Contendas do Deserto – As Crises Origenistas vistas de seus Epicentros

Converti para PDF um longo estudo estudo em que reuni (quase) tudo que pude encontrar a respeito do tema. Espero que não tenha se tornado um daqueles textos que no afã de esgotar o assunto terminam por esgotar o leitor, mas não há caminho fácil. A questão origenista atravessou séculos, envolveu uma série de adversários e simpatizantes de Orígenes, foi de uma ponta a outra do mundo greco-romano e teve a consolidação da atual ortodoxia cristã como pano de fundo. Foi extremamente difícil um assunto não puxar outro e a maior dificuldade foi decidir o que ter de deixar de fora sem que algo mais adiante ficasse nebuloso. Podar demais poderia acarretar em similares às simplificações espiritualistas que ainda gracejam e ou omitir os documentos históricos que tanto cobrei. De certa forma, aqui está o trabalho que deveria ter sido dos espiritualistas, embora você talvez ainda encontre algum deles por este mundo virtual perguntando por fonte fidedigna para o “assassinato de 500 prostitutas a mando da imperatriz Teodora”, como se tudo tivesse sido acionado por esse episódio. Não foi e, mesmo que tivesse ocorrido, a condenação do teólogo Orígenes no II Concílio de Constantinopla teve outras causas bem mais profundas. E como se isso já não fosse surpreendente a muitos, se tal Concílio nunca ocorresse, o verdadeiro Orígenes jamais corroboraria o espiritualismo moderno e nem os espiritualistas aceitariam vários dos anátemas de 553.

Bem, eis o link para baixar:

Contendas do Deserto (pdf)

Para os que talvez se sintam intimidados pelo tamanho, informo que muito do conteúdo é composto por anexos ou de citações que podem ser lidos conforme a disponibilidade de tempo. Poderia ter dado apenas referências, mas preferi deixar tudo ao alcance de suas mãos para pudessem ter certeza de que tudo foi dito com conhecimento de causa. Expressões como “dizem” ou “sabe-se que” estão longe de ser praxe neste portal.

Termino colocando nesta postagem o último capítulo em sua totalidade. É um agradecimento singelo por tudo que aprendi.

* * *

Capítulo 21- Palavras Finais

Este artigo cresceu muito além do esperado. De início, almejava apenas traduzir as partes de A Vida de Saba correspondentes à segunda crise origenista e dar um breve complemento a ela. Esse complemento, porém, ganhou cada vez mais corpo até ficar praticamente mais importante que o texto de abertura. Não houve outro jeito, pois o tema Origenismo revelou-se tão complexo que qualquer tentativa de explanação sucinta corria o risco de cair em erros similares aos que tanto critiquei e, além disso, não é possível entender a própria evolução que a memória de Orígenes teve sem descrever o pano de fundo: as idas e vindas na consolidação da ortodoxia cristã.

Nos três anos em que me dediquei a este texto, vi ao longe mudanças em duas personagens que me motivaram a começar a tarefa, ainda que involuntariamente. No primeiro caso, José Reis Chaves lançou no final de 2009 o livro A Bíblia e o Espiritismo, que é uma coletânea de artigos seus no jornal mineiro O Tempo relacionados de alguma forma ao tema-título. Sinceramente, fiquei honrado em saber que o artigo Críticas sem Persuasão – justamente a maior propaganda gratuita que já me deram – é logo o primeiro. Vale assinalar que não é o artigo original postado na época, mas uma versão com as correções de uma errata, que, por sinal, piorou as coisas. Não foi à toa que fiquei contente: se Chaves concluiu dizendo que “as críticas desse site não persuadem ninguém” e ao mesmo tempo me deu esse destaque, então, de algum jeito, eu tive importância, ainda que não da forma mais producente.

Uma postura distinta, mas não exatamente oposta, foi tomada por Paulo da Silva Neto Sobrinho. Também profícuo articulista, Paulo Neto dedicara um artigo à questão origenista “Reencarnação no Concílio de Constantinopla – Orígenes x Império Bizantino”. Bem, na verdade, há três versões desse artigo circulando pelo veio virtual. A primeira, de 2005, transcreve textos de autores que defendem uma teoria conspiratória no século VI e não os questiona praticamente. A versão de 2007 se deu após o autor tomar ciência do pouco embasamento de alguns dos autores que utilizara. Uma sirene de alarme foi acionada e artigo ganhou mais extratos de autores espiritualistas, perdeu alguns trechos dúbios, e Paulo Neto se dedicou um pouco mais à análise de evidências, em particular, à História Secreta, de Procópio. Foi essa a versão destrinchada dois capítulos antes. A última mudança foi em 2010, e o estado atual do artigo pode ser resumido a duas palavras: concessão e cautela. Algo da primeira e um bocado da última. A historicidade do episódio de Teodora e as 500 prostitutas é vista com ressalvas, finalmente se reconhece que o “Orígenes histórico” não corresponde ao “Orígenes idealizado” por muitos espíritas/espiritualistas – embora o perfil do alexandrino apresentado ainda deixe a desejar – e admite-se que há pouca evidência para a uma alegada multidão de teólogos ortodoxos reencarnacionistas até o século VI. Sem dúvida, foi mudança e tanto de postura, mas o autor ainda é um apologista espírita e tem de cumprir esse papel. Talvez por isso não tenha esmiuçado os textos de outros autores que traz, evitando, apenas, comprometer-se com eles. Botar para valer o dedo em feridas seria pedir muito. O que mais chamou atenção, porém, foi ainda ter se detido em A História Secreta, nem mesmo outras obras de Procópio foram analisadas. De 2007 para cá, traduzi praticamente todos os principais cronistas do período e, se alguém não confiar em mim, deixei referências para acessar suas obras no idioma original. Por que não usar todo esse material novo? Talvez por demandar muito mais tempo refazer o artigo do zero tenha decido fazer referência a mim (a que sou grato) e deixar ao leitor a tarefa de estudar-me.

Ambos os autores acima possuem seus méritos intelectuais e arriscaria dizer que isso se estenderia a outros membros do grupo apologético a que pertencem. Contudo, justamente pelo seu compromisso assumido e, em parte, por reputações estarem jogo, suas capacidades não são usadas plenamente. Um exemplo interessante de situação similar foi dado pelo próprio Orígenes.

Numa das poucas trocas de correspondências que chegaram até nós, preservada em Filocalia, Orígenes discutiu com Júlio Africano, um erudito cristão romano que lhe escrevera questionando a autenticidade da história de Susana e os Anciãos, no livro de Daniel, que fora objeto de um dos trabalhos de Orígenes. Júlio observa que, além de não pertencer ao texto hebraico adotado pelos judeus do século III, a história possuía um estilo que destoava do restante do livro, sendo provavelmente espúria. Orígenes não só lançou uma defesa apaixonada da canonicidade da passagem, mas também de outras como Bel e o Dragão, a Oração de Azarias e o Cântico dos Três Judeus, que existem somente na versão dos LXX. Essa carta, ainda que involuntariamente, acabou por se tornar o exemplo de quando Orígenes enfrentou uma mente tão eclética quanto a sua, ao ponto de não ter sido capaz de refutar os argumentos literários de Júlio Africano e preferir calcar sua defesa num apelo à tradição da Igreja. O irônico é que Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno – os compiladores de Filocalia – preservaram a carta justamente por considerarem que foi bom o desempenho de Orígenes.

Guardada as devidas proporções, diria que a situação de muitos apologistas espíritas é análoga: são capazes de agir com destreza contra padres e pastores – gente mais comprometida ainda e seguidores de doutrinas bem engessadas – mas têm muita dificuldade com quem não encara a Bíblia como matéria de fé e que muito menos está presa ao Sola Scriptura ou à infalibilidade papal. Muitos de seus argumentos, infelizmente, não vão além de um conhecimento emprestado e que lhes dá uma rasteira quando descobrem esse autor não é a última palavra em gramática de uma língua antiga ou aquele outro é incapaz de fundamentar sua pesquisa histórica em documentos de época, ou pelo menos em outros pesquisadores realmente embasados. Os membros desses grupos muitas vezes se exercitam com pesos de isopor por não colocar a si mesmos à prova. Falta-lhes alguém que lhes dê o contraditório, um “advogado do diabo”. Algo que só detratores (como gostam desse rótulo!) com mais musculatura e menos amarras podem oferecer.

Por falar em diabo, antes que me recomendem para uma longa estadia no pior lugar do umbral, lembrem-se que Satanás originalmente não era o “diabo” que hoje conhecemos e, sim, um anjo que gozava de intimidade com seu deus, cumprindo apenas seu papel de promotor. Talvez por fazê-lo tão bem, tornou-se tão detestado. Assim vejo a mim e a vocês, meus caros espiritualistas: promotor e defensor, as duas faces de uma mesma moeda e, de certa forma, a razão de ser um do outro. Nossa relação conduz ao progresso mútuo, não por simbiose, mas por pura corrida armamentista. Talvez possamos tomar uma cerveja após cada sessão, porém, diante do júri, devemos fazer o que esperam de nós.

Outra limitação que vi aqui foi a maneira como lidam com o tema “Orígenes” que, em vez de ser algo merecedor de atenção por si só, tornou-se apenas um artifício, uma carta na manga para ser usada em debates. Não há nada que mais deprecie um objeto de estudo que isso. Portanto, não perca seu tempo perguntando por aí afora se alguém conhece a origem para a história das 500 prostitutas assassinadas. Se tal episódio tivesse o mínimo de embasamento, alguma biografia de Teodora já deveria tê-lo mencionado, não acha? Não fique matutando entre versões conflitantes a respeito do que Orígenes realmente acreditava. Leia Orígenes primeiro e descubra quais autores fazem análises mais fundamentadas e, a partir dessa comparação, verifique qual mais se aproxima. Por fim, acima de tudo, deixe o teólogo do século III falar mais alto. Fuja da tentação de elaborar um Orígenes a sua imagem e semelhança. Se ele acreditava em abobrinhas, como a vida das estrelas e planetas, era a opinião dele e cabe a você documentá-la e entender suas motivações; nunca ridicularizá-las Se a ideia de “queda” das almas de uma beatitude original para você não condiz com o que é de se esperar de um reecarnacionista, que pregaria um começo “simples e ignorante” para todos os espíritos, lembre-se que era isso o alegado por Orígenes. Tanto defensores como opositores dele não lhe negaram essa tese e tal entendimento é ponto pacífico entre os historiadores.

