A Fonte da Vida

Pingo d'água

    Índice

    Além de fundamental para a existência orgânica, a água comumente esteve associada à ideia pureza. Na dualidade Imundície x limpeza recorrente no antigo judaísmo, a água teve papel fundamental como elemento purificador, o que também foi mais um legado da antiga religião ao cristianismo.

    Lavar-se: mais que um Dever, um Ritual

    Lavagem das mãos

    Lavar as mãos antes da oração: um serviço a Iahweh.

    Para o povo judeu, pureza do corpo é fundamental desde a época do Primeiro Templo. Atesta isso o livro de Levítico, o único do Pentateuco a ser praticamente desprovido de narrativa histórica, centrando-se quase exclusivamente na legislação da vida religiosa, civil, dietética e diária. Diversas são suas instruções de como lidar com os que estão doentes, envolvendo diversas práticas que hoje seriam consideradas de higiene e assepsia:

    E todo o animal que anda sobre as suas patas, todo o animal que anda a quatro pés, vos será por imundo; qualquer que tocar nos seus cadáveres será imundo até à tarde.

    E o que levar os seus cadáveres lavará as suas vestes, e será imundo até à tarde; eles vos serão por imundos.

    Lv 11:27,28

    Esta aparenta ser razoável, e surpreende ao estender o entendimento de “fluxo” para emissões naturais da fisiologia do corpo humano.

    Falai aos filhos de Israel, e dizei-lhes: Qualquer homem que tiver fluxo da sua carne, será imundo por causa do seu fluxo.

    Esta, pois, será a sua imundícia, por causa do seu fluxo; se a sua carne vasa o seu fluxo ou se a sua carne estanca o seu fluxo, esta é a sua imundícia.

    Toda a cama, em que se deitar o que tiver fluxo, será imunda; e toda a coisa, sobre o que se assentar, será imunda.

    E qualquer que tocar a sua cama, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    E aquele que se assentar sobre aquilo em que se assentou o que tem o fluxo, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    E aquele que tocar a carne do que tem o fluxo, lavará as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    Quando também o que tem o fluxo cuspir sobre um limpo, então lavará este as suas roupas, e se banhará em água, e será imundo até à tarde.

    Lv 15:2-8

    Também o homem, quando sair dele o sêmen da cópula, toda a sua carne banhará com água, e será imundo até à tarde.

    Também toda a roupa, e toda a pele em que houver sêmen da cópula se lavará com água, e será imundo até à tarde.

    E também se um homem se deitar com a mulher e tiver emissão de sêmen, ambos se banharão com água, e serão imundos até à tarde.

    Lv 15:16-18

    O capítulo XIII é dedicado à distinção da lepra de feridas comuns. Caso alguém fosse diagnosticado com ela pelo sacerdote, era declarado “imundo” e tinha de viver apartado sociedade. O capítulo seguinte trata de sua reintegração em caso de remissão da doença, não sem antes passar por algumas limpezas finais:

    Esta será a lei do leproso no dia da sua purificação: será levado ao sacerdote,

    E o sacerdote sairá fora do arraial, e o examinará, e eis que, se a praga da lepra do leproso for sarada,

    Então o sacerdote ordenará que por aquele que se houver de purificar se tomem duas aves vivas e limpas, e pau de cedro, e carmesim, e hissopo.

    Mandará também o sacerdote que se degole uma ave num vaso de barro sobre águas vivas,

    E tomará a ave viva, e o pau de cedro, e o carmesim, e o hissopo, e os molhará, com a ave viva, no sangue da ave que foi degolada sobre as águas correntes.

    E sobre aquele que há de purificar-se da lepra espargirá sete vezes; então o declarará por limpo, e soltará a ave viva sobre a face do campo.

    E aquele que tem de purificar-se lavará as suas vestes, e rapará todo o seu pelo, e se lavará com água; assim será limpo; e depois entrará no arraial, porém, ficará fora da sua tenda por sete dias;

    E será que ao sétimo dia rapará todo o seu pelo, a sua cabeça, e a sua barba, e as sobrancelhas; sim, rapará todo o pelo, e lavará as suas vestes, e lavará a sua carne com água, e será limpo,

    E ao oitavo dia tomará dois cordeiros sem defeito, e uma cordeira sem defeito, de um ano, e três dízimas de flor de farinha para oferta de alimentos, amassada com azeite, e um logue de azeite;

    E o sacerdote que faz a purificação apresentará o homem que houver de purificar-se, com aquelas coisas, perante o Senhor, à porta da tenda da congregação.

    Lv 14:2-11

    De fato, cadáveres, conforme de degradam, tornam-se criadouros de germes e focos de doenças; sangue e sêmen podem ser infectantes caso seu emissor esteja doente. Faz sentido isolar o portador de uma doença (tida por) contagiosa antes que ela se torne uma praga. Contudo, Levítico traz uma série de restrições que são irrelevantes do ponto de vista medicinal:

    • Não usar um tecido feito com dois tipos de fios (19:19);
    • Não cortar o cabelo em redondo e aparar a barba dos lados (19:27);
    • Não comer carne de porco, camarão, mariscos, coelho, etc (11:1-12);
    • Não comer os frutos dos três primeiros anos de colheita (19:23).

    Por outro lado, tudo faz sentido se observarmos estes versículos:

    Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual vos levo, nem andareis nos seus estatutos.

    Fareis conforme os meus juízos, e os meus estatutos guardareis, para andardes neles. Eu sou o Senhor vosso Deus.

    Lv 18:3,4

    Ou seja, as diversas regras que Levíticos estipula existem para realçar a distinção entre os hebreus e os povos que os circundavam e, claro, garantir que pouco misturassem. Ao tornar tabu os pratos prediletos dos vizinhos, participar de uma confraternização com pagãos fica impraticável. Não adotar suas indumentárias torna hebreus e gentios distinguíveis de longe, já a constante higiene torna a proximidade com esses últimos desagradável aos primeiros, caso não a seguissem tão à risca. Não misturar tipos diferentes de fios num tecido, de animais num mesmo pasto ou de plantas no campo reforça ainda mais a ideia de segregação entre o Povo Eleito e restante. Em suma, as deliberações de Levíticos – a pureza material entre elas – estava a serviço da criação de uma identidade nacional israelita (1).

    Nos antigos textos hebraicos, três são as formas de purificação pela água: espargimento (aspersão), lavagem (ablução) e imersão. Algum ritual de limpeza tinha de ser aplicado àquele que se encontra-se me estado “imundo”. O fato de ter sido contaminado por alguma impureza não faria alguém automaticamente um pecador, podia-se simples ser algo que lhe aconteceu por estar no lugar errado, na hora errada:

    Esta é a lei, quando morrer algum homem em alguma tenda, todo aquele que entrar naquela tenda, e todo aquele que nela estiver, será imundo sete dias.

    Também todo o vaso aberto, sobre o qual não houver pano atado, será imundo.

    E todo aquele que sobre a face do campo tocar em alguém que for morto pela espada, ou em outro morto ou nos ossos de algum homem, ou numa sepultura, será imundo sete dias.

    Para um imundo, pois, tomarão da cinza da queima da expiação, e sobre ela colocarão água corrente num vaso.

    E um homem limpo tomará hissopo, e o molhará naquela água, e a espargirá sobre aquela tenda, e sobre todos os móveis, e sobre as pessoas que ali estiverem, como também sobre aquele que tocar os ossos, ou em alguém que foi morto, ou que faleceu, ou numa sepultura.

    E o limpo ao terceiro e sétimo dia espargirá sobre o imundo; e ao sétimo dia o purificará; e lavará as suas vestes, e se banhará na água, e à tarde será limpo.

    Nm 19:14-19

    O que deixaria alguém realmente em apuros seria não ter praticado a purificação sabendo de seu dever:

    Porém o que for imundo, e se não purificar, do meio da congregação será ele extirpado; porquanto contaminou o santuário do Senhor; água de separação sobre ele não foi espargida; imundo é.

    Nm 19:20

    [topo]

    A Mediadora de Deus

    Piscina encontrada na comunidade de Qumran

    Piscina de duas saídas, localizada em Qumran [Lawrence, p. 210].

    Se em Levíticos elas aparecem como parte de um conjunto de instruções para a vida cotidiana, outros livros apresentam a purificação como uma preparação simbólica a algo superior. Em Êxodo, Aarão e seus filhos lavaram pés e mãos antes de iniciar seus serviços na tenda do tabernáculo:

    E falou o Senhor a Moisés, dizendo:

    Farás também uma pia de cobre com a sua base de cobre, para lavar; e a porás entre a tenda da congregação e o altar; e nela deitarás água.

    E Aarão e seus filhos nela lavarão as suas mãos e os seus pés.

    Quando entrarem na tenda da congregação, lavar-se-ão com água, para que não morram, ou quando se chegarem ao altar para ministrar, para acender a oferta queimada ao Senhor.

    Lavarão, pois, as suas mãos e os seus pés, para que não morram; e isto lhes será por estatuto perpétuo a ele e à sua descendência nas suas gerações.

    Ex 30:17-21

    O salmista (Sl 26:5-7) deixou transparecer que esse procedimento era adotado também no Templo de Jerusalém ao tempo de Davi e o historiador Flávio Josefo também escreveu nesse sentido (2). No contexto cotidiano, o ato de lavar das mãos chegou a ser ritualizado já no período intertestamentário pela seita dos fariseus, como sugere Mc 7:3, já a lavagem dos pés permaneceu como parte de um ritual de hospitalidade (3).

    Em Números, os levitas precisam ser purificados antes da execução de seu ofício:

    E falou o Senhor a Moisés, dizendo: Toma os levitas do meio dos filhos de Israel e purifica-os;

    E assim lhes farás, para os purificar: Esparge sobre eles a água da expiação; e sobre toda a sua carne farão passar a navalha, e lavarão as suas vestes, e se purificarão.

    Então tomarão um novilho, com a sua oferta de alimentos de flor de farinha amassada com azeite; e tomarás tu outro novilho, para expiação do pecado.

    Nm 8:5-8

    Fora do Pentateuco, uma nova dinâmica de purificação surge: o próprio Deus procedendo a limpeza física por meio da ritual. O Segundo Livro de Reis, por exemplo, traz um caso interessante de cura mediante ritual de purificação:

    E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu Senhor, e de muito respeito; porque por ele o Senhor dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.

    E saíram tropas da Síria, da terra de Israel, e levaram presa uma menina que ficou ao serviço da mulher de Naamã.

    E disse esta à sua senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra.
    (. . .)

    Veio, pois, Naamã com os seus cavalos, e com o seu carro, e parou à porta da casa de Eliseu.

    Então Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: Vai, e lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será curada e ficarás purificado.

    (. . .)

    Então desceu, e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne de um menino, e ficou purificado.

    Então voltou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, e chegando, pôs-se diante dele, e disse: Eis que agora sei que em toda a terra não há Deus senão em Israel; agora, pois, peço-te que aceites uma bênção do teu servo.

    II Re 5:1-3, 9,10, 14,15

    Embora fosse sírio, Naamã era um homem de valor e serviria ao propósito de propaganda de Eliseu (II Re 5:8). Outras duas passagens chamam atenção: uma é um salmo de Davi a clamar por sua purificação:

    Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e mais branco do que a neve serei. (…) Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto.
    Não me lances fora da tua presença, e não retires de mim o teu Espírito Santo.

    Sl 51(50):7,10-1

    A segunda, a promessa de restauração da Nação após o jugo estrangeiro:

    Pois eu os tirarei das nações, os ajuntarei do meio de todas as terras e os trarei de volta para a sua própria terra. Aspergirei água pura sobre vocês, e vocês ficarão puros; eu os purificarei de todas as suas impurezas e de todos os seus ídolos. E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis.

    Ez 36:24-7

    Todas apresentam em comum uma limpeza ritual, representada pela ação da água, acompanhada por outra de cunho moral, propiciada pelo Espírito do próprio Deus, como uma permanente presença sua junto ao purificado. Esse padrão aparece repetidas vezes nos Manuscritos do Mar Morto, preservados nas cavernas de Qumran, com ocasiões em que a purificação é feita pelo próprio Espírito divino:

    Impuro, impuro ele será todos os dias que rejeitar as ordenações de Deus (…). Mas pelo espírito do verdadeiro conselho para os hábitos do homem, todas as iniquidades serão expiadas, de modo que ele olhará a luz da vida, e pelo espírito da santidade que o unirá em sua verdade ele será purificado de todas as suas iniquidades; e pelo espírito da probidade e da brandura seu pecado será expiado, e pela submissão de sua alma a todos os estatutos de Deus sua carne será purificada, para que ele possa ser aspergido com água para a impureza e santificar-se com a água da purificação.

    (1QS – III, 5-9)

    Não os deixes entrar na água para tocar a pureza dos homens da Santidade, pois eles não serão purificados a menos que tenham se arrependido de sua maldade.

    (1QS – V, 13-14)

    E então Deus selecionará os feitos do homem, e purificará por Si o corpo do homem consumindo cada espírito do mal nos tecidos de sua carne e purificando-o com o Espírito Santo de todos os seus feitos maus. E lançará sobre ele o Espírito da Verdade, como água para impureza, por causa de todas as abominações de falsidade e por chafurdar no espírito da impureza.

    (1QS – IV, 20-22)

    Agradeço a ti, ó Senhor, por me apoiares com Tua força. Derramaste Teu Espírito Santo sobre mim para que eu não tropece.

    (1QH -VII, 7)

    E sei que o homem não é reto a não ser através de Ti, e por isso Te imploro, pelo espírito que Tu me deste, que aumentes Tuas [benevolências] para com Teu servo [para sempre], purificando-me pelo Teu Espírito Santo, e aproximando-me de Ti pela Tua graça conforme a abundância de Tuas benesses (…)

    (1QH XVI)

    Fonte: [Vermes]

    Um princípio permeia os textos da comunidade do deserto: a pureza moral deve preceder a ritual, i.e., a limpeza da alma pelo Espírito Santo (ou alguma variante) deve ser feita antes da lavagem em água. Isso nos remete a certa personagem dos princípios do cristianismo e contemporânea da seita essênia de Qumran (4).

    [topo]

    A Voz que clama do Deserto

    A Pregação de João Batista

    A Pregação de João Batista, por Domenico Ghirlandaio

    Nas literaturas deuterocanônicas, intertestamentária e pseudoepígrafa continuaram a existir relatos de práticas de pureza ritual para os leitores de épocas mais próximas a de Jesus ou até contemporâneas:

    Aí entrando, Judite pediu que lhe fosse permitido sair à noite e antes do amanhecer, para fazer suas devoções e orar ao Senhor. Holofernes ordenou aos seus escravos que a deixassem sair e entrar como quisesse, durante três dias, para adorar o seu Deus. Cada noite ela saía ao vale de Betúlia e fazia as suas abluções numa fonte. Ao voltar, rogava ao Senhor Deus de Israel que lhe dirigisse os passos para a libertação do seu povo. Entrava em seguida na sua tenda, e ali permanecia pura até que tomava a sua refeição pela tarde.
    Jt 12:5-9

    Quando havia reunido seu exército, Judas alcançou a cidade de Odolão e, chegando o sétimo dia da semana, purificaram-se segundo o costume e celebraram ali o sábado (5).
    II Mac 12:38

    Tudo que eles [os 72 sábios] queriam era fornecido para eles numa escala pródiga (6). Além disso, Doroteu fazia os mesmos preparativos para eles diariamente, tal como era feito para o próprio rei – pois assim ele fora ordenado pelo rei. De manhã cedo, eles apareciam diariamente na corte, e depois de saudar o rei, voltaram a seus próprios lugares. E como é costume de todos os judeus, lavavam as mãos no mar e oraram a Deus, e então se dedicavam a ler e traduzir a passagem em particular sobre a qual estavam encarregados, e eu lhes fiz a pergunta: “Por que foi que lavaram as mãos antes de orar?” E eles explicaram que era um sinal de que eles não haviam feito mal (pois toda forma de atividade é executada por meio das mãos), pois em seu modo nobre e santo consideram tudo como um símbolo de justiça e verdade.
    Carta de Aristeias.

    Quando tinha eu cerca de dezesseis anos, tive a ideia de provar das diversas seitas que existiam entre nós. Havia três delas, a dos fariseus, os saduceus e a dos essências, como frequentemente lhes disse. Pensava que me familiarizando com todas elas, poderia escolher a melhor. Então me entreguei às asperezas, e me submeti a grandes dificuldades, e passei por todas elas. Nem mesmo me contentei em experimentar apenas dessas três, pois quando tomei ciência daquele cujo nome era Bano, que vivia no deserto, e não usava outra vestimenta senão o que crescia sobre as árvores, e não tinha outro alimento senão o que crescesse por conta própria, e se banhava em água fria frequentemente, tanto de dia como de noite, a fim de se purificar. Eu o imitei nessas coisas e fiquei com ele três anos.

    Flávio Josefo, Autobiografia, segundo parágrafo

    Uma novidade, porém, que se afigurou nesse período foi o uso da lavagem não apenas como um ritual de purificação, mas também iniciático. Em Qumran, banhos purificadores estariam destinados aos que abraçassem os preceitos da comunidade durante um longo estágio probatório:

    O homem, ao recusar-se unir-se à [Aliança de] Deus para caminhar na obstinação de seu coração [não permanecerá na] Comunidade de Sua verdade, pois sua alma despreza o ensinamento sábio das leis justas. Ele não será considerado entre os justos por não ter persistido na conversão de sua vida. Seu conhecimento, seus poderes e suas propriedades não serão recebidos no Conselho da Comunidade, pois quem vai arar a lama da iniquidade volta impuro (?). Não será absolvido pelo que seu coração obstinado reconhece como dentro da lei, pois ao buscar os caminhos da luz ele olha para as trevas. Não será considerado entre os perfeitos; não será purificado pela expiação, nem limpado pelas águas purificadoras, nem santificado pelos mares ou rios, nem lavado com nenhuma ablução. Sendo impuro, impuro permanecerá. Pois enquanto desprezar os preceitos de Deus, não receberá nenhum ensinamento na Comunidade do conselho divino.

    (1QS III)

    Mas então, se alguém tem a intenção de ingressar a sua seita, ele não é imediatamente admitido, mas lhe é prescrito o mesmo método de vida que eles usam por um ano, enquanto ele continua excluído; E dar-lhe-ão também uma pequena pá, e o cinturão supramencionado, e a veste branca. E quando ele tiver dado evidência, durante esse tempo, de que pode observar sua continência, aproxima-se mais de seu modo de viver, e se torna participante das águas da purificação; contudo, não se admite ainda que viva com eles; pois após essa demonstração de sua fortaleza, seu temperamento é provado por mais dois anos; e se aparenta ser digno, então eles o admitem em sua sociedade.

    Josefo, Guerras dos Judeus, livro II, cap. VIII

    Numa singela história de amor contada por um livro pseudoepígrafo, é apresentado o ritual executado pela jovem egípcia Asenath quando Deus aceitou sua conversão ao judaísmo, com a qual poderia se casar com José, “o intérprete de sonhos” (7). Ele possuía semelhanças com a liturgia essênia no que diz respeito ao uso da água, veste branca e certos paramentos:

    Encorajada, Asenath ergueu-se e colocou-se em posição ereta. Então o Anjo falou-lhe assim: “Vai agora mesmo ao teu segundo quarto, desveste a roupa de luto como que te cobriste e tira dos teus quadris a veste de penitência! Remove as cinzas de tua cabeça! Lava as mãos e o rosto com água pura e veste uma roupa branca inata! Cinge os teus rins com o cinto puro e duplo e duplo da virgindade! Depois volta para junto de mim, para que eu possa transmitir-te a mensagem pela qual o Senhor me enviou a ti!

    Asenath dirigiu-se a toda pressa ao seu segundo quarto, repositório dos seus adornos, abriu a arca, retirou dela um vestido branco, fino e imaculado, e vestiu-o, depois de se desfazer da vestimenta preta e arrancar a corda e os andrajos de penitência que lhe envolviam os flancos. Depois colocou seu cinto duplo da virgindade, um nos quadris, outro no peito.

    Isso feito, sacudiu as cinzas da cabeça, lavou as mãos e o rosto com água limpa, tomou também um véu fino e belíssimo e cobriu com ele a cabeça.

    José e Asenath. Fonte: [Tricca, p. 117]

    Pela cronologia bíblica, essa história se passa mais de 400 anos antes da narrativa do Êxodo e, por conseguinte, da entrega da Lei. Para os homens, a única regra de conversão explícita é a circuncisão (Gn. 17:9 – 14), inexistindo uma norma para as mulheres. É provável que o autor desse livro tenha transposto práticas já vigentes em sua época (ca. séc. I a.C. – II d.C.), quando o judaísmo contava com simpatizantes e prosélitos na diáspora (cf. At 6:5). Ainda hoje, os convertidos ao judaísmo concluem um longo processo de admissão com um banho de imersão ritual, após, no caso dos homens, submeterem-se à circuncisão (8).

