nos bancos acadêmicos, nem os autoriza a ser a última palavra em seus campos de estudo.
Por ora, teço duas críticas:
- Pastorino refuta J.R. Chaves: O próprio Pastorino catalogou 30 ocasiões em que pneuma hagion aparece com o artigo somente nos evangelhos, além de outras 29 para apenas pneuma (Idem, vol. V, p. 98). Assim, a principal premissa de J.R. Chaves – “no original grego do Novo Testamento, sempre que aparece essa expressão ‘Espírito Santo’, não se encontra o artigo definido grego” – é falsa. Justiça seja feita, ele reconheceu o erro publicamente em um artigo de sua coluna do jornal O Tempo, fazendo menção a Pastorino. Só não ficou claro se o autor folheara alguma Bíblia em grego antes disso;
- Pastorino demonstra pouco rigor: ao sugerir que “o Espírito Santo” em Jo 14:26 possa ter sido um enxerto (tanto que não o computou), esqueceu de dizer quais os códices de qualidade que não o possuíam. No primeiro volume de Sabedoria… (p. 5), ele já fizera uma pequena relação dos códices mais antigos e, passando-a limpo, pode-se constatar que:
- Sinaítico: contém “o Espírito Santo” (το πνευμα το αγιον), muito bem, obrigado;
- Alexandrino: idem;
- Vaticano: idem;
- Beza: idem, tanto para o texto em grego quanto para o latino;
- Efrém: não contém! Contudo, não se empolgue porque ele não possui, por danos ao documento, nada de Jo 14:8 a 16:21 e diversas outras lacunas ao longo Novo Testamento;
- Claromontano: não contém, afinal só possui as epístolas paulinas.
Sendo assim, os principais documentos por ele apontados não o corroboram. Alguém poderá alegar que os documentos foram adulterados por escribas. Tudo bem, mas será dele o ônus da prova. Se quer saber, detectou-se, sim, uma alteração no códice Sinaítico quanto a disposição entre “o Espírito Santo” e o verbo “enviará”, mas a expressão sempre esteve lá. Outros dirão que esses códices, embora antigos, ainda assim são dos século IV e V, contemporâneos, portanto, à questão ariana e aos primeiros Concílios Ecumênicos. Haveria, ao menos teoricamente, uma motivação para que fosse alterados para consolidar a doutrina da Trindade… Ok, só não se esqueça dos papiros P66 e P75, ambos datados do começo do século III, bem antes dessas disputas, e “cheios d’O Espírito Santo” em Jo 14:26.
Vamos destrinchar isso melhor?
Artigo Grego: a Sofisticação da Simplicidade
O artigo integra as dez classes gramaticais que conhecemos, definindo-se como o termo que antepõe o substantivo para determiná-lo ou indeterminá-lo, indicando, também, o gênero (masculino/feminino) e o número (singular/plural).
Fonte: Brasil Escola.
De tão corriqueiro é provável que um falante do português não imagine sua comunicação diárias sem usar artigos. Muitos outros seres humanos, por outro lado, viveram muito bem sem eles – como os antigos romanos – e outros ainda vivem, como os russos e outros povos eslavos. “Ora, mas como eles conseguem evitar ambiguidade?”. Simples: o artigo é um marcador da definição ou indefinição de um substantivo, mas não é o único instrumento para se conseguir isso. Pronomes demonstrativos e possessivos também delimitam elementos, assim como pronomes indefinidos e numerais cardinais podem indeterminá-los. O latim, por exemplo, não tinha “oficialmente” artigos, mas as principais línguas neolatinas criaram os definidos a partir dos demonstrativos ille, illa e illud, e os indefinidos dos numerais unus, una e unum. Não houve, contudo, esse desenvolvimento no russo. Há, também, outro importante marcador da (in)definição de um substantivo: o contexto. Se os interlocutores já sabem a que estão se referindo ou se estão falando de forma genérica, então artigos são dispensáveis. Portanto, vamos ressaltar o primeiro ponto:
I – Artigos são úteis para a clareza da comunicação, mas não são indispensáveis a ela.
Como outros pesos-pesados da família de línguas indo-europeia não possuíam ou possuem artigos (como o sânscrito), cogita-se que o proto indo-europeu – a hipotética “mãe” dos idiomas dessa família – também não os possuía. Não obstante, diversas de suas descendentes desenvolveram artigos de forma independente, numa espécie de “evolução convergente” linguística. O antigo anglo-saxão (ca. 400 d.C), à moda de seus contemporâneos dialetos românicos usava demonstrativos como artigos definidos. De um deles veio o moderno artigo inglês the, que é invariável (i.e., sem gênero ou número). Apesar das similaridades quanto à origem e de sua simplicidade, quem já teve contato com esse idioma a um nível intermediário sabe que o artigo definido inglês esconde algumas armadilhas para os lusófonos. Por exemplo, é comum o inglês omitir o artigo quando a palavra é plural (ou um coletivo) e de sentido genérico, que o diga a American Standard Version em I Co 1:22 “Seeing that Jews ask for signs, and Greeks seek after wisdom“, ou substantivos abstratos como em Rm 6:23 “For the wages of sin is death“. Anglófonos também não usam artigo definido antes de nomes de pessoas – o que é corrente em português-, nem de pronomes possessivos (opcional para nós).
Embora a língua inglesa não seja o assunto aqui, por ela ser um pouco familiar a um potencial número de leitores, tomei-a como amostra para o segundo ponto:
II – O fato de um língua também possuir determinada classe gramatical, de forma alguma significa que ela é usada exatamente da mesma maneira que na sua.
Por sua origem, muitas vezes, de demonstrativos, nem sempre a função do artigo definido é meramente “individualizar”, pois há várias formas de isso ser feito (cf. [Wallace, pp. 216-25]). Assim, o artigo definido pode ser uma combinação de:
- Identificador: destaca um elemento dos demais do conjunto. Ex: “Onde está a chave que te dei ontem?”
- Anafórico: Faz referência a algo previamente dito. É possível, que quando ocorra pela primeira vez, a palavra esteja sem artigo ou com artigo indefinido para depois ser referenciada pelo artigo definido. Ex: “Às quatro horas, um sujeito alto de terno claro chegou às dependências da sede. Duas horas depois, o sujeito caminhava pelos corredores do quinto andar.”
- Catafórico: quase o oposto do anafórico. Neste caso, o substantivo leva o artigo para indicar que alguma coisa extra sobre ele será dita. Ex: “Eis a principal meta: baixar os índices de violência.”
- Dêitico: indica alguém ou alguma coisa próximo aos interlocutores no momento. Ex.: “A carta que está segurando”.
- Par Excellence: expressão francesa que ressalta a identificação do substantivo articulado como o melhor de sua classe. Na Idade Média, por exemplo, Aristóteles era chamado de “O Filósofo” (Ille Philosophus) pelos eruditos.
- Monádico: ressalta o substantivo que o segue como único de sua classe. Ex.: “o Sol”, “o salvador do mundo”.
- De conhecimento: similar ao par excellence, mas usado com personagens não tão famosos assim, mas facilmente identificáveis aos público presente. Ex.: “Atenção turma, chegou o professor.”
Em sentido contrário, é possível, sim, que o artigo definido generalize em vez de individualizar. Isso se dá quando o substantivo associado a ele passa a representar toda uma classe de seres, como na clássica frase atribuída a Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Ainda existe uma outra capacidade do artigo definido: a personalizar substantivos abstratos. Com eles, pode-se tratar conceitos como se fosse, digamos, entes quase palpáveis. Ex. “a justiça tarda, mas não falha.”
Pode-se reparar, pelos exemplos, que muitas dessas propriedades não precisariam imperiosamente de artigos definidos. Demonstrativos poderiam agir como dêiticos, catafóricos e anafóricos. Monádicos poderiam dispensar complementos, por serem únicos, e o contexto já poderia indicar a quem ou o quê nos referimos. Plurais podem simbolizar classes inteiras, como o inglês faz opcionalmente. Portanto:
III – Compreender os usos e funções do artigo permite vislumbrar como poderiam ser dispensados.
O artigo definido grego também descende de demonstrativos e já podia ser rastreado nas obras de Homero, no VIII século a.C. (cf. [Robertson, XVI, pp. 754-5]), já tendo atingido pleno desenvolvimento, no dialeto ático, já obras de Platão. Não perdeu, contudo, um certo “quê” de demonstrativo, ainda que não fosse mais capaz de estabelecer, como esses, as relações de proximidade entre o substantivo a ele associado e os interlocutores. Sua função seria a de um “indicador” a apontar para atenção do ouvinte deveria se voltar (id., p. 756 e [Wallace, p. 208]).
IV – A principal força do artigo definido grego está em assinalar coisas, chamando atenção para elas
O leitor já deve ter reparado, nos diferentes exemplos e citações acima, em formas diferente para o artigo definido grego usado antes “Espírito Santo”. Já que a palavra não muda nem de gênero, nem de número, por que, então, existem formas discrepantes como ‘ο e το? A resposta é que, para a língua grego, será necessário fazer um pequeno adendo à definição de artigo dada no início deste tópico: o artigo não apenas indica o gênero e o número de um substantivos, mas também a função que ele desempenha na oração. Ainda que o artigo não esteja presente, no grego – assim como no latim, no sânscrito e no moderno alemão -, substantivos (e adjetivos) recebem afixos que assinalam o seu caso, i.e, sua função sintática. Estima-se que o proto indo-europeu possuía um sistema de oito casos (todos registrados no sânscrito), dos quais o grego antigo preservou cinco:
- Nominativo: quando representa o papel de sujeito da oração ou de predicativo, em caso de verbos de ligação;
- Acusativo: objeto direto;
- Dativo: objeto indireto;
- Vocativo: chamamento;
- Genitivo: indica posse de um ente por outro.
Singular | Plural | Tradução | |
---|---|---|---|
Nom. | ἄνθρωπος | ἄνθρωποι | homem(ns) |
Gen. | ἀνθρώπου | ἀνθρώπων | de homem(ns) |
Dat. | ἀνθρώπῳ | ἀνθρώποις | a homem(ns) |
Acus. | ἄνθρωπον | ἀνθρώπους | homem(ns) |
Voc. | ἄνθρωπε | ἄνθρωποι | ó homem(ns) |
Quadro de inflexões para anthropos (homem, humano), da primeira declinação.
O genitivo, auxiliado por preposições, absorveu as função original do caso ablativo de indicar a origem de um movimento ou um destacamento, ou, como no ablativo latino, fazer as vezes de uma adjunto adverbial. O dativo, também associado a preposições, assumiu o papel dos casos locativo (indicando local ou época em que uma ação de desenrola) e o instrumental (o “como” uma ação foi feita). Os grupos de palavras com um padrão flexional similar são chamados de declinações e o grego possui três, com diversos subtipos.
O artigo definido acompanha o substantivo a ele associado em gênero, número e caso, conforme o esquema a seguir:
Singular | Plural | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Caso \ Gênero | Masculino | Feminino | Neutro | Masculino | Feminino | Neutro | |
Nom. | ὁ | ἡ | τό | οἱ | αἱ | τά | |
Gen. | τοῦ | τῆς | τοῦ | τῶν | τῶν | τῶν | |
Dat. | τῷ | τῇ | τῷ | τοῖς | ταῖς | τοῖς | |
Acus. | τόν | τήν | τό | τούς | τάς | τά |
Façam-se algumas observações: primeiramente, o artigo definido não é utilizado com o vocativo. Em segundo, tanto na tabela imediatamente acima como na anterior, foi utilizado um sistema de escrita desenvolvido ao longo da Idade Média. Nos tempos bíblicos não havia letras minúsculas, sinais diacríticos (vulgo “acentos”) e nem o “iota subscrito”, sendo que esses dois últimos, por praticidade, serão por vezes omitidos a partir daqui. Por último, ressalte-se que pneuma é um substantivo neutro – gênero desconhecido em nossa língua -, logo, no nominativo, pede “το” como artigo, em vez de “ὁ” (transliterado para ho), como aparece em alguns autores (espiritualistas ou não). Portanto,
V – O artigo definido grego concorda com as palavras a ele associadas, levando em conta alguns critérios inexistentes no idioma português.
Como substantivos geralmente vêm acompanhados de adjetivos, cada língua desenvolveu sua própria forma de lidar com a relação entre eles (e com os artigos associado, por extensão). Em inglês, os adjetivos são invariáveis e vêm antes do substantivo. Em português, eles concordam com o substantivo e, via de regra, vão após ele. Em grego, eles podem vir tanto antes como, porém com mudanças de significados, conforme o artigo definido se posicione entre eles. Há duas formas classificadas desse relacionamento: a posição atributiva do adjetivo e a predicativa, descritas abaixo:
Forma | Exemplo | Tradução |
---|---|---|
Atributiva | ὁ ἁγαθὸς λόγος | a boa palavra |
ὁ λόγος ὁ ἁγαθὸς | ||
Predicativa | ὁ λόγος ἁγαθὸς | a palavra é boa |
ἁγαθὸς ὁ λόγος |
Em relação às formas atributivas, é comum em gramáticas gregas ressaltar-se que a primeira coloca a ênfase no adjetivo, ao passo que a segunda passaria a ideia de um aposto como “a palavra, a boa” em oposição a outras “palavras não tão boas”. Entretanto, às vezes os redatores duas construções de forma intercambiável, como na expressão “ao terceiro dia” encontrada na segunda forma em Lc 18:33 (τη ημερα τη τριτη) e na primeira em Lc 24:7 (τη τριτη ημερα). De qualquer modo, ambas são traduzidas do mesmo modo, afinal a segunda forma não tem equivalente em português. Já as predicativas se caracterizam estruturalmente pela ausência de um artigo definido antes do adjetivo e semanticamente pela existência implícita de um verbo de ligação, que deve ser acrescentado na tradução. Se há implicações na disposição do adjetivo para “espírito santo”, é algo a se avaliar mais adiante, por ora:
VI – A disposição entre o adjetivo e o substantivo (além do artigo) em grego se dá comumente em estruturas sintáticas desconhecidas no português. As devidas adaptações são necessárias durante a tradução.
Talvez algum leitor esteja se perguntando “essas regras também valem para o artigo indefinido, não?”. A língua grega também desenvolveu o artigo indefinido a partir de numerais, como a nossa, porém isso ainda não estava claro ao século I d.C., na koiné popular do Novo Testamento. Tecnicamente, ainda não havia o artigo indefinido, portanto αγαθος λογος e λογος αγαθος podem significar tanto “uma boa palavra” (atributivo) quanto “uma palavra é boa” (predicativo), ficando a cargo do contexto a distinção do melhor sentido. Entretanto, por vezes, os autores do Novo Testamento usavam os numerais εις (“um”, ex.: Mt 8:19 και προσελθων εις γραμματευς), μια (“uma”) e εν (“um”, neutro) ou o pronome indefinido τις (“um certo”, ex.: Lc 10:25 και ιδου νομικος τις ανεστη) como artigos indefinidos, mas ainda não constituíam uma classe gramatical separada.
VII – O grego bíblico não possuía o artigo indefinido como classe gramatical plena, o que não significa que não possuísse alternativas. Doravante, ao se mencionar o “artigo grego”, subentenda-se o definido.
Então alguém deve estar pensando (ou já tem a resposta pronta) “Ah! Se há artigo, a palavra é definida. Se não há, então ela é indefinida, devendo ser traduzida sem artigo ou com o artigo indefinido português“. Se tudo fosse tão simples assim – como gostariam espiritualistas e testemunhas de Jeová – até não haveria o que discutir. Só que não. Se você realmente entendeu tudo o que está escrito acima, chegará à seguinte conclusão:
VIII – Em grego bíblico, se uma palavra é precedida de artigo, então a ideia envolvida é definida. Do contrário, ela pode ser definida ou não!
Melhor dar uma explicação pormenorizada, com exemplos da própria Escritura.
[topo]
A Presença dos Ausentes
O grego só tem o artigo definido, que é um antigo demonstrativo, anafórico, e se usa sempre que há necessidade de definir um nome, isto é, de articular, que é função anafórica.
Na medida em que o artigo é um αρθρον, juntura, articulação, a ausência dele exprime a ausência da articulação e por isso exprime a indefinição.
Coloca-se o artigo sempre antes do nome, de quem assume o gênero,o número e o caso, porque, na verdade, ele é um adjunto adnominal.
[Murachco, p. 19]
Tudo o que a elogiada gramática grega de Murachco traz sobre o artigo cabe em uma única página, colocada no segundo volume, que é dedicado a exercícios. A parte teórica, constante no primeiro volume, sequer toca nele. A gramática de Antônio Freire, veterana entre os estudantes lusófonos, trata um pouco mais do tema, porém não muito. Caso tudo sobre o artigo grego se restringisse ao que trazem, seria necessário dar crédito às teses dos eruditos espiritualistas (e da Watch Tower).
Surpreso fiquei ao deparar com o colossal The Doctrine of the Greek Article, de Middleton, uma obra oitocentista um bocado confessional como as dos autores de critico, mas com o mérito de demonstrar quanto “pano para manga” o assunto poderia render. Gramáticos no Novo Testamento posteriores, e de ênfase mais técnica, dedicaram capítulos inteiros ao artigo (Robertson), quando não dois (Wallace). Recentemente, Ronald Peters tentou reunir tudo que já foi dito sobre o assunto num arcabouço teórico coerente. Ainda é cedo, contudo, para avaliar o impacto de sua proposta.
De fato, caso se fosse levar a ferro e fogo essa simplista regra gramatical, no melhor estilo one size fits all, efeitos estranhos surgiriam durante a tradução. Tome o exemplo do prólogo de João (Jo 1:1):
Eν αρχη ην ο λογος και ο λογος ην προς τον θεον και θεος ην ο λογος
O que, literalmente, seria:
Em (um) princípio era o Verbo, e o Verbo estava com o Deus, e o Verbo era Deus.
Sinceramente, não deve ter sido essa a intenção do evangelista.
Quando estão lá, mas não aqui
Como dito antes, o artigo marca a definição do substantivo a ele associado, o que não significa que haja uma correspondência biunívoca com o seu equivalente da língua portuguesa. Muitas vezes, uma estrutura articular (i.e, com artigo) aparece em circunstâncias que nosso idioma dispensaria, carecendo, então, de uma explicação. Eis um apanhado que algumas situações:
- A segunda posição atributiva: não é difícil encontrar quem faça um bicho de sete cabeças dela, alegando que το πνευμα το αγιον deveria sempre vir como “o espírito, o santo”, mas a maioria das vezes ela pouco significa em termos teológicos, como:
οταν ελθη εν τη δοξη του πατρος αυτου μετα των αγγελων των αγιων
quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos.
Mc 8:38
- Junto a possessivos: uma estrutura desconhecida no inglês e no espanhol, frequente no português, é praticamente obrigatória no grego:
εκτεινας την χειρα ηψατο αυτου
estendeu (a) sua mãoMc 1:41
- Com genitivos: quando o substantivo principal é seguido por outro no genitivo, ou ambos possuem ou carecem de artigo
ειδεν το πνευμα του θεου καταβαινον ωσει περιστεραν
viu o Espírito de Deus descendo como pombaMt 3:16
por outro lado:
ει δε εγω εν πνευματι θεου εκβαλλω τα δαιμονια
Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus,Mateus 12:28
Caberia “por (um) espírito de (um) deus”? Se o couber, II Co 6:7 ficaria um tanto estranho: “numa palavra duma verdade, num poder de (um) deus…”
- Com demonstrativos: o uso de pronomes demonstrativos na segunda posição predicativa cria um estrutura desconhecida me português e, diria, até estranha para seus falantes e os de línguas que também dispensam o artigo nesse caso (espanhol, inglês, etc.):
και επι ταυτη τη πετρα
e sobre esta pedraMt 16:18
- Com indeclináveis: os tradutores gregos e latinos da Escritura tiveram um problema sério ao lidar com nomes próprio hebraicos, pois eles, via de regra, não se encaixavam em nenhuma das classes de declinação que conheciam. Uma opção era transliterá-los para algo mais familiar, já o mais famoso tradutor latino,Jerônimo, tomou uma decisão radical: não os declinava e deixava ao leitor a tarefa de identificar seu caso do contexto. Por vezes os autores do Novo Testamento não declinavam nomes próprios, mas, para facilitar a vida do leitor, deixavam um artigo marcando o caso em que a palavra se encontrava.
ει δε υμεις χριστου αρα του αβρααμ σπερμα εστε
se sois de Cristo, então sois semente de Abraão.
Gl 3:29
O testemunho dos manuscritos traz um caso interessante:
πλησιον του χωριου ο εδωκεν ιακωβ [τω] ιωσηφ τω υιω αυτου
junto da herdade que Jacó tinha dado a seu filho José.Jo 4:5
O papiro P66 e os códices Vaticano e Sinaítico trazem o artigo de dativo τω antes do nome de José (Iωσηφ), porém o códice Alexandrino e a maioria dos demais manuscritos, não. Mesmo sem o artigo é possível, sim, identificar o caso em que o nome “José” se encontra pelas palavras que seguem a ele (claramente no dativo), porém a presença do artigo antes dele facilita a leitura. E não tem implicação semântica ou teológica alguma.
- Como um relativo em orações com função de genitivo ou preposicionadas, o artigo acaba por fazer as vezes do que seria um pronome relativo no português:
πατερ ημων ο εν τοις ουρανοις
Pai nosso que estás nos céusMt 6:9
Mas se preferir “Pai nosso, o nos céus”, seja feliz (paciência)!
- Discernindo o sujeito de seu predicativo: tanto um como outro acabam sendo assinalados pelo mesmo caso, o que pode gerar ambiguidade às vezes. Para sanar isso, o artigo era posto junto ao sujeito da oração:
πατερα ιδιον ελεγεν τον θεον
dizia que Deus era seu próprio PaiJo 5:18
κυριος γαρ εστιν και του σαββατου ο υιος του ανθρωπου
Porque o Filho do homem até do sábado é SenhorMt 12:8
Esta lista não exaustiva oferece uma amostra de situações em que o modo de pensar de nossa língua não corresponde exatamente ao do grego bíblico. Entretanto, a problemática principal se dá quando o substantivo não possui artigo. Poderia ele ainda assim transmitir uma ideia ou conceito definido, delimitado?
Quando não estão lá, mas podem estar aqui
Caso a regra simplista quanto ao uso (e desuso) do artigo grego fosse absoluta, então seria trivial indicar o uso dele em substantivos cuja identidade é sabidamente determinada. Contudo, não é difícil achar contraexemplos para tal pressuposto:
GÁLATAS 3:21-6
Grego | Tradução (João F. de Almeida Revisada) |
---|---|
21. ο ουν νομος κατα των επαγγελιων του θεου μη γενοιτο ει γαρ εδοθη νομος ο δυναμενος ζωοποιησαι οντως αν εκ νομου ην η δικαιοσυνη 22. αλλα συνεκλεισεν η γραφη τα παντα υπο αμαρτιαν ινα η επαγγελια εκ πιστεως ιησου χριστου δοθη τοις πιστευουσιν 23. προ του δε ελθειν την πιστιν υπο νομον εφρουρουμεθα συγκεκλεισμενοι εις την μελλουσαν πιστιν αποκαλυφθηναι 24. ωστε ο νομος παιδαγωγος ημων γεγονεν εις χριστον ινα εκ πιστεως δικαιωθωμεν 25. ελθουσης δε της πιστεως ουκετι υπο παιδαγωγον εσμεν 26. παντες γαρ υιοι θεου εστε δια της πιστεως εν χριστω ιησου |
21. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei. 22. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. 23. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. 24. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados. 25. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. 26. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. |
As palavras πιστις (“fé”) e νομος (“lei”) aparecem várias vezes em estruturas articulares e anartras (i.e., sem artigo) quase adjacentes. Conhecendo-se o tema de Gálatas é fácil identificar que se referem à fé em Jesus e à lei mosaica e apenas uma das instâncias anartras de νομος sugere indefinição (uma lei qualquer). Talvez, como já foi sugerido por gramáticos, o artigo grego “pegue” e ressalte a definição de um substantivo ao invés dar-lhe uma. Assim, ao se defrontar com um substantivo anartro, há de se perguntar não se ele é indefinido ou não, mas se a ideia que porta o é.
Basicamente, um substantivo anartro três tipos distintos de “caráter”: indefinido, qualitativo e definido. Não são estanques, mas formam um contínuo do mais genérico ao mais específico. Em algumas circunstâncias o caráter qualitativo pode estar mais perto do indefinido, em outras, do definido.
O carácter de um substantivo anartro.
- Indefinido: o substantivo representa um elemento de uma classe sem especificar qual é. Traduz-se, em geral, com o artigo indefinido português.
O esquema do caráter indefinido.
Por exemplo:
ερχεται γυνη εκ της σαμαρειας αντλησαι υδωρ
Veio uma mulher de Samaria tirar água.Jo 4:7
- Qualitativo: indica a pertinência a uma determinada classe, implicando na posse das qualidades inerentes a ela, sem realçar sua individualidade. Traduz-se, em português, sem artigo ou com um artigo indicador de classe (como em “o homem é um animal racional”).
Esquema do caráter qualitativo.
Exemplos:
οτι ο θεος αγαπη εστιν
Porque Deus é amor.I Jo 4:8
ει εξεστιν ανδρι γυναικα απολυσαι
se é lícito a[o] homem repudiar [sua] mulher.Mc 10:2
Em I Jo 4:8, o substantivo Deus não é “um amor”, no sentido que existam outros, nem “o amor”, como se fosse um sentimento, mas se enfatiza que “amar” é uma qualidade que lhe é inerente. Já Mc 10:2 carrega mais no aspeto de pertinência a um conjunto ou classe. A Sociedade Bíblia Britânica traduz o versículo por “um homem repudiar sua mulher”, o que tem sentido análogo, pois não se faz referência a determinada pessoa não identificada (como no caso da mulher samaritana de Jo 4:7), mas a qualquer membro do gênero masculino.
- Definido: permite que um elemento específico de uma classe seja identificado, quer seja pelo contexto ou alguma particularidade gramatical. Não há uma regra sistemática para isso, porém algumas linhas gerais podem ser traçadas:
Esquema do caráter definido.
- Substantivos próprios: são definidos por natureza. É comum serem anartros na primeira aparição na narrativa, mas receberem um artigo anafórico nas seguintes.
παυλον διελθοντα τα ανωτερικα μερη ελθειν εις εφεσον
Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a ÉfesoAt 19:1
Mais adiante
και επιθεντος αυτοις του παυλου τας χειρας ηλθεν το πνευμα το αγιον επ αυτους
E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito SantoAt 19:6
- regido por preposição: é comum anartros substantivos após uma preposição terem sentido definido.
ερχομενον απ’ αγρου
vindo do campoMc 15:21 (compare com Lc 17:7 εκ του αγρου)
διελθων δια μεσου αυτων
passando pelo meio delesLc 4:30
εν σαρκι γαρ περιπατουντες ου κατα σαρκα στρατευομεθα
Porque, andando na carne, não militamos segundo a carne.2 Cor 10:3
οτι ουκ εγκαταλειψεις την ψυχην μου εις αδου
Pois não deixarás a minha alma no inferno [Hades]At 2:27
Vale ressaltar que um substantivo anartro preposicionado não tem necessariamente de ser definido, como em Jo 4:27
οτι μετα γυναικος ελαλει
que estivesse falando com uma mulher - Com palavras no genitivo: Já foi mencionado anteriormente que, em construções genitivas, tanto o nome que a encabeça quanto o que está no caso genitivo virão com ou sem o artigo, um postulado conhecido desde a Antiguidade como Regra de Apolônio . Um corolário dessa regra, proposto já nos tempos recentes, afirma que, geralmente, quando as palavras dessas construções são anartras, ambas possuem o mesmo caráter semântico. Assim, haveriam majoritariamente pares definido-definido, qualitativo-qualitativo e indefinido-indefinido. Em seguida, viriam pares que elas se distanciam por um grau (ex., D-Q) e mais raramente aquelas que se distanciam por dois (D-I e I-D). Eis alguns exemplos que pares anartros D-D que obedecem ao corolário:
και πυλαι αδου ου κατισχυσουσιν αυτης
e as portas do Hades [inferno] não prevalecerão contra elaMt 16:18
ου δυνασθε ποτηριον κυριου πινειν και ποτηριον δαιμονιων ου δυνασθε τραπεζης κυριου μετεχειν και τραπεζης δαιμονιων
Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.I Co 10:21
και εδωκεν αυτω διαθηκην περιτομης
E deu-lhe a aliança da circuncisão.At 7:8
- construções genitivas preposicionadas: juntam-se as forças dos dois casos anteriores:
το δε καθισαι εκ δεξιων μου και εξ ευωνυμων μου ουκ εστιν εμον δουναι
mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me pertence dá-loMt 20:23
περι ελπιδος και αναστασεως νεκρων εγω κρινομαι
no tocante à esperança e ressurreição dos mortos sou julgado.At 23:6
κλητος αποστολος αφωρισμενος εις ευαγγελιον θεου
chamado para apóstolo, separado para o evangelho de DeusRm 1:1
και παρα καιρον ηλικιας
mesmo além do tempo da idadeHb 11:11
- Começo de livros e seções: podem vir sem artigo, por já serem definidos o bastante:
Ευαγγελιον κατα Μαρκον
O Evangelho segundo Marcosβιβλος γενεσεως ιησου χριστου
Livro da geração de Jesus CristoMt 1:1
Fato curioso ocorre na abertura da Primeira Epístola de Pedro, pois não há um artigo sequer.