Confesso que inicialmente também buscava em Orígenes e Teodora apenas material que me fosse útil no portal. Foi a prazerosa leitura da biografia de Evans que realmente me despertou interesse pela figura de Teodora. Não queria mais saber apenas se ela mandara 500 prostitutas para o carrasco ou não e, sim, responder a mesma indagação (ou lamento) que Procópio fez: como pôde Justiniano escolher uma atriz/meretriz quando ele tinha ao seu dispor as mais casadouras donzelas da nobreza? A resposta só pode ser uma: era uma mulher extraordinária, em todos os sentidos que essa palavra possa assumir. O fato de vir da ralé social de sua época acabou se convertendo em uma vantagem, pois Teodora aprendeu na escola da vida muitas coisas que a vasta educação formal do futuro imperador nunca ofereceria e muito menos teriam a oferecer as ricas herdeiras preparadas para a submissão. Deve ter sido uma forte atração entre opostos que, em vez de enfraquecer passada a impressão inicial, evoluiu para uma estreita simbiose.

Chamo-a de extraordinária, sim, porque minha admiração não é pela devassa de A História Secreta, mas pela mulher de fibra que liderou a reação contra a revolta de Nika e que também segurou as rédeas do governo quando Justiniano quase morreu da peste, pela devota monofisita tida por santa pelos seus confrades, pela mão amiga estendida à desamparada Preiecta, por aquela que financiava a liberdade de prostitutas, pela provável inspiradora das leis em prol das mulheres no Código de Justiniano e pela esposa dedicada cuja morte abalou profundamente seu marido. Enfim, Teodora vai além de uma simples obra de Procópio e os livros espiritualistas com quem me deparei não conseguiram buscá-la nas demais obras dele e muito menos em outros autores do período. Não sei se por ignorância, comodismo ou conveniência, para eles existe apenas uma “prostituta” para suas teses conspiratórias.

O despertar de meu interesse por Orígenes foi um pouco diferente, mas também partiu de uma pergunta capciosa: “quem foi esse indivíduo que provocava tão intensas emoções de amor e ódio, às vezes na mesma pessoa?” Foi algo estupidamente mais difícil de responder. O alcance de Teodora, bem ou mal, não foi muito além de sua vida e seu protegido movimento monofisita já estava revitalizado o bastante para continuar pelas próprias pernas. Já com Orígenes, temos o oposto:seu poder foi maior APÓS sua morte. E não era por menos, pois, ao contrário de Teodora, ele deixou vários escritos que foram lidos e relidos por gerações. Portanto, não é exagero dizer que existiram diversos “Orígenes” do século IV ao VI, ou melhor, cada grupo de teólogos relembrava Orígenes de um jeito. Estudá-lo acabou por ser algo como lidar com aquelas bonequinhas russas chamadas matrioskas: quando se abre uma, aparece outra dentro. Da mesma forma, um pequeno pormenor das crises origenistas encaminhava a análise para outro assunto. Orígenes se tornou tão instigante e desafiador por sua complexidade que, se você reler a cada cinco anos sobre os temas que o envolvem, vai sempre revisar esse ou aquele ponto sobre sua obra e de seus seguidores e detratores.

Então, apaixonei-me por meus objetos de estudo e maltratei muito meu cartão de crédito comprando livros que me fornecessem o máximo possível da vida, obra e época dos dois. Isso significou investir em literatura estrangeira, importada, especializada e, às vezes, esgotada das prateleiras. Mas assevero que valeu cada centavo. Lamento não ter tido desde início à minha disposição livros como When the Souls had Wings (“Quando as Almas tinham Asas”, de Terryl L.Givens) ou The Rise of Monophisite Movement “ (“A Ascensão do Movimento Monofisita, de William H.C. Frend), que fornecem informações valiosas sobre esse período turbulento da consolidação do cristianismo e,infelizmente, decidi não inserir para não ter que reorganizar a estrutura do artigo demasiadamente. Afinal, já levara três anos para uma tarefa que julgava não consumir mais que seis meses. Durante esse tempo, amadureci muito minha prosa e hoje já me considero capaz de conversar com meus leitores sobre as análises que tenho em mente, em vez de ser um mero catador de “falhas” ou compilador de citações como no início deste portal. Devo tudo isso a vocês e venho aqui deixar meu agradecimento pessoal e que possamos um dia “jogar conversa fora” em um território neutro e ameno.

Até mais e obrigado por tudo!!!

Balanço da Questão Origenista

Índice

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Afinal, Orígenes acreditava ou não na reencarnação?

Sim, não, depende. Defina-me reencarnação primeiro e aí, então, discutimos. Quando se tem que definir algo, surge o problema de o quanto a definição deve ser abrangente e, em geral, cada lado tenta impor a definição que mais lhe convier, o que já é meio caminho andado para ganhar (desonestamente) um debate.

De concreto, temos a crença na preexistência das almas e sua queda. Por outro lado, defendeu um modelo de ressurreição bem ortodoxo em De Principiis, II, X

Pois se corpos são erguido outra vez, sem dúvida eles se erguem para nos revestir; e se nos é necessários ser investidos de corpos, como é certamente necessário, não devemos ser investidos com nenhum outro senão o nosso próprio.

O sistema origenista guarda grandes semelhanças também com sistemas platônicos. Algumas diferenças, porém, são chamativas: a volta a algum corpo físico só se daria entre “aeons” (eras) distintos, não no mundo tal como o conhecemos e, sim, em novos; com uma possível continuidade entre o antigo corpo físico e o seguinte, o que permitiria conciliar este sistema cíclico com uma ressurreição ortodoxa (ou uma ressurreição e julgamento final ao fim de cada era, como na versão de Rufino); um ponto final para essa criações sucessivas (apocatástase), quando todas as almas estariam “sujeitas a Cristo” e Deus seria “tudo em todos”; e o valor do mérito no futuro, coisa nem sempre presente em sistemas neoplatônicos e que podia levar tanto a ascensões quanto a quedas momentâneas.

A falta de um texto confiável de De Principiis só piora a questão. Basicamente, as fontes que temos são a tradução corrompida de Rufino, extratos da coletânea Philocalia e uma sinopse de uma tradução “literal” latina de Jerônimo. Rufino, ao menos, foi honesto em assumir as modificações que fez e deu algumas “justificativas” para tanto em um panfleto chamado “A corrupção das palavras de Orígenes”:

  1. Seria impossível um homem inteligente e erudito como Orígenes se contradizer dentro de um mesmo tratado, às vezes quase em sentenças sucessivas;

  2. Outros escritores de inquestionável ortodoxia tiveram suas palavras adulteradas dos “hereges”, como Clemente de Roma, Clemente de Alexandria, Dionísio de Alexandria;

  3. O próprio Orígenes reclaramara, em uma carta ainda existente, que seu trabalho fora corrompido por heréticos. O ponto em questão nessa carta era a possibilidade de salvação do diabo. Orígenes assevera que jamais teria ensinado isso; mas, durante uma discussão com um herético, tomara ciência que uma versão adulterada de seus textos devia estar circulando.

Jerônimo contra-atacou a defesa de Rufino lembrando que escritores anteriores a ele, como Eusébio e Dídimo , já declaravam que Orígenes ensinara coisas indevidas.

Outro complicador ao entendimento é o fato de que – segundo alguns estudiosos [Malaty, p. 125] – Orígenes não foi um pensador sistemático. Não é possível juntar seus tratados de forma que eles formem um todo coerente. Por exemplo, a crença em criações sucessiva por não conceber uma divindade ociosa também entra, de certa forma, em contradição com uma restauração universal final. Além disso, os trabalhos de Orígenes que categoricamente rejeitam a “transmigração de almas” e interpretações reencarnacionistas do Novo Testamento são os do fim de sua vida, como Contra Celsus e os Comentários. Teria ele adquirido um viés mais “tradicional” conforme envelhecia? Possivelmente ou, como uma análise pormenorizada mostra, o universo multi-eras de Orígenes poderia ser conciliado com leituras ortodoxas da Bíblia, ao passo que reencarnações dentro de uma mesma criação não o são e foram vigorosamente rejeitadas por ele. Prophet defende ter Orígenes se tornado “ortodoxo” por conveniência ao fim da vida, para despistar inimigos (no caso do Comentário de Mateus), o que mela esta análise é que uma obra anterior, cuja redação foi concluída no ambiente mais ameno de Cesareia (a salvo de adversários alexandrinos), e tida por Prophet como reencarnacionista, na verdade não o é: Comentário de João. Orígenes, por sinal, nem sempre levava a ferro e fogo muitas de suas especulações e dava ênfase nisso. Os pontos destoantes dele com a ortodoxia algumas vezes são vistos como um exercício intelectual em expor argumentos pró e contra – opinião de Atanásio – ou que não são dogmas antigos, mas opiniões pessoais sujeitas a discussão – segundo de Jerônimo:

Ele [Orígenes] escreve que “(…) suas ações [das almas] e decisões nesta ou naquela direção é que determinaram seus vários futuros; isto é, se anjos virão a ser homens ou demônios e se demônios se tornaram anjos ou homens“. Então, aduzindo vários argumentos para sustentar sua tese e sustentando que, enquanto não incapaz de virtude, o diabo ainda não escolheu ser virtuoso; ele finalmente raciocina de maneira bem difusa que um anjo, uma alma humana, e um demônio – todos de acordo como ele com a mesma natureza, mas diferentes arbítrios – pode, em razão de grande negligência ou insensatez, ser transformada em feras. (…) Então, para que ele não seja acusado de sustentar junto com Pitágoras a transmigração das almas, ele termina o raciocínio ímpio com o qual tem ferido seu leitor ao dizer: “não se deve pensar que faço destas coisas dogmas, elas são apenas conjecturas expostas para mostrar que não se faz vista grossa a elas totalmente“.

Carta 124 a Ávito.