    O que viria a ser o mais famoso ritual de purificação da cultura ocidental ficou registrado pelo historiador judeu Flávio Josefo e, notadamente, pelos evangelhos. Começando pelo primeiro, uma fonte não religiosa e, supostamente, independente (9):

    Alguns judeus pensavam que a destruição do exército de Herodes veio de Deus, de forma justa, como punição pelo que ele havia feito contra João, chamado Batista: pois Herodes o matara, ele que era um homem bom e pregava para que os judeus praticassem a virtude, tanto pela justiça de uns para com os outros, como pela reverência a Deus, para isso vindo ao batismo. Esta lavagem era aceita por ele, não se fosse para terem alguns pecados perdoados, mas para a purificação do corpo. A alma devia estar purificada antes pela retidão. Quando muitos vieram em multidão até João, movidos por suas palavras, Herodes, que temia a grande influência de João sobre o povo, o que permitiria que estimulasse uma revolta (pois pareciam prontos a fazer o que ele dissesse), pensou ser melhor matá-lo. Isto impediria qualquer ação contrária causada por João e não traria dificuldades para o rei, que poderia arrepender-se muito tarde de tê-lo deixado vivo. Assim, foi aprisionado em Maqueronte, castelo que mencionei antes, e morto. Os judeus consideraram que a destruição do exército de Herodes foi uma punição, para mostrar o desagrado de Deus

    Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap. V

    Josefo atribui a João um codinome que indica a prática de uma lavagem por imersão (de βαπτιστης, “imersor”), e o retrata como um mestre de sabedoria. Os evangelhos – os sinópticos em particular – acrescentaram um caráter apocalíptico a sua mensagem, um conceito desconhecido no universo greco-romanos do público-alvo de Josefo e bem difundido no judaísmo intertestamentário, inclusive na seita de Qumran. Ao contrário das práticas dela, porém, sua imersão não era um ritual a ser executado recorrentemente, nem após uma longa iniciação. Afinal, o juízo já lhe era iminente.

    Apareceu João batizando no deserto, e pregando o batismo de arrependimento, para remissão dos pecados.
    E toda a província da Judeia e os de Jerusalém iam ter com ele; e todos eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.

    Mc 1:4-5

    E, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus, que vinham ao seu batismo, dizia-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?
    Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento;
    E não presumais, de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que, mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão.
    E também agora está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo.

    Mt 3:7-10

    Dizia, pois, João à multidão que saía para ser batizada por ele: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?
    Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento, e não comeceis a dizer em vós mesmos: Temos Abraão por pai; porque eu vos digo que até destas pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão.
    E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda a árvore, pois, que não dá bom fruto, corta-se e lança-se no fogo.
    E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois?
    E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira.
    E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer?
    E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado.
    E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.

    Lc 3:7-14

    Portanto, tal como os essênios, João Batista advogava que a pureza moral proporcionada pelo arrependimento e conduta reta deveria preceder a ritual. Outra similaridade chamativa com a seita era a crença de que o Espírito Santo proporcionaria uma purificação mais completa do ser.

    E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas. Eu, em verdade, tenho-vos batizado com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.
    Mc 1:7,8

    E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo.

    Mt 3:11 (cf. Lc 3:16)

    Descontando-se a considerável cristianização que a figura de João Batista sofreu ao longo do tempo, é provável que, como apocalipsista de sua época, aguardasse a chegada do Filho do Homem (10), descrito em Daniel 7:1-7, I Enoque (cap. 58 e 69) e com paralelos em Qumran (4QFlor e 11QMelch). Diante de tantas semelhanças, há de se perguntar se João Batista teria sido um essênio que largou a clausura? É uma possibilidade, por outro lado, como demonstrado pela literatura intertestamentária, esses elementos já estavam disseminados no ambiente cultural do judaísmo do Segundo Templo. A seita pode apenas tê-los levado para dentro de sua comunidade quando decidiu se apartar do restante da população. Num caso ou no outro, o Batista serviu de elo entre as antigas práticas de purificação dos judeus e a iniciação dos seguidores de seu mais famoso imerso: Jesus de Nazaré.

    [topo]

    Nos Sinópticos, um Começo de Magistério

    Cena do batismo de Jesus em O Filho de Deus (2014)

    Com pequenas diferenças, o batismo de Jesus é retratado de maneira similar nos três sinópticos. Apresentando a de Marcos:

    E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Galiléia, foi batizado por João, no Jordão. E, logo que saiu da água, viu os céus abertos, e o Espírito, que como pomba descia sobre ele. E ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo.

    Mc 1:9-11

    Nos sinópticos, o batismo de Jesus marca o início de seu ministério público. Independentemente de uma “voz dos céus” realmente ter sido ouvida ou uma pomba repousado sobre Jesus, seus signos remetem a ideia de uma nova vida, quer por uma nova filiação ou pelo início de uma nova era; afinal uma pomba trouxe a Noé um ramo de oliveira assinalando o fim o dilúvio (8:11) e, em Cantares, a voz das rolas anunciava o fim do inverno (Ct 2:12). Por outro lado, também podem representar dor e provação: a Abraão foi dada a ordem para sacrificar seu filho Isaque (Gn 22) e a pomba era a oferta de sacrifício no Templo mais usada pelos pobres.

    Marcos dista uns trinta da morte de Jesus, teria havia tempo suficiente para seus continuadores e novos seguidores desenvolverem uma identificação com esse “renascer”? Pouca informação o primeiro dos evangelhos redigidos nos dá quanto a isso. Em um diálogo entre Jesus e seus discípulos em, há uma confirmação de que eles receberiam o mesmo “batismo que ele recebeu”, embora isso não aparente ser a preocupação central de Jesus quanto à conduta deles:

    Então, se aproximaram dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo-lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te vamos pedir. E ele lhes perguntou: Que quereis que vos faça? Responderam-lhe: Permite-nos que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda. Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batizado? Disseram-lhe: Podemos. Tornou-lhes Jesus: Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o batismo com que eu sou batizado; quanto, porém, ao assentar-se à minha direita ou à minha esquerda, não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado. Ouvindo isto, indignaram-se os dez contra Tiago e João. Mas Jesus, chamando-os para junto de si, disse-lhes: Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade. Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.

    Mc 10:35-45

    O tempo futuro usado na resposta de Jesus em Mc 10:39 indica que os apóstolos ainda não passaram pelo tal “batismo” nem provaram do cálice. Como Marcos já deveria ter conhecimento da morte de Tiago pelas mãos de Herodes Agripa (At 12:1,2), esta passagem é uma antecipação feita pelo evangelista da Última Ceia (cálice) e da morte de Jesus (batismo de sangue). Ou seja, ela serve para a justificação de um passado recente, mas não ao estabelecimento de um rito de iniciação. Alguns podem alegar que Mc 16:16 diz com todas as letras que é preciso “crer e ser batizado” para ser salvo, o que eu concordaria se não fosse um porém: os mais antigos manuscritos deste evangelho encerram o capítulo abruptamente no versículo 8, ou seja, tudo do versículo 9 em diante é espúrio (11).

    Ao copiar Mc 10:35-45, Mateus removeu a referência ao batismo de sangue (cf. Mt 20:20-8); quanto ao batismo convencional, as adições são poucas: uma é armadilha preparada pelos sacerdotes e anciãos indagando sobre a natureza do batismo de João (Mt 21:23-7) – que ficou em aberta pela evasiva de Jesus -, a outra é a crucial ordem dada no último capítulo, em polêmico versículo:

    Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;

    Mt 20:19

    Como a baixa cristologia de Mateus não nos oferece nada como “eu e o Pai somos um” ou “Eu sou“, é tentador pensar que houve uma adulteração. Há, inclusive, uma variante a este versículo sem fórmula trinitária ou alusão ao batismo, que se assemelha a Lc 24:47:

    Ide e fazei discípulos de todas as nações em Meu Nome, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado.

    Eusébio de Cesareia, Demonstratio Evangelica, III, 6

    O problema é que todos os manuscritos conhecidos até agora de Mateus, e que possuem seus últimos versículos, trazem a fórmula trinitária bem como a ordem para batizar. Eusébio, por sua vez, também é suspeito por ter sido simpatias pela causa ariana e proposto um credo de conciliação. Por ora essa questão permanece em aberto, cabendo-nos cogitar como a comunidade de Mateus poderia ter entendido essa fórmula de modo a manter uma baixa cristologia (12).

    Lucas também não acrescenta muito em relação a Marcos, possuindo também sua versão da pergunta dos sacerdotes a respeito do batismo de João (Lc 20:1-8) e, de forma sucinta, uma alusão ao batismo de sangue de Jesus (Lc 12:50). Em suma, baseando-se exclusivamente no material dos sinópticos, temos o ritual do batismo como uma preparação do povo para a chegada do Messias (Jesus) e o marco inicial de seu ministério, restando apenas uma dúbia ordem para sua prática aos novos conversos após a ressurreição.

    Entretanto falta um pormenor: Lucas possui um segundo volume: Atos dos Apóstolos.

    Já no segundo capítulo, na fala de Pedro à multidão cosmopolita estupefata diante do comportamento dos apóstolos após receberem as “línguas de fogo”, é dito:

    “Portanto, que todo o Israel fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez Senhor e Cristo”.

    Quando ouviram isso, ficaram aflitos em seu coração, e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: “Irmãos, que faremos?”

    Pedro respondeu: Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo.

    Pois a promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar.

    At 2:36-9

    Uma ordem que foi executada em diversas passagens do livro (At 8:12-7; 9:17,8; 10:44-8; 11:15-7; 19:5,6) em que o batismo de água e o do Espírito andam juntos, demonstrando que, para comunidade lucana, era importante uma pessoa se submeter a ambos para se tornar membro dela. De certa forma, Lucas trabalhou fazendo um paralelo (13) com o próprio batismo de Jesus: alguém, ao ser batizado, faria pregações similares e com resultados parecidos, faria milagres semelhantes e também teria visões. Enfim, o batismo seria o início de uma nova vida que espelhava (em menor escala) a de Jesus e dava continuidade a sua obra, podendo até levar a sofrer o mesmo destino. Assim, pela datação desse evangelho e de Atos, o ritual do batismo da água e do Espírito já estava estabelecido entre os cristãos da virada do primeiro século para o segundo. Será que há indícios dele um pouco antes?

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    Paulo: partilhando da Vitória de Cristo

    Mosaico do batismo de Paulo de Tarso

    O Batismo de São Paulo Mosaico do século XII da Capela Palatina, em Palermo (Sicília)

    O “apóstolo dos gentios” descreveu em sua carta escrita aos cristãos de Roma sua própria visão religiosa. Como única carta remanescente de Paulo direcionada a uma comunidade que não fora criada por ele, Romanos possui a característica ímpar de ser onde ele desenvolve em profundidade temas de sua mensagem que apenas comenta ou relembra a seus prosélitos nas demais, afinal teve de explicar tudo do zero a quem não conhecera pessoalmente. Por esse motivo, um nome mais adequado para esta carta seria “Evangelho segundo Paulo”, pois é aqui que descreve em pormenores sua fé e a “boa nova” que tinha a repassar. Em sua apresentação, Paulo expõe um pequeno catecismo cristão, testemunho de uma tradição que antecederia a própria redação do Novo Testamento:

    Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade [κατα πνευμα αγιωσυνης], pela ressurreição dentre os mortos – Jesus Cristo nosso Senhor -, pelo qual recebemos a graça e o apostolado, por amor do seu nome, para a obediência da fé entre todos os gentios, entre os quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo; a todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados para serdes santos: Graça a vós, e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

    Rm 1:1-7

    Nesse “cartão de visitas” em forma de credo condensado, Paulo usa um hebraísmo – “espírito de santidade” – em vez do simples adjetivo grego talvez por ser uma forma mais familiar aos fundadores daquela comunidade, além de reforçar sua apresentação como um cristão genuíno, não falso apóstolo a propagandear ideias alienígenas. Uma maneira de preparar terreno para expor sua própria visão a respeito da fé em Jesus: o papel central do martírio de Jesus e sua subsequente ressurreição na salvação da humanidade. Ou melhor, de todos aqueles que reconhecessem esse sacrifício e acreditassem em sua vitória sobre a morte.

    Há diferentes linhas de argumentação utilizadas por Paulo ao longo da carta (14). Uma das principais é o modelo judicial (cf. cap. 3 a 5): Deus seria uma espécie de legislador a regular como os humanos (judeus e gentios Rm 2:9-10) deveriam se portar. O problema é que ninguém, mas ninguém, consegue seguir suas leis, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23). Como Deus também é juiz (3:9), a humanidade toda está condenada. A solução, segundo esse argumento, estaria em outra pessoa cumprir a punição por nós, aí que entra o valor do sacrifício de Jesus na cruz (3:24) como forma de cumprimento alternativo da pena, cuja aprovação divina estaria no fato de ele ter sido ressuscitado em seguida (4:24-5). Aos humanos caberia aceitar de bom grado esse sacrifício ofertado em seu lugar (3:27-8).

    Outro argumento importante utilizado por Paulo foi o modelo participacionista. Enquanto o modelo visto acima explica a salvação por meios de termos “jurídicos”, este explica a salvação por meio de uma espécie de união com Jesus Cristo, que livra a humanidade das forças malignas. Bem que forças seriam essas?

    Como apocalipcista, Paulo acreditava num tipo de “dualismo brando”, em que haviam forças antagônicas a Deus regiam a Terra momentaneamente, até que Deus resolvesse intervir. Duas dessas formas cósmicas são de particular relevância: o Pecado e a Morte. Nisso as coisas começam a soar um tanto estranhas ao leitor moderno, para o qual “pecado” é algo ruim que alguém faz e “morte” é o cessar das funções vitais. No entanto, no primeiro século, tanto o ato quanto o fato eram produtos de entidades autônomas, que a todos controlavam. Começando pelo Pecado:

    • O pecado está no mundo (5:13);
    • O pecado governa as pessoas (5:21, 6:12);
    • As pessoas podem servir ao pecado (6:6);
    • Elas podem ser escravizadas pelo pecado (6:17);
    • Elas podem morrer ao pecar (6:11);
    • Elas podem ser libertas do pecado (6:18).

    O pecado, para Paulo, não é meramente algo que as pessoas fazem, mas sim um poder que as compele à prática do mal. Associado a ele, está outro poder maligno: a morte (6:21-3), que definitivamente afasta alguém de Deus. Ao ressuscitar, Jesus teria quebrado o jugo da morte e, por conseguinte, dos poderes com ela associados (6:9-10). Por meio do batismo, tomaríamos parte dessa vitória sobre a morte e nos reconciliaríamos com Deus. Para Paulo, o batismo não seria apenas uma simbólica limpeza de uma alma arrependida ou um rito de passagem para uma nova vida, mas uma experiência de união com Jesus Cristo de modo a participar de sua vitória com a morte:

    Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos? Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição, sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos; porquanto quem morreu está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos, sabedores de que, havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.

    Rm 1-11

    Valer reparar que, por esse modelo, embora os fiéis batizados já estivessem mortos em Cristo, i.e., partilhavam de sua vitória contra a morte e o pecado, isso não significava que não fossem mais morrer fisicamente. A salvação só estaria completa no fim dos tempos, quando seriam ressuscitados à semelhança dele. Até lá, deveriam viver “em novidade de vida”, pois já estariam livres da sujeição ao poder do pecado.

    * * *

    Apesar de Romanos já ser suficiente para atestar o valor que Paulo dava ao ritual do batismo, não será improvável encontrar apologistas que tentem rebater com o seguinte versículo:

    Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo.

    I Cor 1:17

    Esse é mais um clássico caso de texto fora do contexto se fazendo de pretexto. Vejamos mais:

    Pois a vosso respeito, meus irmãos, fui informado, pelos da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. Refiro-me ao fato de cada um de vós dizer: Eu sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo. Acaso, Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo? Dou graças [a Deus] porque a nenhum de vós batizei, exceto Crispo e Gaio; para que ninguém diga que fostes batizados em meu nome. Batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum outro. Porque Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo.

    I Cor 1:12-7

    A comunidade de Coríntio enfrentava uma série de problemas, dentre eles rixas internas. Paulo não estava menosprezando o ritual do batismo, apenas relatando seu alívio por não ter se tornado mais um elemento desagregador por ter se abstido de praticar o batismo entre eles e, assim, vincular sua imagem ao ritual. Embora essa tarefa pudesse ser delegada, não significa que considerasse o batismo como opcional, pelo contrário:

    Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.

    I Cor 12:13

    Assim, pela datação de I Coríntios, pode-se dizer que a associação entre o batismo e a ação do Espírito já estava estabelecida entre os cristãos por volta de 60 da era cristã.

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    Um Passo além: o Batismo no período Subapostólico

    Jesus como o bom pastaor

    Bom Pastor. Pintura mural das catacumbas de Priscilla, em Roma (século II)

    Quando os apóstolos já havia partido, mas uma estrutura bem organizada ainda não surgira, as comunidades cristãs lidavam como podiam com suas questões cotidianas. Uma tentativa de criar um conjunto mínimo de referências, foi redigida entre o final do primeiro século e o começo do segundo a Didaqué, também conhecida como “o Ensino dos doze Apóstolos”. Com seus conselhos, diretrizes e exortações, ela procurava amparar as nascentes comunidades numa época em que ainda existiam “profetas itinerantes” um tanto duvidosos e não caíssem em suas arapucas. No que tange ao batismo, ela nos oferece um pequeno manual de “como fazer”:

    Quanto ao batismo, procedam assim: Depois de ditas todas essas coisas [uma instrução quanto aos “dois caminhos”: o da vida (o Bem) e o da morte (o Mal)], batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

    Se você não tem água corrente, batize em outra água; se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente.

    Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

    Antes do batismo, tanto aquele que batiza como aquele que vai ser batizado, e se outros puderem também, observem o jejum. Àquele que vai ser batizado, você deverá ordenar jejum de um ou dois dias.

    Didaqué, cap. VII, tradução de Padres Apostólicos, pp.351-2

    A Didaqué reapresenta a fórmula trinitária utilizada por Mateus, da mesma forma como sua versão do Pai Nosso (cap. VIII) se assemelha mais à dele que à de Lucas, indicando que talvez tenham bebido da mesma tradição, além de ser um ponto a favor de Mt 28:19. Outro aspecto interessante que ela traz é a necessidade de lidar com questões de ordem prática na execução do ritual: embora recomendada, a imersão não era mais obrigatória.

    Enquanto a Didaqué já apresentava uma versão do batismo que viria a se tornar dominante posteriormente, outros textos contemporâneos seus exploravam concepções mais radicais quanto ao caráter e potencialidades do ritual, porém que seriam rejeitadas. Gostaria de comentar dois deles que constituem o que alguns chamam de “cânon falido”: textos de grande circulação nos primeiros séculos do cristianismo, mas que terminaram por ficar fora do Novo Testamento. Datado do começo do século II, o primeiro se chama Epístola de Barnabé, um verdadeiro tratado antissemita obcecado em provar que o judaísmo seria uma religião falsa e o cristianismo a verdadeira interpretação de suas Escrituras, usando e abusando de alegorias. No que diz respeito ao batismo, interpreta o Antigo Testamento alegoricamente a fim de deixar todo Israel de fora do ritual:

    Pesquisemos se o Senhor teve intenção de falar antecipadamente sobre a água e sobre a cruz.

    Quanto à água, está escrito que Israel não teria recebido o batismo que leva à remissão dos pecados, mas que eles próprios teriam construído um. Com efeito, diz o profeta [Jr 2:12,3 e Is 16:1-2]: “Pasma, ó céu, e que a terra trema ainda mais! Pois este povo cometeu um mal duplo: eles me abandonaram, a mim que sou a fonte viva da água, e cavaram para si mesmos uma cisterna da morte. Por acaso, o Sinai, minha montanha santa, é rocha deserta? Vós sereis como os passarinhos que voam, quando se lhes tira o ninho.” E o profeta diz ainda [Is 45:2,3 e Is 33:16–8]: “Eu marcharei à tua frente, aplainarei as montanhas, quebrarei as portas de bronze, despedaçarei as trancas de ferro, e te darei tesouros secretos, escondidos, invisíveis, a fim de que saibam que eu sou o Senhor Deus. Tu habitarás numa caverna alta de rocha sólida, onde a água não falta nunca. Vereis o rei em sua glória e vossa alma meditará no temor do Senhor.

    Epístola de Barnabé, 11:1-5

    No que diz respeito ao ritual em si, Barnabé inova ao dizer que o batismo leva à regeneração moral, em vez de esta ser requisito para ele:

    E outro profeta diz ainda (15): “E a terra de Jacó era celebrada mais do que qualquer outra terra“. Isso quer dizer que ele glorifica o vaso do seu Espírito. O que diz (16) ele a seguir? “Havia um rio que corria, vinda da direita, e árvores esplêndidas hauriam dele seu crescimento. Qualquer pessoa que delas comer, viverá eternamente.” Isso significa que descemos para a água carregados de pecados e poluição, mas subimos dela para dar frutos em nosso coração, tendo no Espírito o tempo e a esperança em Jesus. “Quem comer deles viverá eternamente“, quer dizer: quem escutar, quando tais palavras são ditas, e crer nelas, viverá eternamente.