I Pe 1:1,2
Grego Tradução (João F. de Almeida Revisada) 1. πετρος αποστολος ιησου χριστου εκλεκτοις παρεπιδημοις διασπορας ποντου γαλατιας καππαδοκιας ασιας και βιθυνιας 2. κατα προγνωσιν θεου πατρος εν αγιασμω πνευματος εις υπακοην και ραντισμον αιματος ιησου χριστου χαρις υμιν και ειρηνη πληθυνθειη
1. Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia; 2. Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas.
- palavras aos pares ou em sequências: Muitas vezes, palavras de sentido definido ou qualitativo aparecerem anartras quando mencionadas em duplas.
και αναπαυσιν ουκ εχουσιν ημερας και νυκτος
e não descansam nem de dia nem de noiteAp 4:8
Ou “não descansam dia e noite”, mais literalmente. Um idiomático anartro também é viável em português. Outros exemplo:
και γαρ ειπερ εισιν λεγομενοι θεοι ειτε εν ουρανω ειτε επι [της] γης
Pois ainda que há os que se chamam deuses, quer no céu quer na terra(O artigo de γης – “terra” – aparece ou não dependendo da variante textual)
1 Cor 8:5
τω ετοιμως εχοντι κριναι ζωντας και νεκρους
o que está pronto para julgar os vivos e os mortos1 Pe 4:5
Agora, exemplos de longas listagens:
ειτε παυλος ειτε απολλως ειτε κηφας ειτε κοσμος ειτε ζωη ειτε θανατος ειτε ενεστωτα ειτε μελλοντα
Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro.1 Cor 3:22
πανηγυρει και εκκλησια πρωτοτοκων εν ουρανοις απογεγραμμενων και κριτη θεω παντων και πνευμασιν δικαιων τετελειωμενων
À universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados;Hb 12:23
É comum em pares ou sequências de palavras de mesma classe e caso unidas pelo conectivo και (“e”), quando a primeira delas recebe artigo, as demais o dispensarem. Um exemplo clássico:
τοις δε δειλοις και απιστοις και εβδελυγμενοις και φονευσιν και πορνοις και φαρμακοις και ειδωλολατραις και πασιν τοις ψευδεσιν το μερος αυτων εν τη λιμνη τη καιομενη πυρι και θειω
Mas quanto aos medrosos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicários, e aos feiticeiros, e aos idólatras, e a todos os mentirosos, sua parte será no lago que arde com fogo e enxofreAp 21:8
- numerais ordinais: Em grego, o ordinal já era considerado definido o bastante por si só muitas vezes. Ressalte-se que, nos tempos antigos, usavam-se ordinais para expressões de tempo.
αυτη [η] απογραφη πρωτη εγενετο ηγεμονευοντος της συριας κυρηνιου
Este foi o primeiro recenseamento que se fez no tempo em que Quirino era governador da Síria.Lc 2:2 (nota: textos bizantinos trazem απογραφη (“censo”) articular.)
ην δε ωρα τριτη και εσταυρωσαν αυτον
Era a hora terceira, quando o crucificaram.Mc 15:25
ητις εστιν εντολη πρωτη εν επαγγελια
que é o primeiro mandamento com promessaEf 6:2
- predicativo do sujeito: já foi dito anteriormente que o artigo grego é usado como um marcador para o sujeito de um verbo de ligação. Uma consequência é a omissão, muitas vezes, do artigo para o predicativo, que pode ter um caráter definido, qualitativo ou indefinido. Em 1931, Ernest Cadman Colwell defendeu sua tese de doutorado – “O Caráter do Grego do Evangelhos de João” – e, em sua pesquisa, descobriu uma regra para o uso do artigo que de foi publicada à parte em 1933 e ficaria conhecida posteriormente como “Regra de Colwell”:
“Os substantivos de predicado definido que precedem o verbo geralmente carecem de artigo (…) um predicativo nominativo que preceda o verbo não pode ser traduzido como um substantivo indefinido ou ‘qualitativo’ unicamente por causa da ausência do artigo; se o contexto sugere que o predicado é definido, ele deve ser traduzido como um substantivo definido.”
Uma posterior análise de Philip B. Harner que apenas em 20% dos casos, o predicado pré-verbal é definido e quase sempre nos demais 80% ele é qualitativo. Exemplos do primeiro caso:
[ει] βασιλευς ισραηλ εστιν καταβατω νυν απο του σταυρου
[Se] é o Rei de Israel, desça agora da cruzMt 27:42
ου γαρ επαισχυνομαι το ευαγγελιον δυναμις γαρ θεου εστιν εις σωτηριαν παντι τω πιστευοντι
Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crêRm 1:16
ο λογος γαρ ο του σταυρου τοις μεν απολλυμενοις μωρια εστιν τοις δε σωζομενοις ημιν δυναμις θεου εστιν
Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.I Co 1:18 (no caso, um predicativo qualitativo e outro definido pré verbais num mesmo versículo)
και αυτος ιλασμος εστιν περι των αμαρτιων ημων
Ele é a propiciação pelos nossos pecadosI Jo 2:2
- com substantivos monádicos: substantivos únicos de sua espécie em muitas ocasiões recebem um artigo que lhes ressalta a exclusividade (ex: “cordeiro de Deus” em Jo 1:29). Por outro lado, em outras o dispensam, muito bem, obrigado:
ηλιου δε ανατειλαντος εκαυματισθη
mas, vindo o Sol, queimou-seMt 13:6
αλλη δοξα ηλιου και αλλη δοξα σεληνης και αλλη δοξα αστερων αστηρ γαρ αστερος διαφερει εν δοξη
Uma é a glória do Sol, e outra a glória da Lua, e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela.I Co 15:41
ουρανοι ησαν εκπαλαι και γη εξ υδατος και δι υδατος συνεστωσα
já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste.II Pe 3:5 (compare com Mt 5:18)
- monádicos preposicionados: combinação de dois dos casos anteriores:
ο δε υπομεινας εις τελος ουτος σωθησεται
mas aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.Mt 24:13 (afinal, só existe um “final”)
εν αρχη ην ο λογος
no princípio era o Verbo.Jo 1:1 (porque, “em princípio”, existe apenas um “princípio”)
εξ ου πασα πατρια εν ουρανοις και επι γης ονομαζεται
Do qual toda a família nos céus e na terra toma o nomeEf 3:15 (aqui também poderia ser o caso de palavras em par)
- substantivos genéricos: estando na fronteira entre o qualitativo e o definido, os substantivos que representam classes não precisam necessariamente de artigo. Quando traduzidos levam um artigo definido ou até mesmo um indefinido, conforme o caso.
κριτης τις ην (…) ανθρωπον μη εντρεπομενος
Havia um certo juiz (…) que não respeitava o homemLc 18:2
που σοφος; που γραμματευς;
onde está o sábio? onde o erudito?I Co 1:20
η γυνη δε δοξα ανδρος εστιν
mas a mulher é a glória do maridoI Co 11:7 (aqui tem-se um substantivo genérico articular ao lado de outro anartro)
- Substantivos próprios: são definidos por natureza. É comum serem anartros na primeira aparição na narrativa, mas receberem um artigo anafórico nas seguintes.
* * *
Por ora, esta lista não exaustiva basta para deixar claro que a simples ausência do artigo grego não implica que as traduções para o português devam ser anartras também ou com o artigo indefinido. Se alguém vier a clamar essa regra fajuta, na melhor das hipóteses será um desinformado e, na pior, agirá por má fé, tendo a própria Escritura que se apropria louva por contraprova.
As Faces do Espírito
3. (…) Os arianos, tendo mal entendido a presença encarnada do Verbo e as coisas que foram ditas em consequência disso, tomaram delas uma desculpa para sua heresia e foram condenados como inimigos de Deus e por falar coisas que são, na verdade, improdutivas e terrenas (cf Jo 3:12,31). Mas de onde foste enganado? De quem ouviste tal erro? De que modo caíste nisso: “Lemos”, dizem eles, “no profeta Amós (Am 4:13, LXX), onde Deus diz: ‘Eu sou o que faz trovão e cria espírito e declara ao homem seu Cristo, que faz aurora e escuridão, que ascende aos altos lugares da Terra. O Senhor Deus onipotente é seu nome.’ Por isso cremos nos arianos quando disseram que o Espírito Santo é uma criatura.” Assim lês a passagem em Amós. (…) Simplesmente por ouvir a palavra “espírito” supuseste que o Espírito Santos fosse chamado de criatura. (…) Mas o texto não dá indicação alguma do Espírito Santo; apenas fala de espírito. Por que, então, embora haja na Escritura uma grande diferença no uso da palavra e o texto possa ser interpretado num sentido ortodoxo, tu – quer pelo amor à disputa ou por ter sido envenenado pela presa da serpente ariana – supões que o Espírito Santo seja referenciado em Amós? Só que não pode esquecer de considerá-lo como um criatura.
4. Diz-nos, então, se há alguma passagem na divina Escritura onde o Espírito Santo é encontrado simplesmente referenciado como “espírito” sem o acréscimo de “de Deus”, ou “do Pai”, ou “meu”, ou “de Cristo” ele próprio, e “do Filho”, ou “de mim” (i.e., de Deus), ou com o artigo, de modo que é chamado não meramente de “espírito”, mas de “o Espírito”, ou o mesmíssimo termo “Espírito Santo” ou Parácleto, ou “da Verdade” (i.e., do Filho que diz: “Eu sou a Verdade”), que, justamente porque ouviu a palavra “espírito”, toma-la como se fosse o Espírito Santo? Deixe de fora, por enquanto, os caso em que pessoas que já receberam o Espírito Santo são mencionadas novamente e os lugares onde os leitores, tendo previamente sabido dele, não são ignorantes sobre quem estão ouvindo quando ele é mencionado outra vez, pela forma de repetição ou lembrete, meramente como “o Espírito”, nesses casos também é geralmente usado com o artigo. Sumarizando, a não ser que o artigo esteja presente ou o supracitado acréscimo, isso não pode se referir ao Espírito Santo.
Atanásio, Carta ao bispo Serapion. Fonte: [Shapland, epístola I.3-4, pp. 66-70]
Assim falou Atanásio, bispo de Alexandria e campeão do partido Trintário durante o auge da controvérsia ariana, numa correspondência cuja datação estimada se situa entre 356 e 361 d.C., o que seria o período seu terceiro exílio [Shapland, p. 16]. Esse talvez seja o mais antigo relato sobre a importância do artigo (e do contexto) sobre as questões da pneumatologia, i.e., a doutrina teológica do Espírito Santo. Note que Atanásio, no trecho acima, fala da distinção entre “(um) espírito”/”o Espírito”, embora também considere como a favor de seu ponto de vista construções anartras de “espírito santo” (ex. Jo 20:22 na epístola I. 6) ou articulares que autores espiritualistas já usaram em tempos recentes (Dn 13:45, ep. I.5, p.71). De qualquer maneira, o entendimento de Atanásio já está próximo ao da corrente ortodoxia cristã e seria corroborado no I Concílio de Constantinopla em 381 d.C., cerca de oito anos após sua morte. Será, portanto, necessário analisar criteriosamente a literatura cristã pré-nicena e a intertestamentária para identificar como esse entendimento surgiu e evoluiu.
No Novo Testamento, basicamente, estas são as formas em que pneuma (“espírito”) aparece:
- Pneuma
- To Pneuma
- Pneuma Hagion
- To Pneuma to Hagion
- To Hagion Pneuma
Vejamos as circunstâncias em que cada uma aparece, especialmente em Lucas, Atos e João: os livros em que esse conceito é crucial.
Pneuma x To Pneuma
Não há nenhuma “bala de prata” para se discernir se pneuma significa um espírito qualquer ou o “Espírito de Deus” ou o “Santo”. De certo, a ausência de artigo abre espaço para a generalização (cf. Lc 24:37), mas sua presença não basta para definir de quem espírito é, caso o artigo seja anafórico ou de classe (como até Atanásio admitiu). A solução é extrair mais informações do contexto.
Por exemplo, no texto de Amós posto acima, intui-se que seu autor falava de fenômenos da natureza, devendo a melhor tradução para pneuma ser “vento”, algo talvez desprovido de qualquer divindade ou espiritualidade, aliás, na literatura greco-romana, essa palavra poderia ter significados ainda mais mundanos:
Algumas vezes ambos são removidos pelos mesmos [remédios] – por exemplo, sempre que a dor ocorre devido ao pneuma flatulento e ao espessamento da parte. Sob essas circunstâncias, o uso dos agentes que são moderadamente aquecedores é adequado; i.e., os que também chamamos de relaxante, e que simultaneamente rarefazem o que ficara denso no corpo, afinam o pneuma flatulento, e dispersam o que já ocorreu de inflamação.
Fonte: Galeno, Method of Medicine, Vol III, XIII.6, Loeb Classical Library, p.349
Quem diria pneuma associado a gases pútridos em um manual de medicina da Antiguidade…
Na verdade, como qualquer pessoa que já trabalhou em traduções (e não simplesmente transcreveu as alheias) sabe, não importa a língua, nem a palavra escolhida: não existirá nenhum equivalente completo para a dada palavra em sua língua materna. Haverá, sim, um conjunto de palavras cujo emprego se sobrepõe ao dela. Quanto mais, digamos, “concreta” ela for, menor esse conjunto e maior a sobreposição serão e o inverso se dá com as mais abstratas. Como é o caso de pneuma:
Lista não exaustiva dos diversos significados de pneuma, do mais concreto ao mais abstrato, em sentido anti-horário.
Boa parte dos embates teológicos surge quando um grupo centra-se em um significado e desconsidera ou invalida a possibilidade de outros que são adotados por rivais. Quanto mais simbólica a mensagem, pior:
O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.
Jo 3:6-8
Uma dúvida que se pode levantar é se esse artigo utilizado é definidor de um indivíduo ou de uma classe. O Evangelho segundo o Espiritismo (cap. IV) adotou o segundo entendimento ao considerar o conjunto de versículos acima como uma das provas de reencarnação na Bíblia, fazendo de “o espírito” um genérico para o “espírito humano”. Nas palavras do próprio Allan Kardec:
“O Espírito sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, é uma passagem que se pode entender pelo Espírito de Deus que dá a vida a quem quer, ou pela alma do homem. Nesta última acepção, a seqüência: “mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, significa que não se sabe o que foi nem o que será o Espírito. Se, pelo contrário, o Espírito, ou alma, fosse criado com o corpo, saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso, esta passagem é a consagração do principio da preexistência da alma, e por conseguinte da pluralidade das existências.
ESE IV.9
Há um pormenor que ficou de fora – “e ouves a sua voz” – o espírito não necessariamente existe exclusivamente para dar vida. A inspiração profética e de adoração também era tida como uma de suas capacidades, como visto acima, caso sua origem fosse divina. Assim, esse renascimento teria outro significado e poderia ser obtido numa mesma existência humana. Qual seria o sentido do evangelista ou, ao menos, de seus primeiros leitores? Há de se retornar a essa questão mais adiante.
Quando o contexto é menos simbólico, é mais fácil identificar a quem pneuma se refere:
Este [Apolo] era instruído no caminho do Senhor e, fervoroso de espírito [ζεων τω πνευματι], falava e ensinava diligentemente as coisas do Senhor, conhecendo somente o batismo de João.
At 18:25
Somos informados que Apolo ainda não recebera um batismo cristão (i.e., pelo Espírito Santo), o que só ocorreria em At 19:6, quando experimentou fenômenos semelhantes aos vivenciados pelos apóstolos em Pentecostes. Assim, provavelmente o fervor era do espírito dele mesmo. As traduções portuguesas, inclusive, tornam anartra uma expressão articular em grego, o que até se adequa melhor a esse entendimento.
Quanto a pneuma que vem de fora:
E logo o Espírito o impeliu para o deserto.
Mc 1:12
Essa é uma referência ao pneuma recebido por Jesus em forma de pomba dois versículos antes, também em forma articular. Pode ser Espírito Santo (como Lucas faz em Lc 3:22) ou o “Espírito de Deus”, mas com certeza não é o espírito de Jesus, uma assombração ou um coletivo.
A adição de algum complemento a pneuma – como “de Deus” ou “imundo” – pode esclarecer quanto à origem dele, por outro lado é ainda insuficiente quanto a sua individualidade. Nisso, o adjetivo hagion (“santo”), quando associado a pneuma, merece atenção especial.
Pneuma Hagion x To Pneuma to Hagion
Uma regra muito difundida entre os meios mais, digamos, confessionais alega que:
Quanto ao uso do artigo junto a Pneuma Hagion, quando se trata da individualidade pessoal do Espírito Santo como tal, é articulado; quando se focaliza a operação, os dons e manifestações, é anartro.
Que ficou conhecida com “Regra de Middleton”, em homenagem ao autor de The Doctrine of Article e o primeiro a propor essa regra (cf. pp. 125-6). Eis alguns exemplos em que ela se encaixa bem:
- Espírito Santo como indivíduo (articular):
- Mt 12:32 (…) mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado(…)
- Lc 3:22 E o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea, como pomba(…)
- Jo 14:26 Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome(…)
- Espírito Santo como manifestação ou dom (anartro):
- Mc 1:8 Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
- Lc 1:67 E Zacarias, seu pai, foi cheio do Espírito Santo, e profetizou, dizendo:
- II Tm 1:14 Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós.
Como quase toda regra, essa também está também está sujeita a exceções e “senões”. Primeiramente, há várias construções articulares no Novo Testamento em que Pneuma Hagion, na verdade, leva um artigo anafórico referente a uma primeira menção anartra, como Lc 2:25 e o subsequente versículo. Em situação oposta, há casos em que Pneuma Hagion é anartro, mas a ideia que porta sugere referência a um indivíduo, como em Rm 15:13: “para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo” (εις το περισσευειν υμας εν τη ελπιδι εν δυναμει πνευματος αγιου), que pode muito bem se enquadrar no caso de uma supracitado de uma construção genitiva preposicionada.
O argumento utilizado por Middleton para essa separação foi bem simples: “embora o próprio Espírito seja apenas um, suas influências e operações podem ser muitas” (p. 126). Esse relacionamento “um para muitos” se ajusta bem àquele entendimento de Pneuma Hagion com uma espécie de poder, substância ou canal de comunicação de origem única (divina, no caso) que, por sua vez, ramifica-se por diversos humanos. Expressões anartras em grego como “cheio do Espírito Santo”, “batizar com o Espírito Santo (e com fogo)” ou “ter/estar com o Espírito Santo sobre si” remetem a essa noção. Às vezes, contudo, a dicotomia poder-substância X indivíduo fica um tanto pastosa. É o que acontece no livro de Atos, quando “dar o Espírito Santo” – por uma postura ativa de Deus – é articular (cf. At 5:32 e 15:8), por outro lado “receber o Espírito Santo” – em atitude passiva dos homens – é anartro (cf. At 8:15, 17, 19). O versículo At 5:32 chama atenção:
E nós somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem.
O Espírito Santo é dado/recebido como uma substância ou poder, mas testemunha como se um indivíduo fosse. Juntando-se esse versículo com aquele em que Pneuma Hagion aparece como passível de sofrer blasfêmia (Lc 12:10), fica difícil cogitar que a comunidade lucana tomasse Pneuma Hagion como uma alma desencarnada qualquer, uma falange de espíritos ou alma de cada membro.
To Hagion Pneuma
A articulação de Pneuma Hagion na primeira forma atributiva é uma característica marcante dos livros cuja autoria é tradicionalmente dada a Lucas, que possui a maioria de suas ocorrências. A saber:
- mas ao que blasfemar contra o Espírito Santo não lhe será perdoado (Lc 12:10)
- Porque na mesma hora vos ensinará o Espírito Santo o que vos convenha falar. (Lc 12:12)
- Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós;(…) (At 1:8)
- e recebereis o dom do Espírito Santo; (At 2:38)
- e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com ousadia a palavra de Deus. (At 4:31)
- andando no temor do Senhor e consolação do Espírito Santo. (At 9:31)
- maravilharam-se de que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. (At 10:45)
- E assim estes, enviados pelo Espírito Santo,(…) (At 13:4)
- foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia (At 16:6)
Outras ocorrências
- batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; (Mt 28:19)
- Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,(…) (I Co 6:19)
Embora o quadro seja mais nebuloso, é possível cogitar um fundo comum a esses: esse pequeno punhado de versículos tem em comum a presença de uma relação entre Espírito Santo e os humanos. A inversão propiciada por To Hagion Pneuma realçaria o caráter de santidade do Espírito, por ser oriundo de Deus, em sua interação com os mortais, quer seja diretamente (blasfêmia, instrução, impedimento) ou concedendo-lhes dádivas (dom, virtude, consolação) ou recebendo-as deles (templo). A única exceção talvez seja At 4:31, que traz Pneuma Hagion anartro na maioria dos códices bizantinos. Uma hipótese mencionada por [Read-Heimerdinge, cap.V, p. 1666, nota] sugere um uso anafórico do artigo (Pneuma Hagion já fora citado em At 4:8), mas o redator, por questão estilística, teria preferido a primeira forma atributiva para poupar um artigo numa sentença em que já são muito usados junto a outros substantivos.
* * *
Em resumo: grosso modo, Pneuma Hagion se centra no aspecto, digamos, substancial do Espírito Santo, To Pneuma to Hagion no individual e To Hagion Pneuma no relacional. Há exceções e imprecisões, sim, que poderiam muitas vezes ser sanadas casos os antigos houvessem deixado alguma pista de como enxergavam o “espírito”.
E eles deixaram.
Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ
Nomen Sacrum de To Pneuma to Hagion em Jo 14:26 no Códice Sinaítico.
MANUSCRITOS
Os primeiros exemplares do Novo Testamento eram copiados em papiros (espécie de papel) , material frágil e facilmente deteriorável. Mais tarde passaram a ser escritos em pergaminho (pele de carneiro) , tornando-se mais resistentes e duradouros.Os manuscritos eram grafados em letras “capitais” ou “unciais” (ou seja, maiúsculas). Só a partir do 8º século passaram a ser escritos em “cursivo”, ou letras minúsculas.
Fonte: Pastorino, Carlos, Torres; Sabedoria do Evangelho, vol. I, p 3.
COPISTAS
Os encarregados de copiar os manuscritos chamavam-se “copistas” ou “escribas”. Mas nem sempre conheciam bem a língua, sendo apenas bons desenhistas das letras. Pior ainda se tinham conhecimento da língua, porque então se arvoravam a “emendar” o texto, para conformá-lo a seus conhecimentos. Não havia sinais gráficos para separação de orações, e as próprias palavras eram copiadas de seguida, sem intervalo, para poupar o pergaminho que era muito caro. Dai os recursos empregados, como:ABREVIATURAS
ou reunião de várias letras numa SIGLA, por exemplo: pq, para exprimir porque. Algumas abreviaturas eram perigosas, como: OC, que significa “aquele que”. Mas se houvesse um pequenino sinal no meio do O, fazendo dele um “theta”, passaria a significar “Deus”, (cfr. I Tim. 3:16).Fonte: Idem, p. 4.
* * *
ESPÍRITO
Vamos aproveitar para esclarecer a distinção que fazemos das diversas acepções da palavra ESPÍRITO. Ora o escrevemos entre aspas e com inicial minúscula: o “espírito”, e queremos então referir-nos ao termo comum de espírito desencarnado, isto é, ao espírito da criatura que ainda está preso à personalidade, com um rótulo, ou seja, um NOME: por exemplo, o “espírito” de João, o “espírito” de Antônio, etc . Doutras vezes escrevemos a palavra com inicial maiúscula: o Espírito, e com isso significamos a individualidade, ou seja, o trio superior composto de Centelha Divina, Mente e Espírito, mas sem nome, não sujeito a tempo e espaço. Então, quando o Espírito se prende à personalidade, passa a ser o “espírito” de uma criatura humana, encarnada ou desencarnada. O Espírito é o que está em contato com o Eu Profundo, enquanto o “espírito” está em contato com o “eu” pequeno, que tem um nome. Somos forçados a fazer estas distinções para que as ideias fiquem bem claras. Além desses, temos o “Espírito” de Deus, ou o “Espírito” Santo, que é a manifestação cósmica da Divindade, também chamado o Cristo Cósmico, de que todos somos uma partícula, um reflexo; em nós, o Cristo é denominado “Cristo Interno” ou Centelha Divina, e é a manifestação divina em cada um de nós. Não se pense, entretanto, que a reunião de todas as Centelhas divinas ou “mônadas” das criaturas forme o Cristo Cósmico. Não! Ele está imanente (dentro de todos nós), mas é INFINITO e, portanto, é transcendente a todos, porque existe ALÉM de todos infinitamente. O mergulho de que falamos exprime, em primeiro lugar, o ENCONTRO do “espírito” (personalístico) com o seu próprio Espírito (individualidade), e depois disso, em segundo lugar, a absorção do Espírito no mais recôndito de seu EU profundo, ou seja, a UNIFICAÇÃO do Espírito com o Cristo Interno, com sua consequente INTEGRAÇÃO com o Cristo Cósmico.Fonte: Idem, pp. 114-5
* * *
O Espírito Santo, do jeito que é, só foi instituído pela Igreja, oficialmente, no Concílio de Constantinopla (381). Paulo não O conheceu. E sua doutrina virou dogma justamente porque já era polêmica desde sua instituição. Ele, com os artigos definidos “ho” ou “tó” nos originais gregos bíblicos, pode significar Deus transcendente: o Santo Espírito, o santo dos santos, mas pode também ser uma referência à centelha divina ou Cristo interno, imanente, que habita em cada um de nós, a qual é classificada por Pietro Ubaldi, em “Grande Síntese”, como sendo o espírito hominal evoluído, já individualizado. E quando se trata do próprio Deus transcendente, santo Tomás de Aquino discorda de santo Agostinho, dizendo que o Espírito Santo deveria vir em primeiro lugar e não no terceiro, na ordem da Santíssima Trindade. Mas o Espírito Santo bíblico que mais aparece é geralmente o que se refere a um espírito humano desencarnado, não tendo, pois, o artigo definido no original grego nem o adjetivo “santo”, sendo, pois, a tradução correta para o português “um espírito”, como vimos acima.
– Chaves, J.R.; A confusão entre o espírito santo e os outros espíritos, em O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/03/09
Apresento duas versões de articulistas espíritas a respeito da natureza de Pneuma Hagion: ambas com um entendimento quase neognóstico do Espírito Santo (e emprestado da teosofia) que, de certa forma, espiritualiza o humano para humanizar o Espírito. Algum comentário a se fazer sobre elas? Nenhum além da identificação de seu pano de fundo filosófico. Não há como refutá-las, pois são perfeitamente coerentes com a teologia de seus crentes. Por outro lado, alguém de fora não tem a menor razão para acatá-las. Seus autores têm seus próprios critérios para decidir quando um espírito não é o Espírito e o que cada caso significa. Não trazem evidências de que seus critérios seriam os mesmos dos antigos cristãos, parecendo mais interpretações pesher, ou seja, releituras. Certo que a Trindade foi um desenvolvimento tardio, mas a sofisticada especulação que trazem não deve ter sido concebida por ou para uma massa iletrada e humilde. Pode-se ter a vontade criar um “túnel do tempo” e perguntar diretamente o que se pensava nas igrejas, digamos, do começo do século II de nossa Era, quando o evangelhos canônicos já estavam escritos. Embora isso não seja possível, algumas pistas eles deixaram para nós.