Em suma, tal “reencarnação entre eras” guarda imensas diferenças tanto com os antigos pitagóricos e platônicos quanto às modernas visões ocidentais do fenômeno. A principal delas é que a volta a algum tipo de forma física não seria possível na realidade tal como a conhecemos, o que explica porque não se deve estranhar quando Orígenes ataca os que associam João Batista a uma reencarnação de Elias. Vale lembrar que o leitor deve se desatrelar do modelo reencarnatório espírita (um para um, progresso constante, várias vezes numa mesma era, passagem obrigatória pelo útero materno, causa e efeito, etc.). O Mediterrâneo oriental era um mosaico de religiões e um verdadeiro laboratório de crenças aos séculos II e III, cujos sistemas teológicos eram muito mais amplos que isto. A própria ressurreição judaico-cristã não deixa de ser, de certa forma, – segundo o estudioso de Josefo, Steve Mason – uma espécie de “reencarnação”. Inclusive a crença da escatologia judaico-cristã em um fim dos tempos, começo de uma nova era (o “mundo vindouro”), transformação do antigo corpo físico em outro “glorificado” para os justos, redenção ou danação para os homens de acordo com o que fizeram na era que finda, etc.; também é uma forma de “reencarnação entre eras” muito similar a do polêmico tratado De Principiis da juventude de Orígenes. A ideia de preexistência, ainda que momentânea, não é tão inédita assim: o deuterocanônico “Sabedoria de Salomão” vv 8:19-20 pode ser interpretado nessa óptica e Agostinho de Hipona também cogitou alguma forma de preexistência, embora não partilhasse da teoria das quedas de Orígenes. Sob estes aspectos e levando em conta a importância que dá ao sacrifício de Cristo, ele é mais ortodoxo que a maioria dos anti-reencarnacionistas imagina ou que os reencarnacionistas gostariam de admitir.

O que torna Orígenes peculiar em De Principiis é que ele não especula apenas três estados do ser (preexistente, o desta era e o da próxima), mas situações dele ao longo de uma quantidade enorme de eras antes e após esta. Aí que a maioria dos reencarnacionistas derrapa: confundem isto com o conceito mais em voga atualmente de reencarnação – na cabeça de alguns o único viável – e não enfatizam o caráter especulativo deste tratado de Orígenes (uma espécie filosofia-ficção semelhante a encontrada em muitos filmes modernos), passando a falsa idéia do que ele propusera era dogma para o próprio e foi e que sua especulação foi consenso até o século VI.
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Orígenes foi rejeitado ou não no II Concílio de Constantinopla (V Concílio Ecumênico)?

Orígenes já havia sido rejeitado várias vezes por diversos teólogos do século IV e começo do V, num conjunto de disputas, condenações e tentativas de defesa que ficou conhecido como “Primeira Crise Origenista” ou “Crises Origenistas do Século IV”. O sínodo de 543 fez tão somente reafirmar isso de uma forma “oficial”, devido ao fato de uma contenda local entre monges palestinos ortodoxos e origenistas ter sido enviada ao arbítrio do imperador. Antes do origenismo, outras dissidências tiveram prioridade como o arianismo, monofisismo, donatismo, docetismo, maniqueísmo, nestorianismo, etc. Ao que tudo indica, as especulações origenistas que no começo eram “matéria de discussão” foram realmente tornadas “dogma” por admiradores de Orígenes, em especial, os evagrianistas. Este teria sido, sim, o sistema condenado na segunda crise origenista. Até 543 há consenso entre os historiadores. O que está em dúvida é se houve uma nova rejeição a Orígenes no Concílio de Constantinopla de 553, ou melhor, o quão de oficial e conciliar tem essa rejeição. Léon Denis escreveu em Cristianismo e Espiritismo,cap I, item IV:

(…)reconhecemos que estes concílios [Calcedônica (451) e Constantinopla(553)] repeliram, não a crença na pluralidade de existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.

Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma jamais foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da igreja no futuro, e é esse um ponto que se faz preciso estabelecer.

O que Denis não resolve é como existir reencarnação sem preexistência, nem ele faz alusão às obras anti-reencarnacionistas do teólogo alexandrino. Dá a entender que muitos espíritas não leram o próprio comentário do continuador de Kardec. Ainda assim ele está errado: o objetivo principal do primeiro concílio citado certamente foi combater o nestorianismo.

Para os mais aficcionados por pesquisa, nossas principais fontes históricas para a compreensão da segunda questão origenista são:

  1. Resumo das Controvérsias dos Nestorianos e dos Eutiquianos – do bispo africano Liberato de Cartago. Relata em seus dois últimos capítulos uma manobra política feita pelo bispo origenista Teodoro Ascidas. Sabendo que o núncio papal em Constantinopla, Pelágio – um futuro papa e rival seu na corte –, encaminhara monges palestinos ortodoxos a Justiniano, o que resultou no sínodo de 543, resolveu desviar o foco o imperador para três teólogos caros à Igreja latina: Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Cirro e Ibas de Edessa. Os três haviam sido inocentados da acusação de nestorianismo (i.e., de separar radicalmente as naturezas humana e divina de Cristo) pelo Concílio de Calcedônia, cuja decisão era apoiada por Roma. Ascidas convencera Justiniano de que, se condenasse de vez esses três teólogos, poderia obter a simpatia de monofisistas (que declaravam uma única natureza em Cristo – a divina). Um edito imperial foi lançado contra os três, gerando uma controvérsia entre o Oriente e o Ocidente conhecida como a questão dos “Três Capítulos”;

  2. Em defesa dos Três Capítulos – do também bispo africano Facundo de Hermiano. Faz coro como Liberato ao acusar os origenistas da corte de maquinar contra esses três teólogos;

  3. A Vida de São Saba – do monge palestino Cirilo de Citópolis. Parte integrante de um conjunto de hagiografias chamado A Vida dos Monges da Palestina, é a mais detalhada descrição da Segunda Crise Origenista que chegou até nós, tendo um ponto de vista a partir da periferia do império. Ao longo da vida de Saba, os origenistas aparecem pouco, embora Cirilo não deixe de mencionar como, aos poucos, eles se infiltraram e instalaram no mosteiro Nova Laura, fundado por Saba. O confronto entre origenistas e ortodoxos estourou apenas após a morte de Saba, por volta de 532, e os origenistas levaram vantagem e colocaram os ortodoxos na defensiva. O gatilho do sínodo de 543 é um pouco diferente do relatado por Liberato, sem nenhuma alusão a Pelágio, mas concordando que foi solicitação local a Justiniano. Entretanto, o efeito prático do sínodo foi nulo e a década de 40 do século VI marcou o ápice do poder origenista na Palestina. A situação só começou a mudar com o rompimento entre origenistas radicais e moderados, tendo esses últimos retornado para o partido ortodoxo. O V Concílio Ecumênico teve por objetivo resolver de vez a briga, que terminou com a expulsão dos origenistas de Nova Laura em 555, por meio de força militar. Como complemento a esse texto e também de Cirilo de Citópolis, sugiro os capítulos de XI a XV de A Vida de Ciríaco, em que são listadas as diferenças em os monges origenistas e os ortodoxos;

  4. A História Eclesiástica – de Evágrio Escolástico. Bispo de Antioquia que escreveu um conjunto de crônicas da política religiosa imperial de 431 (no segundo concílio de Éfeso) até 594. Seu relato da segunda crise origenista (livro IV, cap. 38) começa pelo fim, já no ano de 553, e corresponde aproximadamente ao último capítulo de A Vida de Saba. Há algumas diferenças: a expulsão dos origenistas de Nova Laura precede o concílio e dá a entender que a questão dos “Três Capítulos” foi exposta só naquele ano. Tal como nos relatos anteriores acerca dos eventos de 543, Evágrio dá como gatilho para a ação de Justiniano a requisição de clérigos ortodoxos palestinos e defende a tese da intriga origenista contra os Três Capítulos como uma espécie de ação diversiva. De certa forma, este autor compacta as duas etapas da crise em uma só.

Nas versões latinas das atas de Constantinopla II que chegaram até nós, são praticamente só relatadas as questões dos “Três Capítulos” e quase nenhuma menção é feita a Orígenes ou ao origenismo. Somente no item XI do Cânon aparece uma citação textual de seu nome e de alguns seguidores, seguida por uma condenação deles. Não se sabe se os quinze anátemas de 543 (encontrados apenas no século XVII) tiveram participação nas atas ou se foram as opiniões do teólogo quanto a natureza de Cristo. Esta página de Early Church Fathers apresenta argumentos pró e contra o uso do material do sínodo em 553. De qualquer forma, os sucessores de Vigílio (Pelágio I e II, Gregório), ao tratarem do quinto concílio, falaram apenas dos “Três Capítulos” e agiram como se não soubessem da condenação (segundo a Catholic Encyclopedia). Há a possibilidade de os papas não terem tido nenhum interesse na questão origenista, pois, como relatou [Alberigo] o origenismo era fraco no ocidente. É possível também que Justiniano, como já obtivera dez anos antes a corroboração dos cinco patriarcas (com o papa incluído) para o sínodo local, tenha apenas quisto uma nova confirmação que tivesse mais “status” que a anterior. Se assim foi, estaria explicado por que o origenismo pouco espaço tomou nas atas. Vale lembrar que se Teodora teve alguma coisa a ver com esta confusão toda, deve ter sido apenas na memória do Imperador, pois ela morrera em 548.
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A preexistência das almas foi, então, anatematizada?

Os anátemas contra Orígenes – tanto os do imperador quanto os do sínodo de 543 – revelam que a questão origenista transcendia em muito a simples questão da preexistência. Em geral só é citado o primeiro anátema de 543:

I – Se algum crer na fabulosa preexistência das almas e na monstruosa reabilitação das mesmas, que é associada a ela, seja anátema.

Mas uma análise dos seguintes chama a atenção:

III – Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais a que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema.

IV – Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em consequência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema.

Dos anátemas de Justiniano:

V – Se alguém disser ou pensar que, na ressurreição, os corpos humanos ressurgirão numa forma esférica e distinta da atual, seja anátema.(*)

VII – Se alguém disser ou pensar que Cristo, o Senhor, será, em algum tempo futuro, crucificado por demônios assim como foi por homens, seja anátema.

VIII – Se alguém disser ou pensar que o poder de Deus é limitado e que ele criou apenas aquilo que foi capaz de alcançar, seja anátema.

(*)A tese desse anátema não pode ser encontrada nos escritos que sobraram de Orígenes, estando em alguma obra perdida ou foi cunhada por origenistas posteriores.