    Idem, 11:9-11

    Algumas décadas depois, em meados do segundo século, com bem menos ódio e mais teor pio, um escritor cristão denominado Hermas redigiu um documento que viria a ser conhecido como A Carta do Pastor, ou, simplesmente, O Pastor. Teve boa aceitação entre os antigos cristãos (17) e, tal como a Epístola Barnabé, chegou até a ser incluído no Códice Sinaítico – um dos mais antigos manuscritos completos do Novo Testamento (18). Narrado em primeira pessoa, Hermas descreve os encontros que travou com um mediador que lhe apareceu na forma de um pastor, além de outras figuras angélicas. Esses diversos personagens lhe transmitem visões, mandamentos e parábolas; cujo significado ele sempre indaga, recebendo, então, uma explanação de seu mensageiro da ocasião, às vezes a contragosto do explanador. Durante o “Quarto Mandamento”, toca-se na questão do pecado e do batismo:

    Eu disse: “Senhor, ainda quero te fazer outra pergunta.” Ele respondeu: “Pergunta.” Continuei: “Ouvi alguns doutores dizerem que não há outra conversão além daquela do dia em que descemos à água e recebemos o perdão dos pecados anteriores.” Ele me respondeu: “Ouviste bem. E assim mesmo. Aquele que recebeu o perdão de seus pecados não deveria mais pecar, e sim permanecer na pureza. Entretanto, como queres saber tudo com pormenores, eu te explicarei também isso, sem dar pretexto para pecar aos que hão de crer ou aos que começaram agora a crer no Senhor, pois tanto uns como outros não têm necessidade de fazer penitência de seus pecados, pois seus pecados passados já foram abolidos. Para os que foram chamados antes destes dias, o Senhor estabeleceu uma penitência, pois o Senhor conhece os corações. E sabendo tudo de antemão, ele conheceu a fraqueza dos homens e a esperteza do diabo em fazer o mal aos servos de Deus e exercer sua malícia contra eles. Sendo misericordioso, o Senhor teve compaixão de sua criatura e estabeleceu a penitência, e deu-me o poder sobre ela. Todavia, eu te digo: se, depois desse chamado importante e solene, alguém, seduzido pelo diabo, cometer pecado, ele dispõe de uma só penitência; contudo, se peca repetidamente, ainda que se arrependa, a penitência será inútil para tal homem, pois dificilmente viverá.” Então eu lhe disse: “Senhor, sinto-me reviver depois de ouvir essas coisas tão pormenorizadamente, pois sei que serei salvo, se eu não continuar a pecar.” Ele me disse: “Serás salvo, tu e todos os que fizerem essas coisas.

    Carta do Pastor, cap. XXXI

    Hermas retorna a opinião original de que o batismo complementa um arrependimento prévio, mas não seria capaz de evitar recaídas no mal. Mas adiante, na Nona Parábola, ele compara o batismo a um “selo divino” (19) capaz de transformar os (espiritualmente) mortos em vivos:

    Eu pedi: “Senhor, explica-me mais ainda.” Ele respondeu: “O que procuras mais?” Eu continuei: “Senhor, por que as pedras tiveram que subir do fundo, para ser colocadas na construção da torre, embora tivessem esses espíritos?” Ele respondeu: “Era preciso que saíssem da água, para receber a vida. Elas não podiam entrar no Reino de Deus, senão deixando a mortalidade da vida anterior. Tais mortos receberam o selo do Filho de Deus e entraram no Reino de Deus. De fato, antes de levar o nome do Filho de Deus o homem está morto. Quando recebe o selo, deixa a morte e retoma a vida. O selo é a água: eles descem à água e daí saem vivos. Também a eles foi anunciado esse selo, e eles o usaram para entrar no Reino de Deus.” Eu perguntei: “Senhor, por que as quarenta pedras também sobem com eles do abismo, visto que estas já haviam recebido o selo?” Ele respondeu. “Porque esses apóstolos e doutores que anunciaram o nome do Filho de Deus, adormecidos no poder e na fé do Filho de Deus, o anunciaram também àqueles que tinham morrido antes deles, e lhes deram o selo do anúncio. Desceram com eles à água e novamente subiram. Contudo, desceram vivos e subiram vivos, enquanto os que estavam mortos antes deles desceram mortos e subiram vivos. E graças a eles que estes últimos receberam o nome do Filho de Deus. Por isso, subiram com eles, foram ajustados à construção da torre, e colocados sem ser lavrados, porque morreram na justiça e na pureza. Apenas não tinham o selo. Agora tens a explicação dessas coisas.” Eu respondi: “Sim, senhor.

    Idem, cap. XCIII

    Ao lado de Hermas e Barnabé, por pouco não ficou a Carta aos Hebreus, vista com desconfiança por sua autoria desconhecida e cuja tentativa de atribuição a Paulo já era questionada nos primeiros séculos. Em seu capítulo sexto, ela estabelece o batismo como doutrina fundamental e dá um alerta para os que fraquejam na fé:

    Por isso, pondo de parte os princípios elementares da doutrina de Cristo, deixemo-nos levar para o que é perfeito, não lançando, de novo, a base do arrependimento de obras mortas e da fé em Deus, o ensino de batismos e da imposição de mãos, da ressurreição dos mortos e do juízo eterno. Isso faremos, se Deus permitir. É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia.

    Hb 6:1-6

    Ou seja, para o anônimo autor de Hebreus, os que recaíssem em pecado não teriam uma segunda chance de arrependimento, uma exceção aberta por Hermas. Uma fórmula ritualística à moda das antigas purificações judaicas é usada por ele em Hb 10:22: “Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa“. O autor da Epístola deve ter feito uso dessa fórmula porque ela era tradicional, embora ele fosse oposto às “várias abluções“(Hb 9:9-10) dos judeus que, segundo ele, pertencem à categoria das “justificações da carne” e “não podem aperfeiçoar aquele que faz o serviço” (idem).

    Outras cartas canônicas – agora com autoria reconhecida pela tradição apesar de serem pseudonímias – trazem um entendimento multifacetado do batismo como ritual. Em Efésios (5:25-26), temos a lavagem mais como um simbolismo para a purificação, do que ela em si: “E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela Palavra(…)”, ao passo que I Pedro (I Pe 3:20,1) fala do batismo em termos semelhantes a Hebreus 10:22, aceitando-o como a confirmação de uma consciência purificada, mas rejeitando com toda a ênfase a ideia de um corpo purificado: “agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundície da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo.

    * * *

    Se, numa época quando a proto-ortodoxia ainda se organizava, eram de se esperar divergências em diversas questões doutrinárias. Então, o que pensariam acerca do batismo os grupos dissidentes?

    [topo]

    Um Toque Esotérico

    Os códices de manuscritos gnósticos descobertos em Nag Hammadi.

    Não é incomum encontrar quem pense terem constituído os gnósticos um grupo à parte da proto-ortodoxia, com seus próprios locais de cultos. Na verdade, eles foram um movimento secretista dentro da própria Igreja nascente. Eles estavam disseminados entre os fiéis comuns, partilhavam de suas atividades e cultos. Apartavam-se apenas quando o assunto era o “conhecimento” especial que julgavam ter, e, inclusive, admitiam que seus irmãos ignorantes – embora bons cristãos – também teriam direito a serem salvos, ainda que não recebessem uma salvação tão plena quanto a deles (20). Assim, os gnósticos também se batizavam; a questão é: o que o ritual significava para eles? Nas palavras de uma estudiosa do cristianismo gnóstico:

    (…) Felipe [no Evangelho Gnóstico de Felipe] pergunta O que acontece – ou não acontece – quando uma pessoa recebe o batismo? É o mesmo para todos? Felipe sugere que não. Há muita gente, diz ele, para quem o batismo simplesmente assinala a iniciação. Um indivíduo desses “entra na água e sai sem ter recebido nada e diz ‘Sou cristão'”(li). Às vezes, porém, prossegue Felipe, a pessoa batizada “recebe o Espírito Santo (…) que é o que acontece quando se experimenta um mistério”(lii). O que faz a diferença envolve não só a dádiva misteriosa da graça divina, mas também a capacidade de compreensão espiritual do iniciado.

    Assim, escreve Felipe, repetindo a carta de Paulo aos gálatas, muitos crentes se veem mais como escravos do que como filhos de Deus; mais os batizados, qual bebês recém-nascidos, destinam-se a crescer na fé rumo à esperança, ao amor e à compreensão (gnose):

    “A fé é a nossa terra, na qual criamos raízes; a esperança é a água que nos nutre; o amor é o ar com que crescemos; a gnose é a luz com que nos tornamos plenamente desenvolvidos” (liii).

    Quem inicialmente professa a fé no nascimento virgem pode, mais tarde, atingir uma compreensão diferente do que isso significa, explica ele. Muitos crentes continuam a interpretá-lo literalmente, como se Maria tivesse concebido sem José; “alguns dizem que Maria concebeu através do Espírito Santo”, mas “estão errados”(liv), diz Felipe. Pois o “nascimento virgem” não é algo que aconteceu uma vez a Jesus; refere-se ao que pode acontecer a qualquer um que seja batizado e “renascido” por meio de uma “virgem que desce”, ou seja, do Espírito Santo(lv). Assim como Jesus nasceu “espiritualmente” quando o Espírito Santo desceu sobre ele em seu batismo, também nós, que primeiro nascemos fisicamente, podemos “renascer por meio do Espírito Santo” no batismo, de modo que “ao nos tornarmos cristãos, passamos a ter um pai e uma mãe”, (lvi) ou seja, o Pai celestial e o Espírito Santo.

    Cf. [Pagels, cap IV, p.138-9].

    Notas da autora:
    (li)Evangelho de Felipe, 64.22-26
    (lii)Ibidem, 64.29-31
    (liii)Ibidem 79.25-31
    (liv)Ibidem 55.23-24
    (lv)Ibidem 71.3-15
    (lv)Ibidem 52.21-24

    Ou seja, ao menos para um grupo específico de gnósticos, o batismo, para alguns iluminados, propiciaria uma experiência de “renascimento” através do Espírito, que desvelaria o conhecimento (gnose) mais profundo. É um linguajar que guarda semelhança ao de uma passagem encontrada em outro evangelho de grande sucesso entre os gnósticos – embora tenha se originado fora de seus círculos -, a Boa Nova de João.

    [topo]

    O Novo Nascimento

    Jesus e Nicodemos

    Jesus e Nicodemos, por Crijn Hendricksz.

    Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus; pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.

    Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?

    Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode ser isto?

    Respondeu-lhe Jesus: Tu és mestre em Israel, e não entendes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testemunhamos o que temos visto; e não aceitais o nosso testemunho! Se vos falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem. E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna.

    Jo 3:1-15

    Único entre os evangelhos canônicos, João refaz elementos dos sinópticos de um jeito alternativo: a expulsão dos vendilhões do Templo se dá no começo de seu ministério, tendo ele de criar outra causa imediata (21) para a decisão do Sinédrio de entregar Jesus aos romanos; a instituição da eucaristia – o clímax da Última Ceia – é substituída por um (na verdade, dois) longo discurso de despedida; e o encontro de Jesus e João Batista nas águas do Jordão é narrado de forma indireta por este último (Jo 1:30-4). Embora haja uma série de sinais e prodígios, não há exorcismo algum; apesar de ressaltar uma regra de ouro – “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13:34) -, nenhuma parábola ao estilo dos sinópticos é contada (22).

    A diferença mais brutal, sem dúvida, é falta de qualquer pormenor quanto à mensagem de Jesus: o tema central deste evangelho é o próprio Jesus! Haveria razões para uma abordagem tão diferente? Pela dinâmica social que transparece nas linhas deste evangelho, pode-se intuir que sua comunidade estaria em crise: seus membros eram expulsos da sinagoga, desenvolviam, por conta disso, sentimentos antijudaicos (Jo 8:37:47), eram perseguidos pelos pagãos (Jo 17:14), e, como indica a Primeira Carta de João, enfrentavam uma rixa interna que terminou em cisma. Como se não bastasse, quiçá ainda enfrentasse a rivalidade com outras comunidades cristãs, como a que redigiu o evangelho gnóstico de Tomé, o Dídimo, dado o pouco apreço que essa figura recebeu durante o episódio da ressurreição, sendo retratado como incréu (Jo 20:24-9).

    Nesse contexto turbulento, a questão dos sacramentos também parece ser matéria de discussão. Embora não haja uma instituição da eucaristia na Última Ceia, ela aparece de forma poética num discurso dado no primeiro terço do livro:

    Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém visse ao Pai, a não ser aquele que é de Deus; este tem visto ao Pai. Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como nos pode dar este a sua carne a comer? Jesus, pois, lhes disse: Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu; não é o caso de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre.

    Jo 6:44-58

    Se isso foi uma adição posterior à redação original ou não, fica em aberto. Como em Jo 6:59 somos informados que Jesus “disse estas coisas na sinagoga, ensinando em Cafarnaum”, isso pode ser indício de uma justificação do ritual ante uma comunidade judaica que não o entendia e o desprezava. Neste caso, e em muitos aspectos, este evangelho aparenta não ter sido escrito como uma instrução a novatos – como foi o de Lucas – mas para a justificação da fé de uma comunidade que perigava colapsar. Quando Jesus deu um novo mandamento em Jo 13:34 – “amai-vos uns aos outros” – está implícito que outros mandamentos já eram de conhecimento de seus primeiros leitores/ouvintes.

    De forma similar, caso não existisse a conversa com Nicodemos pouca informação haveria quanto ao significado do batismo para aquela comunidade. O batismo do próprio Jesus aparece apenas nas entrelinha da fala de João Batista:

    E eu não o conhecia; mas, para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando com água.
    E João testificou, dizendo: Eu vi o Espírito descer do céu como pomba, e repousar sobre ele.
    E eu não o conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo.

    Jo 1:31-33

    A partir dos sinópticos, é possível saber a que esse episódio se refere, mas com o material exclusivo do próprio João, isso fica apenas sugerido. Seu público já o deveria saber por outros meios.
    Também chega a ser chamativa uma certa contradição que salta de seus versículos:

    Depois disto foi Jesus com os seus discípulos para a terra da Judeia; e estava ali com eles, e batizava (3:22)

    E quando o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João (ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos), deixou a Judeia, e foi outra vez para a Galileia. (4:1-3)

    O versículo Jo 4:2 tem forte cheiro de enxerto, deixando dúvida se toda essa comunidade acreditava que Jesus batizara em vida ou não. Sabemos que a comunidade passou por grave cisma por meio da primeira Epístola de João – um documento bem afinado com a teologia do Evangelho atribuído ao mesmo apóstolo -, mas especificamente uma dissidência de caráter docetista (23). Assim, no último capítulo dessa epístola, é feito um reforço aos aspectos redentores das substâncias materiais utilizadas na eucaristia e no batismo, que possivelmente eram desprezadas pelos dissidentes:

    Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? Este é aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só por água, mas por água e por sangue. E o Espírito é o que testifica, porque o Espírito é a verdade.

    1 Jo 5:5,6

    No enfoque de sanar contendas da comunidade e validar crenças, a conversa entre Jesus e Nicodemos vinha a resolver outro problema: o batismo deveria ser pela água ou pelo Espírito? Se lembramos a fala de João Batista (Jo 1:33): “o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo.” ficamos com a impressão de que Jesus não batizaria mais com água, o que pode ter gerado o arremedo que Jo 4:2. Lembrando a tradição de Atos, em algumas passagens o recebimento do Espírito se dá por imposição das mãos em pessoas previamente batizadas (At 8:17-8 e 19:6). Já em At 10:44-8, temos o padrão oposto: gente que primeiro recebeu o Espírito Santo (mesmo sem imposição de mãos) e só depois foi batizada. Isso sugere que, na Igreja primitiva, houvesse quem tomasse o batismo de água e o de Espírito por dois sacramentos separados (ou separáveis), uma ideia radicalizada entre a comunidade joanina, levando ao risco de o segundo preterir o primeiro. Assim, a conversa de Nicodemos vem a reafirmar a necessidade da sagração por ambos o meios para que se “nasça de novo”. No caso em particular dessa comunidade, o novo nascimento pressupunha a morte como judeu, afinal já haviam sido “mortos” ao serem expulsos da sinagoga (24).

    Um possível complemento a essa análise surge ao se reparar que a palavra grega anothen (Jo 3:3) pode significar tanto “de novo” como “do alto”, provocando um interessante jogo de palavras: Nicodemos teria compreendido o primeiro sentido, enquanto Jesus teria em mente o primeiro. O entendimento quanto a esse nascimento celestial (Cf. [Ehrman (2008), cap. XI, p.167]) só poderia ser explicado por aquele que tivesse vindo do céu: o Filho do Homem (Jo 3:13), que já é um circunlóquio para figura de Jesus nesse evangelho. Há um reforço ao sentido “do alto” por ocasião da fala de João Batista nesse mesmo capítulo

    Aquele que vem de cima [ανωθεν] é sobre todos; aquele que vem da terra é da terra e fala da terra. Aquele que vem do céu é sobre todos.

    Jo 3:31

    Contudo, a análise do tecido social do Quarto Evangelho passou longe do tratamento espírita a essa conversa e a análise linguística repete equívocos dos fanáticos religiosos que tanto eles criticam.

    [topo]

    A Releitura de Kardec

    Retrato de Allan Kardec

    Do Evangelho segundo o Espiritismo (ESE), cap. IV

    5 – E havia um homem dentre os fariseus, por nome Nicodemos, senador dos judeus. Este, uma noite, veio buscar a Jesus, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és mestre, vindo da parte de Deus, porque ninguém pode fazer estes milagres, que tu fazes, se Deus não estiver com ele. Jesus respondeu e lhe disse: Na verdade, na verdade te digo que não pode ver o Reino de Deus senão aquele que renascer de novo. Nicodemos lhe disse: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode entrar no ventre de sua mãe e nascer outra vez? Respondeu-lhe Jesus: Em verdade, em verdade te digo que quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus, o que é nascido de carne é carne, e o que é nascido do Espírito é Espírito. Não te maravilhes de eu te dizer que vos importa nascer de novo. O Espírito sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde ele vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do Espírito. Perguntou Nicodemos: Como se pode fazer isto? Respondeu Jesus: Tu és mestre em Israel, e não sabes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo: que nós dizemos o que sabemos, e damos testemunho do que vimos, e vós, com tudo isso, não recebeis o nosso testemunho. Se quando eu vos tenho falado das coisas terrenas, ainda assim me credes, como creríeis, se eu vos falasse das celestiais? (João, III: 1-12)

    6 – A ideia de que João Batista era Elias, e de que os profetas podiam reviver na Terra, encontra-se em muitas passagens dos Evangelhos, notadamente nas acima reproduzidas (nº 1 a 3). Se essa crença fosse um erro, Jesus não deixaria de combatê-la, como fez com tantas outras. Longe disso, porém, ele a sancionou com toda a sua autoridade, e a transformou num princípio, fazendo-a condição necessária, quando disse: Ninguém pode ver o Reino dos Céus, se não nascer de novo. E insistiu, acrescentando: Não te maravilhes de eu ter dito que é necessário nascer de novo.

    7 – Estas palavras: “Se não renascer da água e do Espírito”, foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. Mas o texto primitivo diz simplesmente: Não renascer da água e do Espírito, enquanto que, em algumas traduções, a expressão do Espírito foi substituída por do Espírito Santo, o que não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários feitos sobre o Evangelho, assim como um dia será constatado sem equívoco possível.(1)

    8 – Para compreender o verdadeiro sentido dessas palavras, é necessário reportar à significação da palavra, que não foi empregada no seu sentido específico. Os antigos tinham conhecimentos imperfeitos sobre as ciências físicas, e acreditavam que a Terra havia saído das águas. Por isso, consideravam a água como o elemento gerador absoluto. É assim que encontramos no Gênesis: “O Espírito de Deus era levado sobre as águas”, “flutuava sobre as águas”, “que o firmamento seja no meio das águas”, que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar, e que o elemento árido apareça”, “que as águas produzam animais viventes, que nadem na água, e pássaros que voem sobre a terra e debaixo do firmamento”.

    Conforme essa crença, a água se transformara no símbolo da natureza material, como o Espírito o era da natureza inteligente. Estas palavras: “Se o homem renascer da água e do Espírito”, ou “na água e no Espírito”, significam pois: “Se o homem não renascer com o corpo e a alma”. Neste sentido é que foram compreendidas no princípio.

    Esta interpretação se justifica, aliás, por estas outras palavras: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é Espírito”. Jesus faz aqui uma distinção positiva entre o Espírito e o corpo. “O que é nascido da carne é carne”, indica claramente que o corpo procede apenas do corpo, e que o Espírito é independente dele.

    9 – “O Espírito sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, é uma passagem que se pode entender pelo Espírito de Deus que dá a vida a quem quer, ou pela alma do homem. Nesta última acepção, a sequência: “mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, significa que não se sabe o que foi nem o que será o Espírito. Se, pelo contrário, o Espírito, ou alma, fosse criado com o corpo, saberíamos de onde ele vem, pois conheceríamos o seu começo. Em todo caso, esta passagem é a consagração do principio da preexistência da alma, e por conseguinte da pluralidade das existências.

    (…)

    (1) A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo, e traz: não renascer da água e do Espírito. A de Sacy diz do Espírito Santo. A de Lamennais também diz: Espírito Santo.

    Essa interpretação que Allan Kardec dá aos versículos de Jo 3:1-15 é menos apelativa que a dada no capítulo anterior do ESE, quando Jo 14:1-3 (“Há muitas moradas na casa de meu pai“) é utilizado como justificativa da vida em outros planetas (espiritual ou carnal). Eu também creio na possibilidade de que haja outros planetas habitados neste vasto universo, porém sou cético de que os antigos hebreus criam nisso. Tal interpretação soa mais como uma espécie de anacronismo: a transposição de ideias, conceitos, costumes, etc. de uma época para outra, a qual eles são alienígenas. O tratamento dado à conversa com Nicodemos padece do mesmo problema.