O próprio Pastorino já mencionara brevemente o uso de abreviaturas nos antigos manuscritos, até citando um caso de fraude. Como as abreviaturas eram feitas para as palavras mais frequentes, nada mais natural que as de cunho religioso fossem escolhidas e dessem origem ao que, em tempos modernos, seria designado como uma classe especial de abreviaturas: os nomina sacra (“nomes sagrados”).
Uma particularidade interessentante dos nomina sacra é que todos os manuscritos antigos possuem um conjunto mínimo deles, dando a entender que, se já não surgiram junto com os originais dos livros, começaram a ser utilizados bem cedo. Quatro nomes aparecem universalmente em todos os unciais na forma abreviada: “Senhor” (Κυριος), “Deus” (Θεος), “Jesus” (Ιησους) e “Cristo” (Χριστος). Conforme a datação dos manuscritos avança, outras palavras se juntam ao grupo, como “Pai” (Πατηρ), “Filho” (Υιος), “Cruz” (Cταυρος), “Israel” (Ισραηλ), “Céu” (Ουρανος), etc. Não havia uma regra única para as abreviaturas, mas, em geral, os copistas tomavam a primeira ou as duas primeiras letras, a última, e as sobrescreviam com um traço horizontal. Como a terminação de uma palavra variava conforme o caso em que se encontrasse, os nomina sacra também mudavam em concordância.
Uncial | Nominativo | Genitivo | |
---|---|---|---|
Senhor | ΚΥΡΙΟC | ΚC | ΚΥ |
Deus | ΘΕΟC | ΘC | ΘΥ |
Jesus | ΙΗCΟΥC | ΙC | ΙΥ |
Cristo | ΧΡΙCΤΟC | ΧC | ΧΥ |
Espírito | ΠΝΕΥΜΑ | ΠΝΑ | ΠΝC | Pai | ΠΑΤΗΡ | ΠΗΡ | ΠΡC | Filho | ΥΙΟC | ΥC | ΥΥ | Cruz | CΤΑΥΡΟC | CΤC | CΤΥ | Israel | ΙCΡΑΗΛ | ΙΗΛ | indeclinável | Céu | ΟΥΡΑΝΟC | ΟΥΝΟC | ΟΥΝΟΥ |
Lista não exaustiva de nomina sacra comuns em manuscritos do Novo Testamento. Não foram incluídas variantes como IHC para Jesus. Mais pormenores em [Comfort, cap. IV]
Como se enquadra Pneuma no histórico do emprego dos nomina sacra? Seu nomen sacrum ΠΝΑ se encontra presente nos mais antigos manuscritos que chegaram até nós contendo a palavra “espírito” denotando uma origem divina, dando a entender que seria tão antigo quanto os quatro primários e seria tranquilamente aceito como um quinto membro desse grupo se não fosse por duas anomalias [Comfort, cap. IV, pp. 231-41]:
- O papiro P46 (c. 175-225, contém epístolas paulinas) deixa de aplicar o nomen sacrum para o espírito divino em dez circunstâncias que seriam comumente aceitas depois;
- O Códice Vaticano, contemporâneo do igualmente famoso Sinaítico (séc. IV), não possui nomen sacrum para Pneuma.
Uma conciliação proposta é que P46 teria sido redigido numa época de transição, quando as abreviaturas para Pneuma ainda estavam se desenvolvendo e o Códice Vaticano seria uma reprodução de um manuscrito ainda mais antigo que P46. Com o material disponível atualmente, isso é apenas conjectura, não estando descartada a hipótese de o copista de P46 ter se descuidado. Por ora, pode-se afirmar que, se ΠΝΑ não for um nomen sacrum primário, ao menos é quase tão antigo quanto os desse grupo.
O impacto desse registro paleográfico é deixar claro que a personalização do Espírito Santo – representando um ente específico e não uma classe – se encontra presente desde o II século de nossa Era e duzentos anos antes do I Concílio de Constantinopla. Nos tempos modernos, esse caráter é assinalado pelas iniciais maiúsculas de “Espírito Santo”, o que levou autores espiritualistas a acusarem tal grafia de ser errônea e maliciosa por induzir à crença na Trindade. Uma alegação para isso era o fato de os antigos manuscritos unciais possuírem apenas letras maiúsculas, em geral em scripta continua, tendo sido as minúsculas adotadas pelos escribas já em tempos medievais, bem depois da vitória da ortodoxia. Isso é verdade, mas não toda a verdade: embora o registro escrito fosse bem mais precário, o antigos tinham, sim, seus meios para destacar o que lhes era relevante. Os nomina sacra constituíam um deles.
Em consequência, é possível estimar nuances interpretativas que os antigos copistas em relação aos textos que transcreviam e desfazer distorções, como esta:
J.R. Chaves, A Face…, p.144 | E sobre Zacarias, pai de João Batista, lê-se: “Zacarias ficou cheio de um ou dum Espírito Santo” (e não do Espírito Santo), pois o original grego não tem o artigo indefinido, mas, como ele existe em Português, temos que usá-lo. Se no texto original grego houvesse o artigo definido “ho” (“o”), estaria certa a tradução: “cheio do Espírito Santo” (Lucas 1,67). Mas como não há, está errada. |
Transcrição do papiro P4 (Fonte) | ![]() |
O escritor ignora o fato de Pneuma Hagion ser, aqui, uma construção genitiva e ter o caráter de um “poder” ou “substância” com que Zacarias é infundido. Isso poderia possibilitar um sentido definido mesmo como uma estrutura anartra. Já o nomen sacrum para pneuma encontrado em P4 – o mais antigo manuscrito atualmente conhecido de Lucas (ca. 175 – 225 d.C.) – assinala que seu copista entendia “Espírito Santo” como um nome próprio, garantindo para ele um sentindo definido.
Não são revelados apenas vislumbres de como “Espírito” era compreendido, mas também aspectos um pouco mais profundos de exegese. Por exemplo, relembrando o diálogo entre Jesus e Nicodemus, mais especificamente este versículo:
Jo 3:6 | |
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P66 (Fonte) |
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P75 (Fonte) |
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A última oração do versículo – και το γεγεννημενον εκ του πνευματος πνευμα εστιν (“e o que é nascido do espírito é espírito”) – é interpretada de forma diferente pelos copistas. O de P66 distinguiu o Espírito divino do humano, dando a entender que “o Espírito divino gera o espírito humano”. Essa é a interpretação da maioria das traduções modernas. Já o de P75, por sua vez, tratou os dois como divinos, sugerindo que “o que é gerado pelo Espírito também é divino”. A passagem, sem dúvida, permite mais de um entendimento, não havendo razão alguma para se considerar o viés reencarnacionista como o único possível, como fazem certos apologistas espíritas. Bem antes de Niceia, as opiniões eram outras…
Detalhe do papiro P66 em Jo 3:6, exibindo o nomem sacrum para pneuma em apenas uma das aparições dessa palavra no versículo. Extraído de Early Bible.
Há quem possa rejeitar o testemunho dos manuscritos alegando que foram copiados por devotos da proto-ortodoxia cristã, com uma linha de pensamento mais próxima da teologia vencedora. Afinal de contas, os evangelhos canônicos foram os que esse grupo abraçou. Isso é uma meia-verdade, pois há uma exceção entre eles: João. Com sua linguagem alegórica, a apresentação de Jesus como o Verbo divino encarnado como a missão fornecer um “conhecimento” (gnose, em grego) especial (cf. Jo 8:32) necessário à salvação, esse evangelho caiu nas graças das seitas gnósticas. Inclusive, sabe-se que o primeiro comentário feito a esse evangelho foi elaborado por um escritor gnóstico valentiano chamado Heracleão (ca. 175 d.C.). Infelizmente, essa obra está perdida, mas alguns extratos dela permanecem nos textos patrísticos. Orígenes – um proto-ortodoxo querido entre os espiritualistas – o menciona em um de seus próprios comentários, como a intenção de refutá-lo, de onde retiro as seguintes passagens:
E ele [Heracleão] expõe de seu próprio modo particular o fato de que o chicote foi feito de cordas por Jesus (Jo 2:15), que não o recebeu de outrem, quando diz que o chicote é uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo [της δυναμεως και ενεργειας του αγιον πνευματος] que expulsa os iníquos. E acrescenta que o chicote, a corda, o linho e todas essas tais coisas são uma imagem do poder e atividade do Espírito Santo.
Comentário sobre o Evangelho de João, livro X, parágrafo 213. Cf. PG XIV, col. 368
Mas Heracleão supõe que a água do cântaro (cf. Jo 4:28) “é a disposição capaz de receber a vida e o pensamento de poder que é do Salvador. Ela o deixa com ele”, diz, “ou seja, ela tem um vaso desse com o Salvador, com o qual recebera a água vivente, e retornou ao mundo para anunciar a vinda do Cristo aos eleitos (cf. Jo 4:29), pois a alma é trazida ao Salvador por meio do Espírito e pelo Espírito [σια γαρ του πνευματος και υπο του πνευματος προσαγεται η ψυχη τω Σοτηρι].
(…)
Heracleão também interpretou a sentença “e saíram da cidade” (cf. Jo 4:30) como o abandono de seu antigo modo de vida, que era físico. E “vieram“, diz, “ao Salvador por meio da fé“.Comentário sobre o Evangelho de João, livro XIII, parágrafos 187 e 191. Cf. PG XIV, cols. 452-3
É bom atentar que cada extrato fala de um “espírito” diferente. Como bom valentiano, Heracleão deveria considerar do Espírito Santo um “aeon” – uma emanação da divindade primordial – a fazer par com outro, Jesus Cristo, na transmissão do conhecimento (gnose) a outros aeons. Esse mensageiro duplo teria se unido à parte humana de Jesus por ocasião de seu batismo, descendo em forma de pomba. Já o segundo “espírito” seria composto de uma substância própria do pleroma (domínio divino) encontrada no mundo material e comporia a “parte superior” de uma distinta classe de mortais chamada de “pneumáticos”: os únicos aptos a receber a plenitude da salvação, cujo espírito retornaria ao pleroma após a morte. Um grupo maior – os psíquicos – possuiria uma parte chama de “alma” (psyché), composta por uma substância intermediária entre o espírito e a matéria, também presente nos pneumáticos e que fora insuflada pelo Demiurgo criador do mundo material. Seus membros constituíam a parte não gnóstica da Igreja e teriam uma salvação mais modesta caso seguissem os mandamentos cristãos, permanecem suas almas nas regiões celestes mais externas. Por fim, viriam os hílicos (de hylé, “matéria”), onde estariam os pagãos, completamente materiais e desprovidos de salvação.
Qualquer semelhança entre essa sucinta descrição da soteriologia gnóstica e as ideias de Pastorino e Ubaldi sobre o Espírito Santo não deve ser mera coincidência, mas um afluxo de uma teologia antiga via a moderna teosofia. Tudo bem que pensassem assim, só se deveria alertar os leitores que elas descendem de um sistema que julgava o Espírito Santo divino – ainda que uma divindade secundária – e, como todos os sistemas gnósticos, era fruto de desenvolvimentos posteriores.
Tanto a personificação dos nomina sacra quanto a divinização gnóstica pertencem ao século II, para identificar o papel do Espírito Santo no cristianismo primevo, será preciso recorrer às fontes mais antigas da literatura cristãs.
No Princípio era o Espírito
Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus; porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós. E vós fostes feitos nossos imitadores, e do Senhor, recebendo a palavra em muita tribulação, com gozo do Espírito Santo.
I Ts 1:4-6
Essa é a mais antiga menção ao Espírito Santo no Novo Testamento. Ué, mas não se deveria começar pelos evangelhos? Aí que está uma problemática questão no estudo no Novo Testamento. Pela lógica, a mensagem vem antes de sua pregação, mas, na realidade, a segunda foi registrada antes da primeira! Afinal, Paulo de Tarso – o mais prolífico autor da Bíblia – redigiu I Tessalonicenses por volta de 49 d.C., enquanto que Marcos tem sua mais antiga datação estimada em 60 d.C. e João já no fim do primeiro século!
Portanto, convém começar a análise do Espírito Santo cristão por Paulo, ressaltando que isso gera seu próprio punhado de problemas: Paulo nunca conheceu Jesus em vida, sua cartas distam pelo menos vinte anos da crucifixão, seu ministério começou apenas três anos após sua conversão, depois de uma temporada de três anos na Arábia e em Damasco, voltou à Jerusalém e lá foi ter com os apóstolos Pedro e Tiago por breves 15 dias (Gl 1:11-18). A visão que teve de Jesus foi muito forte, segundo ele mesmo, a ponto de converter um perseguidor em pregador. Por outro lado, nada indica que tenha sido uma experiência longa o bastante para transmissão de um tratado teológico completo. Paulo também não ficou um longo tempo com os apóstolos para se servir de seu testemunho em primeira mão. Não sabemos também o que ele fez no ínterim de três anos, mas pode-se cogitar que esse tempo seria o bastante para se inteirar das tradições de Jesus que já circulavam, como implícito em I Co 15:3-8. Assim, Paulo traz os ensinamentos de uma cristandade que já não contava com a presença física de de Jesus, mas que podia se valer da ação de um ente especial – o Espírito – em sua ausência, enquanto aguardava esperançosamente um “fim dos tempos” tido como próximo. Embora cronologicamente arranhem o Jesus histórico, as cartas paulinas pouco falam de Jesus, pois elas foram escritas na urgência de problemas que afetavam as comunidades fundadas por ele. Por não serem o foco, os ensinamentos cristãos são mencionados, mas não detalhados, estando incluído neles a natureza do Espírito. Em lugar disso, aparecem instruções quanto à relação das comunidades para com ele, que servem de janela para a pneumatologia paulina.
Os evangelhos são mais tardios que Paulo e, embora repletos de ditos “atribuídos” ao próprio Jesus, estão longe de ser biografias do Nazareno. Na verdade, cada evangelista pertenceu a uma comunidade cristã diferente, com vivências e experiências distintas em relação à “boa nova”. Cada um tinha uma imagem de Jesus a passar voltada para as expectativas de sua comunidade e em muitos pontos inconciliáveis com as demais: não é possível adequar a mensagem pró-judaica de Mateus com o quase antissemitismo de João. Da mesma forma, não há de se esperar que cada grupo mantivesse a mesma relação com o Espírito, principalmente em seu papel após a morte de Jesus. De todos os quatro, apenas Lucas foi escrito por um membro de uma comunidade paulina e esse mesmo evangelho traz uma grata peculiaridade para entendimento do que representava o Espírito Santo para esse antigos grupo de cristãos.
Paulo: O Crescer do Espírito
A Conversão de São Paulo a Caminho de Damasco, por Caravaggio
Ao longo de suas viagens (ca. 46 – 60 d.C.), Paulo percorreu boa parte do mundo grego-romano, em especial os territórios da Grécia e da Ásia Menor (atual Turquia), por onde fundou comunidades cristãs nos centros urbanos de maior porte. Quando sentia que já formara um grupo minimamente consolidado, partia para outra cidade. O contato era mantido por cartas, pelas quais Paulo passava instruções, explanações e exortações no intuito de solucionar as crises que surgiam. Foi essa troca de correspondência que fez de Paulo o autor mais prolífico do Novo Testamento, senão da própria Bíblia, e o material que chegou até nós pode ser apenas uma “ponta de iceberg” dado que nele mesmo se encontram referências a outras cartas que não sobreviveram. Quando colocadas numa ordem mais cronológica (ainda que com boa margem de erro), em vez da em que tradicionalmente aparecem nos códices antigos e nas edições modernas, pode-se, grosso modo, notar uma progressiva elaboração do conceito do Espírito Santo e sua relação com as igrejas.
- I Tessalonicenses: tida por alguns autores como a mais antiga carta (ca. 50 d.C.), ela mostra o Espírito Santo como um agente fundamental para “santificação” da comunidade, i.e., sua ação manteria os fiéis no caminho reto enquanto aguardavam o retorno de Jesus e a ressurreição de seus membros já falecidos:
Finalmente, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus, que assim como recebestes de nós, de que maneira convém andar e agradar a Deus, assim andai, para que possais progredir cada vez mais. Porque vós bem sabeis que mandamentos vos temos dado pelo Senhor Jesus. Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da fornicação; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra; não na paixão da concupiscência, como os gentios, que não conhecem a Deus. Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos. Porque não nos chamou Deus para a imundícia, mas para a santificação. Portanto, quem despreza isto não despreza ao homem, mas sim a Deus, que nos deu também o seu Espírito Santo [το πνευμα αυτου το αγιον].
I Ts 4:1-8
De certa forma, o papel desse Espírito Santo de “santificação” se assemelha ao da pneumatologia de Qumran, ou até mesmo o do salmo 51. Paulo ainda não expõe uma perspectiva mais elabora quer por ela não existir ou pelo ensinamento relativamente enxuto repassado aos tessalonicenses (1 Ts 4:1 – 5:11). Há diferenças, contudo: sua ação confirma a pregação apostólica (cf. I Ts 1:5) e faz profecias jorrarem em um nível desconhecido na era pré-cristã, como sugerido numa exortação final:
Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo. Retende o bem.
I Ts 5:19-21
De fato, é possível interpretar esse “espírito” como sendo como sendo o ânimo da própria da comunidade e as profecias como as contidas no Antigo Testamento a respeito da vinda de Jesus (pelo menos no modo entendido pelos cristãos), mas a forma como Paulo descreveu o uso e abuso do “Espírito” em outra e muito problemática comunidade sugere que não.
- I Coríntios: se os tessalonicenses só davam alegrias a Paulo, o mesmo já não pode ser dito em relação aos membros da igreja de Corinto: a refeição eucarística era desorganizada, com alguns chegando mais cedo, fartando-se e nada deixando aos retardatários, havia rixas internas que ameaçavam parar no tribunal; uns provocavam escândalo por não ver nada de mais em consumir a carne oferecida a ídolos pagãos, outros por sua conduta sexual; no outro extremo, certos membros competiam em exibir grau mais elevado de santidade e espiritualidade ao ponto de atrapalhar as cerimônias quando começavam a “falar em línguas”. Enfim, uma considerável dose de caos. Por que, então, ele não orientou o responsável por essa igreja a restabelecer a ordem? É que não havia ainda tal figura, ao menos com o poder equiparável ao de um padre ou pastor moderno. Paulo fundara e organizara suas igrejas como comunidades carismáticas, do grego χαρισμα (“dom”), que continuariam a ser guiadas por intermédio do Espírito:
E a minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder; para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; A qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo (seu) Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus [ει μη το πνευμα του θεου]. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus. As quais também falamos, não com palavras que a sabedoria humana ensina, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas espirituais com as espirituais. Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido. Porque, quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo.
I Co 2:4-16
Aqui, Paulo faz uma distinção entre o Espírito Divino e o espírito humano e, embora use a mesma palavra para ambos, a conotação é diferente: o primeiro é uma espécie de poder a conectar os homens com a vontade divina adentrando no segundo, que pode ser um sinônimo para mente (nous) ou alma (psykhe). Com eles, o apóstolo alfineta os coríntios deixando nas entrelinhas que não seriam tão espiritualizados quanto pensavam, do contrário teriam sido corretamente instruídos pelo Espírito Santo e se comportariam de outra forma.
E tal ação do Espírito não se daria da forma individualista de que uns se gabavam ser os escolhidos, muito pelo contrário: ela englobaria todos o fiéis e ai daquele que a perturbasse:
Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo.
I Co 3:16-17
Aqui, ele se dirige aos inimigos internos, os que causam dissenção entre fiéis. Um pouco mais adiante, retorna a falar em “templo” , mas num sentido individual, referindo-se aos pecados carnais cometidos por alguns dos “santos de Corinto”:
Fugi da fornicação. Todo o pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que fornica peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o vosso corpo é (o/um) templo do Espírito Santo, que habita em vós,[ναος του εν υμιν αγιου πνευματος] proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus.
I Co 6:18-20
A questão do templo como um coletivo ou como uma individualidade é sanada com o entendimento dos membros da Igreja como constituintes do “Corpo de Cristo”: uma estrutura social guiada pelo Espírito Santo capaz de manter a harmonia entre os fiéis até parúsia, quando os conflitos deixariam de existir. Paulo fala en passant nessa ideia em I Co 6:15 (“Vocês não sabem que os seus corpos são membros de Cristo?“), desenvolvendo-a plenamente em no capítulo XII, quando trata da questão dos “dons do Espírito”, assunto em que alguns coríntios se julgavam mais afortunados que outros. Ele lhes lembra que todos receberam, por ocasião do batismo, diferentes dons “pelo mesmo Espírito” (12:8) [κατα το αυτο πνευμα], alguns eram mais chamativo – como o a capacidade de falar em línguas ou de curar -, outros mais discretos – como a capacidade de ajudar ou administrar -, mas todos, tal como os órgãos do corpo, tinham sua importância e o “corpo” não funcionaria direito na falta de um deles. Em vez de invejar o dom alheio, cada um deveria se esmerar naquele que recebera e … amar! Não é à toa que o Hino ao Amor sucede esse capítulo, explicitando a inutilidade dos dons se desprovidos desse sentimento.
Pode parecer estranho a um leitor moderno, ainda mais a um espiritualista, a preocupação com o corpo. Afinal, ele já não está , de antemão, fadado a perecer e apenas o espírito (humano) importa para o outro mundo? Ao contrário da noção popular comum de hoje – que apenas a alma é salva para uma existência desencorpada – Paulo, como ex-fariseu e um dos primeiros cristão, também cria que o corpo seria resgatado e sublimado. No penúltimo capítulo de I Coríntios, é descrito seu entendimento quanto à crença na ressurreição no fim dos tempos:
Assim também a ressurreição dentre os mortos. Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará com vigor. Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual. Assim está também escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.
Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do celestial. E agora digo isto, irmãos: que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória.I Co 15:42-54
Esse trecho é muito utilizado por apologistas como prova de inexistência da ressurreição física, no contexto bíblico, interpretando como se fosse uma menção à humanidade desencarnada. Contudo, “o diabo está nos detalhes” nesse caso. Relendo esse trecho, constata-se que em nada ele é contra a ressurreição física. Na verdade, o que ele é contra é a ressurreição carnal. Isso não significa o descarte do corpo natural, como se alega entre autores espiritualistas, mas a transformação dele em corpo espiritual. Os versículos 15:51-54, geralmente omitidos por eles, deixam nítida a crença de Paulo num fim dos tempos próximo e, portanto, alguns dos fiéis sofreriam essa transformação ainda em vida. Ademais, há um anacronismo no modo de pensar espiritualista: nos tempos bíblicos não havia o fosso entre “matéria” e “espírito” como há, hoje, nas conotações em que essas palavras são usadas. Para os antigos, “espírito” podia ser um tipo de matéria tênue, talvez quintessênciada, mas ainda material. A transformação de carne em espírito não era tão absurda para eles. A ressurreição paulina também encontra paralelos em outras obras da literatura intertestamentária como I Enoque e II Baruque, que também narram a transformação dos corpos carnais dos eleitos em novos de natureza gloriosa, por ocasião da consumação final.
Em suma, em I Coríntios Paulo explana a superação das diferenças entre “espírito” e “corpo”, estando o Espírito a serviço do Corpo por meio da inspiração e dos dons carismáticos. Isso remete ao papel dos Espíritos divinos em Qumran, com a diferença que, agora, todos os dons provêm de apenas um.
- II Coríntios: Na verdade, II Coríntios não é uma carta, mas uma composição de duas ou mais cartas escritas por Paulo, editadas mais tardiamente por algum membro dessa comunidade. Pelo que sugere, Paulo visitou Corinto após o envio da primeira epístola e já encontrara certa animosidade (cf. 2:5-11, 13:2), mas os problemas não acabaram por aí: pouco antes de sua partida dessa visita (ou logo após), teriam chegado à comunidade outro grupo de pregadores cristãos, a quem Paulo deprecia chamando de “superalpótolos” (των υπερλιαν αποστολων – cf. 11:5), cuja mensagem alegava que os cristãos já gozariam de glória antes do fim dos tempos, o que era justamente um dos pontos combatidos por Paulo em I Coríntios. Os capítulos de 10 a 13 seriam de uma carta combatendo os “superapóstolos”. A comunidade deve ter mudado de opinião e acatado de novo as teses de Paulo, que teria escrito uma nova carta em tom congratulatório que corresponderia, salvo alguns trechos destoantes, à boa parte da redação entre o primeiro e o nono capítulo. Assim, cronologicamente, II Coríntios começaria pelo fim.
No geral, Paulo mantém os mesmo pontos de sua pregação apocalíptica apresentada em I Coríntio. As principais alusões ao Espírito se encontram na primeira parte (cap. 1 a 9), com alguns desenvolvimentos interessantes em relação à epístola anterior.
Porventura começamos outra vez a louvar-nos a nós mesmos? Ou necessitamos, como alguns, de cartas de recomendação para vós, ou de recomendação de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e lida por todos os homens. Porque já é manifesto que vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós, e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo [αλλα πνευματι θεου ζωντος], não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração.E é por Cristo que temos tal confiança em Deus. Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual nos fez também capazes de ser ministros de um novo testamento [aliança/pacto], não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica.
II Cor 3:1-6Aqui Paulo alfineta os “superapóstolos” que apresentavam suas credenciais como sendo a pertinência a Cristo (10:7, 11:23), sua origem judaica (11:22) e, principalmente, seus feitos espirituais, que comprovariam sua autoridade (5:12-4, 11:4 e 12:11-3). Paulo de nada disso precisava, pois sua prova de autoridade seria a própria existência dos cristão de Corinto, comunidade por ele fundada com o intermédio do Espírito de Deus. Numa alusão ao recebimento do decálogo (tábuas de pedra), a “boa nova” superaria a antiga Lei por estar gravada no coração, o que desenvolve mais adiante:
E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, veio em glória, de maneira que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos na face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, a qual era transitória,
Como não será de maior glória o ministério do Espírito? Porque, se o ministério da condenação foi glorioso, muito mais excederá em glória o ministério da justiça. Porque também o que foi glorificado nesta parte não foi glorificado, por causa desta excelente glória. Porque, se o que era transitório foi para glória, muito mais é em glória o que permanece. Tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar. E não somos como Moisés, que punha um véu sobre a sua face, para que os filhos de Israel não olhassem firmemente para o fim daquilo que era transitório. Mas os seus sentidos foram endurecidos; porque até hoje o mesmo véu está por levantar na lição do velho testamento, o qual foi por Cristo abolido; e até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Mas, quando se converterem ao Senhor, então o véu se tirará. Ora, o Senhor é o Espírito [ο δε κυριος το πνευμα εστιν]; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.
II Co 3:7-18De certa forma, Paulo antecipa uma ideia que viria a desenvolver em outras epístolas: a transitividade da Lei Mosaica. Em alusão ao episódio descrito em Ex 34:28-35 – quando Moisés, após passar quarenta dias na presença de Deus e entalhando as tábuas, desceu do monte Sinai com o rosto radiante -, Paulo assevera que aquela glória era passageira: embora o motivo mais aparente e imediato de Moisés cobrir o rosto seria para não ofuscar os olhos de seu povo, Paulo interpreta que seria para que ninguém visse seu esplendor esvanecer, até que o reavivasse estando outra vez na presença de Deus. Analogamente, a validade da Lei seria passageira, ao contrário da perene do evangelho. E é justamente ao enaltecer esse novo tipo de glória que Paulo dá um passo ousado: equipara o Espírito a Deus. Ele faz algo similar ao que fez um anônimo judeu helênico com a Sabedoria Divina (Sb 8:22-35) ou que o Prólogo de João faria com o Verbo, estabelecendo que algo proveniente de Deus também seria divino, de algum modo. Não é a terceira Hipóstase Trinitária ainda, mas parte do fosso a separar uma substância especial do Divino foi tapado.