Apesar de alguma semelhança aparente com a doutrina espírita, as diferenças são imensas. Sou cético se a maioria dos espíritas conhece esta parte mais “heterodoxa” do origenismo – talvez nem saibam do que falam – e duvido muito se os que lamentam o episódio de 543 o aceitariam integralmente.
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Teodora matou 500 prostitutas?

Não há nenhum documento histórico que comprove isto. Mesmo o mais virulento cronista da corte bizantina, Procópio, relata apenas um encarceramento. E ainda que houvesse ocorrido tal chacina, há evidência suficientes para que o verdadeiro gatilho da segunda crise origenista tenha sido as dissensões ocorridas nos mosteiros sírio-palestinos. De toda a sorte de crimes que a imperatriz cometeu, foram logo escolher um forjado. Como o ônus da prova recai sobre quem propõe e Procópio foi o único nome apresentado, cabem aos proponentes arrumar alguma fonte alternativa em outro cronistas bizantino. Se ela existir. [topo]

Afinal, qual o papel de Orígenes nessa história toda?

O de um mito. Ele representa – para os espiritualistas – “aquilo que fomos um dia, nos desviamos e almejamos voltar a ser”. Isto, na verdade se encaixa na definição de qualquer mito. O rei Davi, que unificou as tribos e fez de Israel uma nação imperialista; Solano Lopez, o déspota esclarecido que fez o Paraguai peitar os interesses ingleses e seus lacaios brasileiros; Duque de Caxias, militar modelo e pacificador do Brasil. Todas estas figuras realmente existiram, mas não eram tidos por seus contemporâneos pelas imagens que têm hoje. Escavações comprovam que Davi deve ter sido apenas um monarca local, sem tanta pompa e glória. Francisco Daratioto, em seu livro Maldita Guerra, mostra que Solano Lopez era tido pelos paraguaios como um tiranete que levou sua pátria à uma aventura desastrosa. A construção do “herói nacional” se deu ao longo do século XX, em especial durante a ditadura Stroessnser e, deste lado da fronteira, uma espécie de desforrismo contra a ditadura militar pintou o Brasil como marionete inglesa. Caxias não era tão bem visto assim na República Velha por ter sido monarquista. Ele sempre teve prestígio militar, sem dúvida, mas este não era maior do que o dos demais chefes das campanhas platinas, como Osório. Teve seu valor inflacionado grandemente pela ditadura Vargas.

Nesse aspecto, Orígenes se tornou um mito espiritualista. O prolífico teólogo alexandrino – cujos escritos despertavam igual número de paixões pró e contra – de fato existiu. O mártir intelectual que cria numa reencarnação aos moldes modernos, era uma unanimidade até o século VI e foi perseguido pelos delírios de um casal de monarcas – em especial a esposa -, é uma construção dos tempos atuais. Uma “história” personalista da cristandade que tira o foco do que interessaria: o que realmente os pequenos grupos cristãos originais discutiam entre si? Será que o sacrifício da arena contaria com tantos adeptos caso eles não vissem nisso uma porta da a redenção imediata?
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Não estás fazendo “tempestade em copo d’água”?

Não, por um simples motivo: as táticas usadas na criação de mitos. Seleção de fatos e escritos, aumento da importância de alguns aspectos em detrimento a outros, teorias conspiratórias, erros biográficos, quando não revisionismo puro e simples, são coisas que deveriam preocupar qualquer espiritualista que preze algum respeito. Citei vários autores como Severino Celestino da Silva, Elizabeth Clare Prophet, Noel Langley, José Reis Chaves, Kersten e te pergunto: posso levar a sério alguns desses estudos? Definitivamente, NÃO!!! Devo acusá-los de má-fé? Também não, do contrário o ônus da prova seria meu e poderia incorrer em calúnia. A interpretação mais leve que posso fazer quanto a eles é que não leram em os escritos de Orígenes e pegaram citações de outros autores (ou uns dos outros) sem fazer a devida verificação. Nesse caso, agiram de modo descuidado com seus leitores e seus “trabalhos acadêmicos” não passam de “recorte e cole” feito por estudantes fundamentais. Ao encontrar alguma citação que apoiasse seus pontos de vista, suspenderam todo o senso crítico. É a emoção humana adentrando na “fé racionada”. Simplificações exageradas também ocorrem por parte de anti-reencarnacionistas como D.Estevão Bettencourt, que desconsidera o aspecto de múltiplas eras de Orígenes, e há “tábuas de salvação”, como a História da Filosofia feita por Giovanni Reale e Dario Antiseri, que não apela para teorias conspiratórias e situa corretamente o pensamento de Orígenes no conceito de múltiplas eras.
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Para Saber mais sobre Orígenes e o Origenismo

– Alberigo, Guiseppe; História dos Concílios Ecumênicos, Ed. Paulus, 1995.

– Ballou, Hoseas, The Ancient History of Universalism. Ed. Z. Baker, 2ª ed., 1842.

– Blume, Fred H.; Annotated Justinian Code, University of Wyoming, 2ª ed. Acessado em 05/01/2009.

– Bridge, Antony; Theodora – Portrait in a Byzantine Landscape, Academy Chicago Publishers, 1993.

– Cassiodoro, Flávio; Institutions of Divine and Secular Learning – On the Soul, tradução inglesa de James W. Halporn, Liverpool University Press, 2004.

– Catholic Encyclopedia, Origen and Origenism. Acessado em 05/04/2009.

_________________, Three Chapters. Acessado em 10/04/2009.

_________________, Second Council of Constantinople. Acessado em 10/04/2009.

– Cesaretti, Paolo; Theodora – Empress of Byzantium, tradução inglesa de Rosanna M. Giammanco Frongia, Vendome Press, 2001.

– Clark, Elizabeth Ann, The Origenist Controversy, Princeton University Press, 1992.

– Crouzel, Henri; Origen, tradução inglesa de A.S. Worrall, T & T Clark, Edimburgo, 1998

– Drewery, B,; The Condenation of Origen: Should it be Reversed? [A Condenação de Orígenes: Deve ela ser Revertida?], publicado em Origeniana Tertia, p. 271-277, Edizioni dell’Ateneo, 1981

– Evans, James Allan; The Empress Theodora – Partner of Justinian, University of Texas Press, 2002.

– Frend, W.H.C; The Rise of Monophysite Movement [A Ascensão do Movimento Monofisista], James Clarke & Co. Ltd, 2008.

– Frothingham, Arthur Lincoln; Stephen bar Sudaili, Syrian Mystic, and the Book of Hierotheos, E.J Brill, 1886.

– Gibbon, Edward; The History Of The Decline And Fall Of The Roman Empire, edição eletrônica completa da Christian Classics Ethereal Library. Existe uma edição abreviada em português editada pela Companhia das Letras, mas ela perdeu boa parte das referências do original.

– Grillmeier, Aloys & Hainthaler, Theresia; Christ in Christian Tradition, tradução inglesa Pauline Allen e John Caste, vol. II, parte II, Mowbray/ Westminster John Knox Press, 1995.

– Jerônimo de Aquileia, Apology for Himself against the Books of Rufinus [Apologia própria contra os Livros de Rufino], parte da coleção Nicene and Post-Nicene Fathers, série II, vol. III, Phillip Schaff. Acessado em 18/04/2009 na Christian Classics Ethereal Library.

__________________, Letters and Select Works [Cartas e Obras Seletas], parte da coleção Nicene and Post-Nicene Fathers, série II, vol. VI, Phillip Schaff. Acessado em 16/10/2008 na Christian Classics Ethereal Library.

– João Malala; The Chronicle [A Crônica], tradução inglesa de Elizabeth Jeffreys, Michael Jeffreys e Robert Scott; série Byzantina Australiensia vol. IV, Australian Association for Byzantine Studies, Melbourne, 1986.

– Justiniano, Flávio; The Civil Law, tradução inglesa por S. P. Scott, 1932. Acessado em 05/01/2009.

– MacGregor, Geddes; Reincarnation in Christianity, A Quest Book – The Theosophical Publishing House, 1989.

– Malaty, Tadros Y., The School of Alexandria II – ORIGEN – Acessado em 25/05/2009.

– Meyendorff, John; Christ in Eastern Christian Thought, St. Vladimir’s Seminary Press, 1987.

– Molland, Einar; The Conception of the Gospel in the Alexandrian Theology, I Kommisjon hos Jacob Dybwad, Oslo, 1938.

– Orígenes Adamâncio, Commentary on the Epistle to the Romans [Comentário sobre a Epístola aos Romanos], parte da coleção The Fathers of the Church, vol. CIII e CIV, tradução inglesa de Thomas P. Scheck, The Catholic University of America Press, Washington D.C., 2001

__________________, Commentary on the Gospel of John [Comentário sobre o Evangelho de João], livros I – X, parte da coleção Ante-nicene Fathers, vol. IX, Phillip Schaff. Acessado em 25/10/2008 na Christian Classics Ethereal Library.

__________________, Commentary on the Gospel of John [Comentário sobre o Evangelho de João], livros XIII – XXXII, parte da coleção The Fathers of the Church, vol. LXXXIX, tradução inglesa de Ronald Heine, The Catholic University of America Press, Washington D.C., 2006.

__________________, Commentary on the Gospel of Matthew [Comentário sobre o Evangelho de Mateus], parte da coleção Ante-nicene Fathers, vol. IX, Phillip Schaff. Acessado em 25/10/2008 na Christian Classics Ethereal Library.

__________________, Contra Celso, tradução de Orlando dos Reis, parte da coleção Patrística, vol. XX, Paulus, São Paulo, 2004.

__________________, Contra Celsum, tradução inglesa de Henry Chadwick, Cambridge University Press, Londres, 2003.

__________________, De Principiis [Sobre os Princípios], parte da coleção Ante-nicene Fathers, vol. IV, Phillip Schaff. Acessado em 25/10/2008 na Christian Classics Ethereal Library.

__________________, Dialogue of Origen with Heraclides and his Fellow Bishops on the Father, the Son, and the Soul [Diálogo de Orígenes com Heráclides e seus Companheiros Bispos sobre o Pai, o Filho e a Alma], tradução inglesa de Robert J. Daly, parte da coleção Ancient Christian Writers, The New England Province of The Society of Jesus, 1992.