    Um adepto ou simpatizante pode não perceber isso, pois Kardec faz uma seleção de versículos auxiliares que lhe são úteis. A questão é que há, como vimos, toda uma massa de textos do Antigo Testamento, pseudoepígrafos, essênios, neotestamentários e da literatura cristã primitiva apontando para o uso de “água” e “Espírito” vinculados explicitamente à purificação e à iniciação, e não à reencarnação. Já essa última, quando indicada por espiritualistas, tem de ser extraída das entrelinhas. O sentido mais provável em que essas palavras “foram compreendidas no princípio” não foi o apregoado por Kardec.

    Um espírita tem todo o direito de assim interpretar, porém os demais religiosos não tem a menor obrigação de comprar esse peixe. Contudo o que é ruim ainda pôde ficar pior…

    [topo]

    Si hay Bautismo, soy Contra

    Emergindo das águas

    Pode não.

    Em Analisando as Traduções Bíblicas, cap. XVII, Severino Celestino da Silva sintetiza várias das objeções espíritas ao entendimento da conversa com Nicodemos como uma alusão ao batismo, além de acrescentar algumas de própria autoria:

    Perguntou-lhe Nicodemos: Como isso pode acontecer? Respondeu-lhe Jesus: És mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém não aceitais o nosso testemunho. Se não credes quando vos falo das coisas da terra, como ireis crer quando vos falar das coisas do céu?”

    Este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que querem negar a Reencarnação. No entanto, é o mais claro e contundente de todos, por isso, existe um verdadeiro malabarismo por parte destes, no sentido de obscurecer o verdadeiro e claro sentido desta passagem. Iniciamos pelo vocábulo “anóten” que em grego pode significar “de novo” e “do alto”.

    Nesta passagem, esse vocábulo significa realmente “de novo”, porém a maioria dos exegetas emprega o termo “do alto” para justificar a sua descrença na Reencarnação. Este malabarismo envolve também a questão gramatical na tradução do texto, como veremos mais adiante. Colocaremos, aqui, muitas observações e conceitos empregados, sobre este texto, feitos por Torres Pastorino na sua obra “Sabedoria do Evangelho”, com relação ao texto grego. Concordamos plenamente com todos os seus conceitos, razão por que o usaremos para reforçar nossa exegese. A análise do texto hebraico é de autoria e responsabilidade nossa.

    p. 238, 4a. ed.

    Vejamos, então, cada parte dessa análise:

    Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: “AQUELE QUE NÃO NASCER “DO ALTO”. Observe, no entanto, que a pergunta feita por Nicodemos, em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente em nascer “de novo” e não “do alto”: Como pode “o homem, depois de velho, entrar pela segunda vez (deuteron) no ventre materno?”

    Esta ambiguidade de entendimento só acontece na língua grega, porque no hebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com Nicodemos, este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode significar “do alto”. Diz o seguinte: (“im Iô iualed ish mimkôr ’ai lô-iukal lirôt et-malkut haelohim”) im=se, =nâo, iualed=incompleto do grau qal do verbo “nolad”=nascer, ish=um homem, mimekôr= palavra composta, formada por mi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão hebraica “Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da vida”. Observe que não existe nada referente “ao alto”, no texto grego, como muitos querem se fazer entender. Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem, no sentido de se voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente, “não poderá” (lô-iuchal=incompleto do verbo iachôl =poder) ver o reino de Deus (lirôt et-malkut haelohim).

    Assim, no diálogo, a palavra grega “anóten” tem o sentido e significado de “de novo”, portanto, Jesus falava de retorno, ou seja, de Reencarnação mesmo, como foi visto no texto hebraico.

    Lembramos, ainda, que Nicodemos já era um cidadão de idade avançada e o Cristo lhe fala de Reencarnação (Nascer de Novo), como uma esperança e reconforto para ele, mostrando-lhe que a vida não termina com a morte, nem os velhos devem temer a morte, pois podem renascer e começar tudo novamente.

    p. 239 [grifos do autor do livro]

    Eu não teria tanta certeza assim. Concordo que o texto é controverso: Na impressão de 1995 de A Bíblia de Jerusalém, optou-se pelo termo “do alto”, sem nenhuma alusão a duplo sentido (apenas fala “melhor do que ‘de novo’”). Já a impressão de 1998 substituiu anothen por “de novo” e criticou a tese do jogo de palavras. Segundo André Chouraqui, autor bem cotado pelo Dr. Severino, o anônimo redator do texto deixou transparecer que dominava tanto o idioma grego quanto os do ramo semítico (Chouraqui, A Bíblia – Johanam), podendo ter expresso seu raciocínio no primeiro idioma. Como não sou exegeta e, sim, alguém buscando mais um enfoque histórico, repito duas objeções implicitamente levantadas por Bart Ehrman [(2008), cap. XIV, p. 237] à historicidade do episódio:

    1. Tal diálogo ocorreu realmente?
    2. Se ocorreu, foi do jeito que consta no Evangelho de João?

    Sim, ainda hoje há adeptos da “fé racionada” achando que alguém gravou a conversa entre Jesus e Nicodemos, ao estilo do livro Operação Cavalo de Troia, ou, de forma menos apelativa, registrou taquigraficamente a conversa em uma tábua de cera. Se tal registro um dia existiu, encontra-se perdido. O que temos é o Evangelho de João, cuja língua original é tida como sendo a grega, pela maioria dos pesquisadores. O jogo de palavras feito pode ter sido a intenção de seu anônimo autor. “Peraí, o Dr. Severino postou o texto em hebraico“. Sim, fiquei tão surpreso que gostaria de saber de onde esse texto saiu. Nenhuma informação é dada em sua bibliografia e, ao que eu saiba, a primeira tradução para esse idioma foi feita nos tempos do Renascimento. Ou seja, até que se esclareça a fonte utilizada por ele, há um forte cheiro de uma tradução de outra tradução.

    Isso me lembra o episódio de Teodora e as 500 prostitutas assassinadas: ninguém soube indicar a fonte, embora propalassem o boato. Acho que a fonte hebraica para evangelho de João vai pelo mesmo caminho: quando um apologista espírita for cobrado, vai declarar frases como: “tenho que ir, pois vai chover!”, “Alá um disco voador!” ou “não tenho de dar fonte alguma pois você não refutou tais e tais pontos“… Haja paciência.

    [topo]

    Um Artigo (Nada) em Falta


    Os artigos gregos do nominativo singular

    Na sequência, Cristo confirma que era isso que Ele queria dizer: “Quem não nascer de água (materialmente, com o corpo denso, dado que o nascimento físico é feito através da bolsa d’água do líquido amniótico), (…) e de espírito (pneumatos), (ou seja, que adquirira nova personalidade no mundo terreno, em cada nova existência, a fim de progredir). Se Nicodemos entendeu ao pé da letra as palavras de Jesus, o Mestre confirma ao pé da letra e reforça o seu ensino. Com efeito, o espírito ao reentrar na vida física, pode ser considerado o mesmo espírito que inicia suas experiências, esquecido de todo o passado.”

    A questão gramatical: No texto em grego não há artigo diante das palavras “água” (ek ydatos = de água) e “espírito” (kai pneumatos), portanto, o texto fala em nascer “de água e de espírito”. Não é portanto, nascer da água do batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da reencarnação) e de espírito (pela Reencarnação do espírito).

    p. 239-40 [grifos do autor do livro]

    Agora será muito estranho o que vou dizer: a tradução em português que usa do artigo (“da água e do espírito”) é a mais correta! Bem, acho que o leitor deve estar se perguntando por quê? Para entender, vamos ter de entrar em certas particularidades do grego. Coisa que Severino da Silva não realçou é que a preposição εκ/εξ (e sua equivalente latina “ex”) não tem o sentido simples de nosso “de”. O mais preciso seria: de dentro para fora ( no espaço e no tempo), a partir de, de, origem, ponto de partida, de iniciativa.

    Exemplos retirados de [Murachco, pp. 563-565]:

    εκ θαλαττης – do mar. [a partir do mar]
    εκ παιδων – desde a infância. [a partir da infância]
    εκ χρυσων πινομεν φιαλων – Nós bebemos de taças de ouro.
    οι εξ εκεινων γεγονοτες – os que nasceram deles

    Note que em alguns dos exemplos, o artigo inexiste em grego, mas se faz necessário em português para dar a ideia de origem, como se fez em “da água” e “do espírito”, e não o uso deles como um veículo. Vale lembrar que várias palavras e, principalmente, sentenças de sentido geral não costumam levar artigo em grego: mar, cidade, céu, dia, sol e uma das gramáticas usadas pelo Dr. Severino informa isso (25). Não houve nenhuma garantia que um uso sem artigo (anartro) da palavra “água” foi feito, que teria causado uma ausência também em “espírito”. Para corroborar sua tese de que não se falou de batismo em tal versículo, Dr. Severino faz uma interpretação sui generis do livro de Gênesis:

    O primeiro versículo do Gênesis (1:1) fala que no princípio criou Deus os Céus e a terra. A palavra “céus” em hebraico “Shamaim” (…) significa: “Carrega água”, “Ali existe água”; “fogo e água” que, misturados um ao outro, formaram os Céus.

    Como podemos observar, tudo começou com as águas. Água é vida e essa era a crença geral naquela época. É lógico que o Cristo não falava de batismo e sim de retorno através da água. Lembramos ainda que 99% da constituição das células reprodutoras são água.

    p. 240 [grifos do autor do livro]

    A crença da época apontava a água como instrumento de purificação. Como já foi dito aqui anteriormente, há toda uma massa de textos do Antigo Testamento, pseudoepígrafos, essênios, neotestamentários e da literatura cristã primitiva apontando para o uso de “água” e “Espírito” vinculados explicitamente à purificação e à iniciação, em vez da reencarnação. E não será um versículo que mudará isso. Ademais, como o conceito de “célula” era desconhecido pelos antigos hebreus, a analogia com as células reprodutoras não passou de um forte anacronismo por parte do autor.

    Uma ironia é que logo no parágrafo seguinte, a palavra grega para “espírito” aparece precedida de artigo; um pormenor pelo qual Severino Celestino da Silva passou tangencialmente:

    Daí a explicação que segue “o que nasce da carne (ek tês sarkos) com artigo (tês) em grego, é carne”, isto é com corpo físico, com toda a hereditariedade física herdada do corpo dos pais; “e o que nasce do espírito (ek tou pneumatos) é espírito”, ou seja, o espírito que reencarna provém do espírito da última reencarnação com toda a hereditariedade pessoal (cármica) que traz do passado.

    p. 240 [grifos do autor do livro]

    Ou seja, nem ele explica que a tradução mais ao pé da letra de pneuma é “sopro” e ela não tinha o sentido de “alma” que ganhou com o tempo. Tanto que em textos de Justino Mártir (Diálogos…, IV) e Orígenes (Comentário sobre o Evangelho de João, livro VI, cap VII) é clara a distinção entre alma (psyché, em grego) e espírito (pneuma).

    E no próprio Novo Testamento há exemplos de expressões preposicionadas (com εκ e outras), de sentido definido, que não levam artigo em grego:

    εν αρχη – no princípio (Jo 1:1)
    απ’αρωχης – desde o princípio (Mt 19:4)
    εκ δεξιων – à direita (Mc 10:37)
    εκ αριοτερων – à esquerda (Mc 10:37)
    εκ νεκρων – dentre os mortos (Mt 17:9)
    εν πνευπατι – no espírito (Ef 6:18)

    Em resumo: em grego antigo, existia apenas o artigo defino. Sua presença delimitava o substantivo ao qual se referia, porém sua ausência não o tornava necessariamente indefinido. Clique neste link para acessar um estudo pormenorizado sobre o tema.

    [topo]

    Uns dizem um espírito, outros dizem o Espírito. Eles escreviam ΠΝΑ

    Jo 3:6 em P66
    foto de P66
    Papiro P66 em Jo 3:6

    Detalhe do papiro P66 em Jo 3:6, exibindo o nomem sacrum para pneuma em apenas uma das aparições dessa palavra no versículo. Extraído de Early Bible.

    Recapitulando as observações feitas por Kardec quanto às traduções que dispunha do Evangelhos João, em relação ao versículo 3:5:

    7 – Estas palavras: “Se não renascer da água e do Espírito”, foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. Mas o texto primitivo diz simplesmente: Não renascer da água e do Espírito, enquanto que, em algumas traduções, a expressão do Espírito foi substituída por do Espírito Santo, o que não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários feitos sobre o Evangelho, assim como um dia será constatado sem equívoco possível.(1)

    (. . .)

    Nota (1): A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo, e traz: não renascer da água e do Espírito. A de Sacy diz do Espírito Santo. A de Lamennais também diz: Espírito Santo.

    A tradução da Bíblia para o francês feita por Louis-Isaac Lemaistre de Sacy (1613 – 1684) se valeu da Vulgata, segundo informa a aprovação clerical recebida por ela. A tradução dos Evangelhos de Félicité Robert de Lamennais, em meados do século XIX, faz referências às leitura do texto grego e da Vulgata, embora em Jo 3:5 traga a leitura Esprit-Saint sem maiores explicações. Já o pastor protestante suíço Jean-Frédéric Osterwald (1663 – 1747) revisou a Bible de Genève com base no texto grego e redigiu apenas esprit, com letra minúscula. Tanto Kardec quanto Dr. Severino advogam que “espírito” em Jo 3:5 não deve ser entendido como “Espírito Santo” com base na autoridade do texto “mais antigo”.

    Inicialmente, vejamos o que entendiam os tradutores acima por “Vulgata” e “Texto Grego”. A primeira é a Vulgata Sixto-Clementina, uma recensão feita nos tempos da Contrarreforma da tradução de Jerônimo de Estridão. Alguns manuscritos da Vulgata – como o Códice Covensis – trazem a leitura ex aqua et Spiritu Sancto, enquanto o Códice Amiatinus – o mais antigo exemplar completo da Vulgata (ca. séc. VIII) – traz apenas ex … Spiritu. Já o mais tardio Códice Cavense (séc. IX) traz a leitura mais longa, assim como diversos outros códices cujas leituras refletem a Vetus Latina, além de ser citada por autores latinos tão separados no tempo como Tertuliano (séc. II e III, em De Baptismo, cap. XIII) e Tomás de Aquino (séc. XIII, em Suma Teológica, parte III, questão 66, art 2º). Essa leitura pode até não ser a original, porém é mais antiga do que sugere Kardec. Quanto a “texto grego”, entenda-se que seria o Textus Receptus (“Texto Recebido”), a edição do Novo Testamento em grego feita pelo erudito Erasmo de Roterdã (1466 – 1536). Apesar de todas as críticas justificadas feitas ao texto de Erasmo, não há em Jo 3:5 discrepância com relação aos manuscritos de melhor qualidade: apenas “εξ … πνευματος” aparece na fala de Jesus a Nicodemos. Teria, então, algum tradutor latino inserido no texto da Vetus uma interpretação em vez da tradução mais literal? É provável que sim, embora ele ainda seja inocente ou, pelo menos, digno de um atenuante, pois é possível rastrear essa associação de “espírito” como “Espírito Santo” em Jo 3:5 desde o século III. Como sabemos disso? Os antigos copistas deixaram indicações.

    Uma linha argumentativa recorrente entre pretensiosos “biblistas” espiritualistas é a de que, nos evangelhos, sempre se deveria escrever “espírito” em vez de “Espírito”, pois na antiguidade inexistiam a diferenciação entre letras maiúsculas e minúsculas, afinal essas últimas só foram inventadas na Idade Média. Portanto, qualquer um que traduza ΠΝEYMA por “Espírito” terá inserido uma interpretação teológica tardia, após a consolidação da doutrina da Trindade. Quem dera que os fatos fossem tão simples assim. De fato, os antigos copistas escreviam apenas em maiúsculas e, para economizar tempo e aproveitar ao máximo as caríssimas folhas de pergaminho, nãoseparavamumapalavradaoutra (scripta continua) recorriam muitas vezes a abreviaturas. Como essas eram feitas para as palavras mais frequentes, nada mais natural que as de cunho religioso fossem escolhidas e dessem origem ao que, em tempos modernos, seria designado como uma classe especial de abreviaturas: os nomina sacra (“nomes sagrados”).

    Uma particularidade interessante dos nomina sacra é que todos os manuscritos antigos possuem um conjunto mínimo deles, dando a entender que, se já não surgiram junto com os originais dos livros, começaram a ser utilizados bem cedo. Quatro nomes aparecem universalmente em todos os unciais na forma abreviada: “Senhor” (Κυριος), “Deus” (Θεος), “Jesus” (Ιησους) e “Cristo” (Χριστος). Conforme a datação dos manuscritos avança, outras palavras se juntam ao grupo, como “Pai” (Πατηρ), “Filho” (Υιος), “Cruz” (Cταυρος), “Israel” (Ισραηλ), “Céu” (Ουρανος), etc. Não havia uma regra única para as abreviaturas, mas, em geral, os copistas tomavam a primeira ou as duas primeiras letras, a última, e as sobrescreviam com um traço horizontal. Como a terminação de uma palavra variava conforme o caso em que se encontrasse, os nomina sacra também mudavam em concordância.

    Uncial Nominativo Genitivo
    Senhor ΚΥΡΙΟC ΚC ΚΥ
    Deus ΘΕΟC ΘC ΘΥ
    Jesus ΙΗCΟΥC ΙC ΙΥ
    Cristo ΧΡΙCΤΟC ΧC ΧΥ
    Espírito ΠΝΕΥΜΑ ΠΝΑ ΠΝC
    Pai ΠΑΤΗΡ ΠΗΡ ΠΡC
    Filho ΥΙΟC ΥC ΥΥ
    Cruz CΤΑΥΡΟC CΤC CΤΥ
    Israel ΙCΡΑΗΛ ΙΗΛ indeclinável
    Céu ΟΥΡΑΝΟC ΟΥΝΟC ΟΥΝΟΥ

    Lista não exaustiva de nomina sacra comuns em manuscritos do Novo Testamento. Não foram incluídas variantes como IHC para Jesus. Mais pormenores em [Comfort, cap. IV]

    Como se enquadra Pneuma no histórico do emprego dos nomina sacra? Seu nomen sacrum ΠΝΑ se encontra presente nos mais antigos manuscritos que chegaram até nós contendo a palavra “espírito” denotando uma origem divina, dando a entender que seria tão antigo quanto os quatro primários e seria tranquilamente aceito como um quinto membro desse grupo se não fosse por duas anomalias [Comfort, cap. IV, pp. 231-41]:

    • O papiro P46 (c. 175-225, contém epístolas paulinas) deixa de aplicar o nomen sacrum para o espírito divino em dez circunstâncias que seriam comumente aceitas depois;
    • O Códice Vaticano, contemporâneo do igualmente famoso Sinaítico (séc. IV), não possui nomen sacrum para Pneuma.

    Uma conciliação proposta é que P46 teria sido redigido numa época de transição, quando as abreviaturas para Pneuma ainda estavam se desenvolvendo e o Códice Vaticano seria uma reprodução de um manuscrito ainda mais antigo que P46. Com o material disponível atualmente, isso é apenas conjectura, não estando descartada a hipótese de o copista de P46 ter se descuidado. Por ora, pode-se afirmar que, se ΠΝΑ não for um nomen sacrum primário, ao menos é quase tão antigo quanto os desse grupo.

    O impacto desse registro paleográfico é deixar claro que a personalização do Espírito Santo – representando um ente específico e não uma classe – se encontra presente desde o II século de nossa Era e duzentos anos antes do I Concílio de Constantinopla. E, embora o registro escrito fosse bem mais precário, os antigos tinham, sim, seus meios para destacar o que lhes era relevante. Os nomina sacra constituíam um deles. Não revelam apenas vislumbres de como “Espírito” era compreendido, mas também aspectos um pouco mais profundos de exegese. Por exemplo, relembrando o diálogo entre Jesus e Nicodemus, mais especificamente este versículo:

    Jo 3:6
    P66
    (Fonte)
    Papiro P66 em Jo 3:6
    P75
    (Fonte)
    Papiro P75 em Jo 3:6

    A última oração do versículo – και το γεγεννημενον εκ του πνευματος πνευμα εστιν (“e o que é nascido do espírito é espírito”) – é interpretada de forma diferente pelos copistas. O de P66 distinguiu o Espírito divino do humano, dando a entender que “o Espírito divino gera o espírito humano”. Essa é a interpretação da maioria das traduções modernas. Já o de P75, por sua vez, tratou os dois como divinos, sugerindo que “o que é gerado pelo Espírito também é divino”. A passagem, sem dúvida, permite mais de um entendimento, não havendo razão alguma para se considerar o viés reencarnacionista como o único possível, como fazem certos apologistas espíritas. Bem antes de Niceia, as opiniões eram outras…
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    Várias Línguas, Poucos Poliglotas

    Jesus perante Pilatos

    – Quid est veritas?
    – Por favor, Pilatos, você deveria falar:
    Τι εστιν αληθεια;
    Aliás, cadê o intérprete nesta cena do filme?

    Na encruzilhada de diversos impérios ao longo de sua história, a região do antigo reino de Herodes recebeu diversas influências, que deixaram suas marcas linguística nas culturas locais. Quatro são os idiomas em questão: hebraico, aramaico, grego e latim; cada um com um papel diferente em sua sociedade no primeiro século da Era Comum.