- Gálatas: Algum tempo após a saída de Paulo dessa comunidade por ele criada, lá chegaram pregadores cristãos com uma mensagem da repassada pelo fundador. Segundo eles, para ser cristão era também preciso antes ser judeu, o implicava em adotar práticas como a circuncisão masculina. Isso despertou uma reação irada de Paulo que redigiu essa carta condenando veementemente a atuação desses mestres judaizantes entre os gentios. Por outro lado, no capítulo XVII de Gênesis, Javé estabeleceu a circuncisão como símbolo da aliança eterna entre Ele e Abraão e sua descendência. Se era “eterna” não deveria continuar a valer em sua época (e até o fim dos tempos)? Ciente desse embaraço, Paulo se justificou num dos versículos mais curtos e paradoxais da Bíblia: “Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus.” (Gl 2:19). Uma possibilidade para desmembrar esse raciocínio sintético seria que “pelo entendimento correto e pleno da lei, compreende-se sua falta de necessidade hoje em dia”. Na opinião de Paulo, simplesmente adotar a Lei seria algo problemático pois:
Todos aqueles, pois, que são das obras da lei estão debaixo da maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las.
Gl 3:10Adotar um ou outro mandamento da Lei implicaria na necessidade de praticar todos e um deslize deixaria o fiel em erro perante Deus, levando à necessidade de um reparo mediante um sacrifício no Templo. Mas daí vem outra pergunta: se a Lei era cruel assim, porque o bondoso Deus a teria dado ao homens, aos hebreus mais especificamente?
Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro. Ora, o medianeiro não o é de um só, mas Deus é um. Logo, a lei é contra as promessas de Deus? De nenhuma sorte; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes.
Gl 3:19-22A Lei seria algo provisório, digamos, para manter o povo “na linha”. O curioso é que dá a entender que um dos motivos de sua temporalidade seria o fato de ter sido transmitida por anjos (“medianeiros”), em vez de provir diretamente de Deus. Isso não está de acordo com o relato de Êxodo, nem com a tradição judaica posterior. Se Paulo falava de uma interpretação antiga e atualmente perdida ou de uma visão pessoal, está em aberto. De concreto, existe a postura de Paulo em encarar o judaísmo como uma crisálida de onde emergiria o cristianismo, mas que deveria ser descartada após cumprir seu papel.
A justificação perante Deus não se daria pelas obras da Lei, mas por uma fé tal qual a de Abraão. No capítulo III, Paulo remete ao episódio relatado em Gn 22, quando Javé ordena a Abraão que sacrifique seu próprio filho Isaque em holocausto. Abraão cumpriria a ordem sem hesitar não fosse uma intervenção, no último instante, de um anjo, que trouxe a nova ordem para trocar o menino por um carneiro. Por ter passado com louvor nesse “teste de fidelidade”, declarou Deus a Abrão que “em tua descendência serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22:18, cf. Gl 3:8). A fé em Jesus, com o mesmo grau de fervor que a de Abraão, livraria da maldição da Lei, pois a morte de Jesus na cruz foi o sacrifício último capaz de redimir qualquer infração (Gl 3:13, cf. Dt 21:22). Os que cressem nesse sacrifício fariam, pois, uma oferta análoga a de Abraão. Daí Paulo faz outra inovação teológica: a descendência seria determinada não mais pela consanguinidade, mas pela fé em Cristo. Os gentios e judeus que aceitassem a fé em Jesus seriam os legítimos herdeiros de Abraão, continuadores, de fato, da linhagem de Isaque (Gl 3:26-9). Por outro lado, os judeus que se ativessem à Lei seriam os continuadores de Ismael, o filho bastardo com a escrava Agar (cf. Gl 4), e seriam “lançados fora” (cf. Gn 21) porque “de modo algum o filho da escrava herdará com o filho da livre (Gl 4:30).”
No tributo que a Nova Aliança em Jesus faz à antiga, o Espírito viria como prova de filiação adotiva, tal como Javé adotara os antigos hebreus:
Para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho [το πνευμα του υιου], que clama: Aba, Pai. Assim que já não és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo.
Gl 4:5-7
Se isolada, essa passagem pode dar a entender que não há uma identificação entre o “Espírito de seu Filho” e o “Espírito Santo”. Entretanto, no capítulo precedente:
Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito [το πνευμα] pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito [πνευματι], acabeis agora pela carne? Será em vão que tenhais padecido tanto? Se é que isso também foi em vão. Aquele, pois, que vos dá o Espírito [το πνευμα], e que opera maravilhas entre vós, o faz pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?
Gl 3:2-5Que é o mesmo espírito carismático a conceder dons aos fiéis em outras cartas. Embora Paulo nunca descreva o batismo de Jesus, é provável que conhecesse a tradição da descida do Espírito Santo em Jesus e sua aclamação como Filho de Deus nesse episódio, dado que Lucas – que lhe é teologicamente afim – a preserva. Nesse caso, os crentes receberiam uma filiação de empréstimo do referido espírito. A associação entre o Espírito Santo e o Messias não era desconhecida no judaísmo (cf. Is 42:2), mas não fora antes usada como prova de filiação.
Outra característica marcante do Espírito em Paulo é sua capacidade de também libertar da Lei por tornar desnecessário o temor às maldições para garantir a retidão dos crentes, pois lograria o mesmo de outro modo:
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais também uns aos outros. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, fornicação, impureza, lascívia, Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.
Gl 5:13-22
Se no judaísmo espíritos divinos já eram capazes de auxiliar no cumprimento da antiga Lei (cf. Sl 51, Qumran), aos cristãos o Espírito tornava-se fundamental para o mandamento básico do amor. Daí vem a questão: um homem faz o bem porque tem fé ou tem fé porque faz o bem? No entender de Paulo, o poder do Espírito, auferido pela fé, é que reformaria o caráter. A prática do bem seria um desdobramento natural em demonstração disso. Isso não significa que Paulo desprezasse o exercício do amor fraterno (cf. I Co 13), mas o condicionava o estabelecimento de um relacionamento de fé com Deus antes de sua prática sincera.
A primazia da fé para a salvação é recorrente em Paulo e as questões que ela suscita até hoje geram polêmicas entre católicos, protestantes e espíritas.
- Filipenses: Carta escrita por Paulo, durante uma estadia numa prisão, à comunidade por ele fundada na cidade de Filipos (cf. Atos 16), na Macedônia. Assim como II Coríntios, Filipenses também possui questões quanto à unicidade de seu conteúdo, bem como ordenação interna. A hipótese mais simples sugere que ela seja composta de duas cartas: a primeira, em ordem cronológica começaria a partir do capítulo III e teria um tom de alerta contra outros professores de viés judaizante – como os encontrados em Gálatas – e pela paz interna da comunidade, a começar pelas crentes Evódia e Síntique (Fp 4:2); a segunda carta, compreendida nos dois capítulos iniciais, tem um tom mais amenos, com agradecimentos e incentivos.
Relativamente curta, a carta recapitula alguns pontos do apocalipticismo paulino: embora derroca do Mal tenha começado com o sacrifício de Jesus, a vitória definitiva ainda estava por vir. Até lá, os cristão ainda estariam sujeitos à ação das malignas, sempre a tentar prejudicá-los e/ou desviá-los da fé. As próprias prisões sofridas por Paulo seriam evidências disso. Cabiam às comunidades cristãs perseverança e solidariedade ante as adversidades.
Há apenas uma menção importante quanto ao papel do Espírito na carta:
Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisto me regozijo, e me regozijarei ainda. Porque sei que disto me resultará salvação, pela vossa oração e pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo,
Fp 1:18,19
Ao contrário de Gálatas, não há possibilidade, usando-se apenas o conteúdo da carta, de se relacionar o “Espírito de Jesus” com alguma outra entidade separada. Aparenta ser a certeza de uma presença simbólica de Jesus como instrumento a auxiliar no consolo e na perseverança.
Por outro lado, Filipenses apresenta em seu texto dois hinos (ou um só em duas partes) provavelmente entoados nessa comunidade:
Hino de Descida
(Fp 2:6-9)Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;
E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.Hino de Ascensão
(Fp 2:9-11)Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,
E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.Uma visão cristológica sofisticada, já em vias da divinização de Jesus. Seu Espírito e o de Deus, portanto, aproximavam-se em excelência.
- Romanos: como única carta remanescente de Paulo direcionada a uma comunidade que não fora criada por ele, Romanos possui a característica ímpar de ser onde ele desenvolve em profundidade temas de sua mensagem que apenas comenta ou relembra a seus prosélitos nas demais, afinal teve de explicar tudo do zero a quem não conhecera pessoalmente. Por esse motivo, um nome mais adequado para esta carta seria “Evangelho segundo Paulo”, pois é aqui que descreve em pormenores sua fé e a “boa nova” que tinha a repassar. Em sua apresentação, Paulo expõe um pequeno catecismo cristão, testemunho de uma tradição que antecederia a própria redação do Novo Testamento:
Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade [κατα πνευμα αγιωσυνης], pela ressurreição dentre os mortos – Jesus Cristo nosso Senhor -, pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios, entre os quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo; a todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados para serdes santos: Graça a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
Rm 1:1-7
Nesse “cartão de visitas” em forma de credo condensado, Paulo usa um hebraísmo – “espírito de santidade” – em vez do simples adjetivo grego talvez por ser uma forma mais familiar aos fundadores daquela comunidade, além de reforçar sua apresentação como um cristão genuíno, não falso apóstolo a propagandear ideias alienígenas. Uma maneira de preparar terreno para expor sua própria visão a respeito da fé em Jesus: o papel central do martírio de Jesus e sua subsequente ressurreição na salvação da humanidade. Ou melhor, de todos aqueles que reconhecessem esse sacrifício e acreditassem em sua vitória sobre a morte.
Há diferentes linhas de argumentação utilizadas por Paulo ao longo da carta. Uma das principais é o modelo judicial (cf. cap. 3 a 5): Deus seria uma espécie de legislador a regular como os humanos (judeus e gentios Rm 2:9-10) deveriam se portar. O problema é que ninguém, mas ninguém, consegue seguir suas leis, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). Como Deus também é juiz (3:9), a humanidade toda está condenada. A solução, segundo esse argumento, estaria em outra pessoa cumprir a punição por nós, aí que entra o valor do sacrifício de Jesus na cruz (3:24) como forma de cumprimento alternativo da pena, cuja aprovação divina estaria no fato de ele ter sido ressuscitado em seguida (4:24-5). Aos humanos caberia aceitar de bom grado esse sacrifício ofertado em seu lugar (3:27-8). Ao fim desse argumento, Paulo menciona o Espírito Santo como uma expressão do amor de Deus sobre a humanidade:
Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo; pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus [η αγαπη του θεου] está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado [δια πνευματος αγιου του δοθεντος ημιν]. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor [αγαπην] para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.
Rm 5:1-10
A expressão pneuma hagion aparece em uma construção genitiva com a preposição δια e sua particular articulação remete ao caso em que o artigo serve, também, de pronome relativo. Nesta passagem, o Espírito Santo serve de veículo para o amor Deus chegar aos justificados pela fé. Não é a atração sensual de eros, nem a amizade de philia, mas o amor puro e desinteressado de agape mencionado em I Cor 13. Para a teologia paulina o ser humano não tem fé porque faz o bem, e sim faz o bem porque tem fé, uma fé em Jesus que o reconcilia com Deus.
Outro argumento importante utilizado por Paulo foi o modelo participacionista. Enquanto o modelo visto acima explica a salvação por meios de termos “jurídicos”, este explica a salvação por meio de uma espécie de união com Jesus Cristo, que livra a humanidade das forças malignas. Bem que forças seriam essas?
Como apocalipcista, Paulo acreditava num tipo de “dualismo brando”, em que haviam forças antagônicas a Deus regiam a Terra momentaneamente, até que Deus resolvesse intervir. Duas dessas formas cósmicas são de particular relevância: o Pecado e a Morte. Nisso as coisas começam a soar um tanto estranhas ao leitor moderno, para o qual “pecado” é algo ruim que alguém faz e “morte” é o cessar das funções vitais. No entanto, no primeiro século, tanto o ato quanto o fato eram produtos de entidades autônomas, que a todos controlavam. Começando pelo Pecado:
- O pecado está no mundo (5:13);
- O pecado governa as pessoas (5:21, 6:12);
- As pessoas podem servir ao pecado (6:6);
- Elas podem ser escravizadas pelo pecado (6:17);
- Elas podem morrer ao pecar (6:11);
- Elas podem ser libertas do pecado (6:18).
O pecado, para Paulo, não é meramente algo que as pessoas fazem, mas sim um poder que as compele à prática do mal. Associado a ele, está outro poder maligno: a morte (6:21-3), que definitivamente afasta alguém de Deus. Ao ressuscitar, Jesus teria quebrado o jugo da morte e, por conseguinte, dos poderes com ela associados (6:9-10). Por meio do batismo, tomaríamos parte dessa vitória sobre a morte e nos reconciliaríamos com Deus (6:3-4).
Então, qual seria o papel da Lei Judaica durante todos esses séculos? Não seria ela um instrumento para a salvação? Retomando uma ideia já apresentada em Gálatas com o auxílio, novamente, um modo de raciocínio judicial, Paulo crê a Lei era boa ao definir o que é certo ou errado, porém gerava um problema: crimes só existem se são tipificados e era isso que a Lei fazia:
Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, operou em mim toda a concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri.
Rm 7:7-9
Ou seja, a Lei conduziria à danação ao invés da salvação. Como a Lei só possuía vigência enquanto se estivesse vivo (Rm 7:1) era preciso morrer para Lei e renascer para outra coisa. Se carne, a parte do ser humano sujeita a pecado morrer em Cristo, a pessoa não estará mais sujeita aos desejos deles e a violar a Lei. Na oposição à carne, o Espírito teria um papel fundamental:
Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E, se o Espírito [το πνευμα] daquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dentre os mortos ressuscitou a Cristo também vivificará os vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita.
Rm 8:1-11
Principalmente ao fim dessa passagem, o “Espírito de Deus”, o “Espírito de Cristo” e “Cristo” são utilizados de forma intercambiável (o que não significa, exatamente, “identidade”). A humanidade, segundo Paulo, é salva por Cristo e em Cristo, sendo impossível não o ser caso não seja também pelo Espírito e no Espírito de Deus. Dado que “Deus” e “Jesus” receberam os primeiros nomina sacra é provável que a associação teológica entre os dois com o “Espírito” levou a criação de um nominum sacrum para ele, também. Afinal, passara a ter atributos sagrados, tidos como dignos de adoração, como o de ser o doador da vida, o agente principal da ressurreição dos mortos.
Ambas ideias remetem a II Cor 3:1-18, quando os conceitos de “Espírito” e “Deus” se misturam e o primeiro é apresentado como “vivificador”. Nos versículos seguinte, Paulo nos apresenta mais uma ideia presente em outra carta:
De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus esses são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor, mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.
Rm 8:12-17
Paulo expõe uma versão embrionária da doutrina dos “Dois Caminhos” ao opor carne e espírito, morte e vida; estando o caminho correto balizado pela capacidade do Espírito de conceder um status de filiação com Deus, tal como defendera em Gl 4:5-7. É uma filiação “adotiva”, no sentido de que originalmente não seríamos filhos de Deus (apenas suas criaturas), mas auferiríamos essa condição por intermédio do Espírito, que preveniria uma vida sem a Lei da queda na iniquidade (cf. I Co 2:4-16). É bom ressaltar que, embora o a salvação tenha se iniciado com a ressurreição, de forma alguma seu processo está concluído: asperezas nesta vida ainda são esperadas antes do Fim dos Tempos, mas os “filhos de Deus” já não estariam mais sozinhos:
Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela, mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos. Ora a esperança que se vê não é esperança; porque o que alguém vê como o esperará? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o esperamos. E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.
Rm 8:18-27
Paulo faz novo uso do modo participativo ao declarar que alguma força externa à humanidade que a sujeitou “à vaidade” e outra força maior ainda a libertaria dessa escravidão. Acontece que tal processo ainda estaria inconcluso e o tempo das “primícias do Espírito” (i.e., o da ressurreição de Jesus), ainda seria de dores. Aí que entra uma impressionante inovação: o Espírito a interceder diretamente pela humanidade. No Antigo Testamento, o Rouach divino não tinha esse atributo personificado, sendo antes um instrumento que um agente autônomo. Tal tarefa cabia aos profetas, como Moisés ao afastar a iminente ira de Javé sobre os hebreus, após o episódio do bezerro de ouro (Ex 32:7-14, antropomorfismos à parte). Outros exemplos desse caso estão em Am 7:2, Jr 15:1, 18:20, etc. Já nos últimos livros da literatura bíblica, anjos começam a assumir esse papel, quer levando as orações dos fiéis a Deus (Tb 12:12), quer intercedendo eles mesmos (Zc 1:12). Agora, em Romanos, Paulo dá a responsabilidade de interceder e consolar ao Espírito, dando-lhe, assim, atributos pessoais. Isso não chega a ser exatamente uma surpresa, visto que se forças malignas – como o pecado e morte – são personificadas em Romanos, por que as benévolas não o poderiam, também? Vale assinalar que Jesus também aparece com a função de intercessor em Rm 8:34, o que poderia ser um reflexo da similitude entre os dois em 8:10-1, contudo há uma importante diferença: enquanto Jesus já “está à direita de Deus“, o outro intercessor atua na Terra. Assim, o Espírito Santo paulino se tornou uma espécie de prévia do Paracleto de João.
Outra forma de atuação do Espírito junto ao homens se encontra na concessão dos chamados dons, que são relatados mais para a parte final da carta:
Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria. O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem.
Rm 12:4-9
Embora nenhuma menção explícita seja feita ao Espírito Santo aqui, sabe-se da importância que Paulo dava a ele em I Cor 12, para a concessão dos referidos dons. Por fim:
Ora o Deus de esperança vos encha de todo o gozo e paz em crença, para que abundeis em esperança pela virtude do Espírito Santo [εν δυναμει πνευματος αγιου].
Rm 15:13
Que seja ministro de Jesus Cristo para os gentios, ministrando o evangelho de Deus, para que seja agradável a oferta dos gentios, santificada pelo Espírito Santo [εν πνευματι αγιω].
v. 16
Pelo poder dos sinais e prodígios, e pela virtude do Espírito [εν δυναμει πνευματος] de Deus; de maneira que desde Jerusalém, e arredores, até ao Ilírico, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo.
v. 19
E rogo-vos, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo [δια του κυριου ημων ιησου χριστου] e pelo amor do Espírito [και δια της αγαπης του πνευματος], que combatais comigo nas vossas orações por mim a Deus;
v.30
No penúltimo capítulo da carta (e último com algum conteúdo doutrinário), o Espírito aparece como um agente do tempo corrente (o ministério dos gentios) e do que está ainda por vir (daí a “esperança”), enquanto Jesus Cristo foi o principal personagem do ministério da circuncisão (v.8). Por fim, um apelo a ambos é feito, indicando que possuem importância similar, ainda que atuem em domínios diferentes.
* * *
Com Carta aos Romanos, chegamos à síntese da mensagem de Paulo, quando a “fé de Jesus” passa a se ladeada pela “fé em Cristo”. O abandono da Lei para a salvação foi, sem dúvida, um passo decisivo na separação entre judaísmo e cristianismo, mantendo o último as profecias apocalípticas do primeior. Curiosamente, Paulo é o grande ausente no Evangelho segundo o Espiritismo. Salvo a transcrição de “O Hino à Caridade” de I Coríntios 13 (cap XV do ESE) e mais alguns versículos do capítulo seguinte dessa carta – o que não permite de forma algum um panorama geral da mensagem de Paulo – nada mais é relacionado desse apóstolo. Em vez disso, centrou-se no lema “Fora da caridade não há salvação“, que retoma a moral dos sinópticos, mas rejeita a parte profética deles e a de Paulo (o fim dos tempos, a ressurreição da carne e a parúsia) para criar a sua própria (a Terceira Revelação). A consumação desse processo se deu com Léon Denis:
Com o seu sacrifício, dizem outros teólogos, Jesus “venceu o pecado e a morte, porque a morte é o salário do pecado e uma tremenda desordem na Criação(72) .
Entretanto, morre-se depois da vinda de Jesus, como antes dele se morria. A morte, considerada por certos
cristãos como consequência do pecado e punição do ser, é, todavia, uma lei natural e uma transformação necessária ao progresso e elevação da alma. Não pode ser elemento de desordem no Universo. Julgá-la por esse modo, não é insurgir-se contra a divina sabedoria?É assim que, partindo de um ponto de vista errôneo, os homens da Igreja chegam às mais estranhas concepções. Quando afirmam que, por sua morte, Jesus se ofereceu a Deus em holocausto, para o resgate da Humanidade, não equivale isso a dizer, na opinião dos que creem na divindade do Cristo, que se ofereceu a si mesmo? E do que terá ele resgatado os homens? Não é das penas do inferno, pois que todos os dias nos repetem que os indivíduos que morrem em estado de pecado mortal são condenados às penas eternas.
A palavra pecado não exprime, em si mesma, senão uma ideia confusa. A violação da lei acarreta a cada ser um amesquinhamento moral, uma reação da consciência, que é uma causa de sofrimento íntimo e uma diminuição das percepções animais. Assim, o ser pune-se a si mesmo. Deus não intervém, porque Deus é infinito; nenhum ser seria capaz de lhe produzir o menor mal.
Se o sacrifício de Jesus resgatou os homens do pecado, porque, então, ainda os batizam? Essa redenção, em todo caso, não se pode estender senão unicamente aos cristãos, aos que têm conhecido e aceitado a doutrina do Nazareno. Teria ela, pois, excluído da sua esfera de ação a maior parte da Humanidade? Existem ainda hoje na Terra milhares, milhões de homens que vivem fora das igrejas cristãs, na ignorância das suas leis, privados desse ensino, sem cuja observância, dizem, “não há salvação”. Que pensar de opiniões tão opostas aos verdadeiros princípios de amor e justiça que regem os mundos?
Não, a missão do Cristo não era resgatar com o seu sangue os crimes da Humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria capaz de resgatar ninguém. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo, resgatar-se da ignorância e do mal. Nada de exterior a nós poderia fazê-lo.
É o que os Espíritos, aos milhares, afirmam em todos os pontos do mundo. Das esferas de luz, onde tudo é serenidade e paz, desceu o Cristo às nossas obscuras e tormentosas regiões, para mostrar-nos o caminho que conduz a Deus: tal o seu sacrifício. A efusão de amor em que envolve os homens, sua identificação com eles, nas alegrias como nos sofrimentos, constituem a redenção que nos oferece e que somos livres de aceitar. Outros, antes dele, haviam induzido os povos ao caminho do bem e da verdade. Nenhum o fizera com a singular doçura, com a ternura penetrante que caracteriza o ensino de Jesus. Nenhum soube, como ele, ensinar a amar as virtudes modestas e escondidas. Nisso reside o poder, a grandeza moral do Evangelho, o elemento vital do Cristianismo, que sucumbe ao peso dos estranhos
dogmas de que o cumularam.(72) De Pressensé, “Jesus Cristo, seu tempo, sua vida, sua obra”, pág. 654. Encontra-se essa opinião em muitos autores católicos.
Denis, Leon; Cristianismo e espiritismo, cap. VII
Não faço juízo juízo de valor quanto às palavras do “apóstolo do Espiritismo”, apenas constato, por sua rejeição explícita do cerne da mensagem paulina, que seu ministério foi um divisor de águas, marcando a separação definitiva entre o Espiritismo e a ortodoxia cristã.
Excetuando Filemom – que nada traz sobre o assunto – aqui se encerra a análise do papel do Espírito Santo nas cartas tidas por unanimidade como de autoria de Paulo. Nelas podemos constatar a passagem de uma “baixa pneumatologia” – com o Espírito Santo mais como uma ferramenta do poder divino – para uma “média/alta”, quando ele assume características pessoais e uma importância próxima a de Jesus. As peças seguintes da literatura cristã primitiva a serem redigidas, trariam o enfoque tanto de seus seguidores, como de seus rivais.
A Disparidade Sinóptica
Pela hipótese da origem quádrupla dos sinópticos, Marcos forneceu o fio narrativo para Mateus e Lucas. Estes, independentemente, acrescentaram ditos da Fonte Q e algum material próprio de cada um. Assim, o cerne do entendimento dos sinópticos quanto ao papel do Espírito Santo parte de Marcos e termina na forma como Luca e Mateus – a cada um a sua maneira – alteraram a visão inicial.
- Marcos: o poder do Espírito: a primeira menção ao Espírito Santo ocorre logo na abertura deste evangelho, durante a pregação de João Batista:
E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
Mc 1:7,8
À primeira vista, esse texto viria a ser copiado nos outros dois sinópticos, conforme a hipótese da origem quádrupla, contudo podemos estar diante de um caso de múltipla atestação de Marcos e Q. Repare a diferença:
(…) ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo (Mc 1:8)
(…) ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mt 3:11/Lc 3:16)
É possível que os redatores de Lucas e Mateus tenham se deparado com a seguinte leitura em Q: “ele vos batizará com fogo” e daí feito independentemente uma harmonização com Marcos gerando um versículo híbrido em seus respectivos evangelhos (cf. [Tatum, cap. XIII, pp. 128-31]).
(Em construção)
[topo]
Onde o Espírito fez a Curva
Será analisado, agora, um artigo de José Reis Chaves publica no jornal O Tempo (MG, 24/03/14). O tema é recorrente em sua coluna semanal e os equívocos neles contidos se repetem em outros artigos (cf.colunas de 10/11/14 e 14/12/15). Nada contra a pessoa desse autor, apenas um alerta aos incautos que um tema tão complexo não pode ser tratado de forma tão superficial. Eis o artigo:
Ainda falando do Espírito Santo verdadeiro conforme a Bíblia
Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!
E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).
E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.
Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo. E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica). Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano. Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo. Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28). O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo. Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.
Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”. E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo. Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.
Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.
E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples.Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!
Com Celina Sobral e este colunista, o “Presença Espírita na Bíblia”, na TV Mundo Maior, por parabólica e internet, nas quintas-feiras, às 20h, e outros horários (grade da programação). Perguntas e sugestões: presenca@tvmundo maior.com.br.
Agora, algumas observações
Os dogmas cristãos, que respeito, são doutrinas polêmicas justamente porque não têm fundamento bíblico. E o trinitário é um dos mais complicados. Ele foi criado a partir do Concílio Ecumênico de Niceia (325), quando os teólogos divinizaram Jesus. Daí que eles mesmos acrescentaram-lhe que se trata de um mistério de Deus. Mas, na verdade, esse mistério é dos teólogos, e não de Deus!
Jesus não foi divinizado em Niceia, porque ela já havia sido divinizado muito antes! Pelo menos desde o Evangelho de João, com seu Verbo encarnado e o “Eu sou” (Jo 8:58), Jesus já era divino de alguma forma. O que Niceia discutiu era de que jeito era a divindade de Jesus. Mesmo a facção derrotada nesse concílio – os arianos – davam a Jesus status similar ao Pai e, embora não fosse coeterno com Ele, sua origem antecedia a criação. De maneira alguma o Cristo ariano se enquadraria na ideia de “espírito altamente evoluído” do kardecismo.
E os dogmas mais antigos foram introduzidos no Credo (profissão de fé) denominado Símbolo da Fé Cristã niceno-constantinopolitano. É niceno porque tem sua origem no citado concílio de Niceia (325), e constantinopolitano porque ele teve continuação no de Constantinopla (381).
Tanto o Verbo enunciado no prólogo de João, quanto a Sabedoria cantada por Salomão provinham de Deus, partilhando, assim, de sua divindade de algum modo. O mesmo se deu com o Espírito Santo, o que o diferenciava dos demais espíritos. Ao longo de três século houve um processo de personificação e, depois, de equiparação entre ele, o Pai e Jesus. Vale, então, a mesma observação feita antes: os concílios não inventaram a Trindade, apenas deram chancela oficial a ideias que já existiam antes no cristianismo ortodoxo.