– Pânfilo de Cesareia, Apologia pro Origene [Apologia por Orígenes], tradução latina de Eusébio de Cesareia em Patrologia Graeca, vol. XVII, cols. 541-614.

– Percival, Henry R.; The Seven Ecumenical Councils, [Os Sete Concílio Ecumênicos] parte da coleção Nicene and Post-Nicene Fathers, série II, vol. XIV, Phillip Schaff. Acessado em 05/06/2010 na Christian Classics Ethereal Library.

– Perrone, Lerenzo; Benardino, P., Marchini, D.; Origeniana Octava: Origen and Alexandrian Tradition, Peeters Publishers, 2003.

– Procópio de Cesareia, parte II, vol. III, Corpus Scriptorum Historiae Byzantinae, ed. Niebuhr, Barthol Georg; Ed. Weber, Bonn, 1838

___________________, History of the Wars, Livros I e II, III e IV, V e VI, tradução inglesa de H. B. Dewing, Projeto Gutemberg, Acessado em 15/01/2009.

___________________, History of the Wars, Livros VI.16 – VII.35, edição bilíngue grego/inglês (tradução de H.B. Dewing), Loeb Classical Library – vol. 173, Harvard University Press, 2006.

___________________, The Secret History [A História Secreta], tradução inglesa de H. B. Dewing, Fordham University, acessado em 20/01/2009.

___________________, On the Buildings [Sobre as Construções], tradução inglesa de H. B. Dewing, LacusCurtius, acessado em 20/01/2009.

– Rombs, Ronnies, J., A Note on the Status of Origen’s De Principiis in English, em Vigiliae Christiane, Brill, Vol. 61, nº 1, 2007 , p. 21-29;.

– Rufino de Aquileia, The Book Concerning the Adulteration of the Works of Origen [O Livro sobre a Adulteração das Oboms de Orígenes] parte da coleção Nicene and Post-Nicene Fathers, série II, vol. III, Phillip Schaff. Acessado em 16/10/2008 na Christian Classics Ethereal Library.

– Scott, Roger D.; Malalas, The Secret History, and Justinian’s Propaganda, publicado em Dumbarton Oaks Papers, vol. 39, 1985, pp. 99-109.

– Scythopolis, Cyril of; The Lives of the Monks of Palestine, tradução inglesa de R.M. Price, Cistercian Publications, 1991.

Misquoting Origens: Elizabeth Clare Prophet

“Estatísticas são como biquínis: mostram o que é sugestivo, mas escondem o que é vital”

(anônimo)

A jornalista e escritora de ficção Elizabeth Clare Prophet produziu um livro muito falado de nome Reencarnação: o elo perdido do cristianismo. Devo admitir que quando comparado com as limitações hitoriográficas das obras de Severino Celestino da Silva, José Reis Chaves e José Carlos Leal, esta obra é em muito superior. As querelas origenistas são descritas com uma quantidade maior de pormenores, ao contrário da simplificação exagerada feita pelos demais (ainda que a imparcialidade…), e não cai na tentação fácil de explicar tudo numa teoria conspiratória centrada na figura da imperatriz Teodora. Também devo comentar que Prophet fez a gentileza de colocar muitas vezes referências diretas às obras de Orígenes, o que facilita muito o trabalho de revisão e crítica, embora ainda se valha demais de citações não verificadas. O que mais chama atenção, porém, não é exatamente o que ela diz (também o é), e sim o que ela deixa de dizer. Procedamos a uma análise do capítulo XVI do livro (“Os Diferentes Destinos dos Gêmeos”).

Os rabinos chegaram a uma conclusão incomum. Como as escrituras diziam que os destinos dos gêmeos [Esaú e Jacó] eram diferentes desde o nascimento, e uma vez que Deus era justo, acharam que a única resposta possível era que Esaú havia pecado enquanto estava no ventre de sua mãe. Por mais estranho que pareça, é exatamente esta especulação que encontramos num comentário do Gêneses escrito por volta de 400 a.C.. Os rabinos conjeturavam que, quando Rebeca passava por “casas de idolatria”, Esaú indicava a sua preferência dando pontapés, mas “quando ela passava por sinagogas e casas de estudo, era Jacó quem dava pontapés, tentando sair”(4). Por estas ações os rabinos concluíram que Deus preferia Jacó e sua semente a Esaú e sua semente, por gerações.

Pouco depois disso, Prophet compara a explicação acima com a proposta de pré-existência dos gêmeos dada por Orígenes, em De Pricipiis, livro II, cap. IX, com esta contida no comentário rabínico Genesis Rabbah 63.6.3. Este, conforme ela explica em sua nota (4) para este capítulo ao fim do livro, foi retirado de um livro do escritor judeu Jacob Neusner. Bom, como estamos falando de citações de citações surge uma questão a respeito da datação de Gêneses Rabbah. Tenho outro livro desse mesmo autor ( Introdução ao Judaísmo, ed. Imago ) cujo glossário traz a datação para Genesis Rabbah para 450 E.C. (Era Comum, isto é, d.C), portanto quando Prophet situa o livro em 400 a.C. devo indagar se o correto não seria 400 d.C. De fato, há um erro aí, mas não da autora e sim da tradução da edição brasileira. Consultando o original em inglês, encontra-se:

Edição em língua inglesa de Prophet

A expressão usada é “A.D. 400” (Anno Domini 400), que significa literalmente “400º ano do Senhor“, ou, em bom português, “ano 400 depois de Cristo“. Por algum motivo, confundiram a sigla A.D., comum entre os anglófonos, com o nosso tradicional a.C. Esse lapso não é tão inofensivo assim, pois, ao datar Genesis Rabbah 400 anos antes de Cristo, haveria tempo para sua proposta para o caso de Esaú e Jacó ter sido substituída por uma doutrina reencarnacionista que, supostamente, teria se difundido no seio do judaísmo intertestamentário. Com a datação correta, fica menos provável que a reencarnação já fosse moeda corrente no mainstream do judaísmo ao tempo de Jesus. Isso tem um efeito grande na interpretação de passagens como O “cego de nascença” (Jo 9:2), pois mostra que a crença em pecados pré-natais já podia estar presente no período intertestamentário; aliás, essa é a tese defendida por John Lightfoot em seu comentário de João. A quanto engano autores espiritualistas brasileiros (e demais lusófonos) podem ter sido induzidos por essa falha de tradução!

Continuando:

– Orígenes conhecia bem as tradições judaicas sobre a reencarnação e a divinização e, às vezes, parecia fazer eco à palavras de Filon, que escreveu sobre a reencarnação. Orígenes acreditava que os judeus ensinavam a reencarnação. (15)

Vejamos como Prophet desenvolve a questão em sua nota (15):

(…)Orígenes pode ter tido algo a acrescentar sobre a questão de se os judeus acreditavam ou não em reencarnação. Em seu comentário sobre as passagens de João/Elias em seu Comentário sobre João, ele afirma que a pergunta a João: “És tu Elias?” que eles acreditavam na metensomatose [transmigração], como uma doutrina herdada de seus ancestrais e que, por isso, não se chocava com o ensinamento secreto de seus mestres. Ele afirma também que uma tradição judaica diz que Fineias, filho de Eleazar, “foi Elias”. Talvez Orígenes tenha tido acesso a ensinamentos secretos judaicos além dos evangelhos. O Comentário de João 6.7, citado por Jean Daniélou em “Gospel Message and Hellenistic Cuture” (A Mensagem do Evangelho e a Cultura Helenica), trad. John Austin Baker, vol. 2 de “A History of Early Christian Doctrine before the Coucil of Nicaea” (A História da Doutrina do Cristianismo Primitivo antes do Concílio de Niceia) (Londres: Darton, Longman and Todd, 1973), pp. 493-494.

Bem, vejamos excertos maiores do capítulo VII do sexto livro de Comentários de João, edição de Ante-Nicene Fathers, a mesma de usada por ela:


Nosso primeiro erudito, cuja visão da transcorporação vimos ser baseada em nossa passagem, pode prosseguir com um exame mais detalhado do texto e argumentar contra seu antagonista que se João foi o filho de um homem como o sacerdote Zacarias e se nasceu quando seu pais já eram ambos idosos, contrariando todas as expectativas humanas, não é provável que tanto judeus em Jerusalém o desconhecessem, ou os sacerdotes e levitas por eles enviados não estariam a par dos fatos de seu nascimento. Não declara Lucas que “o temor veio sobre todos os que viviam por perto” (Lc 1:65), – claramente nas proximidades ao redor de Zacarias e Isabel – e que “todas essas coisas foram divulgadas por toda terra montanhosa da Judeia“?
E se o nascimento de João a partir de Zacarias foi matéria de comum conhecimento e os judeus de Jerusalém já enviaram sacerdotes e levitas para perguntar, “És tu Elias?” então está claro em dizer que eles consideravam a doutrina da transcorporação com verdadeira e que ela era uma doutrina corrente de seu país, e não estranha aos seus ensinos secretos. João, portanto, diz, “Eu não sou Elias, porque não sabe sobre sua vida prévia. Estes pensadores, assim, cogitam uma opinião que não deve de forma alguma ser desprezada. Nosso membro da Igreja, contudo, pode replicar à alegação e perguntar se é digno de um profeta, que é iluminado pelo Espírito Santo, que foi previsto por Isaías, e cujo nascimento por pressagiado antes que sucedesse por tão grande anjo, que recebeu da plenitude de Cristo, que partilha de tal graça, que sabe que a verdade vem por meio de Jesus Cristo e ensinou coisas tão profundas a respeito de Deus e do unigênito, que está no seio do Pai, é digno de tal indivíduo mentir ou mesmo hesitar, em razão da ignorância do que era. Pois com relação ao que estava obscuro, ele deveria ter se abstido de confessar, e não ter nem afirmado, nem negado a proposição que foi posta. Se a doutrina [da transcorporação] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.

Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7

Em negrito as informações desconsideradas por Prophet

Senhores, está claro que, quando Orígenes fala de um ensino “secreto dos hebreus”, ele o coloca na boca de filósofos antagonistas. Depois ele diz com todas as letras que, àquela altura, a transmigração ainda não entrara no judaísmo místico. Quanto ao caso de Fineias, Orígenes fala ao fim do capítulo:

Eu não sei como os hebreus começaram a falar que Fineias, filho de Eleazar, que admitidamente prolongou sua vida ao tempo de muitos dos juízes, como lemos no Livro de Juízes (Jz 20:28), para dizer o que agora menciono. Dizem que ele foi Elias porque Deus lhe prometera imortalidade, devido à aliança concedida a ele (Nm 25:12-13) (…) .

Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7

Aqui fica claro que não se tratava de reencarnação, mas de uma imortalidade. Os judeus teriam confundido o “sacerdócio eterno” de Fineias e sua descendência com uma espécie de imortalidade para o próprio. Por todo o exposto acima, fica-se com a impressão de que Prophet não leu nada do texto original de Orígenes e, além disso, ou mal citou suas fontes ou confiou demais nelas. Uma falha grave de pesquisa. Prossigamos:

– Clemente de Alexandria, um professor cristão que dirigiu a escola de catequese antes de Orígenes – Diz-se que ensinava a reencarnação (16)

Deem uma lida no artigo sobre Clemente de Alexandria para esclarecimentos reais sobre o que ele defendia.

– O Gnosticismo – Orígenes absorveu este conceito através de um professor chamado Paulo de Antioquia (…) Existe ainda uma possível sexta fonte para a crença de Orígenes na reencarnação. Ele pode tê-la aceito por ter-se convencido – através do estudo do Gnosticismo, dos escritos de Clemente ou de outras escrituras que se perderam – de que a reencarnação fazia parte dos ensinamentos secretos de Jesus.

Sinceramente, quem escreve uma coisa dessas quase passa um atestado de jamais ter lido sequer um parágrafo de De Principiis nem que fosse apenas por passatempo. A carreira de Orígenes teve por adversários e antagonistas grupos gnósticos:

(…) agora, quanto àquelas expressões que ocorrem no antigo Testamento, quando se diz que Deus ficou raivoso ou arrependido, ou quando um sentimento ou paixão humana é descrito, (nossos oponentes) pensam que estão abastecidos de subsídios para nos refutar, alegando que Deus é impassível ao todo e é considerado totalmente livre de sentimentos de qualquer tipo, nós temos de mostrar a eles que declarações similares são encontradas mesmo nas parábolas do Evangelho.

De Principiis, livro II, cap. IV

Fora dito nos profetas, “Eu sou Deus e além de Mim não há outro Deus”. Pois se o Salvador, sabendo que Ele que está escrito na lei é o Deus de Abraão e que é o mesmo que diz, “Eu sou Deus e além de Mim não há outro Deus”, reconhece que o mesmíssimo que é Seu Pai é ignorante quanto a existência de qualquer outro Deus acima dEle mesmo, como os heréticos supõem, Ele absurdamente O declara ser Seu Pai que não conhece um Deus superior. Mas se não é da ignorância, mas do engodo, que diz não haver outro Deus além de Si mesmo, então é um absurdo muito maior confessar que Seu Pai é culpado de falsidade. De tudo, a conclusão a que se chega é que Ele desconhece outro Pai além de Deus, Fundador e Criador de todas as coisas.

Idem

Aqui é claro o combate de Orígenes ao dualismo gnóstico, que asseverava ser um demiurgo inferior o deus do Antigo Testamento e criador do mundo material, aprisionando centelhas divinas em corpo de carne. O mundo material seria mal em si mesmo. Jesus teria sido enviado pelo verdadeiro deus superior e bom para libertar as almas das mãos do demiurgo. Boa parte do texto de De Principiis é gasto em justificar a unidade entre o Deus do Antigo e do Novo Testamentos e buscar uma justificativa para a encarnação das almas que estivesse de acordo com parâmetros de “bondade divina”, daí a teoria de uma beatitude primordial, as quedas, necessidade de corpos para individualizar almas decaídas, regeneração pela submissão a Cristo. Ao contrário do que alguns escritores reencarnacionistas afirmam, Orígenes não foi influenciado pelo gnosticismo, muito pelo contrário, era antignóstico. Se isto ainda não te convence, veja Orígenes citando com todas as letras expoentes gnósticos:

Agora, quando dizemos que este mundo foi estabelecido na diversidade na qual acima explicamos que foi criada por Deus e quando dizemos que este Deus é bom e reto, e mais justo, há numerosos indivíduos, especialmente aqueles que, oriundos da escola de Marcião, e Valentino, e Basílides, ouviram que há almas de diferentes naturezas, que nos objetam, que isto não pode consistir com a justiça de Deus em criar o mundos para designar a algumas de Suas criaturas uma morada nos céus, e não apenas para dar uma melhor habitação, mas também uma mais alta e honrável posição (…) [grifos do portal]

De Principiis, II, IX

Muitos autores não têm Marcião como gnóstico, apesar de possuir pontos em comum com eles, mas Valentino e Basílides eram sem dúvida gnósticos.

– Ele responde à sua própria pergunta: “É claro que alguns pecados existem [isto é, foram cometidos] antes de as almas [terem corpos] e, como resultado, cada alma recebe a recompensa de acordo com seu mérito” (19)

Em sua nota (19), Prophet dá sua fonte para esta frase: Orígenes On the First Principles (Sobre os Primeiros Princípios) 1.8.1, Butterworth, p. 67.

Prophet situa tal citação no livro I, capítulo VIII, parágrafo primeiro; porém tal trecho não aparece na tradução de De Principiis feita por Frederick Crombie na série Ante-Nicene Fathers (1866-1872). Há uma explicação simples para o fato, segundo John S. Uebersax, G. W. Butterworth (1936/1966) baseou sua popular tradução inglesa não numa tradução direta do texto latino de Rufino. Ele a extraiu de uma tradução alemã feita por Paul Koetschau, que tentara uma magnus opus visando reconstruir o original De Principiis como existia antes da editada tradução de Rufino, a forma em que a maior parte do trabalho chegou até nós. “Tem-se sugerido que Koetschau fez um uso extremamente liberal de fontes secundárias, i.e., citações ou paráfrases meramente atribuídas a Orígenes“. De fato, quem se dispuser a adquirir um exemplar da edição de Butterworth/Koetschau verá que sua versão grega para De Principiis 1.8.1 é uma montagem feita a partir de extratos de Antípater de Bostra, Leôncio de Bizâncio e Epifânio. Apesar de a frase não ser demasiadamente estranha ao sistema origenista, fica revelado aspecto temerário da obra da autora ao não se basear em uma fonte confiável, caso Uebersax esteja certo. Os texto disponíveis on-line de Ante-Nicene Fathers não tentam fazer uma reconstrução crítica de forma tão atrapalhada. Eles simplesmente expõem como base o texto de Rufino e, ao fim de cada tomo, colocam extratos da carta de Jerônimo a Ávito e de Philocalia. Fica a cargo dos leitores a comparação. O texto disponível on-line de Ante-Nicene Fathers não tentam fazer uma reconstrução crítica de forma tão atrapalhada. Eles simplesmente expõem como base o texto de Rufino e, ao fim de cada tomo, colocam extratos da carta de Jerônimo a Avitus e de Philocalia. Fica a cargo dos leitores a comparação.

– Ao dizer que o nosso destino resulta de nossas ações passadas, Orígenes dá a entender que tivemos alguma forma de existência anterior que precedeu o nosso corpo atual. Para Orígenes a conclusão óbvia é que a esta existência anterior também foi vivida sob a forma humana.

Na verdade, o estado humano foi devido a um grau de queda maior que o dos anjos e os astros celestes. Antes das quedas, todas as alma tinham um estado primordial incorpóreo, sem contar que, entre uma era e outra, um humano poderia ascender a um desses dois ou decair para um demônio. Note a (errônea) citação que Prophet faz de Orígenes (digo, de Butterworth) logo acima. Parece que ela leu uma coisa e entendeu outra.

– Em seu Comentário sobre João, trata da questão da reencarnação, mas não chega a oferecer uma resposta dizendo: “O assunto da alma é muito amplo e difícil de ser esclarecido… Exige, por isso, tratamento diferenciado.” (21)

A nota (21) informa que a citação foi extraída de Comentário de João 6.7. Para começo de conversa, como se viu acima, nesse livro e capítulo se discute, sim, a reencarnação. Ele afirma que não era doutrina entre os judeus contemporâneos seus e que seus pares:

Entretanto, um membro da Igreja, que rejeita a doutrina da transcorporação como falsa e não admite que a alma de João fosse a de Elias, pode se referir às palavras do anjo supracitadas e assinalar que não é a alma de Elias que é dita ao nascimento de João, mas o espírito e poder de Elias.

Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de João, 6.7

e segue com uma longa argumentação de que João Batista não era uma reencarnação de Elias, muito similar, por sinal, a que os apologistas cristãos fazem hoje:

Quanto aos espíritos dos profetas, estes são dados por Deus e são considerados como sendo, de certo modo, propriedades deles, como “Os espíritos dos profetas estão submissos aos profetas” (I Cor 14:32) e o Espírito de Elias repousou sobre Eliseu (2 Reis 2:15). Assim, diz-se, não há nada de absurdo supor que João, “no espírito e poder de Elias”, voltou o coração dos pais para os filhos e foi por causa deste espírito que foi chamado de “o Elias que deve vir”.

Idem

O trecho que Prophet exibe se encontra ao fim do capítulo referido do Comentário de João e merece uma contextualização maior:

Não admira, então, se aqueles que conceberam Fineias e Elias como a mesma pessoa; caso tenham julgado ajuizadamente ou não, não é a questão agora, considerariam João e Jesus como também sendo so mesmo. Isto, então, eles duvidaram e desejaram saber se João e Elias eram os mesmos. Em outra ocasião que nem esta, a questão [identificação entre Jesus e João] certamente exigiria uma análise detalhada e o argumento teria de ser bem ponderado quanto à essência da alma, ao princípio de sua composição e quanto a sua entrada neste corpo terreno. Também deveremos ter de inquirir quanto às distribuições da vida de cada alma, e quanto a sua partida desta vida, e se é possível para ela entrar numa segunda vida em um corpo ou não, e se tal ocorre no mesmo período e após o mesmo arranjo em cada caso, ou não, e se entra no mesmo corpo ou em outro distinto, e se o mesmo, se o sujeito permanece o mesmo ao passo que as qualidades mudam ou se tanto o sujeito quanto as qualidades permanecem, e se a alma sempre fará uso do mesmo corpo ou o trocará. Junto com estas questões, seria também necessário perguntar o que é transcorporação e como ela se difere da incorporação e ele que sustém a transcorporação deve necessariamente que o mundo seja eterno. A noções desses pensadores também devem ser consideradas; quem considera que, segundo as Escrituras, a alma é semeada junto com o corpo e as consequências de tal noção também deve ser levada em conta. De fato, o assunto da alma é muito amplo e difícil de ser esclarecido e tem de ser compreendido de expressões dispersas da Escritura. Exige, por isso, tratamento diferenciado. A breve consideração que fomos levados a dar ao problema em relação a Elias e João pode bastar por enquanto; prossigamos ao que se segue no Evangelho.

