Uma História de Dois Equívocos

Leia as frase abaixo:

– “Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.”

– “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos2.”

São duas declarações extraídas do cap. IX, tópico “Os Cristãos”, de “
Analisando as Traduções Bíblicas, 4ª ed. A primeira está categoricamente errada. O origenismo já era rejeitado de pelo menos duzentos anos antes do fatídico quinto concílio. A segunda citação foi deixada propositadamente com o índice (2) que constava no original. Este número nada mais é do que a referência bibliográfica dada pelo autor Severino Celestino da Silva:

2. Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

Bem, o que realmente continha o texto da coletânea de Alberigo?

Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o Monge, ed. ch. De Boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos.

pág. 134

Curiosamente, o texto de [Alberigo] é contraditório. Dois parágrafos antes do texto acima:

Não sabemos, porém, com exatidão o que aconteceu durante o concílio. As atas do concílio se perderam. Temos somente uma tradução latina, e em duas versões diferentes. Parece que os originais se perderam em 1453, por ocasião da tomada de Constantinopla, pois em 1448, durante o concílio de Florença, ainda se fez uso deles (Gill S., Actorum Graecorum Conciliorum Concilii Florentini, Roma, 1953). De qualquer modo, sabemos que se realizaram oito sessões no secretum de Santa Sofia.

De fato, versões das atas do V concílio chegaram até nós e uma delas, inclusive, pode ser encontrada em inglês na bibliografia ao fim deste tópico. Porém, há algo interessante no primeiro extrato: “(…) o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos”, em contraste com o termo citado por Severino Celestino da Silva: “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos”. Parece pouca coisa, não fica claro aos mais desavisados a abismal diferença entre uma alegação categórica e uma dedução lógica representada pelo verbo “indicar” usado no texto original e cujas premissas estão envoltas por certa névoa. Isto é mais sério do que alguns apologistas espíritas gostariam de admitir. A coletânea de Alberigo não foi tão categórica assim no trato contra o origenismo, apesar de dar bons indícios. Se isso ainda não te convenceu da gravidade do mal uso de fontes bibliográficas em Analisando…, citemos alguns parágrafos anteriores de Alberigo:

Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as idéias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

págs. 130-131

Eis aí uma explicação mais correta para a primeira condenação do origenismo em 543 e os motivos pelos quais ele (talvez) voltou a ser comentado em 553. E o nome da imperatriz Teodora não é citado em nenhum instante. Muito menos as ditas 500 prostitutas! Severino Celestino da Silva teve acesso a uma melhor informação sobre as preliminares do V concílio. Mas preferiu a teoria conspiratória …. por quê? E mais:

Nesse contexto já complicado, um novo movimento – o origenismo – veio tornar a situação realmente insolúvel. É verdade que Orígenes fora condenado há muito tempo, mas sua irradiação intelectual nunca cessou, e seu misticismo exercia constante atração sobre os monges instruídos do deserto. Na realidade, o origenismo jamais desapareceu das zonas sírio-palestinenses. Era tolerado na medida em que não criava problemas. Ora, na efervescência provocada pelas decisões do concílio de Calcedônia, tudo estava envolto pela suspeita de heresia. Pelo final do séc. V, o origenismo reapareceu sob a forma de contestação contra a ortodoxia, contra o monofisismo e contra o nestorianismo. É claro que essa quarta via não tinha muitas possibilidades em contexto tão carregado como aquele.

Pág. 125

A própria referência de Severino Celestino da Silva o desmente quando diz que até o século VI a Igreja (i.e. a ortodoxia, não os dissidentes) acreditava na reencarnação. O origenismo já fora rejeitado de muito antes – como explanado acima – e recruscedeu como um fenômeno sírio-palestino, que estava mais ligado ao monacato local. O texto de Severino Celestino da Silva contém mais dois erros crassos. O primeiro é que o concílio não se deu 299 dias após a morte do teólogo, mas 299 anos! Poderia até ser um descuido de revisão, se esta não fosse a quarta edição do livro. O mesmo dado (299 “dias”) se encontra em um livro de sua bibliografia (O Livro Tibetano dos Mortos, W.Y. Evans-Wentz, Ed. Pensamento, p. 177). Talvez houve uma predileção por esta fonte errônea em vez de outra correta, porém menos chamativa. A definição de apocatástase também está errada. Ela era uma doutrina concebida por Orígenes que enfatizava o caráter sacrificial da morte de Cristo, resgate tão alto pago aos poderes do mal que levaria não só todas as criaturas à salvação. Ou seja, Orígenes era um universalista, mas fica patente que sua doutrina era essencialmente salvacionista. Uma consequência lógica deste princípio seria a salvação até do diabo, ideia que Orígenes parece ter rejeitado depois. José Reis Chaves, outra fonte de Analisando…, acerta mais nessa definição.

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