E eis, na Bíblia, os vários significados do Espírito Santo. O espírito de Moisés é um Espírito Santo.
Eles (o povo) contristaram o Espírito Santo de Moisés. “Onde está o que pôs nele seu Espírito Santo?” (Isaías 63: 10 e 11). Nela, realmente, nós somos o Espírito Santo.
Lendo os versículos no contexto (versão católica):
Mas revoltaram-se, ofenderam seu santo espírito, desde então tornou-se inimigo deles, e lhes fez guerra. Então se lembraram dos dias de outrora, de Moisés, seu servo.
Onde está aquele que tirou dos céus o pastor de seu rebanho? Onde está aquele que pôs nele seu santo espírito?
Aquele que à direita de Moisés atuou com o seu braço glorioso, e dividiu as águas diante dos seus para assegurar-se um renome eterno;
Is 63:10-12
“Aquele”, no caso, se refere ao próprio Deus, cujo o espírito santo foi ofendido pelos ímpios, o mesmo espírito que, anteriormente, fora posto em Moisés. Aqui não há o benefício da ambiguidade que aparece no exemplo seguinte:
E mesmo quando ele aparece com o artigo definido “o”, individualizando o espírito, ele é humano. O espírito de Daniel é um Espírito Santo (Daniel 13: 45, da Bíblia Católica).
Vejamos o que diz esse versículo: “ao ser [Susana] conduzida para a morte, o Senhor despertou o espírito santo de um jovem de nome Daniel”. “História de Susana” é encontrada apenas na Septuaginta, e a alusão ao “espírito santo de Daniel”, mais especificamente na versão de Teodócio. A história descreve a chantagem sofrida pela jovem e casada Susana feita por dois anciãos que a viram se banhar no jardim. Como se recusou a ceder, foi por eles falsamente acusada de adultério e condenada à morte. No último instante, Deus agiu sobre Daniel, fazendo-o intervir para que os anciãos fossem interrogados em separado, foi quando se contradisseram nos pormenores. Após esse resumo, fica questão: o que foi despertado em Daniel foi o espírito santo dele mesmo ou o que estava nele (proveniente de Deus)? As duas leituras são possíveis. Ambrósio, bispo de Milão e contemporâneo de Jerônimo e Agostinho, optou pelo segunda alternativa:
Também Daniel, a menos que tivesse recebido o Espírito de Deus, nunca teria sido capaz de descobrir aquele adultério luxurioso, aquela mentira fraudulenta. Pois quando Susana, atingida pela conspiração dos anciãos, viu que a mente do povo estava conduzida pela consideração aos idosos, e destituída de toda ajuda, sozinha entre os homens, consciente de sua castidade ela orou a Deus para julgar; está escrito:”O Senhor ouviu a voz dela, quando era conduzida para a morte, e o o Senhor despertou o espírito santo de um jovem, cujo nome era Daniel”. E então, conforme a graça do Espírito Santo recebido por ele, descobriu a inconsistente evidência dos pérfidos, pois não foi por outra coisa senão a agência do poder divino que sua voz faria com que eles, cujos sentimentos íntimos eram ocultos, fossem conhecidos.
Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, livro III, cap. VI
Que não se desconsidere essa possibilidade, também. Prosseguindo
Mas, nos originais bíblicos, o Espírito Santo aparece mesmo é com o artigo indefinido “um” designando um espírito humano.
É uma afirmação praticamente tautológica: com ou sem artigo definido, “Espírito Santo” sempre será um espírito qualquer, pois seria um circunlóquio para os seguidores de Deus e do Bem. Tal entendimento não contempla os casos em que a expressão parece designar uma pessoa (uma personificação do espírito divino) que não é nenhum dos presentes ou uma substância (o espírito divino sem personificação). O caráter substancial parece estar ausente da lógica do autor porque ele passa o entendimento equivocado que deve sempre haver um artigo (definido ou não), esquecendo a possibilidade de “Espírito Santo” ser anartro tanto em grego como em português.
O pior são os exemplos dados:
Nosso corpo é santuário do Espírito Santo. (Nos originais, não se diz “do”, mas “dum” Espírito Santo) (1 Coríntios 6: 19). Como se vê, nós somos, de fato, o Espírito Santo.
Então, vejamos o original:
η ουκ οιδατε οτι το σωμα υμων ναος του εν υμιν αγιου πνευματος εστιν
O expressão “Espírito Santo” aparece articular na primeira forma atributiva, com o artigo concordando em gênero, número e caso. O que pode causar certa estranheza ao leitor de língua portuguesa é que entre os dois aparece εν υμιν (“em vós”), mas se deve lembrar que o grego, como língua sintética, não precisa seguir uma ordem fixa para os termos de uma oração.
Também Jesus, um espírito humano, é um Espírito Santo (Atos 20: 28).
Em At 20:28, “Espírito Santo” aparece articular e, sem ser um uso anafórico do artigo, representa uma personificação. Logo, não é uma substância ou poder, nem um espírito genérico. Contudo, a leitura desse único versículo isoladamente pode dar a sensação de identidade entre Jesus e o Espírito Santo, porém isso não passa de observar a árvore e ignorar a floresta
E agora, eis que, ligado eu pelo espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que lá me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] de cidade em cidade me revela, dizendo que me esperam prisões e tribulações. Mas de nada faço questão, nem tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira, e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.
(…)
Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo [το πνευμα το αγιον] vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.
At 20:22-4,28
Pela história de Atos, Saulo – um fariseu perseguidor de cristãos – teve uma visão de Jesus durante seu trajeto para Damasco, e a partir daí mudou seu nome para Paulo, um incansável missionário cristão. Nesse mesmo livro, são várias as manifestações do Espírito Santo, seja com os cristãos que conheceram Jesus em vida (At 2:4-8) ou com prosélitos posteriores (At 19:1-7) e nenhuma delas é equiparada a uma manifestação de Jesus (que também apareceu a Ananias). Pelo contrário, o autor de Atos também deixa claro que Jesus e o Espírito Santo são distintos:
E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo [πνευματος αγιου].
At 9:17
Estando “Espírito Santo” com a forma anartra, pois é tratado como um espécie de substância ou poder a ser infundido. No caso de At 20:28, o Espírito Santo foi investido aos anciãos supervisores (bispos) da Igreja de Éfeso, parte de uma comunidade mais ampla e auferida pelo sacrifício do sangue de Jesus. Ou teria sido pelo de Deus? De fato, há mais de uma ambiguidade nesse versículo.
O Consolador, o Espírito de Verdade, o Paracleto prometido por Jesus são também o Espírito Santo.
Essa é uma alusão à fala de Jesus em seu (primeiro) discurso de despedida (Jo 14:26). Como há até hoje uma grande dúvida no movimento se Jesus é ou não o Espírito de Verdade, isso pode ter reforçado a confusão feita em At 20:28.
Nos meios cristãos, ele é tido também como sendo o próprio Deus. Mas os teólogos sempre ensinaram erroneamente que o Espírito Santo é só aquele da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. E, por isso, adaptaram os textos bíblicos a esse dogma.
Meia-Verdade. Desde o século I, pelo menos, já havia a noção de o Espírito Santo possuir origem divina e partilhar de sua divindade, de algum modo. A plena equiparação do Espírito Santo ao Pai (e ao Filho) é que foi mais tardia. Houve falsificações trinitárias, sim, como o Parêntese Joanino, mas essa ideia de um Espírito Santo divino já existia antes de Niceia.
Eu estou com os originais bíblicos e o espiritismo, que nos ensinam que “o Espírito Santo”, na verdade, é “um espírito santo”.
Não sei quais os “originais” em questão que foram lidos. Existem edições críticas do Novo Testamento disponíveis ao público como o Nestle-Aland Novum Testamentum Graece e outras mais simples. Nenhuma delas sustenta “um espírito santo” para At 20:28 ou I Cor 6:19. Se o original é o Sabedoria do Evangelho de Pastorino, então fez-se uma leitura muito sui generis desse tradutor espírita, pois ele, como vimos, enumera onde “o Espírito Santo” aparece nos evangelhos.
E, também, com a Vulgata Latina de são Jerônimo, em que se lê “espírito bom” (“spiritus bônus”), e não o Espírito Santo.
Essa besteira, em particular, vem desde os tempos de Léon Denis, repassada por gerações de espíritas. Eis sua versão original:
Essa palavra pneuma, traduziu-a S. Jerônimo como spiritus, reconhecendo, com os evangelistas, que há bons e maus Espíritos. A ideia de divinizar o Espírito não surgiu senão no século II. Foi somente depois da Vulgata que a palavra sanctus foi constantemente ligada à palavra spiritus, não conseguindo essa junção, na maioria dos casos, senão tornar o sentido mais obscuro e mesmo, às vezes, ininteligível. Os tradutores franceses dos livros canônicos foram ainda mais longe a esse respeito e contribuíram para desnaturar o sentido primitivo. Eis aqui um exemplo, entre outros muitos: lê-se em Lucas (cap. XI, texto grego)
10 – “Aquele que pede, recebe; o que procura acha; ao que bate se abrirá.” – 13. “Portanto, se bem que sejais maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, com muito mais forte razão vosso Pai enviará do céu “um bom espírito” àqueles que lho pedirem.”
As traduções francesas trazem o Espírito Santo. É um contra-senso. Na Vulgata, tradução latina do grego, está escrito Spiritum bonum, palavra por palavra, espírito bom. A Vulgata não fala absolutamente do Espírito Santo. O primitivo texto grego ainda é mais frisante, e nem douto modo poderia ser, pois que o Espírito Santo, como terceira pessoa da Trindade, não foi imaginado senão no fim do século II.
Léon Denis, Cristianismo e Espiritismo, Notas Complementares, nota n. 6
Agora, os fatos: Jerônimo sistematicamente usa Spiritus Sanctus ao longo de sua Vulgata. Em um versículo, ele utiliza Spiritus Bonus (Lc 11:13). Na maioria dos códices e papiros gregos – p75, Alexandrino, Sinaítico, Beza, etc. -, encontra-se a leitura “Espírito Santo”. Em alguns – P45 e códice Regius (L), por exemplo -, lê-se αγαθον (“bom”) nesse versículo e deve ter vindo daí a tradução de Jerônimo. Uma tradução francesa feita dos manuscritos gregos corretos nesse versículo explicaria a discrepância apontada pelo “apóstolo do espiritismo”. Até o infame Textus Receptus de Erasmo acerta nessa leitura.
Os teólogos trocaram o adjetivo “bom” pelo “Santo”, e com a inicial maiúscula, para se entender que é o trinitário.
Como visto logo acima, não há fundamento algum para essa teoria conspiratória da troca de “bom” por “santo”. É surpreendente que ela tenha durado tanto, quando ela poderia ser facilmente rechaçada por uma simples leitura da Vulgata, principalmente por aqueles que foram seminaristas. Quanto ao uso de maiúsculas, eles são apenas uma transposição para a grafia moderna dos antigos Nomina Sacra, que são anteriores aos Concílios.
Para esclarecimento melhor desse assunto, examinemos outros exemplos bíblicos: “Irmãos, não deem crédito a qualquer espírito, antes, provai os espíritos se procedem de Deus, pois muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1 João 4: 1). Realmente, se fosse o Espírito Santo trinitário que se manifestasse, não haveria sentido nenhum para esse ensino do evangelista João.
Também consta na Escritura que um dos dons do Espírito Santo é o de discernir espíritos (cf. I Cor 12:10)! É perfeitamente possível, portanto, a existência de vários espíritos e apenas um deles ser o “Espírito Santo”, afinal “espírito” pode ter conotações diferentes para cada caso. Em vez de ficar no achismo de teologias modernas, vejamos o que documentos antigos falavam sobre o tema em pormenores:
“Agora escute”, disse ele, “sobre a fé. Existem dois mensageiros com o homem, o da justiça e o da maldade”.
“Então”, disse eu, “como posso reconhecer seus trabalhos, sendo que os dois anjos vivem comigo?”
“Escute”, disse ele, “e os entenda. O mensageiro da justiça é sensível, modesto, gentil e tranquilo. Quando este entrar em teu coração, ele imediatamente fala contigo sobre a justiça, a pureza, a santidade, sobre o contentamento, sobre cada ato justo e sobre cada virtude gloriosa. quando tudo isso entrar em teu coração, saberás que o mensageiro da justiça está contigo. Estes, então, são os trabalhos do anjo da justiça. Portanto, confie nele e em seus trabalhos. Agora observe os trabalhos do anjo da maldade. Primeiro de tudo, ele é irritado, maligno e frenético, e seus trabalhos são o mal, despedaçando os servidores de Deus. assim, quando este entrar em teu coração, o reconheça pelos seus trabalhos.”
“Mas Senhor”, disse eu, “eu não sei como reconhecê-lo”.
“Escute”, respondeu, “quando alguma explosão de algum nervosismo temperamental tomar posse de ti, reconheça que ele se encontra em ti. Então vêm o desejo do trabalho excessivo, bebidas e comidas extravagantes, muita bebedeira, e vários tipos de luxúrias desnecessárias, o desejo de mulheres, a ganância, a arrogâncias e a pretensiosidade, o que quer que lembre ou se assimile a estas coisas. Assim, quando estas coisas entrarem em teu coração, saberás que o anjo da maldade estará contigo. Reconhecendo, portanto, seus trabalhos, evite-o e não confie nele em nenhuma circunstância, pois seus trabalhos são malignos e prejudiciais aos servidores de Deus. Agora tens, então, o funcionamento dos dois mensageiros; entenda-os e confie no anjo da justiça. mas mantenha-se longe do anjo da iniquidade, porque seu ensinamento é o mal em todas perspectivas. Pois mesmo se houver uma pessoa de fé, e um pensamento deste anjo penetrar em seu coração, é inevitável que aquele homem ou mulher cometerá algum pecado. Todavia, temos uma pessoa extremamente pecadora, homem ou mulher, será necessário que este faça algo bom. Vês assim que é bom seguir o anjo da justiça e evitar o anjo da maldade. Este mandamento explica coisas sobre a fé para que possas confiar nos trabalhos do mensageiro da justiça, e para que, fazendo estes trabalhos, possas viver para Deus. Mas acredite que os trabalhos do mensageiro do mal são perigosos, para que não os fazendo, possas viver para Deus.”
Hermas, Carta do Pastor, VI Mandamento
A Carta (ou Evangelho) do Pastor foi escrita por volta de meados do II século e traz em seus primeiros capítulos a questão dos “Dois Caminhos” (cf. Mt 7:13,14 e Lc 12:23-5), um tema recorrente em obras do período, como a Didaqué e Epístola de Barnabé. No caso, explana como a influência angélica ou demoníaca poderia desviar os cristãos da retidão. Vale lembrar que essa obra trata o Espírito Santo como algo distinto desses dois tipos de seres espirituais, afinal ele era pré-existente e gerara “toda a criação” ([Hermas, Quinta Parábola]). A identificação dessas influências era crucial para o autor de I João, pois, conforme o conteúdo da epístola dá a entender, sua comunidade enfrentava um cisma, com alguns de seus membros a abandonando após adotarem uma espécie visão docetista quanto à natureza de Jesus.
E atentemos para o fato de que as profecias são feitas por espíritos através dos profetas (hoje chamados de médiuns). Veja-se também que Heldade e Medade recebiam espíritos e profetizavam (Números 11: 24 a 30). “Para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Efésios 1: 17).
Teólogos e autoridades religiosas cristãs, o povo do século XXI já não é mais tão simples
Vejamos o que realmente o livro de Números tem a dizer :
E disse o Senhor a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, que sabes serem anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da congregação, e ali estejam contigo. Então eu descerei e ali falarei contigo, e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que tu não a leves sozinho.
(…)
E saiu Moisés, e falou as palavras do Senhor ao povo, e ajuntou setenta homens dos anciãos do povo e os pôs ao redor da tenda.
Então o Senhor desceu na nuvem, e lhe falou; e, tirando do espírito, que estava sobre ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; e aconteceu que, quando o espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas depois nunca mais.Porém no arraial ficaram dois homens; o nome de um era Eldade, e do outro Medade; e repousou sobre eles o espírito (porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram à tenda), e profetizavam no arraial.
Então correu um moço e anunciou a Moisés e disse: Eldade e Medade profetizam no arraial.
E Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus jovens escolhidos, respondeu e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-lho.
Porém, Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e que o Senhor pusesse o seu espírito sobre ele!Nm 11:16-7, 24-9
Assim está escrito: “e tirarei do espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles”. Isso está muito mais próximo da ideia de espírito como uma “forma de poder” que foi, no episódio descrito, partilhada, do que consciências do além incorporando em mortais. Chamar Eldade, Medade ou os demais anciãos de “médiuns”, no sentido moderno da palavra, é focar-se na semelhanças do efeito produzido com o das incorporações mediúnicas e esquecer-se das diferenças entre as causas. A passagem de Efésios vai pelo mesmo caminho.
Por fim:
Reformem, pois, enquanto é tempo, as doutrinas cristãs, responsáveis pela crise de pouca fé da maioria dos cristãos e de muita expansão do materialismo!
Que se reforme urgentemente a Intelligentsia espírita, pois a que está aí tem uma terrível tendência para olhar o passado com os olhos do (seu) presente e, assim, enxergar aquilo que quer ver. Que ao menos um dia ela abra algum exemplar da Septuaginta ou da Vulgata para conferir se as informações bombásticas que repassam se elevam ao menos um pouco acima do quilate de um boato.
O Julgamento Final
Marten de Vos: O Juízo Final
Embora o assunto deste não tenha exatamente a ver com o Espírito Santo, gostaria de comentá-lo por envolver o uso do artigo grego. Trata-se de um recorrente versículo utilizado pelos cristãos tradicionais contra os argumentos em prol da reencarnação na Bíblia:
E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo. Assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam.
Hb 9:27-8
De tão batida, essa passagem já ganhou várias análises e tentativas de refutação por parte de apologistas. Eis uma tanto abrangente em seus comentários:
Esta passagem é a mais citada pelos opositores como prova de que a Reencarnação não existe.
No entanto, esta afirmativa de modo algum nega ou invalida o princípio da Reencarnação, pois realmente o nosso corpo (este que o nosso espírito anima agora) só morre uma vez. O corpo muda a cada Reencarnação, o espírito, no entanto, permanece o mesmo em vários corpos, que morrem a cada nova existência, até atingirem a perfeição.
Ressaltamos, ainda, que Paulo não disse que o “homem deve viver uma só vez”. Ele não poderia se opor ao nascer de novo já decretado por Cristo no seu diálogo com Nicodemos em João Capítulo 3. E também não se oporia ao Apocalipse, capítulo 2:11 e 20:6 (Veja capítulo XVII), onde Ele fala na “segunda morte”, o que nos obriga, automaticamente, a concluir sobre a necessidade de um “segundo nascimento”. Lembre ainda que Paulo diz que depois da morte vem “um julgamento” e não “o julgamento”, que seria único e para todos de uma vez. Conclui-se que Paulo fala de um julgamento após cada morte.
Na verdade, neste planeta quem só encarnou uma vez e necessitou morrer também uma só vez foi o Cristo que já não possuía débitos e tinha sua evolução espiritual totalmente atingida e é a quem Paulo se refere, realmente, nesta passagem. Nós, no entanto, devido aos nossos débitos e defeitos, necessitamos reencarnar e passar pela morte física muitas vezes. O Cristo neste planeta só encarnou uma vez e consequentemente só morreu uma vez.
Observe, ainda, no texto, Paulo afirmando que, depois da morte, vem um julgamento, estando de pleno acordo com o princípio da Reencarnação, como nos mostra a Doutrina Espírita. Após a desencarnação, vem o balanço do emprego que fizemos de nossa existência na última encarnação. Após este julgamento, vem a necessidade ou não de volta à vida material.
Veja no Evangelho de João 5:28-30, onde Jesus nos informa que há realmente um julgamento, após a morte, e que indica a necessidade de escolha de uma nova etapa.
Há ainda os que afirmam ser a morte física uma consequência do pecado, (I Cor. 15:56) o que acaba sendo uma incoerência, pois o Cristo não tinha pecado e no entanto morreu fisicamente.
É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.
Na verdade, a condição de morrer uma só vez é aplicada muito bem ao Cristo que não tinha erros e faltas a expiar, pois era um espírito com plenitude evolutiva. Quanto a nós, pobres criaturas em busca de um reencontro com Deus, temos, na verdade, que morrer e renascer muitas vezes.
Severino Celestino da Silva, Analisando as Traduções Bíblicas, 4ªed., cap. XXIII, pp. 315-6 (grifos no original).
Bem, primeiramente, vamos destrinchar o que é o livro Hebreus do Novo Testamento, qual sua mensagem, para daí entender qual era visão teológica de seu autor quanto a morte, em vez de ficar lhe imputando opiniões de outros livros bíblicos ou, pior, de religiões modernas. Embora seja comumente chamado de “Carta” ou “Epístola aos Hebreus”, ele carece da estrutura de uma carta a dar instruções sobre questões que aflijam a comunidade ou tecer agradecimentos. Em linhas gerais, ele começa como um tratado, evolui para uma sermão e só mais perto o fim se assemelha a uma carta. A autoria, é bom que se saiba, é desconhecida. A tradição cristã a atribui a Paulo, mas isso é posto em dúvida desde a Antiguidade e hoje há consenso de que ele não a escreveu. Assim, Hebreus é uma peça ímpar dentro no Novo Testamento, não cabendo a priori relacioná-la com as cartas de Paulo ou supostos livros que ele tenha lido.
O público para o qual Hebreus se destina se constituía de cristãos a sofrer algum tipo de perseguição (Hb 10:34-6) e, em razão disso, alguns estavam tentados a se converter (ou voltar) ao judaísmo, que gozava de proteção legal. Assim, seu anônimo autor admoesta seu público a permanecer firme na fé, pois o cristianismo seria o ápice de todas as realizações e promessas do judaísmo. Ameaças à parte, é feita uma série de comparações para justificar tal superioridade:
- Cristo é superior aos profetas (Hb 1:1-3);
- Cristo é superior aos anjos (Hb 1:4-11, 2:5-18);
- Cristo é superior a Moisés (Hb 3:1-6);
- Cristo é superior a Josué (Hb 4:1-11);
- Cristo é superior ao sacerdócio judaico (Hb 4:14-5:10; 7:1-29);
- Cristo é ministro de uma Aliança superior (Hb 8:1-13);
- Cristo é ministro em um Tabernáculo superior (Hb 9:1-28);
- Cristo constitui por si mesmo um sacrifício superior (Hb 10:1-18).
A passagem em questão se situa bem na fronteira entre os dois últimos itens. O tabernáculo em que Jesus ministrou era superior por estar no céu, em vez de sua contraparte terrena, feita por homens. Além disso, o sacrifício não foi feito com coisas terrenas, como o sangue de animais, mas com algo celestial: o próprio Jesus Cristo. A consequência dessa superioridade era que o sacrifício de Jesus foi único e redentor de uma vez por todas, ao passo que os dos sacerdotes precisam ser repetidos periodicamente. Nesse contraste entre ministérios é que a unicidade do sacrifício de Jesus foi comparada à da morte de cada indivíduo.
O questionamento principal do apologista é que, a rigor, o texto grego de Hb 9:27 não consta o artigo – μετα δε τουτο κρισις -, que seria literalmente traduzido por “e, após isto, (um) juízo”. Como já explanado, a presença do artigo estabelece a definição; em sua ausência, o substantivo pode ser definido ou não, e só contexto pode sanar a dúvida. Versões inglesas, como a American Standard Version, mantêm a palavra judgment anartra, indicando um caráter qualitativo para seus tradutores. Em português isso soaria um tanto estranho, pendido algum tipo de artigo. Qual empregar em “juízo” (κρισις) dependerá de como o autor de hebreus o quantificava. Uma pista foi dada alguns capítulos antes:
Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno [κριματος αιωνιου].
Hb 6:1,2
Embora aqui se use uma palavra diferente (κριμα), em ambos os versículos vale a tradução “julgamento”, “juízo” ou “condenação”. O chamativo, aqui, é o adjetivo que a acompanha – αιωνιος – que pode significar “eterno”, “para sempre”, “sem fim” ou “duradouro por uma era [αιων]”. O único significado que talvez permitisse um novo julgamento seria o último, ainda que numa era distinta. Vejamos, então, qual uso o anônimo autor de Hebreus lhe deu em outros versículos:
E, sendo ele consumado, veio a ser a causa da eterna [αιωνιου] salvação para todos os que lhe obedecem; (5:9)
Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna [αιωνιαν] redenção. (9:12)
E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna [αιωνιου]. (9:15)
Ora, o Deus de paz, que pelo sangue da aliança eterna [αιωνιου] tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, (13:20)
Dada a determinação do autor em mostrar a superioridade do cristianismo, fica difícil conceber a oferta de uma salvação/herança/aliança limitada no tempo; portanto, “eterno” é a melhor tradução para αιωνιος e, por conseguinte, ele também cria na danação eterna. O juízo seria único.
Outro apologista espírita, ao contrário de seu confradre, percebeu que as coisas não eram tão simples assim, em razão da vinculação o sacrifício de Jesus com a morte única:
A outra parte do homem morto é a do seu espírito imortal, que apenas se separa do seu corpo que morre, e vai para o mundo espiritual, onde descansa da vida do corpo terrena, enquanto que aguarda a volta a um novo corpo, formando, assim, um novo homem que está predestinado a, um dia, morrer novamente, mas como sempre, somente uma vez só. Depois da morte de cada homem, seu espírito passa por um julgamento para que vá colhendo temporariamente o que semeou. Mas esse julgamento não é definitivo, pois, no fim dos tempos, os espíritos terão o juízo final de suas faltas, nas várias reencarnações, com a simbólica separação do joio do trigo.
“E como todo homem está destinado a morrer uma só vez, depois do que haverá o julgamento, assim também Cristo se ofereceu uma só vez para tirar os pecados de muitos homens. Ele aparecerá uma segunda vez, sem relação alguma com o pecado aos que o esperam, para lhes dar a salvação” (Hebreus 9: 27). O que o autor, muito ligado às ideias de sacrifícios do Velho Testamento, quer acentuar é que a única morte de Jesus na cruz, como a de todo homem, que é também uma só, foi tão importante como sacrifício de morte, que não há mais necessidade de outros sacrifícios de morte de mais nenhum outro ser para resgatar pecados como pensavam os judeus. O texto, como se vê, não tem mesmo nenhuma relação com a reencarnação, mas tão somente com a eficácia da morte única de Jesus para o resgate dos pecados.
J.R. Chaves; Hebreus 9:27 é um abuso de interpretação contra a reencarnação, Jornal O Tempo, Belo Horizonte – MG, 16/09/2013.
A memória do Segundo Templo e seus sacrifícios ainda estava fresca, portanto não há o que estranhar quanto aos paralelos. Deve-se concordar, contudo, que o texto bíblico não traga uma relação direta com a reencarnação, nem aparente que isso passasse pela cabeça de seu autor. Até porque não haveria tempo para reencarnar:
Se assim fosse, Cristo precisaria sofrer muitas vezes, desde o começo do mundo. Mas agora ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos [συντελεια των αιωνων], para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo.
Hb 9:26
Bem no versículo anterior ao famigerado hb 9:27, nosso desconhecido autor demonstra que acreditava viver já no fim dos tempos. A reencarnação não fazia parte de sua soteriologia. A constatação disso me obriga a revisar o apelo feito por Celestino:
É realmente muito mal compreendido, para muitos, o sentido de “morrer uma só vez”, no entanto, para nós, o seu significado está muito claro. Faça você a sua análise pessoal, verifique, pesquise e veja que ele não nega a Reencarnação, como mostramos acima na análise dos textos.
Não dá para fazer uma análise pessoal, a menos que se queira produzir uma interpretação pesher, exatamente o que os dois apologistas fizeram. Caso se agisse de modo menos apologético e mais científico, pesquisariam a estrutura literária de Hebreus, quem era o público do autor, qual mensagem queria passar, de quais temas tratou, etc. Enfim, trariam de volta um pouco da pessoa do final do primeiro século da Era Comum, imersa numa expectativa apocalipsista, em vez de alguém que lhes é a própria imagem e semelhança.