Idem

Orígenes não estava falando de nenhum ensinamento secreto a respeito da alma, mas enumerando os pontos a serem levantados com pensadores pagãos ou influenciados por doutrinas tidas por heréticas. Ele dá uma “receita de bolo” sobre a mesma técnica de argumentação que ele usou contra aqueles que associavam Elias a João e que poderia novamente ser útil no caso de lançarem a hipótese de Jesus e Elias serem os mesmos.

Prophet faz uma única admissão de um texto anti-reencarnacionista de Orígenes no Comentário sobre Mateus. Ela dá essa passagem como uma atitude defensiva de Orígenes contra perseguidores, pois ele:

(…) escreveu quando já estava com mais de 60 anos (por volta de 246-248), o seu contexto leva-nos a questionar se não a estaria negando como uma tentativa de despistar seus inimigos (22). Pois Orígenes, assim como todos os iniciados nos mistérios gregos e gnósticos, praticava o sigilo.

Bem, vamos à nota 22:

Orígenes nega a reencarnação quando se discute se João Batista era ou não Elias que voltara. Nessa discussão dirige-se claramente aos bispos. Eis a sua negação:”’Aqui não me parece que por Elias se expressa a alma, ou cairei no dogma da transmigração, que é contrário à Igreja de Deus, que não foi transmitido pelos apóstolos nem é encontrado nas Escrituras” (ênfase da autora).

Aqui, Orígenes rejeita a reencarnação porque ela não se coaduna com a ideia cristã do julgamento final. Como poderia haver um fim, ele pergunta, se as almas estão continuamente cometendo atos que as obrigarão a retornar à terra para redimi-los? Ele conclui que o conceito de um final deveria “abolir a doutrina da transmigração”. Commentary on Mathew (Comentário Sobre Mateus) 13.1, em The Ante-Nicene Fathers (Os Patriarcas Ante Niceia) 10:474, 475.

Orígenes, entretanto, procurou conciliar a ideia de um final com a ideia de oportunidade contínua através da reencarnação. Mesmo afirmando que haveria um final quando o mundo for ‘tudo em todos’ (1 Cor 15:28), ele também previu que “depois da dissolução deste mundo haveria um outro”. On First Principles (Sobre Primeiros Princícios) 3.5.3 Butterworth, p.239(…)

Aqui no caso há uma meia-verdade. Orígenes cria num tipo de reencarnação “entre eras”, mas em instante algum em De Principiis ou qualquer outra obra que chegou até nós ele defendeu alguma reencarnação “na mesma era”. Do jeito que Prophet coloca tal aspecto de Orígenes ao fim do livro, em uma nota, e como uma saída alternativa em vez de ser o principal; um leitor desavisado pode ter uma impressão errônea de que Orígenes estava escondendo algo que ele nunca defendeu. Se não tiver lido a nota 22, pior será a ideia. Orígenes cria, também, em ressurreição e julgamento final ao fim de cada era e dedica até um capítulo de De Principiis a isso. Além disso, há mais passagens em Comentários sobre Mateus contra a reencarnação (Livro X, cap. XX), além de os trechos que ela tem como pró reencarnação do Comentário sobre João na verdade, como vimos, serem anti. O Comentário de João, por sinal, precede o de Mateus e na própria introdução do capítulo VI (o utilizado por Prophet), Orígenes fala que tal fora originalmente escrito em Alexandria antes de seu exílio em Cesareia (231), embora tenha sido extraviado e reescrito já na Palestina. Orígenes era mais jovem, enfraquecendo o peso do fator idade que Prophet para descartar o Comentário sobre Mateus. Também não se deve esquecer de Contra Celso IV, XVII. Prophet ainda tenta associar Orígenes ao gnosticismo e um errinho menor ao citar I Cor 15:28: “quando Deus for tudo em todos”.

O ponto que Prophet considera xeque-mate para uma crença de Orígenes na reencarnação (ao estilo ocidental) é o relato de Jerônimo:

Se ainda restam dúvidas sobre o fato de Orígenes ter se referido ou não à reencarnação, podemos confiar no Patriarca da Igreja do século IV, Jerônimo, que o acusou de fazê-lo. Jerônimo teve acesso aos textos originais em grego, e disse que uma das passagens de Primeiros Princípios prova que Orígenes “acreditava na transmigração das almas”. (26)

A nota (26) informa a passagem: Ad Avitum, 14. Na verdade, o texto de Jerônimo também foi passível de alteração e, mesmo que não tivesse sido, Jerônimo dá uma citação textual do que dissera Orígenes, não apenas afirmando da boca para fora:

O Fogo do Inferno, além disso, e os tormentos com os quais a sagrada escritura ameaça os pecadores são explicados por ele não como punições externas, mas como aflições de consciências pesadas quando, pelo poder de Deus, a memória de nossas transgressões é posta perante nossos olhos. “Toda colheita de nossos pecados cresce de novo das sementes que permanecem na alma e todos os atos desonrosos e indignos são outra vez retratados diante de nossas vistas. Assim é o fogo da consciência e os espinhos do remorso que torturam a mente a medida que ela relembra na referida autoindulgência”. E de novo: “mas talvez este grosseiro e terreno corpo deva ser descrito como névoa e escuridão; pois ao fim deste mundo e quando for necessário passar ao outro, o similar à escuridão levará ao similar nascimento físico [ou fisicamente nascido]”. Falando assim ele claramente pleiteia claramente pela transmigração das almas como ensinado por Pitágoras e Platão.

Jerônimo de Aquileia, Carta 124 (a Ávito).

Ao fim deste mundo e quando for necessário passar ao outro … ” Mesmo na versão mais heterodoxa possuída por Jerônimo, o relato é de uma reencarnação entre eras e talvez com continuidade de corpo, não do conceito comum no ocidente moderno.

Resumindo Prophet: a maior parte do tempo, ela insinua que Orígenes defendia a reencarnação ao estilo ocidental, com vários reencarnes num mesmo mundo. Passagens que rejeitam a reencarnação tradicional são minoradas (Comentário sobre Mateus), distorcidas para se tornarem pró reencarnacionistas (Comentário sobre João) ou esquecidas (Contra Celso). As passagens onde Orígenes adota o modelo entre eras são relatadas de forma marginal (De Principiis) ou explanadas por alto sem citação explícita (Carta a Ávito, de Jerônimo). Apesar de tudo, Prophet é “menos mal” que muitos outros autores espiritualistas analisados neste portal, mas ainda deixa muito a desejar.

Uma História de Dois Equívocos

Leia as frase abaixo:

– “Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.”

– “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos2.”

São duas declarações extraídas do cap. IX, tópico “Os Cristãos”, de “
Analisando as Traduções Bíblicas, 4ª ed. A primeira está categoricamente errada. O origenismo já era rejeitado de pelo menos duzentos anos antes do fatídico quinto concílio. A segunda citação foi deixada propositadamente com o índice (2) que constava no original. Este número nada mais é do que a referência bibliográfica dada pelo autor Severino Celestino da Silva:

2. Alberigo, G. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.

Bem, o que realmente continha o texto da coletânea de Alberigo?

Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o Monge, ed. ch. De Boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos.

pág. 134

Curiosamente, o texto de [Alberigo] é contraditório. Dois parágrafos antes do texto acima:

Não sabemos, porém, com exatidão o que aconteceu durante o concílio. As atas do concílio se perderam. Temos somente uma tradução latina, e em duas versões diferentes. Parece que os originais se perderam em 1453, por ocasião da tomada de Constantinopla, pois em 1448, durante o concílio de Florença, ainda se fez uso deles (Gill S., Actorum Graecorum Conciliorum Concilii Florentini, Roma, 1953). De qualquer modo, sabemos que se realizaram oito sessões no secretum de Santa Sofia.

De fato, versões das atas do V concílio chegaram até nós e uma delas, inclusive, pode ser encontrada em inglês na bibliografia ao fim deste tópico. Porém, há algo interessante no primeiro extrato: “(…) o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos”, em contraste com o termo citado por Severino Celestino da Silva: “O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos”. Parece pouca coisa, não fica claro aos mais desavisados a abismal diferença entre uma alegação categórica e uma dedução lógica representada pelo verbo “indicar” usado no texto original e cujas premissas estão envoltas por certa névoa. Isto é mais sério do que alguns apologistas espíritas gostariam de admitir. A coletânea de Alberigo não foi tão categórica assim no trato contra o origenismo, apesar de dar bons indícios. Se isso ainda não te convenceu da gravidade do mal uso de fontes bibliográficas em Analisando…, citemos alguns parágrafos anteriores de Alberigo:

Claro, o origenismo não chamava tanto a atenção dos ortodoxos, pois não questionava o concílio de Calcedônia. Mas depois do decreto de 533 e do sínodo de 536, os ortodoxos perceberam que por trás das decisões imperiais havia sempre um origenista. Roma, sobretudo, não tinha motivo para tolerar o origenismo, pois este não compartilhava as idéias romanas a propósito dos “três capítulos” (cf. Liberatus, Breviarium, ACO II V, 98-141). Os ortodoxos do Oriente começaram a se preocupar com os origenistas, pois estes fortaleciam suas fileiras com padres ortodoxos como Gregório de Nissa, Dídimo, o Cego, e outros. Sobretudo na Síria, os origenistas apareciam demais, por causa de seu grande número. Por isso o patriarca Efrém de Antioquia convocou em 542 um sínodo que condenou o origenismo. Os origenistas da Palestina recorreram, então a Pedro de Jerusalém, pedindo-lhe que não mencionasse mais Efrém nos dísticos de Jerusalém. Pedro, apertado entre as próprias opiniões ortodoxas e as pressões dos origenistas, apelou para Justiniano, com o apoio também do patriarca Mena e do representante de Roma, Pelágio. Justiniano publicou um “Edito” em 543 (Mansi, 9, col. 125-128; ACO III, 189-214) contra o origenismo. Mena aproveitou a ocasião e no mesmo ano convocou um sínodo, que deu à decisão imperial autoridade sinodal. O papa Vigílio, os patriarcas orientais, e também os origenistas de Constantinopla Ascida e Domiciano assinaram a decisão. Isso, porém, não eliminou o origenismo, que continuou a existir e predominar na Palestina. A condenação sinodal conseguiu radicalizar as posições dos origenistas, que assumiram então atitude hostil à ortodoxia.