    1. Latim: Do grupo, este idioma era o “recém-chegado”, tendo sido apresentado às terras da Judeia pelas tropas do general Pompeu em 63 a.C., passando a marcar um pouco mais de presença quando ela passou para a administração de direta de Roma no sexto ano da Era Comum. Com certeza era ouvida na capital administrativa, Cesareia Marítima, entre os soldados e altos funcionários civis do império, contudo era a língua do conquistador. Para um romano, aprender um idioma local seria uma habilidade a mais, já um nativo poderia ser visto como traidor se fizesse o contrário. Inscrições monumentais encontradas nos vestígios arqueológicos das construções romanas da época de forma alguma significam que seus autores desejavam ser lidos por outros que não fossem os seus. Os romanos se congratulavam entre si e, para os que estavam de fora, a mensagem de uma inscrição latina era sempre a mesma: “Roma manda aqui“;
    2. Grego: difundido no Levante pelas tropas de Alexandre da Macedônia, o dialeto koiné desse idioma era a língua internacional da helenizada orla oriental do Mediterrâneo no primeiro século da Era Comum e só perderia esse posto após a expansão do Islã, a partir do século VII. Na divisão do império macedônio, a Judeia ficou inicialmente com o Egito dos Ptolomeus e, em seguida, passou para o domínio dos Selêucidas da Síria. Esse último tentou impor uma helenização forçada e acelerada que resultou na vitoriosa revolta dos Macabeus e na instauração da dinastia Hasmoneia. Entretanto, isso não foi o fim da influência grega na região, afinal já estavam estabelecidas grandes comunidades judaicas pelo mundo helênico, cujo idioma materno não era mais o hebraico ou o aramaico e, sim, o grego. Em suas peregrinações ao Templo, esses judeus da diáspora faziam garantir que a língua de Platão fosse escutada pelos nativos Jerusalém e arredores. Com a conquista romana e o reinado de Herodes, uma nova fase de aculturação começou e voltaram a florescer colônias gregas nas bordas de seu reino. Um desses centros cosmopolitas foi a cidade de Séforis, localizada a apenas 7 km de Nazaré, onde um certo jovem galileu chamado Jesus deve ter trabalhado. Sim, Jesus Histórico com certeza travou contato com a cultura greco-romana e em algum grau deveria compreender a língua franca de sua região – o grego koiné, a questão é qual era seu provável grau de intimidade com o idioma? Ou, em outras palavras, até onde era difundido o bilinguismo na Galileia/Judeia do primeiro século?De fato, mesmo uma pessoa pouco instruída pode dominar várias línguas caso tenha sido exposta a elas desde cedo ao interagir com falantes nativos de outros idiomas. Contudo, ser capaz de realizar transações comerciais, fornecer instruções objetivas, ou dar explicações de como chegar a algum lugar, requer bem menos vocabulário e domínio da gramática que sermões religiosos ou expressões de afeto. Via de regra, gentios e judeus viviam perto uns dos outros o suficiente para estabelecer um contato superficial, mas dificilmente seriam entrosados o bastante para precisar de uma comunicação profunda. O fato de alguns discípulos de Jesus – como Felipe e André – e o próprio Nicodemos possuírem nomes de origem helênica atesta uma elevada influência da cultura grega na região, mas pouco garante algo sobre o bilinguismo de seus habitantes. Um paralelo moderno pode ser a profusão de nomes próprios de origem inglesa na Brasil, mesmo nas camadas populares (às vezes grosseiramente aportuguesados), embora o grosso da população continue monoglota.

      Alguns relatos fora dos evangelhos reforçam a ideia de que a maioria dos judeus locais não possuía o grego como primeira língua:

      • Em Atos, capítulos VI a VIII, é relatada uma rixa entre os “judeus de fala hebraica” e os de “fala grega”. Bem, esses dois grupos deveriam se comunicar utilizando alguma língua em comum, mas qual? No capítulo XXI, vv. 37-40, Paulo comunica-se com os soldados que o prendem em grego, mas fala à multidão em aramaico. Ainda que tal passagem não tenha sido 100% verídica, a Lucas deve ter tentado dar plausibilidade à narrativa, lembrando que a maioria dos os ouvintes não dominava o grego muito bem. Assim, os bilíngues eram os judeus de fala grega, como Paulo o era;
      • No livro V, capítulo IX de A Guerra dos Judeus, Flávio Josefo informa que serviu de intérprete para o general romano Tito:

        Mas então Tito, sabendo que a cidade [Jerusalém] seria ou salva ou destruída por ele mesmo, não apenas procedeu prontamente ao cerco, mas não deixou de exortar os judeus ao arrependimento; de modo que uniu um bom aconselhamento com seus trabalhos de cerco. E tendo o senso de que exortações são frequentemente mais efetivas que braços, persuadiu-os a entregar a cidade, que já estava tomada de certa forma, e assim se salvarem, e enviou Josefo para falar com eles em sua própria língua; pois imaginou que poderiam ceder à persuasão de um conterrâneo deles.

      Assim, é provável que Jesus (o Histórico) conhecesse e até entendesse um pouco de grego, mas com certeza não era sua língua materna, nem o idioma com que pregava às massas.

    3. Hebraico: Com o Cativeiro de Babilônia (590 – 538 a.C.) , os israelitas remanescentes foram expostos ao, ou melhor, imersos no idioma do conquistador: o aramaico, que era um parente próximo do hebraico na família das línguas semíticas. Mesmo com a queda do Império Babilônico ante os persas e o retorno de parcela do povo a Israel, ele continuou a ser a língua oficial da parte ocidental do novo império. Com seu uso constante no contato com outros povos, quer na diplomacia ou no comércio, e com os que permaneceram na Babilônia fez o aramaico suplantar o hebraico como língua materna dos judeus, deixando ao segundo apenas o uso litúrgico. O livro de Neemias (v. 13:24) dá um registro dessa mudança linguística ao relatar que metade dos filhos de casamentos mistos “não sabia mais o hebraico”. Acredita-se que ao tempo de Jesus, esse processo já estivesse quase completo na Palestina romana.Estaria o hebraico ainda vivo o bastante para ter sido usado como veículo para a pregação de Jesus? Nem todos os judeus foram exilados na Babilônia e, com certeza, ele ainda era usado nas Sinagogas, mas e fora delas? As regiões rurais poderiam ser isoladas o bastante ter ficado imunes a exílio, num primeiro momento, e ao cosmopolitismo posterior; além do que, bem longe de Jerusalém, a comunidade de Qumran escreveu todos os seus textos doutrinários em hebraico, indicando que deveria ser ao menos a língua litúrgica local. Entretanto, já não era o hebraico dos livros bíblicos, mas um intermediário entre ele o hebraico mishinaico utilizado pelos rabinos após a revolta de Bar Kochba, o que seria sinal de que o hebraico continuava a evoluir como língua justamente por ainda estar bem vivo.

      Esses indícios, contudo, não são conclusivos: quinze porcento dos textos bíblicos em Qumran estão em aramaico, indicando que boa parte dos membros da comunidade (os novatos, talvez) não conseguia ler diretamente em hebraico, além do fato de línguas puramente escritas também evoluírem, embora mais devagar, por causa da evolução do meio ambiente em que seus redatores vivem e da língua que falam (26). O hebraico pode, sim, ter sobrevivido nas isoladas colinas ao sul da Judeia (27), mas para as maiores aglomerações, evidências apontam para uma quarta opção de língua vernacular.

    4. Aramaico: Ao contrário do latim e o grego, o aramaico contava para os falantes de hebraico com a vantagem de pertencer à mesma família de línguas – a semítico-ocidental -, e a similaridade entre esses dois era comparável com a que existe entre as atuais línguas neolatinas. Isso, sem dúvida, ajudou o aramaico a suplantar o hebraico, fincando sua presença, inclusive, nos mais tardios livros que viriam a constituir o Antigo Testamento: metade do livro de Daniel está escrito nessa língua (Dn 2:4b–7:28) e trechos longos Esdras, também (4:8–6:18 e 7:12–26). Por fim, sua escrita “quadrada” substituiu a variante do alfabeto fenício usada antes do Exílio.Fora dos textos bíblicos, a evidência das inscrições monumentais, lapidares (ossários) e de correspondências aponta para uma predominância do aramaico sobre o hebraico em antigas áreas de preponderância semita na Judeia do primeiro século e adjacências (28). O aramaico, portanto, deve ter sido o idioma de uso mais corrente entre o povo de Jerusalém e ainda mais no da Galileia. Se Jesus desejou que sua mensagem alcançasse o maior número de pessoas, então deve ter se valido deste idioma. Nos evangelhos, várias palavras de origem aramaica – como Abba (Mc 14:26, “Pai”) ou Rabôni (“Mestre”, Jo 20:16) – aparecem com uma explanação de sentido para seus leitores gregos, além do grito de Jesus (Mt 27:46) na crucificação – “Eli, Eli, lema sabachthani?(29), cuja última palavra está indiscutivelmente em aramaico (30). Embora não se possa garantir historicidade nas falas em que ocorrem esses aramaísmos, ao menos os evangelistas procuraram apresentar Jesus como um falante de aramaico.

    Ainda que o aramaico fosse a primeira opção de Jesus, teria sido possível que ele pregasse em outras línguas? Bem, tudo dependeria de seus interlocutores e do quanto ele dominava o idioma deles. Dentro das sinagogas, o uso do hebraico poderia ser válido, supondo um Jesus instruído formalmente na Torá. A conversação em alguns episódios das narrativas evangélicas – como a cura do servo de um centurião (Mt 8:5-13 e Lc 7:1-10) e o diálogo com Pilatos -, caso verídicos, teriam sido em grego pelo fato de um dos interlocutores ser totalmente alienígena à cultura local. Entretanto, que não se descarte a hipótese de que tenha havido um intérprete no meio, suprimido pela tradição que chegou aos evangelistas (31). No caso da conversa com Nicodemos, temos dois semitas falando ambiente indeterminado. Nada indica que essa conversa se deu em grego ou algum nicho em que a adoção do hebraico fosse presumida. Assim, o duplo sentido de novo/do alto seria inválido por não ser possível de ser reproduzido em aramaico, certo? Talvez se esteja procurando a resposta nos locais errados.
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    Buscando-se apenas onde há luz

    Vela na escuridão

    – Estou procurando por minha moeda de 25 centavos que deixei cair.
    – Você a deixou cair aqui?
    – Não, deixei cair duas quadras rua abaixo.
    – Então por que está procurando por ela aqui?
    – Porque aqui a luz é melhor.

    (Mutt and Jeff, 1942)

    Na questão dos manuscritos originais dos evangelhos (autógrafos), temos, ao menos provisoriamente, uma certeza e uma grande dúvida: todas as cópias mais antigas disponíveis estão em grego e não se sabe se seriam, na verdade, reproduções de traduções feitas a partir de originais em aramaico. É possível, também, que os evangelhos tenham sido redigidos já em grego, porém baseados em fontes aramaicas. Eusébio de Cesareia, em A História Eclesiástica (livro V, XXXIX, 16), cita uma observação feita pelo um antigo escritor cristão e bispo de Hierápolis, Papias (32), acerca da redação de Mateus: “Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia.” Teriam sido essas sentenças uma primeira redação dos ditos de Q e depois algum anônimo juntou com a narrativa de Marcos que, segundo o próprio Papias (idem, XXXIX, 15) “foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito“, dando origem ao atual evangelho de Mateus? Possivelmente, conforme a hipótese quádrupla da origem dos sinópticos, mas como Marcos teria sido bilíngue e já se tentavam traduzir as “sentenças de Mateus”, essa junção já poderia ter ocorrido diretamente em grego. A dobradinha Lucas/Atos, com sua dedicatória a Teófilo e um enfoque da migração do cristianismo dos judeus para o mundo, certamente foi escrita em grego. Quanto ao Evangelho de João, as dúvidas são ainda maiores a respeito de um possível original semita seu ou de parte dele. A tensão retratada entre cristãos e judeus aliada à virtual ausência dos saduceus e dos zelotas em seu texto sugerem uma redação após 70 d.C., quando fariseus e nazarenos entraram em rota de colisão e diáspora se acelerou. Seu mais antigo exemplar – o diminuto papiro P52 – é datado em cerca de 125 d.C., já com um texto em grego. Pela análise de seu texto, cogita-se a existência de certas fontes empregadas por seu anônimo redator (o hino do prólogo, um evangelho de sinais, uma coletânea de discursos e uma narrativa da paixão), mas não há como lhes garantir uma origem aramaica. Entretanto, há quem aposte nessa tese.

    James David Audlin é um de seus principais advogados e, embora seja algo ainda bem controverso, ele teve uma interessante sacada quanto à inviabilidade de uma palavra aramaica como o mesmo duplo sentido da grega anothen: na verdade, o duplo sentido existente em aramaico era outro – similar, mas não idêntico – e anothen foi a tentativa de um tradutor grego de simulá-lo. Para saber qual seria essa palavra, Audlin se vale da Peshitta, a versão da Bíblia escrita em siríaco (o dialeto aramaico da Síria), que fornece em Jo 3:3 a palavra ܪܝܫ (riysh), que pode significar “cabeça”, “princípio”, “principal”. Eis alguns usos seus no Novo Testamento siríaco:

    • Cabeça (1 Cor 12:21)
    • Pedra angular (lit. “cabeça da esquina” ou “principal da esquina”, Mc 12:10, Lc 20:17, At 4:11, I Pd 2:6 e Ef 2:20)
    • Princípio, começo (Mc 1:1 e Jo 1:1)
    • Primeiro (Col 2:16 – referindo-se à primeira lua nova do mês)
    • Ponta (Lc 16:24)
    • Extremidade (Mc 13:27)
    • Chefe, líder (Mt 9:34, Lc 8:41, Ef 2:2)

    Do jeito que riysh está preposicionada e prefixada no diálogo com Nicodemos (men d’riysh, literalmente, “(a partir )do começo”, ela forma uma expressão muito similar à italiana da capo, podendo significar realmente “de novo” – como indiscutivelmente ela aparece em Gl 4:9,19 ou II Cor 3:1 -, porém também poderia ser entendida como “(a partir) do topo”, i.e, “de Deus”. É um raciocínio interessante e mataria a questão se não fosse por um pormenor: em nenhum outro lugar do Novo Testamento men d’riysh é usada indubitavelmente para indicar um lugar superior. Portanto, Audlin pode estar “forçando a barra” e impondo a um idiomático um significado que nunca teve. Como já expliquei em outro lugar, não basta um dicionário para validar uma tradução, pois quem define o significado de uma palavra é quem a usa. Dicionários apenas correm atrás.

    Por outro lado, um dos livros do Novo Testamento em que a Peshitta traz esse idiomático duas vezes no mesmo capítulo, com um contexto bem revelador:

    Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos,
    I Pedro 1:3

    (…)

    Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro;
    Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre.
    I Pedro 1:22-3

    O anônimo autor de I Pedro advogava uma regeneração moral por meio do Espírito e, provavelmente o tradutor da Peshitta identificou isso em Jo 3:3. De fato, não é preciso um jogo de palavras para produzir um duplo sentido que confundisse Nicodemos. Ele não estava sozinho.

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    Dois passos além: os Primeiros Apologistas

    Catacumba cristã

    Na segunda metade do segundo século, o cristianismo se fragmentava em várias facções. Alguns, como os seguidores de Marcião, desejavam romper com o passado judaico da religião, pois julgavam o Pai de Jesus tão diferente do Javé dos patriarcas, que atribuíram ao último um status muito inferior e indigno. Baseando-se em princípio semelhante, grupos esotéricos o tratavam como um demiurgo inferior a aprisionar as almas humanas nos corpos terrenos; e, munidos de sofisticadas alegorias, compuseram complexos sistemas para explanar a catástrofe cósmica que levou inúmeras centelhas divinas a caírem nas garras desse demiurgo, assim como para designar Jesus como um enviado do deus bom com a missão de levar o conhecimento (gnose) necessário para que elas se libertassem e retornassem ao domínio celeste. No outro extremo, persistiam comunidades de judeus cristãos, a advogar que a circuncisão era fundamental para sinalizar a aliança com o Criador, cuja Lei fora dada a Moisés e magnificamente cumprida pelo Nazareno.

    No meio de campo, diversas comunidades se organizavam na busca por um grande compromisso: achavam que era possível ser bom cristão sem se converter ao judaísmo, ao mesmo tempo que louvavam a Escritura por ele legada. Lançavam mão de alegorias para Justificar passagens embaraçosas contidas nela, além justificar Jesus como Messias prometido -, mas paravam por aí. O deus de Abraão era o mesmo deles, do qual se julgavam filhos por adoção. Eis o grupo que viria a constituir a ortodoxia moderna, embora isso ainda incerto àquela época. Na luta por corações e mentes, esse grupo contou com seu próprio exército intelectual a justificar seu ponto de vista sobre os demais. No que tange ao batismo alguns nomes se destacam:

    • Teófilo de Antioquia (? – ca. 186 d.C.): focou na defesa contra as críticas pagãs. Em seu tratado direcionado a elas, considerou o batismo como um propiciador da renovação da vida moral, espelhando a narrativa bíblica da criação do mundo:

      No quinto dia foram criados os animais que procedem das águas, pelas quais e nas quais se mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem seria capaz de enumerar sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas espécies? Além disso, o que foi criado das águas por Deus foi abençoado por ele, para que isso servisse de prova sobre o que os homens deveriam receber: penitência e remissão dos pecados através da água e banho de regeneração [λουτρου παλιγγενεσιας], todos os que se aproximam da verdade, renascem e recebem a bênção de Deus.

      II Livro a Autólico, cap. XVI. Texto grego em Patrologia Graeca, Migne, Vol. VI, col. 1.078

    • Irineu de Lião (ca. 130 — 202): mais conhecido por sua obra Contra as Heresias, em que lança veemente ataque aos gnósticos, escreveu, também, um pequeno tratado que pode seu considerado um catecismo para adultos ou uma síntese de sua obra mais famosa. Nele deixa bem claro seu entendimento quanto ao papel do batismo:

      Assim, pois, por temer coisa semelhante [impiedade por meio da heresia], devemos manter inalterada a regra da fé e cumprir os mandamentos de Deus, crendo n’Ele, temendo-O como Senhor e amando-O como Pai. Portanto, um comportamento deste estilo é uma conquista da fé, pois, como diz Isaías: “Se não creres, não compreendereis” (Is. 7,9). A fé nos é concedida pela verdade, pois a fé se fundamenta na verdade. De fato, cremos o que realmente é e como é; e crendo no que realmente é e como sempre foi, mantemos firme nossa adesão. Pois bem: posto que a fé sustenta nossa salvação, é necessário prestar-lhe muita atenção para obter uma inteligência autêntica da realidade. A fé é que nos faz procurar tudo isso, como nos transmitiu os Presbíteros, discípulos dos apóstolos. Em primeiro lugar, a fé nos convida insistentemente a relembrar que recebemos o batismo para o perdão dos pecados em nome de Deus Pai e em nome de Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, e [em nome] do Espírito Santo de Deus; que o batismo é o selo da vida eterna, o novo nascimento de Deus, de modo tal que não somos mais filhos de homens mortais, mas do Deus eterno e indefectível; que o Eterno e Indefectível é Deus, acima de todas as criaturas, e que cada coisa, seja qual for a sua espécie, está submetida a Ele; e tudo o que foi a Ele submetido foi por Ele criado. Deus, portanto, não exerce seu poder e soberania sobre o que pertence aos outros, mas sobre o que lhe é próprio. E tudo é de Deus. Com efeito, Deus é onipotente e tudo provém d’Ele.

      Demonstração [ou Exposição] da Pregação Apostólica, cap. III

    • Justino, o Mártir (ca. 100 – ca. 165 d.c.): em sua Apologia do cristianismo endereçada ao imperador Antonino Pio é feita uma descrição do ritual do batismo:

      Explicaremos agora de que modo, depois de renovados por Jesus Cristo, nos consagramos a Deus, para que não aconteça que, omitindo nesse ponto, demos a impressão de proceder um pouco maliciosamente em nossa exposição. Todos os que se convencem e acreditam que são verdadeiras essas coisas que nós ensinamos e dizemos, e prometem que poderão viver de acordo com elas, são instruídos, em primeiro lugar, para que com jejum orem e peçam perdão a Deus por seus pecados anteriormente cometidos, e nós oramos e jejuamos juntamente com eles. Depois os conduzimos a um lugar onde haja água e pelo mesmo banho de regeneração, como que também nós fomos regenerados, eles são regenerados, pois então tomam na água o banho em nome de Deus, Pai soberano do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo. É assim que Cristo disse: “Se não nascerdes de novo, não entrareis no Reino dos Céus” (cf. Jo 3:3,4). É evidente para todos que, uma vez nascidos, não é possível entrar de novo no seio de nossas mães. Também o profeta Isaías, como citamos anteriormente, disse como fugiram dos pecados aqueles que antes pecaram e agora se arrependem. Eis o que ele disse: “Lavai-vos, purificai-vos, tirai as maldades de vossas almas e aprendei a fazer o bem, julgai o órfão e fazei justiça à viúva; então vinde e conversemos, diz o Senhor. Se vossos pecados forem como púrpura, eu os tornarei brancos como a lã; se forem como o escarlate, eu os alvejarei como a neve. Se não me escutardes, a espada vos devorará, porque assim falou o Senhor” (cf. Is 1:16-20). A explicação que aprendemos dos apóstolos sobre isso é a seguinte: uma vez que não tivemos consciência de nosso primeiro nascimento, pois fomos gerados por necessidade de um germe úmido, através da união mútua de nossos pais, e nos criamos em costumes maus e em conduta perversa, agora, para que não continuemos sendo filhos da necessidade e da ignorância, mas da liberdade e do conhecimento e, ao mesmo tempo, alcancemos o perdão de nossos pecados anteriores, pronuncia-se na água, sobre aquele que decidiu regenerar-se e se arrepende de seus pecados, o nome de Deus, Pai e soberano do universo; e aquele que conduz ao banho pronuncia este único nome sobre aquele que vai ser lavado. Com efeito, ninguém é capaz de dar um nome ao Deus inefável; se alguém se atrevesse a dizer que esse nome existe, sofreria a mais vergonhosa loucura. Esse banho chama-se iluminação, para dar a entender que são iluminados os que se aprendem estas coisas. O iluminado se lava também em nome de Jesus Cristo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, e no nome do Espírito Santo, que, por meio dos profetas, nos anunciou previamente tudo o que se refere a Jesus.