Bem, se você está lendo isto aqui, então o mundo – tal como o conhecemos – não acabou ainda, e a ortodoxia cristã teve de lidar com o pós-morte até lá. Nesse aspecto, o cânon que se formou nos séculos II e III não está coerente. Cada seita produz a harmonização necessária para sua doutrina, que vai desde a desde o gozo ou sofrimento logo após a morte ou, conforme outras, uma hibernação até o Dia do Juízo, e até mesmo a aniquilação (“retorno ao pó”) enquanto não é chegada a hora da ressurreição. Tudo depende de um maior ou menor dualismo entre corpo e alma, embora em todas o veredicto já esteja dado após a morte. Apologistas espíritas lidam com tais discrepâncias para desconsiderar os que se valem de Hb 9:27. Por sua vez, a comunidade da Epístola ao Hebreus desconhecia esse cânon, tampouco tinha necessidade de harmonizações: para ela o tempo era curto.
Notas
Para Saber Mais
– Bauckham, Richard; The Qumran Community and the Gospel of John, em The Dead Sea Scrolls: The Dead Sea Scrolls Fifty Years After Their Discovery, ed. Lawrence H. Schiffman, Emanuel Tov and James C. VanderKam, Israel Exploration Society, Jerusalem 2000, p.105-115.
– Bruce, F. F; Holy Spirit in the Qumran Texts, Annual of Leeds University Oriental Society 6 (1966/68): 49-55.
– Comfort, Philip; Encountering the Manuscripts, Broadman & Holdman Publishers, 2005.
– McNamara, Martin; Targum and Testament Revisited, William B. Eerdmans Publishing Company, 2a. ediçfão, 2010.
– Murachco, Henrique;Língua Grega, II Volumes, Vozes, 2a. ed, 2002.
– Jewish Encyclopedia, Holy Espirit, acessado em 10/07/2014
– Porter, Stanley E.; Idioms of the Greek New Testament, Bloomsbury T&T Clark; 2a. ed., 1992
– Read-Heimerdinger, Jenny; The Bezan Text of Acts: A Contribution of Discourse Analysis to Textual Criticism, T & T Clark, 2002.
– Robertson, A.T.; A Grammar of the Greek New Testament – In the Light of Historical Research, Broadman Press, 1934.
– Shapland, C.R.B; As Cartas de Santo Atanásio acerca do Espírito Santo, The Epworth Press, 1951.
– Tatum, W. Barnes; John the Baptist and Jesus – A Report of the Jesus Seminar, Polebridge Press, 1992
– Wallace, Daniel B.; Greek Grammar beyond the Basics, Zondervan, 4a. edição, 1995.
O Critério de Salomão
Índice
- Um Bebê e Suas Duas Mães
- Uma Proposta para Critério
- O que este Critério não é
- Para o que serve, então?
- Quem não passa no Critério
- Quem passa?
- Notas
- Para saber mais
Um Bebê e Suas Duas Mães
Para ler:
Então duas prostitutas vieram ter com o rei e apresentaram-se diante dele. Disse uma das mulheres: “Ó meu senhor! Eu e esta mulher moramos na mesma casa e eu dei à luz junto dela na casa. Três dias depois de eu ter dado à luz, esta mulher também teve uma criança; estávamos juntas e não havia nenhum estranho conosco na casa: somente nós duas. Ora, certa noite morreu o filho desta mulher, pois ela, dormindo, o sufocou. Ela então se levantou, durante a noite, retirou meu filho do meu lado, enquanto tua serva dormia; colocou-o no seu regaço, e no meu regaço pôs seu filho morto. Levantei-me para amamentar meu filho e encontrei-o morto! Mas, de manhã, eu o examinei e constatei que não era o meu filho que eu tinha dado à luz!”
Então a outra mulher disse: “Não é verdade! Meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!” E a outra protestava: “É mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo!” Estavam discutindo assim, diante do rei, que sentenciou: “Uma diz: ‘Meu filho é o que está vivo e o teu é o que está morto!’, e a outra responde: ‘Mentira! Teu filho é o que está morto e o meu é o que está vivo!’ Trazei-me uma espada”, ordenou o rei; e levaram-lhe a espada. E o rei disse: “Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a uma e metade à outra.”
Então a mulher, de quem era o filho vivo, suplicou ao rei, pois suas entranhas se comoveram por causa do filho, dizendo: “Ó meu senhor! Que lhe seja dado então o menino vivo, não o matem de modo nenhum!” Mas a outra dizia: “Ele não seja nem meu nem teu, cortai-o!” Então o rei tomou a palavra e disse: “Dai à primeira mulher a criança viva, não a matem. Pois é ela a sua mãe.”
Todo o Israel soube da sentença que o rei havia dado, e todos lhe demonstraram muito respeito, pois viram que possuía uma sabedoria divina para fazer justiça.
1 Reis 3:16-28
Uma Proposta para Critério
“Você seria capaz de se sabotar em prol de algum bem?”
Foi essa a pedra de toque o famoso rei de Israel usou para distinguir a mãe verdadeira da impostora: somente a primeira seria capaz de tão grande ato de renúncia. Essa história grande parte dos leitores já deve conhecer, seja por leitura da Bíblia ou do “ouvi falar” e de forma alguma venho fazer proselitismo de Javé usando os bons momentos de seus escolhidos. O que tenho em mente é se, por acaso, não seria possível generalizar a “metodologia” de Salomão para avaliar a sinceridade de alguém na busca pelo conhecimento.
Não me considero bom em “lançar moda” – aliás esta seria minha primeira tentativa -, mas ainda assim gostaria de propor um critério para se avaliar a honestidade intelectual dos defensores de alguma tese: eles devem permitir que sua própria pesquisa seja posta em xeque. Para isso, são necessárias, pelo menos, duas coisas:
- Transparência: uma descrição precisa do modus operandi deve ser feita, base de dados deve ser pública e bibliografia bem referenciada.
- Um advogado do diabo: assumir provisoriamente um ponto de vista que não é o seu, como uma teoria rival ou até mesmo uma tentativa refutação, tudo para achar brechas em sua próprias alegações (1);
Se bem satisfeitas essas condições, o resultado será a exibição públicas das fraquezas de seu estudo, mas a verdade por trás dos fatos agradece, seja ela qual for.
[topo]
O que este Critério não é
Para delimitar sua aplicação, gostaria de começar por eliminação, deixando claro o que ele não pode fazer ou ser. Aqui uso seu conceito mais amplo, como o que Salomão intuitivamente adotou, não somente o acadêmico.
- Uma garantia de idoneidade, caso se passe nele: No começo do século XXI, certo deputado brasileiro líder de um partido aliado ao do governo sentiu-se vendido quando o executivo lavou as mãos em um escândalo que envolvia um de seus colegas. Como desforra, denunciou um esquema de corrupção maior ainda, encabeçado pelo partido do próprio governo e no qual ele próprio estava envolvido. Vulgarmente falando, “tacou m* no ventilador”. Se você considerar que moralidade está mais no resultado que nas intenções (i.e., algum grau de utilitarismo), então ele passou no critério, ao menos nesse episódio, pouco importando que não fosse recomendável votar nele;
- Atestado de desonestidade, caso NÃO se passe nele: talvez o leitor tenha algum primo, amigo, vizinho ou conhecido que é bom parceiro, marido, pai e funcionário, mas basta tocar em algum ponto nevrálgico – que pode ser religião, política, sexo, futebol, etc. – para que vire um cão raivoso a defender as posturas mais tacanhas e controvertidas. Justifica (ou minimiza) massacres, relativiza más ações, adota “dois pesos, duas medidas”, faz vista grossa a atos dúbios e daí para baixo. Seria ele hipócrita? Muito provavelmente, não. Apenas mais um exemplo da incrível capacidade humana de compartimentalizar sua moral e continuar vivendo candidamente cheio de contradições. Pode-se comprar sem medo um carro usado dele, mas para certos assuntos é melhor não procurá-lo;
- Garantia que esteja certo: Se você clama aos quatro ventos que não é o dono da verdade e que ninguém é infalível, então quais são suas falhas? Seria uma boa pergunta para uma entrevista de emprego. Adotar o critério seria uma forma de respondê-la e conciliar suas pretensas palavras de humildade com suas atitudes;
- Comprovação de que esteja errado, caso NÃO o siga: Você pode se portar da forma mais arrogante do mundo e ainda calhar de estar do lado certo. Um exemplo clássico foi o livro Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, de Galileu Galilei. Partidário do sistema heliocêntrico de Copérnico, Galileu se animou quando um amigo seu, o cardeal Maffeo Barberini, foi eleito papa, com o título de Urbano VIII. Essa poderia ser a oportunidade para Igreja Católica adotar de vez o novo modelo e abandonar as ideias geocêntricas de Aristóteles e Ptolomeu. Obteve, então, autorização para escrever um livro apresentando os dois sistemas, mas com a condição de deixar o resultado final em aberto, mostrando os prós e contras de cada um de forma equilibrada. Galileu, contudo, não se conteve deu os melhores argumentos para seu modelo preferido e deixou a defesa do sistema geocêntrico a cargo do fraco personagem Simplício, cujo nome diz tudo. Urbano VIII deve ter se sentido bem ultrajado pela petulância de seu pupilo e deixou-lhe aos “cuidados” do Santo Ofício (2). O já idoso astrônomo teve de se retratar de forma humilhante e passou seus últimos dias em prisão domiciliar. Acontece que ele estava certo… Bem hoje nós o sabemos, mas àquela o sistema geocêntrico ainda não caducara por completo e o heliocêntrico ainda tinha vários furos (3). Galileu não passaria no critério, ainda que sua premissa para o funcionamento do sistema solar estivesse correta.
- Demonstração de ausência de viés: o viés é como o sotaque: se alguém fala sem sotaque (viés) é porque o sotaque (viés) dele é igual ao seu. Qualquer pessoa sempre possuirá uma opinião preferida sobre algum assunto (não ter posicionamento definido também é uma opinião) e, mesmo que reconheça as limitações dela, tenderá a protegê-la de algum modo. O que o critério vem propor é dar um pouco de ética ao viés, colocando limites na ambição de protegê-lo (4).
Para o que serve, então?
Existe uma receita simples para produzir uma nova pseudociência:
- Tenha um ideia preconcebida de como a Natureza de comporta;
- Reúna tudo que corroborar sua tese;
- Desconsidere tudo que for contrário a ela;
- Repita o processo a partir do nº 2.
Os criacionistas, principalmente os adeptos da “Terra Jovem”, são peritos nessa arte. De forma alguma ela é exclusiva deles, apenas a praticam de forma indecente de escancarada, e na prática, qualquer grupo pseudocientífico se vale dela: astrólogos selecionam previsões mais certeiras, viúvas de Stalin e crias de Mao relevam a morte de milhões como um mal necessário para se chegar ao verdadeiro socialismo, e analistas de risco simplificam o mundo para que ele caiba em sua matemática. Qualquer tentativa de debate
com gente desse tipo é inútil porque eles já têm a resposta e tudo que disser será filtrado, distorcido, corrompido ou descartado.
Agora, se você encontrar alguém que passe pelo critério e, por acaso, ele também te considere aprovado, então há condições suficientes (5) para que algo realmente auspicioso surja de uma troca de ideias entre vocês, pois nenhum debate tem condições de inovar se ninguém arreda pé. Isso seria uma briga de torcidas, tão comuns no meio virtual. Melhor deixar esses “torcedores” em seus cercadinhos ideológicos, a lançar flechas sobre seus anteparos preferidos para só depois pintar o alvo em volta.
Quem não passa no Critério
Segue uma lista não exaustiva de indivíduos ou grupos cuja chance de autocrítica, por razões diversas, tende a zero.
- Literalistas bíblicos: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). Acontece que a própria verdade está na Bíblia e, o mais restritivo ainda, no próprio Jesus (cf. Jo 14:6). Assim, qualquer coisa que conflite com as Escrituras é, por definição, falsa. Seria um exagero afirmar que cada seita cristã moderna tem sua própria verdade, pois, mesmo com toda a diversidade, os protestantes, vistos de longe, lembram mais variações de um mesmo tema se que diferem sobre questões em aberto ou passíveis de reinterpretação, mas cada fiel ainda consegue se diferenciar do mundano “homem natural”. Os católicos possuem um grau extra de liberdade intelectual ao aceitarem, além da Escritura, a “Tradição” (oral e escrita), que permitiu sua doutrina constantemente evoluir, embora lentamente;
- Allan Kardec: apesar de incorporar boa parte dos modismos intelectuais de sua época, Kardec peca pela falta de transparência. Sabe-se, em linhas gerais, como ele trabalhava, o princípio do Consenso Universal dos Espíritos, etc., mas qual era a base dados que ele tinha, afinal? Há trabalhos com médiuns (ou psíquicos) já atuantes na Era Vitoriana que são muito melhor documentados que a Codificação (6), como a Sra. Piper;
- Ortodoxia Espírita: caso Kardec estivesse vivo hoje, ele seria kardecista? Se repararmos bem, Kardec deu mostras de mudar certas opiniões ao longo da carreira(7), mas um belo dia ele se foi, como todo mortal. Ninguém pode alterar o que ele já escreveu, óbvio, mas o quanto ainda é válido hoje? Ninguém aprende Química pela obra de Lavoisier, Física pelos Principia Mathematica (8), nem Teoria da Evolução com Darwin. São clássicos que muitos professores exibem orgulhosos em suas estantes, buscam citações e inspiração, mas não criam apostilas com eles, porque há muito estão defasados. Entretanto, se a Codificação virou um cânon fechado, então passou a progressivamente padecer dos males do literalismo bíblico. Há que sugira que notas de rodapé bastariam, mas a quantidade delas tende a aumentar com tempo, o que pode tornar o panorama a longo prazo um tanto incômodo, além de não sanarem as questões em que a Codificação é omissa e que a literatura mediúnica não tem o mesmo status para resolver. Fazer um terceiro Livro dos Espíritos, com mais abrangência e transparência, e deixar os de Kardec no pedestal de honra seria uma solução, mas quem se habilita e que preço pagará? Por outro lado, os que mais protegem a imutabilidade de Codificação (9) acabam por matar seu espírito original (com o perdão do trocadilho);
- CSI: Não é daquela série policial que estamos falando, mas do Committee for Skeptical Inquiry (“Comitê para Investigação Cética”). Fundado em 1976 por Paul Kurtz (10) e contando com a participação de cientistas renomados, filósofos e até algumas “celebridades céticas” (como James Randi e Carl Sagan), o CSI pegou a crista da onda do misticismo barato trazido pelos newagers da contracultura, procurando dar uma “ducha de água fria” nos esotéricos, ufólatras ou autoproclamados paranormais, seja na grade mídia ou por meio de seu periódico Skeptical Inquirer. O problema foi que, no afã de combater a pseudociência, a atitude do CSI prejudica a pesquisa genuína de fenômenos ainda inexplicados por causar preconceito, medo do ridículo e falta de verbas aos cientistas realmente sérios e interessados nesses fenômenos. De certa forma, por vezes seus membros se mostram mais como “inquisitores” do que verdadeiros “inquiridores” (11);
- Ideólogos político-econômicos: temo muito os que têm pretensão de santidade, pois não há grau de pureza que os satisfaça. Se eles têm na mão um poder decisão que afeta milhões e uma ideologia inflexível na cabeça, é apenas uma questão de tempo para uma tragédia ocorrer. Impérios teocráticos que o digam. O que muitos não percebem, contudo, é a existência de “religiões seculares”, cujos adeptos não captaram muito bem o espírito libertador de seus “gurus”. É o que notadamente ocorre no campo conhecido como “Economia Política”. Em se tratando do grau de intervenção estatal na sociedade, um extremo abriga o liberalismo, cujo louvor da livre iniciativa como motor do progresso geral – por mais egoísta que fossem os motivos dos indivíduos – acabou por creditar uma quase onipotência aos mercados. No outro lado, encontra-se o dirigismo socialista, com sua crença que um punhado de comissários – assessorados (ou não) pelos técnicos certos – é capaz de decidir o que é melhor para nós, em todas as esferas da vida. Cada extremo produziu suas próprias tragédias, mas seus adeptos jamais as reconhecerão (12). Afinal, já que a culpa foi deles, colocam-na em quem quiser;
- Psicanalistas: polêmicas desde o começo, as teses de Sigmund Freud não incomodam mais pelo forte papel que dão impulso sexual, mas porque não mais o destrincham tanto como suas irmãs de estudo da mente humana. Nascida na virada dos século XIX para o XX, teve por base as observações clínicas do Dr. Freud para a elaboração de uma “teoria da mente” e, até aí, foi mais uma “ciência de observação” positivista, ao estilo do que Espiritismo se propunha originalmente. Acontece que o tempo passou e, de certa forma, a psicanálise começou a padecer de uma dificuldade em comum com Espiritismo: ficou centrada demais na obra na pessoa de seu fundador. Freud até revisou alguns pontos seus, mas, como todo bom mortal, faleceu um belo dia e ninguém pôde a mudar uma vírgula sequer depois. Ou melhor, surgiram “dissidentes” a propor formas alternativas de terapia em um ou outro aspecto e as discussões no meio psicanalítico ganharam ares de rixas entre seitas (13). Enquanto isso, a neurologia, a psiquiatria e outros ramos da psicologia avançaram por contra própria e por vezes discordaram do Doutor (14). As respostas aos desafios muitas vezes vieram na forma de pesada retórica, como se a psicanálise justificasse a si mesma (15). Mas, afinal, ela uma ciência? Vai depender de qual critério se use. O filósofo da Ciência Karl Popper a colocou ao lado da astrologia e do marxismo em termos de cientificidade (16). Outros filósofos seriam mais gentis, mas não muito (17). Os profissionais, em defesa própria, podem desfilar exemplos de cura como prova de eficácia (18), só não garantem se alcançaram o resultado devido à teoria que advogam ou por serem bons e perspicazes ouvintes, além de sugestivos conselheiros (19). Ao menos, a teoria psicanalítica serve de filosofia (20) e literatura (Freud tinha boa prosa), mas tome cuidado ao argumentar com um adepto dela: você pode descobrir que é sexualmente frustrado (21).
Pausa para pedradas.
Será que sobrou alguém?
[topo]
Quem passa?
O livro de Gênesis traz uma impressionante “barganha” feita pelo patriarca Abraão:
Disse mais o Senhor: Porquanto o clamor de Sodoma e Gomorra se tem multiplicado, e porquanto o seu pecado se tem agravado muito,
Descerei agora, e verei se com efeito têm praticado segundo o seu clamor, que é vindo até mim; e se não, sabê-lo-ei.
Então viraram aqueles homens os rostos dali, e foram-se para Sodoma; mas Abraão ficou ainda em pé diante da face do Senhor.
E chegou-se Abraão, dizendo: Destruirás também o justo com o ímpio?
Se porventura houver cinquenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinquenta justos que estão dentro dela?
Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?
Então disse o Senhor: Se eu em Sodoma achar cinquenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles.
E respondeu Abraão dizendo: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza.
Se porventura de cinquenta justos faltarem cinco, destruirás por aqueles cinco toda a cidade? E disse: Não a destruirei, se eu achar ali quarenta e cinco.
E continuou ainda a falar-lhe, e disse: Se porventura se acharem ali quarenta? E disse: Não o farei por amor dos quarenta.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, se eu ainda falar: Se porventura se acharem ali trinta? E disse: Não o farei se achar ali trinta.
E disse: Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor: Se porventura se acharem ali vinte? E disse: Não a destruirei por amor dos vinte.
Disse mais: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez.
E retirou-se o Senhor, quando acabou de falar a Abraão; e Abraão tornou-se ao seu lugar.Gn 18:20-33
Mas nem dez Abraão achou e as cidades foram destruídas. O máximo que pôde fazer foi alertar seu sobrinho Ló e sua família para que partissem de lá.
Não estou dizendo que não haja ninguém que siga o critério e, muito menos que algo será destruído. Reconheço que não fiz nenhuma busca em profundidade e que o impulso mais natural do ser humano é violar o critério. Contudo, um nome eu gostaria de assinalar pois ele (I) se destaca da massa e (II) foi muito criticado justamente por seguir o critério:
Dr. Ian Stevenson (1918 – 2007)
Notas
(1) A título de curiosidade, o Promotor da Fé (vulgo, “Advogado do Diabo”) foi uma figura criada pela Contrarreforma e seu papel era o de questionar o caráter em vida do candidato a santo (ou beato) ou a veracidade (e inexplicabilidade) dos milagres atribuídos a ele, em oposição ao Promotor da Causa (ou “Advogado de Deus”). Essas funções foram, na prática, extintas durante o pontificado de João Paulo II, o que resultou numa profusão de canonizações. [voltar]
(2) Que a Igreja Católica tem seu quinhão de pecados, não se discute. Contudo o episódio de Galileu não está entre eles. Ele é, sem dúvida, uma das maiores injustiças que evangélicos, ateus militantes e espiritualistas e outros anticlericais têm lhe imposto, pois, longe de ser uma prova de ser uma prova de obscurantismo, ele é uma demonstração de como a Ciência da época ainda dependia muito de relações de patronagem. O fato foi que Galileu traiu a confiança de um amigo e protetor, que reagiu com fúria. Tivesse ele sido um pouco menos “gaiato”, poderia continuar a ter debates proveitosos (embora tensos) com intelectuais acerca dos “Dois Sistemas do Mundo”, muitos deles clérigos ou tão devotos quanto ele. Já existe considerável literatura erudita e popular que desfaz esse mito (cf. [Gould, cap. II, pp. 61-4], [Letin, cap. IV], [Nantes, pp. 65-83] e [Woods, cap. V, pp. 68-76]), assim como ainda há muita gente a insistir nele. [voltar]
(3) O modelo geocêntrico de Ptolomeu estipulava que a trajetória dos planetas seria uma composição de dois movimentos circulares. O primeiro e maior, chamado de deferente, seria descrito em torno do centro do sistema solar e o segundo, chamado de epiciclo era descrito em torno de um posição fictícia (ou hipotética “esfera de cristal”) que, por sua vez, percorreria o deferente. Isso era uma forma de explicar porque os planetas ora avançavam para, em seguida, diminuir sua velocidade até inverter o sentido do movimento e, por fim, retomar a direção original ao realizar um pequeno “laço”.
Em princípio, o sistema ptolomaico até não era tão complicado assim, porém, sucessivos refinamentos posteriores ao sistema levaram a um aumento de sua complexidade com introdução de epiciclos de epiciclos, não só para conformá-lo melhor às observações, mas também ao princípio aristotélico de que só o movimento uniformemente circular era autossustendado (Ptolomeu aceitava órbitas excêntricas e de velocidade variável em relação o centro do deferente).
Já no Renascimento, Nicolau Copérnico propôs colocar a Terra no centro do universo como uma forma de resolver uma complicação que modelo de Ptolomeu já tinha desde o berço [Aaboe, cap. II, p. 111]: os cálculos para os epiciclos dos planetas interiores (Mercúrio e Vênus, que teriam órbitas menores que a do Sol) eram diferentes dos exteriores (Marte, Júpiter e Saturno). Colocando o Sol no centro e a Terra entre esses dois grupos, isso se tornava uma consequência do movimento relativo entre eles, ao passo que no modelo de Ptolomeu era algo arbitrário. O modelo de Copérnico, contudo, não abria mão dos epiciclos e ainda tinha dificuldades extras a explicar, como o fato de os objetos em queda não ficarem para trás conforme a Terra girasse ou a ausência de alteração na posição das estrelas ao longo do ano.
Por essas razões sua aceitação não foi tão rápida assim. Para acelerar esse processo, Galileu difundiu descobertas suas feitas com a luneta astronômica e que corroborariam seu modelo preferido: a descoberta dos quatro maiores satélites de Júpiter e de que o planeta Vênus possuía fases, como a Lua. Além disso, sua elaboração do “princípio de inércia” justificava porque os corpos acompanhavam a Terra em seu deslocamento.
Entretanto isso não era suficiente: o fato de Vênus girar em torno do Sol não impedia que o Sol, por sua vez, continuasse a girar em torno da Terra. O mesmo raciocínio serve para Júpiter e seus satélites. De fato, um contemporâneo seu – Tycho Brahe – concebeu um sistema geo-heliocêntrico com a Terra ao centro, a Lua e o Sol a orbitando diretamente, e todos os outros planetas girando em torno dele.
Sistema cosmológico de Tycho Brahe. Fonte: Observatório Nacional
O sistema de Tycho Brahe era matematicamente equivalente ao de Copérnico e ainda tinha a vantagem de não precisar responder à aparente ausência de uma modificação cíclica no posicionamento das estrelas ao longo do ano (paralaxe estelar), só confirmada em 1727. Os proponentes do heliocentrismo alegavam que a “esfera das estrelas” estaria muito mais afastada que as demais e, por isso, imperceptível. Embora a essência desse raciocínio se revelasse correta no futuro, à época era apenas uma hipótese ad hoc inverificável e não muito intuitiva.
Embora tivesse rompido com a tradição aristotélica em muitos pontos, Galileu ateve-se a ela em outros. Por exemplo, insistiu nas órbitas circulares, cêntricas e de velocidade constante para os corpos celestes, o que prejudicava a concordância do modelo com as observações. Galileu, inclusive, trocou correspondência com o astrônomo Johannes Kepler – antigo colaborador de Brahe em medições astronômicas e que aperfeiçoara o modelo heliocêntrico estipulando órbitas elípticas e velocidade variável -, mas o ignorou solenemente.[voltar]
(4)Uma anedota sobre o filósofo e matemático Bertrand Russell diz que, certa vez, quando perguntado se morreria por suas crenças, ele prontamente respondeu: “Claro que não. Afinal de contas, posso estar errado”. Também apresentada na forma de um aforismo: “nunca morreria por minhas crenças porque posso estar errado”. Não consegui encontrar a origem dela e vários outros também não. Até mesmo a Wikipedia a classifica como “em disputa”. Apócrifa ou não, essa história representa bem a ideia passada aqui. [voltar]
(5) Repare bem: a conformidade com o critério por ambas as partes é uma condição suficiente para um diálogo produtivo. Em instante algum é dito que ela é uma condição necessária e muito menos “necessária e suficiente”. Até mesmo de arranca-rabos pode-se extrair algo de bom, inclusive o que não fazer. [voltar]
(6) Nas andanças pela internet, encontrei o artigo O Dossiê Canuto Abreu, que traz algumas informações curiosas:
Escreveu Carlos de Brito Imbassahy, sob o título “Dr. Canuto de Abreu” (“Mundo Espírita”, PR, de 31.08.1980): “Os tempos se passam”. Indo a São Paulo em companhia do Olympio (que fazia vez de meu irmão), e da esposa, fomos almoçar com o Dr. Canuto de Abreu; nesta tarde, ele nos leva para os seus arquivos particulares e nos mostra um “dossier” contando-nos a história.
“Estava na França pouco antes de estourar a Guerra de 1939 quando, intempestivamente, fui procurado por dois cidadãos que se apresentaram e se disseram que ali estavam por ordem espiritual. Os cidadãos haviam recebido instrução de seus guias que deveria vir do Brasil uma determinada pessoa em tais circunstâncias que coincidiam exatamente com as minhas (dizia o Dr. Canuto) e que a esse cidadão deveriam ser entregues os arquivos particulares do próprio Allan Kardec, pois a Europa iria passar uma fase conturbada de guerra e, se esses documentos fossem encontrados, seriam destruídos”.
Ali estava, diante de mim e de Olympio, a letrinha de Kardec, suas opiniões e um envelope “confidencial-não pode ser publicado”. Mostrou-me seu conteúdo dizendo:
“Gostaria de doar este acervo à Federação Espírita Brasileira, mas ela é roustainguista e, na certa, não vai admitir que seja ela própria a portadora de documentos que condenam “Os Quatro Evangelhos” (de Roustaing!).
Disse isso e mostrou-me duas cartas manuscritas onde, por cima, lia-se:
“Carta enviada ao senhor João Batista Roustaing, cartas essas que são um libelo terrível, no qual acusa o “colega” de controverter a ordem doutrinária, deixando-se envolver por mistificadores cujo único objetivo era desmoralizar o sistema de comunicação com os mortos.”