      Apologia, Vol. I, cap. LXI

    Alguém deve estar se perguntando o que esse autores mais tardios teriam a dizer da opinião cristã original? Bem, diria eu que se encontram numa situação em que não são antigos o bastante para que seu ensino seja, acima de qualquer dúvida, chamado de apostólico. Na segundo metade do século II – onde se situa a datação de suas obras – aquilo que viríamos a chamar de Igreja já se organizava institucional e doutrinariamente. Por outro lado, antecedem bem o famigerado Concílio de Niceia. Mais ainda o II Concílio de Constantinopla, que teria expurgado a reencarnação do cristianismo, segundo conspiracionistas de plantão. Vale lembrar que Justino já foi tido por crente na reencarnação por espíritas/espiritualistas e a palavra grega palingênese, que é recorrentemente traduzida por espíritas como “reencarnação”, aparece na pena de Teófilo de Antioquia com um sentido que incomodaria a muitos dos apologistas espíritas. Pois é: sempre quando convier a patrística será usada em prol de teses estapafúrdias de doutrinas modernas; quando não o for, as idiossincrasias dos primeiros teólogos serão assinaladas para constranger os cristãos ortodoxos modernos.

    Se você ainda está cismado com esses textos da patrística pré-nicena, então vejamos se o próprio texto do Evangelho de João tem mais algum segredo para revelar.

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    Um Padrão Oculto nos Diálogos de João

    Ícone de João Evangelista com o Prólogo de Seu Evangelho

    (…)

    Depois que a reencarnação foi retirada do cristianismo pelo imperador Justiniano, no Concílio Ecumênico de Constantinopla (553), houve nele uma reviravolta. Os dogmas, que começaram a surgir em 325, no concílio de Niceia, passaram a ser a base do ensino cristão. A Bíblia passou a ter outras interpretações e seus textos foram adaptados às novas doutrinas, que provocavam acaloradas polêmicas entre os teólogos.

    Realmente, é famosa a passagem reencarnacionista da visita de Nicodemos a Jesus (João 3: 3). Ela se refere de modo claro e contundente à reencarnação, fenômeno esse já largamente comprovado por milhares de biblistas e cientistas de várias religiões ou mesmo sem religião.

    Mas os teólogos, não todos, e cristãos fundamentalistas ainda querem interpretar o nascer “de novo” ou “do alto” (“anothen”) como sendo da água (líquido amniótico) do batismo, mas o texto joanino nada tem a ver com esse ritual que muito respeitamos: “…Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (João 3: 3). E, para deixar a questão mais clara, Jesus acentuou para Nicodemos: “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito”. “Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo” (João 3: 6 e 7).
    Esse assunto nada mesmo tem a ver com a água do batismo, mas com o nascer de novo do espírito (conversão ou mudança espiritual radical de vida para melhor) e com o nascer também “de novo” ou “do alto” da (na) carne, ou seja, dos pais, o que é nova vida ou nova reencarnação. Isso é tão verdade que Nicodemos até perguntou a Jesus: “…Como pode um homem nascer sendo velho? Pode, porventura, voltar a entrar no ventre materno e nascer segunda vez?” (João 3: 4). Essa pergunta demonstra-nos que o assunto entre os dois não tem nada mesmo a ver com o batismo.

    (…)

    Nicodemos tinha conhecimento da reencarnação. Daí Jesus ter-lhe dito: “Tu és mestre em Israel, e não compreendes essas coisas?” (João 3: 10). Realmente, os judeus sábios e cabalistas aceitavam as várias vidas terrenas do espírito.

    Para mim, Nicodemos, simplesmente, deu uma de bobo para poder ouvir de Jesus mais e melhores esclarecimentos sobre a reencarnação!

    José Reis Chaves, Só se chega à salvação nascendo “de novo” do espírito e da carne , em coluna semanal do jornal O Tempo, 11/05/2015.

    Deixando de lado as bobagens quanto ao II Concílio de Constantinoplado início do texto – que já discuti à exaustão em outras partes – e as especulações espíritas quanto ao “nascer de novo” – vistas aqui mesmo mais acima -, resgatei esse texto de um velho conhecido, principalmente pela última frase “Nicodemos, simplesmente, deu uma de bobo para poder ouvir de Jesus mais e melhores esclarecimentos sobre a reencarnação!” De fato, imaginar um Nicodemos dando uma de sonso ou de desentendido faz pleno sentido numa interpretação reencarnacionista da passagem, pois, do contrário, haveria uma admissão tácita de que a reencarnação não era tão difundida assim entre os judeus da época, a ponto de um “mestre” ser ignorante quanto a ela. A questão é: será possível presumir isso de alguma forma ou se está extraindo no texto mais do que ele pode oferecer? Aposto nesta última, pois, não somente Nicodemos, mas uma série de interlocutores de Jesus no Evangelho de João aparentam sofrer uma ignorância que precisa ser corrigida pelo Verbo de Deus. Mais tecnicamente falando, observa-se ao longo desse evangelho o padrão ambiguidade/mal-entendido/elucidação nos diálogos de Jesus. Eis alguns exemplos:

    Jo 2:19-22 Jo 4:10-5 Jo 6:33-5
    Ambiguidade Jesus respondeu, e disse-lhes: Derribai este templo, e em três dias o levantarei. Jesus respondeu, e disse-lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo.
    Mal-entendido Disseram, pois, os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu o levantarás em três dias? Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva?
    És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado?
    Disseram-lhe, pois: Senhor, dá-nos sempre desse pão.
    Elucidação Mas ele falava do templo do seu corpo. Quando, pois, ressuscitou dentre os mortos, os seus discípulos lembraram-se de que lhes dissera isto; e creram na Escritura, e na palavra que Jesus tinha dito. Jesus respondeu, e disse-lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede;
    Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.
    E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.

    Outros exemplos são encontrados em Jo 4:32ss, 8:31ss, 8:38ss, 11:11ss, 11:23ss, 13:8ss, 14:4ss, 14:7ss, 14:21ss e 16:16ss. Ah, claro, a conversa com Nicodemos (Jo 3:33ss) também se enquadra nesse padrão. Pouca diferença faz se o Jesus histórico empregou essa técnica ou foi um recurso estilístico do evangelista, pois o resultado é o mesmo: os interlocutores de Jesus, nesse evangelho, não se faziam de bobos; eles eram bobos, mesmo. Um dado disponibilizado por estudiosos acadêmicos da Bíblia. Ou seja, pelos biblistas de verdade.

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    Outras Águas

    Crucifixão sobre o 
crânio de Adão

    Crucifixão, por Carlo Crivelli (1485)

    Gostaria de tratar, agora, de uma tradição cristã que não tem exatamente a ver com o batismo, mas trata de um tema importante para os primeiros cristãos: o relação entre o primeiro Adão e o Segundo (Jesus) por meio de um instrumento: a “água da vida”, i.e., o sangue de Jesus. Comecemos por uma apresentação dessa tradição num estágio já bem desenvolvido e dele partir em busca de suas origens

    Capítulo XLI
    (…)
    Depois dessa prece de ambos, Adão se pôs a orar em voz alta perante Deus, e disse:

    10 “ó Senhor, quando eu estava no jardim e via a água que corria sob a Árvore da Vida, meu coração não desejava, nem meu corpo precisava beber dela; nem eu conhecia a sede, pois estava vivo; e em condição superior à de agora.”

    11 “De maneira que para viver eu não necessitava de nenhum Alimento da Vida, nem bebia da Água da Vida.”

    12 “Mas agora, ó Deus, eu estou morto; minha carne esta ressequida pela sede. Dai-me Água da Vida para que possa dela beber e viver.”

    13 “Por Vossa misericórdia ó Deus, salvai-me desses flagelos e provações, e levai-me para outra terra diferente desta, que não me permitis habitar no Vosso jardim.”

    Capítulo XLII

    1 Então veio a Palavra Deus a Adão e disse-lhe:

    2 “ó Adão, quanto ao que tu dizes: Levai-me para uma terra onde haja descanso, não é outra terra diferente desta mas é o reino do céu, o único lugar onde há descanso.”

    3 “Mas tu não podes nele entrar no momento presente mas apenas depois do teu julgamento feito e cumprido.”

    4 “Então far-te-ei subir ao reino do céu, a ti e à tua descendência justa; e dar-te-ei ti e a eles o descanso que pedes presentemente.”

    5 “E se dizes: Dai-me Água da Vida para que eu dela possa beber e viver, isto não pode ser hoje, mas no dia que eu descer ao inferno, quebrar os portões de bronze esmagar os reinos de ferro.”

    6 “Então, por misericórdia salvarei tua alma e a alma justos para dar-lhes descanso em Meu jardim. E isto será quando o mundo chegar ao fim.

    7 “E, novamente, conquanto a Água da Vida que buscas não te seja concedida hoje, te será dada no dia em que Eu derramar Meu sangue sobre tua cabeça na terra do Gólgota.”

    8 “Pois Meu sangue será para ti a Água da Vida, e não somente para ti, mas para todos da tua descendência que acreditarem em Mim; para que seja para eles o descanso eterno.”

    (…)
    Primeiro livro de Adão e Eva, fonte: [Tricca, vol. II] (33).

    A narrativa do primeiro livro da Bíblia é extremamente sucinta da criação do mundo até o dilúvio, o que despertaria a curiosidade sobre os pormenores da odisseia dos primeiros humanos, segundo a mitologia hebraica. No período intertestamentário, essa curiosidade foi saciada por diversas obras destinadas a tapas as lacunas, como Jubileus (bastante popular em Qumran) e o Livro de Adão e Eva. Datado do primeiro século da Era Cristã, esse último desenvolve temas como o motivo da queda dos demônios, a identificação da serpente com Satanás e pormenores sobre as descendências de Caim e de Sete. Cogita-se a existência de um original hebraico hoje perdido, sobrevivendo em diversas versões em outros idiomas, como grego (também chamado equivocadamente de Apocalipse de Moisés), latim (também chamado, A Vida de Adão e Eva), armênio, eslavônico, árabe e etíope. Nesta última, expandida e mais tardia versão – já eivada de interpolações com referências e simbolismos cristãos – é apresentada a história de Adão ter sido sepultado no Gólgota. Nenhuma referência ao sangue de Jesus pode ser encontrada nas versões latina e grega. Contudo, alusões a “fontes vitais” alternativas também são feitas nas versões mais antigas:

    1. Em Vida, quando Adão já se encontra à beira da morte, padecendo de dores por todo o corpo, ele faz um último pedido a Eva:

      Levante e vá com meu filho Sete às regiões do Paraíso, e ponham pó sobre suas cabeças, e prostrem-se ao chão, e chorem ante a visão de Deus. Talvez ele tenha piedade e envie seu anjo à árvore de sua misericórdia, da qual flui o óleo da vida, e lhes dará um pouco dele, com o qual me ungirão, para que eu tenha repouso destas dores pelas quais estou me esvaindo.”

      Cap XXXVII. Fonte:[Charlesworth, p. 272]

      E assim fizeram, mas o Altíssimo foi irredutível:

      Mas quando já tinham orado e suplicado por horas, eis que lhes aparece o anjo Miguel a dizer: “Fui enviado a vocês pelo Senhor, fui posto pelo Senhor sobre os corpos dos homens. Digo a você, Sete, homem de Deus, não choramingue, orando e pedindo pelo óleo da árvore da misericórdia para ungir seu pai Adão em razão das dores de seu corpo.

      Em verdade te digo que de modo algum será capaz de tomar dele, a não ser nos últimos dias.

      Mas você, Sete, vá até seu pai Adão, pois o tempo de vida dele está completo. A contar de agora, em seis dias sua alma deixará o corpo; e, assim que ela partir, você verá grandes maravilhas no céu e na terra, e nas luzes do céu.

      Cap. XL – XLIII, [Idem, p. 274]

    2. Já em “Apocalipse de Moisés”, o pedido é feito pelo próprio Adão, por ocasião de sua queda:

      E o Senhor se virou para Adão e lhe disse: “De agora em diante não permitirei que fique no Paraíso.” E Adão respondeu e disse: “Senhor, dê-me da árvore da vida para que eu possa comer antes de ser expulso” Então o Senhor falou a Adão: “Agora não tomará dela, visto que foi determinado ao querubim e à espada flamejante que anda ao redor para guardá-la por sua causa, a fim de que não possa provar dela e se tornar imortal para sempre, mas que tenha de entrar em conflito com o inimigo que foi posto dentro de você. Mas, após sair do Paraíso, caso se guarde de todo o mal, preferindo a morte a ele, por ocasião da ressurreição eu o erguerei de novo, e então lhe será dado da árvore da vida, e você será imortal para sempre.

      Cap. XXVIII, [Idem, p. 285]

    Outro livro a trazer a história do sepultamento de Adão no Gólgota é A Caverna dos Tesouros, que é tradicionalmente atribuído a Efrém da Síria (séc. IV), embora cogite-se ter sido redigido no século VI por algum seguidor dele. Compartilha muito das lendas apresentadas na versão etíope da história de Adão e Eva (talvez tendo bebido das mesmas fontes) e, em sua terceira parte, relata que um dos filhos de de Noé – Sem – teria levado o corpo de Adão (também transportado na Arca) para o monte Gólgota.

    Por escrito, essa tradição pode ser rastreada até Orígenes (ca. 184 – ca. 254) que, em seu comentário a Mateus, atribui-a aos judeus, sem deixar de lhe dar um toque cristão:

    Sobre o lugar da caveira, chegou-nos a tradição dos hebreus de que o corpo de Adão foi enterrado lá, a fim de que “como todos morrem em Adão” tanto Adão será ressuscitado e “em Cristo todos serão vivificados” [Cf. I Cor 15:22].

    Comentário sobre o Evangelho de Mateus, tomo XXVII, cap. XXXIII, em Patrologia Graeca vol. XIII, col. 1777, nota 89

    A partir daí surge uma série de controvérsias. Primeiramente, essa alegação persiste apenas no texto grego remanescente desse comentário (cf. nota 89 de PG XIII), ficando em aberto houve uma tradução relapsa, uma manipulação/lacuna na transmissão textual – seja da versão latina ou de manuscrito grego que lhe deu origem -, e até mesmo uma glosa incorporada no corpo principal. Segundo, há uma divergência com outra obra da patrística (34) que atribui do nome “Gólgota” (35) a uma peculiar topografia do terreno, à semelhança de um crânio. Por último, a tradição judaica dá como sepulcro de Adão (e Eva) a Gruta de Macpela, em Hebron (36), junto a outros patriarcas e sua esposas.

    Há quem proponha que Orígenes se baseou não numa tradição rabínica antiga e esquecida, mas em fontes judaico-cristãs contemporâneas e acessíveis a ele, algo no mínimo controverso (37). Jerônimo de Estridão, que, à semelhança de Orígenes, passou parte da vida na Palestina, lançou uma luz de como pode ter sido essa tradição repassada, a partir da Carta aos Efésios:

    Bem, então, para apresentar algo ainda mais surpreendente, devemos retroceder a tempos ainda mais remotos. A tradição diz que nessa cidade, não, nesse exato lugar, Adão viveu e morreu. O lugar onde nosso Senhor foi crucificado é chamado Calvário, porque o crânio do homem primitivo foi enterrado lá. Então aconteceu que o segundo Adão, que é o sangue de Cristo, quando caiu da cruz, lavou os pecados do protoplasto [primeiro ser formado] enterrado, o primeiro Adão, e assim as palavras do apóstolo foram cumpridas: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Ef 5:14).

    Epístola 46, para Marcela, em nome de Paula e Eustóquio.

    Nesta carta, datada de 386 d.C., Jerônimo tenta convencer sua interlocutora a se mudar para a Terra Santa, tal como ele e seus dois companheiros tinham acabado de fazer. Ela estava relutante devido à crença de a região se tornara amaldiçoada após a morte de Jesus. Jerônimo, então, tenta desfazer essa imagem relatando os encantos do lugar. A redenção de Adão pelo sangue no Calvário é apenas uma delas. Contudo, Jerônimo parece ter mudado de opinião mais tarde e, em seu próprio Comentário sobre Mateus, considerou essa história uma lenda sem fundamento, repetindo, curiosamente, a mesma passagem de Efésios:

    Eu ouvi que alguém explicou que o “lugar da caveira” é o lugar onde Adão está enterrado e a razão pela qual ele é assim denominado é porque a cabeça do antigo homem jaz ali. Relacionam isso ao que o apóstolo disse: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Ef 5:14). Essa interpretação é atrativa e tranquilizante aos ouvidos do povo, mas não é verdade. Afinal, do lado de fora da cidade e fora do portão há locais em que as cabeças dos condenados são cortadas. É aí onde tomam o nome de “da caveira” (Calvariae); ou seja, isso se refere às caveiras dos decapitados. Mas a razão pela qual o Senhor foi crucificado ali era para que, onde outrora havia sido um sítio de condenados, lá fosse erguido o estandarte do martírio; e da mesma forma como ele se fez maldição por nós (cf. Gl 3:13) sobre a cruz, e foi açoitado e crucificado, assim ele é crucificado como se um homem culpado entre os culpados para a salvação. Mas caso alguém deseje alegar que a razão pela qual o Senhor foi lá crucificado era para que seu sangue escorresse abaixo sobre a tumba de Adão, perguntar-lhe-emos por que os outros ladrões também foram crucificados no mesmo lugar. Do qual aparenta que Calvário significa não a tumba do primeiro homem, mas o “lugar dos decapitados”. Assim, onde o pecado abunda, a graça superabunda (cf. Rm 5:20). Mas no livro de Josué, filho de Nave [Num], lemos que Adão foi sepultado próximo a Hebron e Arba (cf. Js 14:15, Vulg.).

    Comentário sobre Mateus, 27.33

    Bem, algum adepto da crença do sepultamento de Adão no Calvário poderia alegar por que o nome do monte não estaria no plural “das Caveiras” (Calvariarum), já que haveria uma fartura de cabeças por lá. Nesse caso, a tese da semelhança da topografia local com um crânio seria mais apropriada. Ademais, a tradução que Jerônimo fez em Js 14:15 está provavelmente errada e a Bíblia não dá indicação alguma sobre o local do sepulcro de Adão (38). Por outro lado, Jerônimo deixa nas entrelinhas que a tradição rabínica de Hebron como o endereço final dos restos mortais do primeiro homem já existia na passagem do século IV para o V, tendo-a possivelmente tomado dos judeus com os quais convivera (39). Contudo, há pelo menos uma tradição judaica mais antiga que contraria isso, embora não o estabeleça explicitamente em Jerusalém (40). Seria possível, pois, que a tradução recebida por Orígenes tenha sido mais antiga e foi depois alterada pelos judeus depois que círculos (judaico-)cristãos se apropriarem dela? Caso o tenha sido, não foi o único episódio do gênero (41).

    O que pode ser dito com alguma certeza é que a partir do século IV difundiu-se a crença do primeiro Adão sendo redimido, literalmente, pelo sangue do segundo, que lhe foi derramado (42). Tanto que não difícil encontrar pintura da cena da crucifixão em que um crânio jaz ao pé da cruz de Jesus. De certa forma, o próprio Evangelho de João pode ter sido um catalisador dessa difusão, em particular por esta passagem

    Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água.

    Jo 19:33,4 (Edição Ave Maria)

    Sangue e água, justamente os símbolos constantes em dois sacramentos da Igreja – eucaristia e batismo – jorrando sobre o solo. Isso não passou despercebido pelos comentaristas dos evangelhos da Antiguidade, em especial um que viria a ter destaque no Espiritismo séculos depois:

    Uma palavra sugestiva foi usada pela evangelista, sem dizer que teve Seu lado perfurado (43), ou ferido, ou outra coisa do gênero, mas “aberto”; para que, desse modo, em certo sentido, o portal da vida possa ser deixado aberto, a parti de onde têm fluído os sacramentos da Igreja, sem os quais não há entrada para vida que é a verdadeira vida. Esse sangue foi derramado para a remissão dos pecados; essa água é a que preenche o cálice doador de saúde, e supre ao mesmo tempo a pia batismal e a água para beber. Isso foi anunciado, de antemão, quando se ordenou a Noé fazer um porta na lateral da Arca (Gn 6:16), por onde puderam entrar os animais que não estavam destinados a perecer no dilúvio, e pela qual a Igreja foi prefigurada. Por causa disso, a primeira mulher foi formada da lateral do homem quando adormecido (Gn 2:22) e foi chamada Vida e a mãe de todos os viventes (Gn 3:20). Em verdade, isso apontou para um grande bem, anterior ao grande mail da transgressão (assim no disfarce de alguém jazendo adormecido): este segundo Adão tombou Sua cabeça e caiu adormecido na cruz, para que uma esposa pudesse ser formada para Ele a partir do que fluiu da lateral do adormecido. Oh morte, pela qual os mortos se reguem outra vez para a vida! O que pode ser mais puro que tal sangue? O que pode dar mais saúde que tal ferida?