E prossegue:
Jamil Salomão (CF [Correio Fraterno] do ABC, janeiro/1990) escreveu, sob o título “J. B. Roustaing, o Judas do Espiritismo”:
“Esta afirmativa é atribuída a Allan Kardec”, feita em uma carta endereçada ao insigne escritor Léon Denis, cujo próprio original se encontra em poder do Dr. Canuto de Abreu, conhecido intelectual e espírita da capital de São Paulo, que possuía farto material que pertencia a Kardec. Numa Visita fraterna ao Dr. Canuto, pelos idos de 1974, em companhia do Dr. Freitas Nobre e da médica Dra. Marlene Severino Nobre, ouvimos essas revelações surpreendentes, pois desconhecíamos a existência de um documento de tal importância. Imediatamente foi solicitado ao Dr. Canuto de Abreu permissão para a divulgar o material, bem como obter cópia do mesmo, a fim de ser noticiado no jornal “A Folha Espírita”, que estava sendo lançado naquela época, como o primeiro jornal espírita a ser colocado nas bancas públicas e com distribuição nacional. O Dr. Canuto se mostrou temeroso, não permitindo a divulgação da carta de Kardec, na qual atribuía a Roustaing a condição de traidor dos postulados espíritas, ao lançar “Os Quatro Evangelhos”, atribuindo-lhes o título de “Revelação da Revelação”, o que poderia ser motivo de uma cisão no movimento espírita.”(…)
A que o articulista acrescentou:
Comentário: Quanto ao escrúpulo do Dr. Canuto de Abreu, e agora de seus familiares, em não dar publicidade às cartas de Allan Kardec contra Roustaing, ocorre-nos lembrar à distinta família que, se o plano espiritual se preocupou com a preservação dos documentos de Kardec, incluídas as referidas cartas, não foi para que elas permanecessem desconhecidas do público espírita. É óbvio, caso contrário os espíritos deixariam que tais documentos fossem destruídos pelos invasores alemães, como estava previsto. Com essa atitude, a nosso ver, equivocada, da respeitável família Canuto de Abreu, apenas se exumaram, em Paris, as cartas de Allan Kardec para dar lhes nova sepultura, no Brasil. E perguntamos: Para que? Consultando sobre o paradeiro dessas cartas, informou Carlos de Brito Imbassahy que conforme lhe disseram, elas estariam em poder de um neto do Dr. Canuto de Abreu. Fazemos este apelo a quem guarde estas cartas de Allan Kardec: que as entregue para divulgação, a um jornal de grande circulação, “Correio Fraterno do ABC” ou “Jornal Espírita”, a meu ver, os mais credenciados para dar-lhes publicidade.
Só com isso não dá para saber o quanto esse material dos primórdios da codificação seria elucidativo sobre a metodologia do Codificador. O que se pode dizer é que, enquanto inacessível ao público, ele tem o mesmo valor de um tesouro no fundo do mar: nenhum. [voltar]
(7) Por exemplo: as mudanças ocorridas entre a primeira e segunda edição de O Livro dos Espíritos e a considerável mudança de opinião de Kardec quanto à evolução biológica, ao longo da Codificação. Compare o que ele diz no capítulo III de O Livro dos Espíritos
A diversidade das raças humanas vem ainda em apoio desta opinião. O clima e os hábitos produzem, sem dúvida, modificações das características físicas, mas sabe-se até onde pode chegar a influência dessas causas, e o exame fisiológico prova a existência, entre algumas raças, de diferenças constitucionais mais profundas que as produzidas pelo clima. O cruzamento de raças produz os tipos intermediários; tende a superar os caracteres extremos, mas não cria estes, produzindo apenas as variedades. Ora, para que tivesse havido cruzamento de raças, era necessário que houvesse raças distintas, e como explicarmos a sua existência, dando-lhes um tronco comum e sobretudo tão próximo? Como admitir que, em alguns séculos, certos descendentes de Noé se tivessem transformado a ponto de produzirem a raça etiópica, por exemplo?
Uma tal metamorfose não é mais admissível que a hipótese de um tronco comum para o lobo e a ovelha, o elefante e o pulgão, a ave e o peixe. Ainda uma vez, nada poderia prevalecer contra a evidência dos fatos.
Seção VI -“Considerações e Concordâncias Bíblicas Referentes à Criação”, q. 59
Com o que aparece em A Gênese
Se os seres orgânicos complexos não se produzem dessa maneira, quem sabe como eles começaram? Quem conhece o segredo de todas as transformações? Quando se vê o carvalho e a bolota (de onde ele nasce), quem pode afirmar que não existe um elo misterioso entre o pólipo e o elefante?
Cap. X, 23.
(8) Embora tenha sido um dos criadores da Análise matemática (a que chamava de “método das fluxões”), Issac Newton não o utilizou em seu colossal Principia Mathematica. Talvez pelo método ainda ser novidade e por ele mesmo ainda estar em disputa pela primazia da descoberta com o matemático alemão Leibniz, Newton adotou métodos de resolução geométricos que remontam aos antigos gregos, mas que não eram questionados. O resultado final foi um livro bem indigesto. [voltar]
(9) Alô, GAE. [voltar]
(10) Originalmente denominado Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (“Comitê para a Investigação Científica de Alegações do Paranormal”), suas inicias (CSICOP) constituíam uma espécie de acrônimo com a mesma pronúncia inglesa que Sci Cop, algo como “polícia da Ciência”. [voltar]
(11) Nas próprias palavras de Carl Sagan:
(…)Aqueles que são alvos das análises da CSICOP formulam às vezes exatamente esta queixa: ela é hostil a toda nova ideia, dizem, chega às raias do absurdo com seu desmarascamento previsível, é uma organização de vigilância, uma Nova Inquisição, e assim por diante.
A CSICOP é [grifo do autor] imperfeita. Em alguns casos, essa crítica é em certa medida justificada. Mas, de meu ponto de vista, ela desempenha uma função social importante – como uma organização bem conhecida que a mídia pode recorrer quando deseja escutar o outro lado da história, especialmente quanto uma afirmação surpreendente da pseudociência é considerada digna de ser notificada. A regra era (e para grande parte da mídia global ainda é) que todo guru levitador, todo visitante alienígena, todo canalizador e todo aquele que cura pela fé fosse tratado de forma superficial e acrítica. Não havia memória institucional no estúdio de televisão, nos jornais ou nas revistas sobre alegações semelhantes já desmascaradas como fraudes e logos. Embora ainda não seja uma voz bastante forte, a CSICOP representa um contrapeso à credulidade da pseudociência, que parece ser uma segunda natureza de grande parte da mídia.
[Sagan, cap. XVII, pp.291-2]
[voltar]
(12)
Adam Smith(E) e Karl Marx: dois profetas, duas Escrituras, dois deuses.
Os humanos são seres que reagem a estímulos: amor e dor, chicote e cenoura, prêmio e castigo. Se acha isso um reducionismo, saiba que está nas entranhas nas religiões judaico-cristãs que, por mais que digam que “não é bem assim”, partilham de dueto similar: “céu e inferno” (ou colônia e umbral, se preferir). Os economistas clássicos sabiam disso e tinham a vantagem, em relação aos religiosos, de poder quantificar o empenho em cifrões. O livre comércio tornou-se a vaca sagrada de gerações de políticos justamente por tornar a “cenoura” maior e mais apetitosa. Qualquer interferência destruiria a motivação individual e acabaria se tornando maléfica, por mais que fosse bem intencionada. Por exemplo, Adam Smith, no seu clássico A Riqueza das Nações, assim explicou como um controle de preços em época de escassez poderia levar a desastres:
Quem quer que examine atentamente a história das fases de miséria e penúria de víveres que têm afligido qualquer região da Europa, no decurso do presente século [XVIII] ou dos dois séculos anteriores – sendo que de várias delas possuímos relatos bastante precisos – constatará, como creio, que jamais uma carestia se originou de uma associação ou conluio entre os comerciantes internos de trigo, nem de qualquer outra causa que não fosse uma escassez real, resultante, por vezes, ocasionalmente, em determinados lugares, da devastação da guerra, porém, na grande maioria dos casos, das estações pouco favoráveis; constatará igualmente que uma fome geral nunca se originou de outra causa senão da violência do Governo, que, na tentativa de remediar os inconvenientes de uma carestia, recorreu a meios inadequados.
Em um país produtor de trigo e de grande extensão, se entra todas as suas regiões existir liberdade de comércio e de comunicação, a escassez gerada pelas estações mais desfavoráveis nunca pode ser tão grande a ponto de provocar uma fome, por outro lado, a colheita mais precária, se administrada com parcimônia e economia, será capaz de sustentar, através do ano, o mesmo número de pessoas que se alimentam com maior abundância com uma colheita mais farta. As estações mais desfavoráveis para a colheita são as de seca excessiva ou de chuvas excessivas. Entretanto, já que o trigo se desenvolve de maneira igual tanto em terras altas como em terras baixas, em solos de natureza mais úmida e em solos de natureza mais seca, a seca ou o excesso de chuvas, que são prejudiciais para uma parte do país, são favoráveis para outra; e, embora tanto na estação de secas como na estação chuvosa, a colheita seja bastante menos abundante do que em uma estação favorável, acontece que nessas duas estações desfavoráveis, o que se perde em uma região do país, de certo modo é compensado pelo que se ganha em outra. Nos países produtores de arroz, onde a colheita não somente requer um solo muito úmido, e onde também, durante um determinado período do cultivo, o arroz deve crescer debaixo d’água, os efeitos de uma seca são muito mais funestos. Não obstante isso, mesmo em tais países, a seca talvez dificilmente seja alguma vez tão generalizada a ponto de provocar necessariamente uma fome, se o Governo permitir o livre comércio. A seca de Bengala, há alguns anos [1770], poderia provavelmente ter provocado uma carestia muito grande. Possivelmente, algumas medidas inadequadas, algumas restrições pouco sensatas impostas pelos empregados da Companhia das Índias Orientais ao comércio do arroz tenham contribuído para transformar essa carestia em uma fome generalizada.
Quando o Governo, para remediar os inconvenientes de uma carestia, ordena a todos os comerciantes que vendam seu trigo a um preço que ele presume razoável, de duas uma: ou os impede de comercializá-lo – o que, às vezes, pode produzir fome, mesmo no início da estação – ou, se os comerciantes levam o trigo ao mercado, o Governo dá condições à população – e com isso a estimula a fazê-lo – de consumir o estoque tão rapidamente, que inevitavelmente haverá fome antes do fim da estação. A liberdade ilimitada e irrestrita de comercializar cereais não só constitui a única medida eficazmente preventiva das agruras da fome, como também representa o melhor paliativo para os inconvenientes da carestia; com efeito, os inconvenientes de uma real escassez não podem ser remediados; para eles só existem medidas paliativas. Não há nenhuma atividade que mereça mais plena proteção da lei, nenhuma exija tanto; e isso porque nenhuma outra atividade está tão exposta à reprovação popular.
[Smith, Livro IV, cap. V, pp. 31-2]
Smith acertadamente atribui a fome de Bengala (atual Bangladesh e arredores) à impiedosa ação da Companhia da Índias Orientais. Tendo se tornado, em termos práticos, dona da região, ela impôs o monopólio comercial, aumentou o imposto agrário, direcionou a produção para a exportação e proibiu a estocagem de grãos, tudo em meio a época de seca e más colheitas. Resultado: dez milhões de mortos ou um terço da população local. Os revolucionários comunistas do século XX também se notabilizaram por produzir epidemias de fome (como o holodomor na URSS de Stálin e o Grande Salto para frente, na China de Mao), porém, em vez da maximização de lucros, objetivo deles era a reengenharia social à toque de caixa para trazer o paraíso à Terra e superar o capitalismo (cf. [White, pp. 463, 523-6]). No Brasil, embora ainda haja problemas com a seca nordestina e em bolsões de miséria, não há, na história recente, uma crise de inanição tão generalizada. Contudo, houve uma carestia e relativo desabastecimento durante o “Plano Cruzado” (1986), quando uma tentativa de violar a “Lei da Oferta e Procura” por meio de um tabelamento de preços, associada à uma economia fechada, desestimulou o comércio. Oito anos depois, o Plano Real teve a virtude de compensar a esperada elevação da demanda que se seguiria ao controle dos preços (dessa vez por uma paridade cambial ao dólar) com a abertura da economia e, portanto, aumento da oferta.
Quer dizer que Adam Smith estava absolutamente certo, não? Nem tanto. De fato, o poder dos governos de produzir desastres é grande – daí a defesa apaixonada de alguns pelo “Estado mínimo” -, mas se a única coisa a esperar de agentes individuais é “satisfação de seu próprios interesses”, por que razão eles haveriam de vender alimentos para um bando de famélicos sem dinheiro? Ainda mais se houver acesso a outros mercados mais promissores! Foi essa a armadilha que os ingleses montaram para os indianos na Era Vitoriana, quando a Coroa já havia assumido controle direto do subcontinente. Por ocasião de uma seca em 1876, o governo colonial quase nada fez em amparo à população e, quando muito, criou frentes de trabalho insalubres. A boa notícia foi que o comércio continuou a fluir sem empecilhos e quem ainda tinha alguma produção pôde escoá-la para os portos usando alguma ferrovia construída pelos ingleses (cf. [White, pp. 377-84]). Curiosamente, dois anos antes o governador de Bengala, Richard Temple, conseguiu prevenir um desastre importando meio milhão de toneladas de arroz da Birmânia, que distribuiu aos necessitados. Como foi muito criticado por essa forma de gastar dinheiro do Tesouro, mostraria depois ter “aprendido a lição”.
Justiça seja feita: toda essa omissão não pode ser atribuída exclusivamente às ideias de Adam Smith. Ele próprio reconhecia que nem tudo era da alçada do livre mercado:
O terceiro e último dever do soberano ou do Estado é o de criar e manter essas instituições e obras públicas que, embora possam proporcionar a máxima vantagem para uma grande sociedade, são de tal natureza, que o lucro jamais conseguiria compensar algum indivíduo ou um pequeno número de indivíduos as crie e mantenha. Também o cumprimento deste dever exige despesas cujo montante varia muito conforme os diferentes períodos da sociedade.
[Smith, Livro V, cap. I, parte III, p. 198]
Foi preciso adicionar outro arcabouço teórico para que os governantes pudessem lavar as mãos sem se tornarem mal vistos: a teoria populacional de Thomas Malthus. Publicada originalmente em 1798 no tratado Um Ensaio sobre o Princípio da População e como ele afeta o Futuro Desenvolvimento da Sociedade, ela, super-resumidamente, advoga que a população tende a crescer de forma geométrica (1, 2, 4, 8, 16 …), ao passo que os meios de subsistência cresceriam de forma aritmética (1, 2, 3, 4, 5 …). Já que essas duas razões de crescimento não se encaixam, não o só número de seres humanos acabaria limitado pela Natureza, como também a qualidade de vida deles:
A fome parece ser o último, o mais horrível recurso da natureza. O poder da população é tão superior ao poder da terra em prover subsistência para o homem, que a morte prematura deve de uma forma ou de outra visitar a raça humana. Os vícios da humanidade são ativos e capazes agentes do despovoamento. Eles são os precursores no grande exército da destruição; e frequentemente dão cabo ao horrível serviço por contra própria. Mas caso falhem nessa guerra de extermínio, doenças endêmicas, epidêmicas, pestilências e pragas avançam em terrível sucessão e varrem seus milhares e dezenas de milhares [de vidas]. Caso o sucesso ainda seja parcial, uma gigante e inevitável fome espreita ao fundo e, com um poderoso golpe, nivela a população com o alimento do mundo.
Malthus, Thomas R.; An Essay on the Principle of Population, cap. VII, parágrafo 20, primeira edição (1798).
Era Malthus um crápula? Não, apenas alguém sinceramente preocupado com persistência da pobreza no mundo, em meio a uma relativa prosperidade econômica geral. Sua solução para o problema – exposta mais enfaticamente nas edições posteriores – se encontrava na melhoria e “restrição moral” da humanidade. Ou seja, pensar menos “naquilo”. Muito já se discutiu a respeito de sua obra, mas a principal refutação veio pela prova do tempo: novos métodos contraceptivos associados a uma melhora geral das camadas mais baixas do povo levaram à queda da natalidade, além de a “Revolução Verde” ter expandido rapidamente a oferta de alimentos. Nem por isso o malthusianismo deixou de se reciclar e sua roupagem atual apela para questão ecológica. Por ora, é interessante constatar aqui existência de distorções popularescas do malthusianismo à época da “Economia Clássica”. O escritor vitoriano Charles Dickens, em Um Conto de Natal (1843), retratou o avarento Scrooge como um adepto delas logo no primeiro capítulo, como desculpa para sua sovinice.
– Desejo que me deixem em paz; já que os senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu não faço banquetes para mim próprio pelo Natal, vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço muito em dar minha contribuição às organizações de que falamos ainda há pouco [prisões, asilos, casas de correção], e elas não ficam barato! Aqueles que tiverem necessidade que recorram a elas.
– Muitos não o podem fazer, outros preferem a morte.
– Se preferem a morte, – disse Scrooge –, está ótimo! Que morram! Isso virá diminuir o excesso de população. De resto, queiram desculpar-me, porém não estou bem a par dessa questão.
Não foi à toa que o Ministro das Finanças por ocasião da fome indiana de 1876-7 – Sir Evelyn Baring (futuro Lorde Cromer) – declarou: “Toda tentativa benevolente de mitigar os efeitos da fome e do saneamento precário só serve para aumentar os danos resultantes da superpopulação” (cf. [White, p. 380] e [Davis, cap. I, p.32]).
Não é apenas o pessoal mais, digamos, à direita que é capaz de endurecer o coração ante o sofrimento alheio. Esquerdistas comumente fazem vista grossa às matanças promovidas por revolucionários, como a política do Terror durante a Revolução Francesa, os gulags soviéticos e o paredón cubano. E você não precisa(va) estar do lado errado da fronteira para se tornar escorregadio. Um exemplo emblemático foi a postura Noam Chomsky – linguista e ativista norte-americano cheio de publicações – ante o genocídio cambojano dos anos 70:
In extremis, os que pensam conforme aquilo em que desejam acreditar preferem abandonar por completo a realidade e a moral a renunciar a suas escolhas reconfortantes. No fim da década de 1970, Chomsky ridicularizou sistematicamente a ideia de que Pol Pot pudesse ser um assassino em massa, apesar do depoimento de muitos cambojanos que tinham fugido pela fronteira. “Os refugiados fica assustados e indefesos, à mercê de forças alheias”, disse ele aos leitores de The Nation em junho de 1977. “É natural que tendam a contar o que acreditam que seus interlocutores queiram ouvir. (…) Especialmente, os refugiados questionados por ocidentais ou tailandeses têm interesse especial em relatar atrocidades por parte dos revolucionários cambojanos, fato óbvio que nenhum repórter sério deixará de levar em conta.” Dois anos depois, após a derrubada de Pol Pot, as imensas pilhas de crânios humanos em seus campos de extermínio confirmaram que não eram os refugiados que se haviam iludido. A estimativa mais abalizada é que, entre abril de 1975 e janeiro de 1979, o Khmer Vermelho tenha matado 1.670.000 cambojanos, ou 20% da população – proporcionalmente, a maior carnificina já infligida por um governo a seus súditos. Todavia, mesmo em 1980, ao publicar After the Cataclysm: Postwar Indochina and the Reconstruction of Imperial Ideology [“Depois do cataclismo: a Indochina do pós-guerra e a reconstrução da ideologia imperial”], Chomsky recriminou os que aplicavam a palavra “genocídio” a esse Holocausto. “As mortes no Camboja não resultaram da matança sistemática e da inanição promovidas pelo Estado, mas são atribuíveis, em larga medida, à vingança dos camponeses, a unidades militares indisciplinadas, fora do controle do governo, à fome e à doença que são uma consequência direta da guerra norte-americana, ou a outros fatores desta natureza.” Afinal, por que continuar reprisando a questão desses cadáveres? “O lado positivo do quadro [do Khmer Vermelho] foi praticamente apagado”, reclamou Chomsky. “O lado negativo tem sido apresentado a uma plateia em massa, numa saraivada de informações que encontra poucos paralelos históricos, excetuada a propaganda dos tempos de guerra.”
Noam Chomsky sempre concedeu o benefício da dúvida a regimes antiamericanos como os de Pol Pot ou Slobodan Milosevic, esforçando-se por minimizar a escala de seu terrorismo e duvidando até das provas mais criteriosamente ratificadas. (…)
[Wheen, cap. XI, pp. 323-4]
A origem dessa dissonância cognitiva é antiga. Já no Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels assim clamaram aos operários:
Os comunistas consideram indigno dissimular as sua ideias e propósitos. Proclamam abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados derrubando pela violência toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam ante a ideia de uma Revolução Comunista! Os proletários não têm nada a perder com ela, além das suas cadeias. Têm, em troca, um mundo a ganhar.
PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!
De lá para cá, muitos dos que deram atenção a esse chamado perderam o ganha-pão, a integridade física, própria vida e a de seus filhos. A arapuca contida nele talvez tenha sido identificada por ninguém menos que Josef Stálin numa frase que lhe é atribuída (embora de origem incerta): “a morte de um homem é uma tragédia; a de milhões, uma estatística.” Ou seja, quando pessoas deixam de ser vistas com indivíduos e passam a ser tratados como coletivos, perde-se a compaixão por elas. Ficam como se fossem as células de um organismo, que não têm consciência individual e são continuamente trocadas. Apenas o organismo permanece e importa. Assim, que mal há se milhões morrem, mas a economia vai bem ou se está mais próximo da concretização do modo de produção socialista?
Há quem diga que a moral judaico-cristã é narcisista porque seu conceito de salvação é um processo essencialmente individual, ao contrário da redenção coletiva proposta por ideologias. Se assim for, melhor, pois só conseguimos nos colocar nos pés de outros indivíduos – a quem, segundo essa moral, devemos amar como nós mesmos -, não de abstrações numéricas. [voltar]
Sigmund Freud (E) e Carl Jung: discípulos ameaçando o reinado dos mestres desde os tempos de Platão e Aristóteles.
O historiador Paul Johnson descreveu de forma pesada a relação entre Freud e círculo mais íntimo:
Freud era bem mosaico nas suas convicções sobre a questão do que era justo. A tradição de tolerância, de pontos de vista e de uma liderança policêntricos, não o atraía. Max Graf, pai do Pequeno Hans, disse que o clima no gabinete de Freud era “o da fundação de uma nova religião”. Os pacientes eram “os apóstolos” e Freud, “embora atencioso e de bom coração em sua vida privada”, era “duro e inflexível na apresentação de suas ideias”[229]. Freud tinha a sua pequena corte, da mesma forma que os sábios hassídicos. Formada inicialmente em 1902, nela ele nunca tolerou uma oposição séria a sua pessoa. Alfred Adler (1870 – 1937), um dos primeiros e mais brilhantes de seus membros, foi tratado – quando uma vez ele arriscou a discordar – não como um colega exercendo a crítica, mas como um heresiarca, ou ainda, por um termo que os marxistas iriam popularizar:’dissidente’. Como Graf colocou a situação: “Foi um julgamento e a acusação que pesava sobre o réu era de heresia … Freud, na condição de líder da igreja, excomungou Adler; ele o expulsou da igreja oficial. Durante um período de alguns anos, eu vivenciei todo o desenvolvimento de uma igreja”. Daí em diante, a excomunhão (herem), foi muito usada, principalmente no caso de Jung, o maior de todos os heresiarcas. O rompimento com Jung foi particularmente rancoroso, pois, como Jones colocou, ele deveria ter sido o Josué do Moisés de Freud. Seu “semblante mostrava um aspecto exultante quando falava de Jung: ‘Esse é meu filho querido, com quem eu estou muito satisfeito’. “Quando o império que eu fundei ficar órfão”, ele escreveu, “cabe a Jung herdá-lo todo, e a ninguém mais”[230].
[Johson, parte V, pp. 432-3]
Notas de autor:[229]Citado em Roazen, op. cit., 197. (No caso, Paulo Roazen, Freud and his Followers, Londres, 1976.)
[230] Jones, op. cit., ii 33. (No caso, Ernest Jones, Life and Work of Sigmund Freud, 3 vols. (Nova York, 1953-7).
Embora fosse de família judia, Freud não era religioso e muito menos praticante. Ainda assim, aspectos da cultura judaica permearam sua obra, como a experiência subjetiva da interpretação da mente, que tem paralelos com estilo de exegese de expoentes da mística judaica:
Freud, na tradição judaica irracionalista, foi mais um Namânides ou um Besht [místicos] do que um Maimônides [racionalista]. Mas, talvez exatamente por isso, ele tornou-se um pilar central da estrutura intelectual do século vinte, uma construção com bases predominantemente irracionais. Para variar a metáfora, podemos dizer que ele deu à humanidade um novo espelho, pois nunca nenhum homem mudou de maneira tão radical e irreversível a maneira pela qual as pessoas se olham a si mesmas; ou mesmo a maneira como elas falam de si mesmas, pois ele também mudou o vocabulário da introspecção.
[Idem, p. 434]
E assim, um ateu teria criado seu próprio credo. Mas não do nada. [voltar]
FREUD LEVOU PAU EM GINECOLOGIA!
Um dos mais controversos pontos talvez seja a questão do orgasmo feminino no desenvolvimento sexual da mulher:
Se a vivência do sentimento de prazer sexual acaba por ser tão subjetiva, é lógico pensar que os fatores culturais tê um peso importante em sua experimentação. A expectativa que se tem do orgasmo é culturalmente determinada. Atualmente, as mulheres ocidentais esperam e desejam ter orgasmos e seus companheiros sexuais esperam também que elas os tenham. Quando não é assim, pensa-se que algo vai mal. Sem dúvida, até há poucos anos acreditava-se que as mulheres não tinham capacidade de experimentar prazer sexual, e que, nas poucas que o sentiam, isto era considerado um defeito ou, pelo menos, em hipótese alguma, devia ser exteriorizado. A tradição vitoriana fez com que as mulheres acreditassem que, na melhor das hipóteses, o orgasmo era algo pecaminoso.
Nesse contexto, surgiu a obra de Freud, que afirmou que existiam dois tipos de orgasmo feminino: o clitoriano e o vaginal. A afirmação em si não teria provocado maiores problemas se Freud não tivesse acrescentado que os orgasmos clitorianos (obtidos por meio da masturbação e por atos alheios ao coito) evidenciavam a imaturidade psicológica da mulher, enquanto os orgasmos vaginais (decorrentes do coito) eram os verdadeiramente saudáveis e maduros. Em seu ensaio Algumas consequências psicológicas da diferença anatômica entre os sexos, Freud escreveu que “a supressão da sexualidade clitoriana é um requisito necessário para o desenvolvimento da feminilidade”. A partir desta teoria freudiana, criou-se uma importante controvérsia entre a natureza e as implicações do orgasmo feminino, em virtude da qual inúmeras mulheres foram classificadas de neuróticas. Na realidade, segundo diversos estudos, só uma pequena percentagem de mulheres (em torno de 30% a 40%) atinge um orgasmo durante o coito, sem nenhum outro tipo de estimulação simultânea. Isto ocorre, talvez, devido a diferenças na sensibilidade genital e não a fatores como imaturidade, ansiedade e comunicação deficiente com o parceiro.
Por outro lado, numerosos estudos demonstravam que, em termos fisiológicos, existe apenas uma resposta orgástica. Um orgasmo obtido por meio da estimulação do clitóris é idêntico, fisiologicamente falando, a outro obtido pelo coito. Apesar disto, a ideia da existência de dois diferentes tipos de orgasmos tem-se mantido e chegou até os nossos dias. Talvez seja porque se confundiu a resposta fisiológica com a experiência orgástica das mulheres. Neste ponto, é verdade que as mulheres capazes de conseguir orgasmos clitorianos e vaginais descrevem dois tipos de experiência diferentes. Mas isto é devido à diferente experiência emocional, não à uma diferente resposta física. De fato, entre as mulheres, há preferências para todos os gostos. Enquanto umas preferem o orgasmo coital porque a experiência parece-lhes satisfatória, embora o orgasmo seja menos intenso, outras valorizam o orgasmo clitoriano, possivelmente pelas vantagens que este envolve, quanto a sua maior intensidade e por não se verem envolvidas pelas necessidades e pelo ritmo de seu companheiro sexual.