    Agostinho de Hipona, Tratados sobre o Evangelho de João, nº 120 (Jo 19:31-20:9)

    Daí para a reabilitação de Adão no Calvário é um pequeno pulo. Afinal, como os elementos disponíveis nas já consolidadas Escrituras e literatura patrística, tudo colorava para uma valoração do poder dos sacramentos – em especial o batismo – no imaginário cristão.

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    Balanço Final

    Uma balança e seus pratos com os respectivos pesos, em equilíbrio

    Inspirado numa padronização proposta pelo “Jesus Seminar”, usarei a seguinte nomenclatura para um apanhado de tudo que foi discutido:

    1. Altamente provável: chance de certeza de 75 a 100%;
    2. Provável: chance de certeza de 50 a 74%;
    3. Possível: chance de certeza de 25 a 49%;
    4. Improvável: chance de certeza de 0 a 24%;

    Atentando que não faço parte de tal Seminário, nem realizei nenhuma votação, calco-me na bibliografia apresentada aqui e em outras partes do portal:

    • O batismo já era um ritual iniciático das primeiras comunidades cristãs: altamente provável. Isso é multiplamente atestado na literatura neotestamentária, dos primórdios da patrística, e a dos gnósticos;
    • O batismo era um ritual pagão apropriado pelos cristãos: improvável. partindo do Antigo Testamento e prosseguindo pelas literaturas intertestamentária, sectária e neotestamentária; há um crescente desenvolvimento de rituais de purificação por meio da água rumo ao chamado ao arrependimento de João Batista. Como a adoção desse batismo pelas primeiras comunidades cristãos é quase certa, não houve necessidade, nem tempo de se importar uma prática gentia. Como a água é associada comumente às ideias de limpeza e pureza, outras culturas desenvolveram rituais similares independentemente;
    • Jesus pode não ter dado tanto valor ao batismo quanto João Batista: possível. Embora tenha sido discípulo do Batista, Jesus demonstrou ter diferenças com relação ao mestre no que dizia respeito à vivência da fé: João era mais ascético, ao passo que seu discípulo bem mais mundano. Uma diferença oriunda da forma como viam a chegada do Reino de Deus. João tinha urgência chamar o povo para o arrependimento antes que ele chegasse, o que não tardaria. Já para Jesus, o Reino já havia chegado com seu próprio ministério, então por que não comemorar (cf. Wilkinson, cap. V)? Jesus não se opôs ao jejum (Mt 6:16-8), mas ele tampouco aparentou ser entusiasta dele (cf. Mc 2:18-20, Mt 9:14-5, Lc 5:33-5; Lc 18:11-13; e Mt 11:18,9; Lc 7:33-6). Da mesma forma, Jesus ia aos pecadores em vez de chamar para viessem até ele em arrependimento e, portanto, batizarem-se. A própria complementação posta em Jo 4:2 indica a delegação de uma tarefa que não julgava ser tão crucial assim. Com a morte de Jesus e o adiamento do Reino para sua segunda vinda, o batismo e ascetismo retornaram como formas de preparação;
    • Nicodemos é um personagem histórico: possível. Flávio Josefo (Guerra Judaica, II, cap. XVII) fala de um membro do grupo pacifista por ocasião da primeira Revolta Judaica chamado Gorion ben Nicodemos e o Talmud babilônico (Taanit, 19b) fala de um Nicodemos [Nakdimon] ben Gorion, que teria sido riquíssimo (e milagroso) cidadão de Jerusalém na época do Segundo Templo. É possível, então, que estejamos diante de um caso de uma família proeminente em que o neto herdou o nome do avô (Gorion – Nicodemos – Gorion);
    • Nicodemos e Jesus conversaram: possível . Óbvio que, em João, pode se tratar de outro Nicodemos, porém há certos indícios que parecem forçar essa identificação: se em Jo 3:1-21 é apresentado como mestre da religião, em outras duas passagens ele é membro do Sinédrio (Jo 7:50ss) e uma pessoa bem rica, capaz de contribuir com “quase cem arráteis de um composto de mirra e aloés” (Jo 19:39) para o funeral de Jesus. Em nenhum registro, porém, Nicodemos assume abertamente sua simpatia por ele. O mais provável é que o evangelista tenha tentado correlacionar Jesus a uma figura importante do judaísmo do Segundo Templo, como uma forma de alfinetar os judeus que expulsaram sua comunidade da Sinagoga. Tanto que, convenientemente, o encontro dos dois teria sido à noite, livre de qualquer testemunha não-cristã;
    • Supondo ter ocorrido a conversa, seu registro foi bem documentado em Jo 3:1-21: improvável. Parábolas e aforismos têm boas chances de serem transmitidos oralmente com poucas modificações antes de serem registrados, pois são de fácil memorização e com mensagem direta. Provavelmente foram repetidos mais de uma vez durante o ministério de Jesus. Já os longos discursos abundantes em João são duvidosos quanto à fidelidade, ainda mais passados pelo menos 60 anos desde a morte de Jesus. Que o digam as as duas versões da despedida dele. Não há razão plausível para pensar que a inesperada conversa noturna com Nicodemos foi registrada taquigraficamente na única ocasião em que supostamente ocorreu;
    • A conversa teria se dado em grego: improvável. A língua vernacular da maior parte da Judeia da época era o aramaico. Se Jesus teve algum conhecimento nessa língua, deve ter sido um “grego de contato” sem chegar à profundidade literária apresentada no discurso transcrito. Nicodemos poderia ter maiores chances se ser instruído formalmente no idioma, porém por que ele iniciaria uma conversa com um homem do povo justamente nela?
    • A língua original do Evangelho de João é a grega: provável. As cópias mais antigas desse evangelhos estão em grego, inclusive um fragmento de papiro datado de 125 da Era Comum. A Peshitta é tida como uma versão, e não o original. Contudo, permanece uma corrente de estudiosos a defender que houve um substrato em aramaico sobre o qual o evangelista se baseou e ele ainda estaria acessível por meio de supostos aramaicismos dispersos pelo texto;
  • Existe um trocadilho com a palavra grega anothen usada em Jo 3:3: provável. O cerne da conversa está no mal entendido de Nicodemos e sua correção por Jesus. Argumentos alegando que Nicodemos de fez de bobo para testar Jesus enxergam a árvore, mas não a floresta: por todo esse evangelho o padrão “declaração/mal-entendido/clarificação” se repete. Não haveria por que ser diferente apenas nessa conversa. Seria possível um mal-entendido sem a ambiguidade de anothen? Sim, embora já não fique tão marcado;
  • Tal trocadilho – “alto”/”de novo” – existiria em aramaico: improvável. Pela maioria dos autores que vi, a resposta é não. Isso, porém, tem sido usado por alguns para negar a possibilidade da tradução de anothen como “do alto”, como se o texto tivesse obrigatoriamente que refletir uma tradução literal de uma conversa em aramaico que ninguém registrou. A possibilidade de que o episódio não seja verídico, ou possua um registro impreciso, assusta muitos crentes, mas não precisa ser assim: o longo discurso de Jo 3:1-21 pertence ao domínio da Fé, não da História. Portanto, sua redação pode ainda ter sido inspirada por ensinamentos genuínos de Jesus, ainda que dispersos num contexto fabricado para os propósitos teológicos da comunidade joanina;
  • Também existiria um duplo sentido em aramaico, porém de forma distinta do grego: possível. Caso a tese de James David Audlin se mostre viável, poderíamos até subir a nota para “provável”. Mas até lá ou sua rejeição final, melhor deixá-la em estado suspenso;
  • O cerne da conversa com Nicodemos é o batismo cristão: provável. Fiar-se apenas no uso das palavras “água” e “espírito” torna o entendimento dessa passagem um teste de figuras de Rorschach: elas podem ser o que você quiser, mas o que disser revelará algo sobre ti. Para tentar reduzir um pouco a parcialidade do leitor e acrescentar alguma objetividade à análise da questão, vislumbres devem vir de informações auferidas das evidências internas do Evangelho de João, da comunidade joanina (i.e., das cartas atribuídas a João) e de outras fontes do cristianismo primevo. Com o enfoque da crise reinante na comunidade joanina – tendo de lidar com a rejeição da sinagoga e cismas internos (cf. I João) -, seu evangelho veio para consolar os rejeitados e prover coerência interna. Retomarei, então, uma linha de raciocínio anteriormente apresentada.

    A identificação feita em João 14:26 entre o Consolador e o Espírito Santo durante o discurso de despedida tem, sim, o aspecto de um enxerto no texto do discurso, seja pela apositiva como aparece e por sua ausência no “segundo” discurso de despedida (Jo cap. 15-17), contudo discordo de Pastorino de que tenha sido um acréscimo taridio. Pelo contrário: todos os mais antigos manuscritos trazem essa leitura. Minha hipótese é que o acréscimo já foi feito pelo redator do evangelho (a quem chamarei por praticidade de João) ou por um dos primeiros copistas. A razão para essa pressa em associar o Paracleto ao Espírito Santo pode estar relacionada à dissidência interna sofrida pela comunidade e descrita de forma parcial na Primeira Carta de João. Não é possível saber exatamente em que os dissidente discordavam dos que permaneceram na comunidade, contudo, pelas admoestações feitas pelo autor de I João, temos indícios de que professavam uma cristologia docetista e origem dessa tese estaria em questões quanto à pneumatologia professada pelos contendedores. Quando seu autor fala:

    Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo.

    Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus;

    E todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que já agora está no mundo.

    1 Jo 4:1-3

    Ao que parece, os dissidentes constituíram seu próprio movimento profético, atingindo uma amplitude grande demais até para aquela quase mística comunidade. Nesse contexto, um espírito foi “designado como autoritativo” – o Espírito Santo – e que lhes ensinaria “todas as coisas“, e os lembraria “de tudo quanto” lhes fora dito (Jo 14:26). E nesse afã de asseverar uma opinião “ortodoxa” na comunidade, os símbolos sacramentais são definidos:

    Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?

    Este é aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só pela água, mas pela água e pelo sangue.

    E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.

    Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam.

    Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é este, que de seu Filho testificou.

    I Jo 5:5-9

    O sangue é tradicionalmente relacionado ao sacrifício de Jesus para a propiciação dos pecados (Jo 4:9-10). Ele e seu complemento – o corpo – aparecem no longo discurso do sexto capítulo (Jo 6:25-58), que define a fórmula eucarística ausente, nesse evangelho, nos discursos da Última Ceia. Fica intuído, pois, que os dissidentes também rejeitavam esse papel Jesus como “cordeiro pascal”. Os outros dois símbolos – a água e o Espírito – aparecem na conversa com Nicodemos e a ênfase dada para ambos remete a possíveis questionamentos quanto ao modus operandi da iniciação pelo batismo – pela água, pelo Espírito ou pelos dois? -, numa confusão levemente assinalada em Atos. Mesmo o trecho mais enigmático dessa conversa:

    O vento [espírito] sopra onde quer, e ouves a sua voz; mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.

    Jo 3:8

    Ganha outro enfoque se visto à luz dos conflitos internos da comunidade: ao deixar para o Espírito a decisão quanto ao seu próprio destino, estar-se-ia retirando dos dissidentes uma apropriação dele.

    Então, dentro desse contexto social da comunidade joanina, a conversa com Nicodemos fica muito mais clara se entendida como uma regulamentação e defesa de um rito de iniciação contra opiniões divergentes.

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E a História se Repete

A Circuncisão de Jesus - por Giovanni Bellini

– Pode não.
– Peraí, Jesus foi circuncidado!
– Já disse que NÃO PODE!!!
(Circuncisão, de Giovanni Bellini)

Depois, passados catorze anos, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também comigo Tito.

E subi por uma revelação, e lhes expus o evangelho, que prego entre os gentios, e particularmente aos que estavam em estima; para que de maneira alguma não corresse ou não tivesse corrido em vão.

Mas nem ainda Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se;

E isto por causa dos falsos irmãos que se intrometeram, e secretamente entraram a espiar a nossa liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos porem em servidão;

Aos quais nem ainda por uma hora cedemos com sujeição, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vós.

E, quanto àqueles que pareciam ser alguma coisa (quais tenham sido noutro tempo, não se me dá; Deus não aceita a aparência do homem), esses, digo, que pareciam ser alguma coisa, nada me comunicaram;

Antes, pelo contrário, quando viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão (Porque aquele que operou eficazmente em Pedro para o apostolado da circuncisão, esse operou também em mim com eficácia para com os gentios),

E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas, a graça que me havia sido dada, deram-nos as destras, em comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão;

Recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com diligência.

Gl 2:1-10

Com essas palavras Paulo de Tarso demonstrou seu aborrecimento quando soube que certas comunidades por ele fundadas haviam recebido a visita de outros missionários, cuja mensagem era um tanto diferente da sua, em especial no que diz respeito a práticas judaicas. Como viria a desenvolver melhor em sua Carta aos Romanos, Paulo não apenas achava que Jesus tinha suplantado a Lei mosaica, como a própria Lei seria, ironicamente, um empecilho à salvação; pois não seria possível segui-la à risca. Por outro lado, esses professores, digamos, “judaizantes” tinham um ponto bem forte a favor, pelo menos, da circuncisão: era o sinal da “aliança eterna” entre Abraão e Deus (Gen 17:1-14) e, portanto, deveria continuar valendo, não é? Bem, Paulo conseguiu convencer que ela seria dispensável para os “filhos por adoção” de Deus e, graças a isso, o cristianismo se livrou de uma barreira em seu caminho para o mundo greco-romano, que não via a circuncisão com bom olhos.

Um efeito inevitável disso, porém, foi catalisar a separação entre judaísmo e cristianismo, afinal desprezou-se justamente o principal ritual de iniciação do primeiro em prol de um novo: o batismo. Pode-se até discutir se Jesus, em seu ministério, teria dado alguma ênfase ou não à prática do batismo (44), mas não se pode duvidar que passou a ser tratada como rito de ingresso na comunidade cristã pouco após a crucifixão, pois diversas fontes do primeiro e segundo séculos da Era Comum atestam isso, inclusive gnósticas. Talvez tenha havido contendas entre os adeptos do “batismo de água” e os do “batismo de espírito”, mas a opinião de consenso que o autor de João buscou foi a da necessidade de ambos. O recebimento dos dons do Espírito por ocasião do batismo cristão o distinguia particularmente daquele de simples arrependimento professado por João, sem contar que a fórmula enunciada durante o rito envolvia, inicialmente, o nome de Jesus e, a partir do segundo século, também o Pai e o Espírito Santo.

De certa forma, uma das pretensas terceiras revelações, em tempos modernos, vem tentando algo bem similar ao negar o valor histórico do rito de iniciação da segunda revelação:

Interpretação Cristã Católica

Renascer da água ocorre com o ser que passa pela água do batismo. O Batismo, na verdade, foi um rito de iniciação egípcia e grega, em que somente algumas pessoas tinham acesso aos mistérios das comunidades religiosas daquele tempo e que a Igreja se apropriou, mas com outro significado, passando a ser um dos seus sacramentos. Os filhos que Deus enviou para cada família foram adotados por Ele para sua família pelo ritual do batismo, que os levou a vida divina.

E do espírito: é a infusão do Espírito Santo que conduz e dirige a Igreja e também dá direção a vida daqueles que foram batizados.

Interpretação Cristã Protestante

Renascer protestante: é a mesma dos católicos.
(…)

Faria, Paulo César de; Espiritismo para Leigos, Alta Books, 2016, cap. XIV, p.231

Sabe-se que (parte d)o judaísmo pós-exílio importou alguns conceitos novos de seu cativeiro, como a crença na ressurreição, entretanto não há indícios de que o ritual praticado pelo Imersor fosse uma importação de algum povo vizinho. Pelo contrário: a literatura judaica – seja clássica, intertestamentária ou sectária – sugere um desenvolvimento autóctone do ritual. Já o Novo Testamento descreve em suas linhas a adoção do batismo desde o princípio das atividades missionárias dos apóstolos, bem como as questões surgidas entre as primeiras comunidades cristãs quanto à forma correta de ministrá-la (por meio de água, Espírito ou ambos?), em nada indicando ter havido a adoção pronta de um ritual estrangeiro, o que provavelmente deixaria menos margem a dúvidas.

Ao dizer que o batismo não remonta aos primeiros cristãos e interpretar textos bíblicos sobre ele de forma diversa, o movimento espírita tenta tirar do cristianismo tradicional um item de prestígio que não tem condições de reclamar como seu. De certa forma, a história se repete, porém, no futuro, não há o menor risco de que uma “quarta revelação” faça o mesmo com o espiritismo, pelo simples fato de inexistir no espiritismo um ritual de iniciação. Para ser mais claro, não há ritual algum para ser atacado. Isso, obviamente, dá-lhe robustez contra adversários, porém a um preço que se manifesta em situações um tanto … esdrúxulas: de um lado há pessoas que colaboram anos a fio em centros espíritas que ainda “não se consideram espíritas o bastante”; do outro, gente que apenas é fã de literatura mediúnica e já se declara espírita de carteirinha.

Tomando o simbolismo – entendido aqui como a capacidade de criar um universo interior e externá-lo por meio de símbolo, marcos, ritos, etc. – como um aspecto fundamental da natureza da natureza humana, então essa aparente robustez do Espiritismo tem um preço ainda mais alto do que meros casos pitorescos: a perda do sentimento de transcendência, tão comum nas vertentes da Segunda Revelação. Entenda bem: não estou dizendo que “a inteligência suprema e causa primária de todas as coisas” também não seja um modelo de divindade transcendente, a questão é como um fiel espírita se conecta com essa transcendência para partilhar do sobre-humano. Uma sessão de estudos do Livro dos Espíritos pode ser tão útil como as atividades cotidianas de escovar os dentes, cortas as unhas, lavar a roupa, pagar as contas, etc. e poderá ser tão transformadora do ser quanto elas. Por outro lado, um evangélico pode passar a noite inteira ouvindo platitudes numa vigília e sair de lá se sentindo realmente “Filho de Deus” e num sentido muitíssimo íntimo de filiação. Não digo que uma vivência religiosa seja melhor que a outro, até porque isso é uma escolha individual. Apenas, como observador externo, tenho a impressão de ser maior o número de indivíduos a preferir transcendência à racionalidade. Foi um preço que a fé racionada teve que pagar.

Por outro lado, nada impede que a religiosidade transcendente seja inserida no meio espírita. Seria mais um tropicalização de uma doutrina europeia. Nada contra de minha parte, só não garanto que o ortodoxos do movimento fiquem de boas com isso.

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Notas

(1) Segundo [Finkelstein & Slberman, IV, p. 169]:

Hoje, como no passado, as pessoas demonstram sua etnia de muitas maneiras diferentes: na língua que falam, na religião, no modo de vestir, nas práticas funerárias e nos elaborados tabus dietéticos. A simples cultura material deixada pelos pastores e fazendeiros das montanhas, que se tornaram os primeiros israelitas, não oferece nenhuma indicação precisa de seu dialeto, de seus rituais religiosos, de seus costumes ou de suas práticas fúnebres. Mas descobriu-se detalhe muito importante sobre seus hábitos dietéticos; os ossos recuperados nas escavações de pequenas vilas israelitas antigas nas regiões montanhosas diferem daqueles dos assentamentos em outras partes do país num aspecto significativo: não foram encontrados ossos de porcos. Os conjuntos de ossos de antigos assentamentos nas regiões montanhosas continham remanescentes de porcos, e condição idêntica ocorre para os assentamentos posteriores da mesma região, na pós-Idade do Ferro. No entanto, ao longo da Idade do Ferro – a era das monarquias israelitas – os porcos não eram cozidos e comidos, ou mesmo criados, nas regiões montanhosas. A informação comparativa de assentamentos do mesmo período – a Idade do Ferro I – na costa filisteia mostra número surpreendentemente grande de ossos de porcos entre ossos de animais que foram recuperados. Embora os antigos israelitas não comessem porcos, sabe-se que os filisteus comiam (pelo que podemos dizer de informações pouco detalhadas), do mesmo modo que os amonitas e moabitas a leste do Jordão.

A proibição ao porco não pode ser explicada apenas por razões ambientais ou econômicas. De fato, pode ser a única pista disponível para uma identidade específica, partilhada entre os aldeões das regiões montanhosas a oeste do Jordão. Talvez os proto-israelitas tenham parado de comer porco só porque as pessoas que os cercavam – seus adversários – assim o faziam e eles tenham começado a se perceber diferentes. Práticas culinárias e costumes dietéticos distintos são duas maneiras pelas quais são formadas fronteiras étnicas. O monoteísmo e as tradições do Êxodo e da Aliança parece que vieram mais tarde. Na metade do milênio antes de o texto bíblico ser composto, os israelistas, com suas leis detalhadas e regras dietéticas, escolheram – por razões que não estão absolutamente claras – não comer porco. Fazendo o mesmo, os judeus modernos estão dando continuidade à prática arqueológica documentada mais antiga do povo de Israel.

Tal como a língua, as práticas de higiene também não deixaram vestígios arqueológicos, embora também pudessem facilmente constituir mais uma “fronteira étnica”. [voltar]

(2) Em Antiguidades Judaicas, livro VIII, cap. III.

Ele [Salomão] também fez dez grandes tanques redondos de latão, que eram os próprios lavatórios, cada qual contendo quarenta batos [1 bato ~ 32 litros], pois tinham quatro côvados de altura e suas bordas distavam o mesmo tanto uma da outra. Também dispôs esses lavatórios sobre dez bases chamadas “Mechnoth”, e colocou cinco dos lavatórios no lado esquerdo do templo, que é o lado em direção ao vento setentrional, e igual número no lado direito, na direção sul, porém voltados em direção ao leste; na mesma direção [leste] ele também colocou o mar, então, designou o mar para a lavagem das mãos e pés dos sacerdotes, quando eles adentravam o templo e tinham de subir ao altar, mas os lavatórios para a limpeza das entranhas dos animais a serem queimadas em oferendas, junto com as patas deles.

O texto é muito parecido com II Cr 4:2-8, mas na Bíblia somos informados apenas que os sacerdotes se lavavam e não especificamente “pés e mãos” como informa Josefo. [voltar]

(3) Exemplos:

Que se traga já um pouco de água, e lavai os vossos pés, e recostai-vos debaixo desta árvore;
Gn 18:4

E disse: Eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos, em casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os vossos pés; e de madrugada vos levantareis e ireis vosso caminho. E eles disseram: Não, antes na rua passaremos a noite.
Gn 19:2

Então veio aquele homem à casa, e desataram os camelos, e deram palha e pasto aos camelos, e água para lavar os pés dele, e os pés dos homens que estavam com ele.
Gn 24:32

Depois levou os homens à casa de José, e deu-lhes água, e lavaram os seus pés; também deu pasto aos seus jumentos.
Gn 43:24

E levou-o à sua casa, e deu pasto aos jumentos; e, lavando-se os pés, comeram e beberam.
Jz 9:21

Então ela se levantou, e se inclinou com o rosto em terra, e disse: Eis que a tua serva servirá de criada para lavar os pés dos criados de meu senhor.
I Sm 25:41

Vale lembrar a passagem dos evangelhos (Lc 7:36-50; Mt 11:28-30) em que Jesus é convidado para jantar por um fariseu e tem os pés ungidos pelas lágrimas de uma pecadora e secos por seus cabelos, enquanto o dono da casa sequer lhe ofereceu água para a lavagem. [voltar]

(4) Cf. [Lawrence, cap. IV, p. 153] e [Flusser, cap. III, pp. 69-71]. [voltar]

(5) Pelo texto de II Macabeus não é possível saber em que consistia tal purificação “segundo o costume”. Para uma discussão sobre hipóteses, ver [Lawrence, cap. III, pp. 62-4]. [voltar]

(6) A Carta de Aristeias traz a lendária história da origem da Septuaginta, ou melhor, da tradução do Pentateuco para o idioma grego. O faraó Ptolomeu Filadelfo (285- 247 a.C.) teria solicitado a 72 sábios judeus de Alexandria a tradução da Torá para o grego koiné, a fim de incluí-la em sua famosa biblioteca. O trabalho, curiosamente, teria sido concluído em exatos 72 dias. [voltar]

(7) Nome também transliterado por Azenate e, ainda, Asenate. Pouca informação sobre ela há no cânon bíblico (cf. Gn 41:45,50-2), o que abriu espaço para amplo trabalho criativo extrabíblico. [voltar]

(8) Cf. [Asheri, cap. XLV, pp. 267-9]. O livro de Judite relata o ato de conversão de Aquior apenas como sendo a circuncisão (Jd 14:6), talvez evidenciando uma diversidade de culto entre os judeus da diáspora ou omitindo a lavagem ritual por considerá-la, para os homens, apenas como uma prévia da circuncisão. No século II da Era Comum, o Talmude babilônico já equiparava ambos os rituais em importância:

[Mas] todos concordam que ablução ritual sem circuncisão é efetiva, mas discordam apenas quanto a circuncisão sem ablução.

Yevamot 49a

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(9) Nos manuscritos de Josefo que chegaram até nós, teria sido feita uma referência a Jesus nesse mesmo livro XVIII de Antiguidades…:

Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na verdade se pode chamá-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre muitos de origem grega. Ele era o Messias. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e de incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.

Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. III

Também conhecido como Testimonium Flavianum, essa passagem é polêmica por possuir forte cheiro de fraude: como poderia um judeu alinhado com os fariseus chamar Jesus de “Cristo”, considerá-lo “mais do que um homem” e crer em sua ressurreição? Para não descartar totalmente essa passagem, há propostas de que ela seria genuína, porém sofreu enxertos cristãos [Meier, cap. III, pp67-77]. Uma tentativa de reconstituição seria “descristianizá-la” para algo como:

Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feita pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-o à cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de amá-lo. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve este nome a ele, não desapareceu.

Já a passagem de João Batista é mais crível justamente por não ser “cristã demais”. [voltar]

(10) Apesar da possibilidade de o “João Batista Histórico” realmente aguardar alguém maior que ele, como dito em Mc 1:7 e no meio de Mt 3:11/Lc 3:16, não está muito claro que ele esperasse um batismo diferente, como os evangelistas escreverem em Mc 1:8 e ao fim de Mt 3:11/Lc 3:16. À primeira vista, texto aparenta ser extraído apenas de Marcos e copiado nos outros dois sinópticos, conforme a hipótese da origem quádrupla, contudo podemos estar diante de um caso de múltipla atestação de Marcos e Q. Repare a diferença:

(…) ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo (Mc 1:8)

(…) ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mt 3:11/Lc 3:16)

É possível que os redatores de Lucas e Mateus tenham se deparado com a seguinte leitura em Q: “ele vos batizará com fogo” e daí feito independentemente uma harmonização com Marcos gerando um versículo híbrido em seus respectivos evangelhos (cf. [Tatum, cap. XIII, pp. 128-31]).

A Fonte Q é uma hipótese poderosa e explicativa, mas sofre de um problema sério: não temos nenhum exemplar de Q disponível e – caso ela tenha sido uma tradição oral – talvez nunca venhamos a ter um. Portanto, é possível (embora improvável) que ele contivesse a forma mais longa da passagem. O que a hipótese pode indicar com alguma certeza é existência dessa fala atribuída a João Batista já no período pré-literário, i.e., após a morte de Jesus e antes da redação dos evangelhos. [voltar]

(11) Nos dois principais manuscritos antigos de Marcos – os códices Sinaítico e Vaticano -, os doze últimos versículos estão ausentes. Além disso, há uma mudança abrupta no estilo e palavreado (em grego) que dão praticamente certeza de eles foram um acréscimo posterior. As dúvidas estão entre determinar seu o final original foi perdido, ou se o encerramento abrupto em Mc 16:8 foi o pretendido. Há argumentos fortes para uma e outra opção. Para a hipótese do “final perdido”, vide [Metzger, cap. VIII, pp. 226-9] e, depois, contraste-a com a defesa de um de seus alunos do “final abrupto” em [Ehrman (2006), cap. II, pp. 75-8]. [voltar]

(12) Cf. [Willker, pp.636-8] para pormenores dessa passagem difícil. [voltar]

(13) Sobre outros paralelos que Lucas fez, ver [Ehrman (2008), cap. X, p. 148, box 10.4]. [voltar]

(14) Sobre os modelos de salvação usados por Paulo de Tarso em Romanos, ver [Ehrman (2008), cap. XXII, pp. 361-7]. [voltar]

(15) A edição brasileira da Paulus não dá referência alguma sobre a origem da citação. A edição em língua inglesa de Philip Schaff referencia a passagem a Sofonias 3:19. Como qualquer um pode conferir, a semelhança é vaga, sugerindo uma paráfrase bem grande feita pelo autor da carta ao recorrer à memória.

(16) Vale o mesmo que a nota anterior, porém em relação ao versículo Ez 47:12. [voltar]

(17) Eusébio de Cesareia, em seu História Eclesiástica, assim defende a adoção de O Pastor:

Mas, como ocorre que o mesmo apóstolo, nas despedidas finais da carta aos Romanos [Rm 16:14], menciona, junto com outros, a Hermas – de quem se diz que é o livro O Pastor -, deve-se saber que alguns também rechaçam este livro e que por causa deles não se pode contá-lo entre os admitidos; por outro lado, outros julgam-no muito necessário, especialmente para os que precisam de uma introdução elementar. Por esta razão sabemos que foi lido publicamente nas igrejas e comprovamos que alguns escritores dos mais antigos fizeram uso dele.

H.E., livro III, cap. III, parágrafo 6

Atualmente, considera-se a redação de O Pastor como sendo por volta de 150 d.C., portanto, pertencente a algum outro Hermas bem posterior. O outro documento – o Cânon Muratori diz este Hermas ter sido um irmão do papa Pio, cujo pontificado foi de 142 d.C. a 155. [voltar]

(18) Barnabé e Hermas aparecem, respectivamente, após o Apocalipse, sugerindo que estariam como uma espécie de “apêndice”. [voltar]

(19) A Segunda Epístola de Clemente aos Coríntios, outro documento de meados do segundo século, também se refere ao batismo como “selo”, algo que pode ser estabelecido pelo cruzamento de duas de suas passagens:

Pois assim também diz a Escritura em Ezequiel [Ez 14:14]: “Se Noé, Jó e Daniel ressuscitassem, não salvariam seus filhos em cativeiro.” Então, se homens tão eminentemente justos não são capazes, por sua justiça, de salvar filhos, como podemos esperar entrar na residência real de Deus a menos que mantenhamos nosso batismo santo e imaculado? Ou quem será nosso advogado, a menos que nos encontremos possuidores de obras de santidade e justiça?
Cap. VI

Pois eu digo a você que aquele que é fiel no que é mínimo é fiel também no muito. Isto é, então, o que Ele quer dizer: “Mantenha a carne santificada e o selo imaculado, para que recebam a vida eterna.
Cap. VIII

[voltar]
(20) Cf. [Ehrman (2008), cap. XII, p. 197, box 12.6]. [voltar]

(21) No caso, a ressuscitação de Lázaro. [voltar]

(22) Em Jo 10:6 diz-se que Jesus contou uma parábola, mas os versículo antecedentes desse capítulo se parecem mais com um aforismo seguido de sua explicação. [voltar]

(23) Do grego dokeo (“parecer”). Ou seja, para os dissidentes da ocasião, Jesus não teria tido um corpo físico verdadeiro, apenas aparentando estar na carne. [voltar]

(24) Ideia proposta por [Cullmann, cap. VII, pp. 119-22]. Tenho minhas ressalvas quanto a esse autor – especialmente sua visão do (judeo-)cristianismo esotérico como sendo o original credo cristão, em vez de uma elaboração posterior -, mas devo admitir que achei a tese “dois sacramentos distintos para o batismo” como uma interessante sacada. [voltar]

(25) Lista retirada de [Freire, parte III, cap III]. [voltar]

(26) Um exemplo disto seria o latim medieval, que passou progressivamente a adotar a estrutura sujeito-verbo-objeto, que é a comum nas línguas românicas originárias do latim vulgar. Não que essa estrutura fosse proibida na forma clássica, porém a antiga prosa latina preferia o modelo sujeito-objeto-verbo, tal como o japonês e o coreano modernos fazem. [voltar]

(27) Cf. [Poirier, p.66]. [voltar]

(28) Cf. [Porier, pp. 57-64] e [Meier, cap. IX, pp. 262-6]. [voltar]

(29) Ou “Eloi, Eloi, lama sabachthani?”, na vocalização feita em Mc 15:34. [voltar]

(30) Compare com o verbo utilizado em Sl 22:1 `azabhtâniy. [voltar]

(31) Nas palavras de [Meier, cap. IX, p. 266], “Numa região quadrilíngue, Jesus pode até ter sido um judeu trilíngue, mas provavelmente não seria um mestre trinlíngue“. [voltar]

(32) Tecnicamente, ele teria pertencido à terceira geração de cristãos: ouviu relatos dos que tiveram contato direto com os apóstolos. [voltar]

(33) Esta tardia versão também é conhecida como O Conflito de Adão e Eva com Satanás, e nem sempre é classificada junto aos pseudepígrafos mais antigos que estendem o livro do Gênesis, como Apocalipse de Moisés e A Vida de Adão e Eva. Está mais próxima, sim, de A Caverna dos Tesouros, da qual partilha inúmeras lendas. [voltar]

(34) O pseudo-Tertuliano Poemas contra os Marcionitas, livro II

Esta é a Igreja, mãe verdadeira de um povo vivente; nova carne da carne de Cristo, e um osso de seus ossos. Há um lugar chamado Gólgota – “crânio da cabeça” – assim denominado na antiga língua ancestral: aqui é o meio da Terra, aqui é o sinal da vitória; aqui, ensinaram nossos grandes anciões, encontrava-se sepultado o primeiro homem; aqui Cristo sofreu, com o sagrado sangue a terra se encharcou. Que o pó do velho Adão seja capaz, ao se amalgamar com o sangue de Cristo, de ser erguido pela vertente água da virtude

Para o original latino, clique aqui. A datação da é incerta, podendo ser, pela análise de fórmulas teológicas encontradas nela, pós-nicena. [voltar]

(35) Os evangelhos não são muito elucidativos quanto à questão:

Mateus 27:33: E, chegando ao lugar chamado Gólgota[Γολγοθα], que se diz: Lugar da Caveira[Κρανιου Τοπος],
Marcos 15:22: E levaram-no ao lugar do Gólgota [Γολγοθα], que se traduz por lugar da Caveira [Κρανιου Τοπος].
Lucas 23:33: E, quando chegaram ao lugar chamado a Caveira [Κρανιον], ali o crucificaram, e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda.
João 19:17: E, levando ele às costas a sua cruz, saiu para o lugar chamado Caveira [Κρανιου Τοπος]., que em hebraico se chama Gólgota [Γολγοθα],

[voltar]

(36) Existe uma base bíblica para sepultamento dos patriarcas a partir de Abraão e de suas esposas nessa gruta: Gn 23:9 (Sara), 25:9 (Abraão), 49:29-32 (Isaque, Rebeca, Lia e Jacó). Nada é dito, porém, a respeito de Noé ou Adão. [voltar]

(37) Cf. [Taylor, pp. 127 ss] a respeito das teses dos arqueólogos italianos Bellarmino Bagatti e Emmanuela Testa. Segundo a autora, Bagatti e Testa tomaram A Caverna dos Tesouros e O Livro de Adão e Eva como antigas fontes judaico-cristãs do segundo século. Contudo, ainda que tenham se valido de tradições antigas, as redações finais deles – as únicas disponíveis hoje – são tardias, sendo temerário atribuir-lhes a origem dessa tradição. Outra objeção é o estranho silêncio das fontes cristãs mais antigas, dentre elas Paulo de Tarso, que deu grande valor ao sacrifício expiatório de Jesus em sua teologia. [voltar]

(38)
Conforme o Massorético:

E antes o nome de Hebrom era Quiriate-Arba [cidade de Arba], porque Arba foi o maior homem [Adam, em hebraico] entre os anaquins. E a terra repousou da guerra.

Js 14:15

Entretanto, na Vulgata lê-se:

“O nome de Hebrom antes era chamado Quiriate-Arba, Adão [Adam], o maior entre os anaquins, foi sepultado lá e a terra repousou da guerra.”

Na LXX:

Mas antes o nome de Hebrom era Cidade de Arbok, a capital dos anaquins. E a terra repousou da guerra.

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(39) Um dos mais antigos registros na literatura judaica sobre o sepultamento de Adão (e Eva) em Hebron, junto a outros patriarcas, está em Bereshit Rabbah 58:4, datando do século V e, portanto, (quase) contemporâneo a Jerônimo. [voltar]

(40) Seria o Livros dos Jubileus, capítulo IV, em que se relata que Adão foi sepultado “na terra de sua criação“, i.e. no Éden. [voltar]

(41) Dois casos em que judeus tiveram de entrar em disputa de tradições com outros grupos:

  1. Com os cristãos, quanto ao status de inspirada ou não da Septuaginta;
  2. Com os samaritanos, quanto ao local certo para a adoração a Javé – o Monte do Templo de Jerusalém ou o Monte Gerizim?

[voltar]
(42) Algumas outras citações patrísticas dessa crença:

  • Epifânio de Salamina (ca.310 – 403), em Panarion, 46.5, “Contra os tacianitas”:

    E, portanto, devemos nos surpreender que alguém [como Taciano] que saiba – como também encontrei na literatura – que nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado no Gólgota, nenhum outro lugar que aquele onde o corpo de Adão jaz enterrado. Pois após deixar o Paraíso, viver defronte a ele por um bom tempo e envelhecer, Adão posteriormente voltou e morreu nesse lugar – digo, Jerusalém -, e lá foi enterrado no sítio do Gólgota. Este é provavelmente o modo como o lugar – que significa “lugar de uma caveira”

    Confrontando-se com o Livro dos Jubileus, cap. IV, supõe-se que essa tradição estabelecia o Éden no sítio de Jerusalém.

  • João Crisóstomo (ca. 347 – 407), em Homilia 85 sobre o Evangelho de João, 19:16-8

    Saiu para o lugar chamado Caveira“. Alguns dizem que Adão morreu ali e ali jaz; e que Jesus, no lugar onde a morte reinara, lá também erigiu o troféu. Pois ele seguiu adiante carregando a Cruz como um troféu sobre a tirania da morte: e como os conquistadores fazem, assim carregou sobre Seus ombros o símbolo da vitória.

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(43) Excepcionalmente, utilizei a versão católica em vez da de João Ferreira de Almeida, porque esta, sendo baseada em manuscritos gregos, traz a leitura “perfurou” (do grego ενυξεν) em Jo 19:34. A Vulgata traz a leitura aperuit (“abriu”), provavelmente refletindo uma leitura grega ηνοιξεν (cf. At 9:40). [voltar]

(44) Cf. [Kelly, cap. VIII, pp. 193-4]. [voltar]

[topo]

Para saber mais

– Asheri, Michael; O Judaísmo Vivo, Imago, 1995.

– Charlesworth, James H.; The Old Testament Pseudepigrapha, vol. II,3a. ed., Hendrickson Publishers, 2013.

– Comfort, Philip; Encountering the Manuscripts, Broadman & Holdman Publishers, 2005.

– Cullmann, Oscar; Das Orignes do Evangelho à Formação da Teologia Cristã, Fonte Editorial, 2ª ed., 2004.

– Ehrman, Bart D.; O que Jesus disse? o que Jesus não disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, Prestígio, 2006

_________________; The New Testament – A Historical Introduction to the Early Christian Writings, Oxford University Press, 4ª ed, 2008.

– Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Novo Século, 1999.

– Finkelstein, Israel & Silberman, Neil Asher; A Bíblia não tinha Razão, A Girafa, 2003.

– Flusser, David; O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, vol. I, Imago, 2000.

– Freire, Antônio; Gramática grega, Ed. Martin Fontes, 1997.

– Jerônimo de Estridão (Jerome), Commentary on Matthew, coleção The Fathers of the Church, vol. 117, The Catholic University of America Press, 2008.

– Josefo, Flávio; The Works of Flavius Josephus, tradução inglesa de William Whiston acessado em 01/03/2017.

– Kelly, John Norman Davidson; Early Christian Doctrines, 4ª ed., Adam & Charles Black, Londres, 1968.

– Lawrence, Jonathan David; Washing in Water: Trajectories of Ritual Bathing in the Hebrew Bible and Second Temple Literature, Brill, 2006.

– Meier, John P.; Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico, vol. I, Imago, 1993.

– Metzger, Bruce M.; The Text of the New Testament – Its transmission, Corruption and Restoration, Oxford University Press, 3ª ed., 1992.

– Murachco, Henrique ; Língua Grega, Ed. Vozes, 2ª ed., 2003.

– Pagels, Elaine; Além de toda crença: o Evangelho Desconhecido de Tomé, ed. Objetiva, 2004.

– Patrística, Padres Apostólicos, vol I, Paulus, 1995.

Poirier, John C.; The Linguistic Situation in Jewish Palestine in Late Antiquity, Journal of Greco-Roman Christianity and Judaism, ed. 4 (2007), pp. 55-134.

– Tatum, W. Barnes; John the Baptist and Jesus – A Report of the Jesus Seminar, Polebridge Press, 1992

– Taylor, Joan E.; Christians and the Holy Places – The Myth of Jewish-Christian Origins, Clarendon Press/Oxford, 1993.

– Tricca, Maria Helena & Bárány, Júlia; Apócrifos – Os Proscritos da Bíblia, Vol. II & IV, Mercuryo, 2001.

– Vermes, Geza; Os Manuscritos do Mar Morto, Mercúryo, 2004.

– Wilkinson, Josepha Josephine; John the Baptist: A Life and Death, Kindle Edition, 2012.

– Willker, Wieland; A Textual Commentary on The Greek Gospels, vol. I – Matthew, 8ª ed., 2011.

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