Em conclusão, atualmente não se considera patológico o fato de não se atingir o orgasmo por meio do coito; aceita-se que a resposta fisiológica, como a descrevemos anteriormente [dividida nas fases excitação, platô, orgasmo e resolução], é a mesma seja qual for a estimulação e o tipo de orgasmo, e considera-se que nenhum deste tipos é mais maduro ou imaturo, melhor ou pior que o outro.
[Enciclopédia da Sexualidade, vol. I, pp.58-60]
A série Masters of Sex reconta a trajetória das pesquisas de William Master e Virginia Johson (acima, uma foto real deles), alfinetando o pai da psicanálise no sexto episódio da primeira temporada. Ignoro o quanto a dramatização é fiel aos fatos, mas a série dá um bom sentimento entre a diferença entre pesquisa a partir de experimentos controlados com boa base de dados e uma teoria de poucas amostras e muita especulação.
A resposta fisiológica do orgasmo foi primeiramente estudada por William H. Masters e Virginia E. Johnson, no fim dos anos 50 e começo dos 60 do século XX, tendo seus resultados publicados em Human Sexual Response, lançado em 1966. Suas pesquisas utilizaram o que havia de mais avançado na época (como eletrocardiogramas e eletroencefalogramas), além de instrumentos de invenção própria (como um vibrador transparente munido de iluminação interna, para registrar o comportamento do canal vaginal), e, de fato, não apontaram diferenças na forma como o corpo feminino reponde aos dois tipos de orgasmo. Com o posterior avanço da tecnologia, contatou-se, por meio de tomógrafos, que o cérebro feminino tem diferentes áreas ativadas durante cada um deles, o que pode explicar as distintas experiências subjetivas relatadas pelas que conseguem vivenciar os dois tipos. Acrescente-se à discussão o famigerado “ponto G”, cuja existência e localização no canal vaginal ainda é debatida. Talvez uma sensata opinião seja a proferida pelo cientista Emmanuele Jannini (citado no link anterior):
Uma mulher deve ter uma compreensão de quem ela é, como é constituído seu corpo, qual é capacidade de seu corpo, mas não deve buscar por algo como se fosse uma corrida, um jogo, um dever. Buscar o ponto G ou o orgasmo vaginal como uma necessidade, como um dever, é a melhor maneira de perder a felicidade do sexo.
Uma armadilha em as correntes psicanalíticas caem muitas vezes é a do “solipsismo metodológico”: a crença que o conteúdo dos pensamentos de um indivíduos é determinada por fatos acerca deles, fato esses independentes do que ocorre no mundo exterior. Se você lembrou de A Interpretação dos Sonhos, não foi mera coincidência.
O problema é a experiência subjetiva, como o próprio nome diz, não pode ser avaliada acima de qualquer dúvida razoável aqui do mundo exterior. Por isso, pode-se criar todo um arcabouço teórico – perfeitamente lógico e coerente, cujas premissas não podem ser determinadas como certas ou erradas – para explicar questões sobre a inteligência, as emoções e o comportamento. Assim, constrói-se um castelo à prova de qualquer contestação. Tudo bem se ficarmos no campo da filosofia, mas se for para falarmos de validade científica, complica.
De qualquer modo, os adeptos dessas teorias precisam a linguagem para se exprimir e convencer, aí que o palavrório rebuscado entra em ação para ocultar a falta de embasamento:
Isso é profundamente enigmático, pois é, em última análise, uma relação para algo secreto e oculto. Se me permitir usar uma dessas fórmulas que me vêm a medida que escrevo minhas notas, a vida humana poderia ser definida como um cálculo em que zero fosse um irracional. Essa fórmula é apenas uma imagem, uma metáfora matemática. Quando digo “irracional”, refiro-me não a um inapreensível estado emocional, mas precisamente ao que é chamado de número imaginário. A raiz quadrada de menos um não corresponde a nada que esteja sujeito a nossa intuição, nada real – sentido matemático do termo – e ainda assim, precisa ser conservado, juntamente com sua função total. É o mesmo com o elemento oculto da referência vivente, o sujeito, na medida em que toma a função de significador, não pode ser subjetificado como tal.
Lacan, Jacques & al.; Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet, Yale French Studies, No. 55/56, Literature and Psychoanalysis. The Question of Reading: Otherwise. (1977), pp. 11-52.
Jacques-Marie Émile Lacan, um dos expoentes da psicanálise freudiana, confundiu números inteiros com irracionais e esses com os imaginários. Mesmo mantendo o raciocínio como metáfora, o uso que faz para termos matemáticos nada tem a ver com seus significados originais. De fato, os números imaginários geraram muita discussão, porém os “irracionais” têm esse nome não por ferirem a razão nem por serem a radiciação de um negativo, mas por não poderem ser expressos por uma razão entre dois inteiros e, ao contrário dos imaginários, têm exemplos abundantes na realidade cotidiana (ainda que não se dê conta). O zero, por sua vez, é um número racional. Então, o que significa o parágrafo acima? Não sei, mas não faltará quem tente explicar. Vale lembrar que rebater nem sempre significa refutar e o estilo extremamente obscuro de Lacan pode tanto ajudar quem quer defendê-lo quanto reforçar a imagem de uma falsa erudição e/ou ausência de conteúdo.
Lacan era um figurão? Sim. Yale é universidade respeitada? Muito. Então, como alguém renomado concebeu um texto aparentemente extraído de um “gerador de lero-lero” e uma universidade conceituada o deixou passar? Bem, isso muito mais comum do que imagina. Procure saber sobre o “Caso Sokal” e, se quiser pequena introdução aos filósofos “pós-modernos”, recomendo a leitura de [Navega, cap. IV]. [voltar]
Karl Popper (1902 – 1994)
O filósofo da ciência Karl Popper até hoje desperta discussões com seu critério de “falsificação” para distinguir a solidez um conhecimento científico da de outro que não o seja, o que pelo menos seja má Ciência. Em outras palavras, será científico um conhecimento que puder ser comprovado falso de algum modo, em vez de aquele que alega ter uma série verificações positivas. Isso foi uma inversão de valores com o paradigma indutivo exclusivo até meados do século XX e deve ter sido, em grande parte, motivada por sua vivência juvenil:
Foi no verão de 1919 que comecei a ficar mais e mais insatisfeito com essas três teorias – teoria marxista da história, a psicanálise e a psicologia individual; e comecei a sentir dúvidas quanto a suas demandas de status científico. Meu problema talvez, primeiramente, tomasse uma forma simples: “o que há de errado com o marxismo, a psicanálise e a psicologia individual? Por que elas são tão diferentes de teorias físicas, da teoria de Newton e, especialmente, da teoria da relatividade?”
Para clarear esse contraste, devo explicar que poucos de nós à época teríamos dito que acreditávamos na validade da teoria da gravitação de Einstein. Isso mostra que não era minha dúvida da validade dessas três outras teorias que me incomodava, mas alguma outra coisa. E nem era que eu quase considerasse que física matemática fosse mais exata que uma teoria do tipo sociológico ou psicológico. Assim, o que me preocupava nem era o problema da validade, naquele estágio pelo menos, nem o problema da exatidão e mensurabilidade. Era mais que eu sentia que essas três teorias, embora posassem de ciência, tinha, de fato, mais em comum com mitos primitivos que com ciência; que pareciam mais com astrologia que com astronomia.
Eu descobri que muitos dos meus amigos que eram admiradores de Marx, Freud e Adler ficavam impressionados pelo número de pontos em comum a essas teorias, e especialmente pelo seu seu aparente poder explanatório. Essas teorias aparentam ser capazes de explicar praticamente tudo que acontece dentro dos campos a que se referiam. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma conversão ou revelação, abrir os olhos a uma nova verdade oculta dos que não foram ainda iniciados. Uma vez, então, os olhos sejam abertos, via-se instâncias confirmatórias por toda parte: o mundo estava cheio de confirmações da teoria. O que quer que acontecesse sempre a confirmava. Assim, sua verdade parecia manifesta; e os incréus eram claramente pessoas que não queriam ver a manifesta verdade; que se recusavam a vê-la, seja porque ela era contra seu interesse de classe ou é por causa de suas repressões que ainda estavam “não analisados” e clamando por tratamento.
O mas característico elemento nessa situação parecia-me ser a incessante corrente de confirmações, de observações que “verificavam” as teorias em questão; e este ponto era constantemente enfatizado por seus adeptos. Um marxista não podia abrir um jornal sem encontrar em cada página uma evidência confirmatória para sua interpretação da história; não apenas nas notícias, mas também em sua apresentação – que revelava o viés de classe do jornal – e especialmente, é claro, o que o jornal não dizia. Um analista freudiano enfatizava que suas teorias eram constantemente verificadas por suas “observações clínicas”. Assim como Adler, eu ficava muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, reportei-lhe uma caso que não me parecia particularmente adleriano, mas que ele não encontrou nenhuma dificuldade em analisar em termos de sua teoria de inferioridade de sentimentos, apesar de nem mesmo ter visto a criança. Levemente chocado, perguntei-lhe como ele poderia estar tão seguro. “Por causa de minha experiência de um milhar [de casos]”, respondeu; após o que não adiantaria nada se eu dissesse: E com esse novo caso, suponho, sua experiência se tornou de um milhar e um.”
O que eu tinha em mente era que suas prévias observações podiam não ter sido tão sonoras como essa nova; que cada uma, em sua vez, fora interpretada à luz de “prévia experiência”, e que ao mesmo tempo contou como confirmação adicional. O que – perguntava-me – ela confirma? Nada mais que um caso que podia ser interpretado à luz de uma teoria. Mas isso significava muito pouco, refleti, já que cada caso concebível podia ser interpretado à luz da teoria de Adler ou igualmente da de Freud.
Eu posso ilustrar isso por meio de dois exemplos bem diferentes de comportamento humano: o de um homem que empurra uma criança dentro d’água com a intenção de afogá-la e o de um homem que sacrifica sua vida para salvar a criança. Cada um desses casos pode ser igualmente explicado com igual facilidade em termos freudianos e adlerianos. Segundo Freud, o primeiro sofria de repressão (digamos, de algum componente de seu complexo de Édipo), ao passo que o segundo alcançara a sublimação. Segundo Adler, o primeiro sofria de sentimentos de inferioridade (talvez produzindo a necessidade de provar para si mesmo que ousaria cometer algum crime), e da mesma forma o segundo (cuja necessidade era provar para si que ousaria resgatar a criança). Não conseguiria imaginar comportamento humano algum que não pudesse ser interpretado em termos de ambas teorias. Foi precisamente esse fato – que elas sempre se adequam, que eram sempre confirmadas – que aos olhos de seus admiradores constituiu o mais forte argumento a favor dessas teorias. Começou a me ocorrer que essa aparente força era, na verdade, a fraqueza delas.
[Popper (1957), cap. I]
Para Popper, mereceria o status científico hipótese que:
- Pudesse ser demonstrada falsa de alguma forma, i.e., fosse falseável;
- Ainda não tivesse sido falseada, i.e., tivesse resistido a todas as tentativas de falsificação.
Com isso, Popper invertia a postura vigente na metodologia do Indutivismo Lógico: em vez de teorias continuamente validadas (já ouviste falar de Consenso Universal dos Espíritos?), teríamos apenas hipóteses úteis que ainda não foram refutadas. Isso seria uma forma de prevenir a adoção de “teorias que nunca estão erradas”, pois elas sempre serão confirmadas, não importando o que a acontecer. Por exemplo, a noção de que vivemos em um “mundo justo” pode muito bem ser refutada por uma catástrofe. Por outro lado, admitindo-se a existência de uma entidade supra-humana capaz de controlar a natureza direta ou indiretamente, podendo, assim, punir humanos por crimes cometidos no passado (via reencarnação), presente ou, até mesmo, no futuro (via presciência), então a teoria está salva. Caso se chame essa entidade de “Deus”, então terá sido um argumento religioso e não científico, como alguns argumentarão. Mas que diferença faz, em termos práticos, para uma determinada ciência postular uma onipotência absoluta ou dar uma “onipotência especializada” ao livre mercado, à dialética materialista da História ou ao inconsciente (inclusive o quevediano)? [voltar]
Thomas Kuhn (1922 – 1996)
A abordagem de Popper se foca em dar uma definição “lógica” ao que seria ciência, mas será que o progresso científico realmente se deu na forma de falsificações sucessivas? A resposta é “não” conforme avaliou Thomas Kuhn no livro A Estrutura das Revoluções Científicas. Segundo ele, quando um conjunto de pressupostos teóricos, leis e técnicas de um campo científico (o paradigma do momento, em seu jargão) começa a não responder de modo eficiente a novas perguntas, isso não significa que ele seja imediatamente abandonado em prol de outro superior. Pelo contrário, tenta-se salvar o paradigma tradicional com a adoção de hipóteses especiais (também chamada de hipóteses ad hoc) que contornem suas dificuldades. Somente quando o volume de hipóteses especiais cresce demais e/ou se torna apelativo (como o exemplo “divino” do parágrafo anterior) é que o paradigma tradicional entre em “crise” e segue-se uma “revolução científica”, em que novos paradigmas são propostos e competem entre si até que haja um vencedor aceito pela comunidade científica e um reinício do ciclo. Um exemplo clássico desse esquema teria sido a revolução coperniciana, que jamais teria acontecido no modelo de Popper, pois teria sido prontamente falseada pela ausência da paralaxe estelar. Vale lembrar que, ao contrário do que preconizava Popper, a racionalidade pode ficar de fora na briga entre paradigmas e a opção de um grupo por este ou aquele candidato se dar por motivos subjetivos, como a insistência na cosmologia geocêntrica pela reverência a Aristóteles ou a rejeição da “hipótese sobrevivência” por motivos puramente materialistas.
Mesmo com essa mudança de abordagem, Kuhn não foi muito mais gentil que Popper quanto status científico da psicanálise (ou do marxismo), embora o fosse por razões bem distintas:
Examinando os casos mais inquietantes, por exemplo, a psicanálise e a historiografia marxista, para os quais Sir Karl [Popper] nos diz que seu critério foi inicialmente elaborado, concordo que eles não podem adequadamente ser rotulado de “ciência”. Contudo, chego a tal conclusão por um caminho mais seguro e direto que o dele. Um breve exemplo pode sugerir que dos dois critérios – testagem e solução de mistérios (*) – o último é, de uma só vez, menos equivocável e mais fundamental.
Para evitar irrelevantes controvérsias contemporâneas, tomo a astrologia no lugar da psicanálise. A astrologia é o exemplos mais frequentemente citado por Sir Karl de uma pseudociência. Diz ele [em Conjecturas e Refutações, parte II]: “Ao fazer suas interpretações e profecias suficientemente vagas, [os astrólogos] foram capazes de rechaçar qualquer coisa que pudesse ter sido uma refutação, tivessem a teoria e as profecias sido mais precisas. A fim de escapar da falsificação, destruíram a falseabilidade da teoria”. Essas generalizações captam algo do espírito do empreendimento astrológico. Contudo, levadas de forma totalmente literal, como devem ser se forem para prover um critério de demarcação, são impossíveis de se sustentar. A história da astrologia durante séculos, quando ela era intelectualmente reputada, registra muitas predições que categoricamente falharam. Nem mesmo os mais convincentes e veementes expoentes duvidaram da recorrência de tais falhas. A astrologia não pode ser banida das ciências por causa da forma em que suas predições foram dadas.
Nem pode ser banida por causa do modo que seus praticantes explicaram o fracasso. Astrólogos assinalaram, por exemplo, que, ao contrário das predições gerais sobre, digamos, as propensões de um indivíduo ou uma calamidade natural, a previsão de um futuro individual era uma tarefa imensamente complexa, exigindo a maior habilidade e sensível ao menor erro num dado relevante. A configuração das estrelas e dos oito planetas estava constantemente mudando; as tabelas astronômicas usadas para computar a configuração ao nascimento de um indivíduo eram notoriamente imperfeitas; poucos homens sabiam o instante de seu nascimento com a precisão requisitada. Não admira que, portanto, as previsões frequentemente falhassem. Somente após a própria astrologia ter se tornado implausível é que esses argumentos vieram a se parecer com petição de princípio. Argumentos similares são regularmente usados hoje ao se explicar, por exemplo, falhas na medicina ou meteorologia. Em ocasiões de dificuldades, eles também são dispostos nas ciências exatas, campos como física, química e astronomia. Nada havia de anticientífico acerca das explicações de fracasso dos astrólogos.
Contudo, a astrologia não era uma ciência. Em vez disso, era um ofício, uma das artes práticas, com semelhança próxima à engenharia, à meteorologia e à medicina como esses campos eram praticados até a pouco mais de um século atrás. Os paralelos com uma medicina mais antiga e com a psicanálise contemporânea são, creio, particularmente próximos. Em cada um desses campos, a teoria partilhada era adequada apenas para estabelecer a plausibilidade da disciplina e para providenciar uma racionalização para as diversas regras de ofício que governavam a prática. Essas regras tinham comprovado seu uso no passado, mas nenhum praticante supunha que elas eram suficientes para prevenir falhas recorrentes. Eram desejadas uma teoria mais articulada e regras mais poderosas, mas teria sido absurdo abandonar uma plausível e tremendamente necessária disciplina com uma tradição de limitado sucesso simplesmente porque essas coisas desejáveis não estavam à mão. Na ausência delas, contudo, nem o astrólogo, nem o médico podiam fazer pesquisa. Embora tivessem regras a aplicar, não tinham mistérios a resolver e, portanto, nenhuma ciência para praticar.
Compare as situações do astrônomo e do astrólogo. Se a predição de um astrônomo falhou e seus cálculos foram checados, ele podia esperar ajustar a situação corretamente. Talvez os dados estivessem errados: antigas observações podiam ser reexaminadas e novas medições feitas, tarefas que forneciam uma gama de mistérios calculacionais e instrumentais. Ou talvez a teoria precisasse de ajuste, seja pela manipulação de epiciclos, ecêntricos, equantes, etc., ou por reformas mais fundamentais da técnica astronômica. Por mais de um milênio houve mistérios matemáticos e teóricos circundantes com os quais, aliados a suas contrapartes instrumentais, a tradição de pesquisa astronômica foi constituída. O astrólogo, em contraste, não tinha tais mistérios. A ocorrência de falhas podia ser explicada, mas falhas particulares não davam origem à pesquisa de mistérios, pois ninguém, ainda que habilidoso, podia fazer uso delas numa tentativa construtiva de revisar a tradição astrológica. Havia fontes de dificuldades em demasia, a maioria delas além do conhecimento, controle e responsabilidade do astrólogo. Da mesma forma, falhas individuais não eram instrutivas e não refletiam sobre a competência do prognosticador aos olhos de seus pares profissionais. Embora a astrologia e a astronomia fossem comumente praticadas pelas mesmas pessoas – inclusive Ptolomeu, Kepler e Tycho Brahe – nunca houve um equivalente astrológico da tradição astronômica de solução de mistérios. E sem mistérios, capazes de, primeiramente, desafiar e, então, atestar a engenhosidade do praticante individual, a astrologia não poderia ter se tornado uma ciência, mesmo se as estrelas, de fato, controlassem o destino humano.
Em suma, embora os astrólogos fizessem predições testáveis e reconhecessem que essas predições às vezes falhavam, eles não se engajaram (e nem podiam) nos tipos de atividades que normalmente caracterizam todas as ciências reconhecidas. Sir Karl está certo ao excluir a astronomia das ciências, mas seu foco excessivo em revoluções ocasionais da ciência o impede de ver a razão mais acertada para fazer isso
[Kuhn (1970), parte I. Notas omitidas.]
(*)Puzzle no original, comumente traduzido por “quebra-cabeça” nas edições brasileiras de Kuhn. Preferi o sentido mais abstrato da palavra. “Enigma” seria outra opção.
Embora centre-se na astrologia em vez da psicanálise, Kuhn deixa claro que há paralelos entre o modus operandi de uma e de outra que as impedem de se tornar genuínas ciências, independentemente da suposta regência dos astros ou (subentende-se) da validade da teoria freudiana. Vale atentar que, em uma nota ao texto acima, que Kuhn reconheceu a existência de “escolas” dentro da astrologia, a exemplo das ciências sociais e, também, da psicanálise. O problema é que os membros de cada escola preferiam atacar a teoria das outras, em lugar de refinar a da sua, por não enxergar mistérios nela por resolver. Fico a perguntar se o espiritismo, em seu estado atual, não se enquadraria mais numa “arte prática”, como os exemplos apresentados por Kuhn, do que exatamente uma ciência. Nesse caso, pesquisadores psi ou da “hipótese sobrevivência” fariam o papel dos astrônomos e os espíritas, dos astrólogos. O quanto esses grupos se sobreporiam?
Uma última opinião que gostaria de expor é a de Imre Lakatos, que reparou que muitas das críticas de Khun a Popper, embora acertadas em sua opinião, se referiam a uma versão, digamos, “ingênua” do falsificacionismo, centrada numa aplicação restrita dos dois pressupostos mencionados acima. Um pressuposto extra, um tanto difuso na obra original de Popper, fortaleceria esse critério de demarcação: uma hipótese científica deveria ser mais falseável que suas competidoras, implicando que deveria ter uma comprovação empírica maior (para, comparativamente, ter sido “menos falseada”) e uma capacidade preditiva maior (para ser mais “falseável”, caso uma previsão falhe). Esse falsificacionismo “sofisticado” contém uma abordagem para o crescimento da ciência, ficando um pouco mais próximo do historicismo de Kuhn. Além disso, embora ambas as filosofias fossem rivais, elas tinham muito em comum: se posicionavam contra o enfoque positivista (inducionista) da ciência, davam prioridade à teoria (ou paradigma) sobre a observação e insistiam que a busca por interpretação, aceitação ou rejeição dos resultados de um experimento ou observação ocorriam tendo uma teoria (ou paradigma) como pano de fundo [Chalmers, cap. IX, p.130]. Acontece que, mesmo em sua versão “sofisticada”, o falsificacionismo ainda apresenta dificuldades difíceis de contornar como, por exemplo, se uma observação não condiz com uma previsão, o que está errado: a teoria, a observação/experimento ou ambos? Por pura e simples lógica não é possível responder e caso a observação (ou experimento) esteja correta, será toda a teoria errada ou parte dela apenas?
A resposta de Lakatos foi sugerir que nem todas as partes de uma ciência estão no mesmo patamar. Algumas seriam seu “núcleo duro” (hardcore), o cerne fundamental cuja falsificação a invalidaria. Exemplos disso seriam as três leis de Newton e sua Gravitação Universal para a Mecânica clássica ou a disposição dos planetas ao redor do Sol para o modelo coperniciano. Em torno desse núcleo, haveria um “cinturão protetor” de teorias auxiliares, hipóteses complementares (ad hoc) e métodos observacionais/experimentais, que seria constantemente modificado, expandido e refinado com o tempo conforme problemas surgissem. A junção desses dois constituiria o programa de pesquisa, a alternativa de Lakatos ao paradigma de Kuhn como panorama em a atividade científica se desenvolve. O valor de um programa de pesquisas estaria no fato de ele ter realmente um “programa de pesquisa” capaz de guiar a futuras descobertas – coisa que tanto a psicanálise e o marxismo possuiriam – e na extensão em que levaria a novas predições posteriormente confirmadas. Um programa progressivo atenderia esse quesito. Por outro lado, se ele fosse constantemente surpreendido pelo novo, precisando ajustar o cinturão em razão de um crescimento empírico inesperado; isto é, se somente oferece explicações a posteriori de descobertas fortuitas ou, pior, de fatos previstos e descobertos por um programa rival, então seria considerado regressivo ou degenerante, situação em estariam os dois anteriores. A substituição de um programa regressivo por um rival progressivo seria o equivalente de Lakatos para “revolução científica”.
Atendo-se apenas à abordagem de Lakatos, o espiritismo seria um programa regressivo, estando as pesquisa em psi e sobrevivência como rivais progressivos, embora menos pretensiosos.
Poderia continuar esta discussão passando pelo anarquismo epistemológico de Paul Feyeranbend, pela defesa do retorno ao indutivismo pelos advogado pelos bayesianos, pelo neoexperimentalismo, etc., o que fugiria muito do escopo aqui. A quem quiser se aprofundar nas correntes filosóficas da ciência, sugiro como leitura o nono capítulo de [Ferreira] e, principalmente, [Chalmers]. De qualquer forma, duvide sempre de qualquer debatedor alegando que se der cara ele ganha e coroa, você perde. [voltar]
(18) Curiosamente, há quem diga que Freud nunca curou ninguém! Bem, isso é com Freud, não com os que vieram depois. [voltar]
Na cidadezinha de Mumford, o analista Mickey Mumford (sim, são homônimos) tem feito grande sucesso com seu consultório. Tanto ao ponto de outros profissionais da região começarem a querer saber mais a respeito da origem do Dr. Mumford…
Bem, esse é o argumento da comédia romântica Mumford (1999). Está longe de ser um filmaço, mas é uma boa pedida para distrair a mente (e cutucar seu amigo analista). Dica: ainda no começo da história, quando Mumford chega em casa depois do expediente, ele liga a TV e a fica escutando enquanto cuida de outros afazeres domésticos. Repare no programa que está passando. Ele será crucial para a trama mais adiante, no melhor estilo arma de Tchecov. [voltar]
(20) Seria uma espécie de “filosofia natural” especializada na mente humana. Justiça seja feita, uma proposta chave de Freud – o inconsciente – é tido como real para a moderna neurociência, ainda que ela não lide da mesma foram com ele. [voltar]
(21) Talvez você até seja mesmo, mas esta brincadeira é apenas um lembrete para não levar a sério quem usa no meio de um raciocínio a própria conclusão a que deveria chegar (no caso, a teoria psicanalítica) e não digo que todos os farão isso. Agora, a tentação pode ser grande ao se lidar de conhecimento introspectivo. [voltar]
Para saber mais
– Aaboe, Asger; Episodes from the Early History of Astronomy, Spinger, 2001.
– Chalmers, Alan F.; What is this thing called Science?, Hackett Publish Company, 3a. edição, 1999.
– Davis, Mike; Late Victorian Holocausts, Verso, 2001.
– Enciclopédia da Sexualidade para o Casal Moderno, 2 vols., Editora Três, 1995.
– Ferreira, Juliana M.H.; Estudando o Invisível – William Crookes e a Nova Força, Educ/FAPESP, 2004.
– Gould, Stephen Jay; Pilares do Tempo – Ciência e Religião na Plenitude da Vida, Rocco, 2002.
– Johnson, Paul; História dos Judeus, Imago, 2ª ed., 1995.
– Kuhn, Thomas; Logic of Discovery or Psychology of Research?, editado por Imre Lakatos & Alan Musgrave em Criticism and the growth of knowledge, Cambridge University Press, 1970.
– Kuhn, Thomas; Estrutura das Revoluções Científicas, Coleção Debates, Perspectiva, 8a. ed., 2003.
– Lentin, Jean-Pierre ; Penso, logo me engano, Ática, 1997.
– Narloch, Leandro; Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo, Leya, 2013.
– Navega, Sergio, Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Intellwise, 2005
– Popper, Karl; Science: Conjectures and Refutations, 1957.
– Popper, Karl; A Lógica da Investigação Científica, Coleção Os Pensadores, vol. XLIV, Abril Cultural, 1975.
– Sagan, Carl; O Mundo Assombrado pelos Demônios, Companhia das Letras, 2002.
– Smith, Adam; A Riqueza das Nações, coleção Os Economistas, Nova Cultural, 1996.
– Wheen, Francis; Como a Picaretagem conquistou o Mundo, Record, 2007.
– White, Matthew; O Grande Livro das Coisas Horríveis, Rocco, 2013.
– Woods, Thomas E.; How the Catholic Church built the Western Civilization, Regnery Publishing, 2005.
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Adicionado novo item a “As Várias Terceiras Revelações”: O Adeus e o Adeus de Jesus.