págs. 130-131

Eis aí uma explicação mais correta para a primeira condenação do origenismo em 543 e os motivos pelos quais ele (talvez) voltou a ser comentado em 553. E o nome da imperatriz Teodora não é citado em nenhum instante. Muito menos as ditas 500 prostitutas! Severino Celestino da Silva teve acesso a uma melhor informação sobre as preliminares do V concílio. Mas preferiu a teoria conspiratória …. por quê? E mais:

Nesse contexto já complicado, um novo movimento – o origenismo – veio tornar a situação realmente insolúvel. É verdade que Orígenes fora condenado há muito tempo, mas sua irradiação intelectual nunca cessou, e seu misticismo exercia constante atração sobre os monges instruídos do deserto. Na realidade, o origenismo jamais desapareceu das zonas sírio-palestinenses. Era tolerado na medida em que não criava problemas. Ora, na efervescência provocada pelas decisões do concílio de Calcedônia, tudo estava envolto pela suspeita de heresia. Pelo final do séc. V, o origenismo reapareceu sob a forma de contestação contra a ortodoxia, contra o monofisismo e contra o nestorianismo. É claro que essa quarta via não tinha muitas possibilidades em contexto tão carregado como aquele.

Pág. 125

A própria referência de Severino Celestino da Silva o desmente quando diz que até o século VI a Igreja (i.e. a ortodoxia, não os dissidentes) acreditava na reencarnação. O origenismo já fora rejeitado de muito antes – como explanado acima – e recruscedeu como um fenômeno sírio-palestino, que estava mais ligado ao monacato local. O texto de Severino Celestino da Silva contém mais dois erros crassos. O primeiro é que o concílio não se deu 299 dias após a morte do teólogo, mas 299 anos! Poderia até ser um descuido de revisão, se esta não fosse a quarta edição do livro. O mesmo dado (299 “dias”) se encontra em um livro de sua bibliografia (O Livro Tibetano dos Mortos, W.Y. Evans-Wentz, Ed. Pensamento, p. 177). Talvez houve uma predileção por esta fonte errônea em vez de outra correta, porém menos chamativa. A definição de apocatástase também está errada. Ela era uma doutrina concebida por Orígenes que enfatizava o caráter sacrificial da morte de Cristo, resgate tão alto pago aos poderes do mal que levaria não só todas as criaturas à salvação. Ou seja, Orígenes era um universalista, mas fica patente que sua doutrina era essencialmente salvacionista. Uma consequência lógica deste princípio seria a salvação até do diabo, ideia que Orígenes parece ter rejeitado depois. José Reis Chaves, outra fonte de Analisando…, acerta mais nessa definição.

Noel Langley: Eliminando Fontes Históricas

Outros autores espiritualistas já abordaram a questão origenista de formas “alternativas”. Em 1968, Noel Langley publicou o livro Edgar Cayce on Reincarnation (1), em que dedicou o capítulo XI ao estudo da condenação a Orígenes. O curioso é que Langley deu relatos largamente distintos para a convocação do V Concílio. O capítulo abre assim:

Nossas versões ortodoxas do Antigo e Novo Testamento não datam de antes do século VI, quando o Imperador bizantino Justiniano convocou o V Congresso Ecumênico de Constantinopla em 553 d.C. para condenar os platonicamente inspirados escritos de Orígenes.

Contrariando a crença das modernas Igrejas, este não foi um congresso sem influência secular. O papa Vigílio foi proibido de comparecer e sua denúncia disto foi escarnecida. Ele [o congresso] foi instigado pelo mesmo substrato de bárbaros abestalhados que tinham sido “convertidos” à cristandade sob Constantino.

Caso o leitor deva achar singular que seja dada tanta atenção a esse congresso nas páginas seguintes, é por causa de os eventos que levaram ao Quinto Congresso representarem praticamente a única evidência sobrevivente de por que a reencarnação desapareceu da Bíblia.

Sinceramente, a leitura desse texto poderia ser encerrada por aqui: “Nossas versões ortodoxas do Antigo e Novo Testamento não datam de antes do século VI”. Para o conhecimento dele, existem inúmeros códices como o Vaticanus (325-350 d.C), Sinaiticus (350), Alexandrino (400), Efremi (400), Beza (450), Washingtonense (450) e Claromontano (séc. V) que precedem essa data, além disso há várias porções menores contendo só o NT como o papiro Chester Beatty (200 d.C.) e o AT das comunidades hebraicas, que tinham escolas importantes na Babilônia do Reino dos Partas e, portanto, livres de qualquer intervenção bizantina. Também já havia Bíblias etíopes fora do domínio bizantino. Como são ferramentas inestimáveis na crítica textual, pergunto onde, confrontando esses documentos com as Bíblias modernas, são reveladas mudanças visando à eliminação da reencarnação? Quais eram os versículos originais? Aliás, os que advogam esta outra teoria conspiratória deveriam explicar por que um suposto censor bizantino da Bíblia teria deixado passagens como o “cego de nascença” e a identificação entre Elias e João Batista? Lembrando que a primeira já foi apontada por Jerônimo como ferramenta dos origenistas de sua época ( Epístola a Demetrias) e que a última foi até refutada por Orígenes (Comentário sobre João, livro 6, cap. VII). Que censura fajuta foi feita então, hein? Ademais, o capítulo anterior desse livro trata justamente dessas supostas reminiscências.

Além de se basear numa premissa errônea, Langley “inova” ao dar uma justificativa inusitada para o ódio de Teodora ao trabalho de Orígenes:

Infelizmente, sob a influência de Eutiques, Teodora tornou-se uma conversa a este dogma monofisista [que dava a Cristo uma natureza exclusivamente divina]. A principal reivindicação dele para com os sentimentos dela era a sua total rejeição àqueles ensinamentos de Orígenes que tinham tão profundamente influenciado os primeiros Padres da Igreja. Orígenes não apenas acreditava na metempsicose, como argumentava que Cristo o Logos, ou a Palavra, habitou o corpo humano de Jesus, santificando-o, assim.

Ou seja, para Langley, o detonador da perseguição a Orígenes pela imperatriz foram questões cristológicas e a reencarnação foi rejeitada por estar no bojo dos ensinamentos origenistas. Em nenhum instante Langley fala do assassinato de 500 prostitutas. Lembro-me, agora, de uma citação que Severino Celestino da Silva faz de Jerônimo no começo de Analisando as Traduções Bíblicas: “A verdade não poderia existir em coisas que divergem” [grifo do autor]. Apesar de eu ter minhas ressalvas quanto a validade plena desta frase – afinal, é possível que versões um pouco destoantes possuam fragmentos da verdade distintos – uma coisa devo admitir: ela cai como uma luva para a confrontação dele com Langley (2).

Cayce e Langley podem até ser ilustres desconhecidos entre muitos dos espiritualistas tupiniquins, mas as ideias dele chegaram a estas terras por um nome bem mais conhecido aqui: José Carlos Leal, que na primeira parte de seu seu livro Reencarnação: Coisas que devemos saber sobre as vidas sucessivas repassa a tese de Langley quanto à motivação do V Concílio (3).

Notas:

(1) Edgar Cayce foi famoso vidente e médium norte-americano da primeira metade do século XX.

(2) William Walker Atkinson, em A Reencarnação e a Lei do Carma, p. 47, situa o começo dos episódios em 538. Mais confusão.

(3)Consta nas páginas 58 a 60 da primeira edição da Léon Denis, 2009. Leal não fez nenhuma referência explícita a Langley, mas a obra dele aqui comentada consta na bibliografia de Leal e a identificação entre ideias que cada autor sobre o V Concílio é nítida.

Teorias Conspiratórias a (des)Serviço da História

Há muitos boatos e meias-verdades espalhados quanto ao II Concílio de Constantinopla, que teria riscado a reencarnação da Bíblia. Um bem conhecido é:

Até agora, quase todos os historiadores da Igreja acreditaram que a doutrina da reencarnação foi declarada herética durante o Concilio de Constantinopla em 553. No entanto, a condenação da doutrina se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concilio. Segundo Procópio, a ambiciosa esposa de Justiniano, que, na realidade, era quem manejava o poder, era filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio. Ela iniciou sua rápida ascensão ao poder como cortesã. Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas “colegas” e, para não sofrer as consequências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconizava a lei do Carma, empenhou-se em abolir toda a magnífica doutrina da reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por “ordem divina”!

Em 543 d.C. o imperador Justiniano, sem levar em conta o ponto de vista papal, declarou guerra frontal aos ensinamentos de Orígenes, condenando-os através de um sínodo especial. Em suas obras De Principiis e Contra Celsum, Orígenes (185-235 d.C), o grande Padre da Igreja, tinha reconhecido, abertamente, a existência da alma antes do nascimento e sua dependência de ações passadas. Ele pensava que certas passagens do Novo Testamento poderiam ser explicadas somente à luz da reencarnação.

– Kersten, Holger; Jesus Viveu na Índia, Ed. Best Seller, 7ª ed., Cp. VI – “Considerações Finais”.

O engraçado é terem encontrado recentemente uma tumba atribuída a Jesus e Maria Madalena em Israel. Será que enterraram a cabeça em Jerusalém e as canelas na Índia? Bem, isto foge ao assunto, vamos a José Reis Chaves:

A Igreja teve alguns concílios tumultuados. Mas parece que o V Concílio de Constantinopla II (553) bateu o recorde em matéria de desordem e mesmo de desrespeito aos bispos e ao próprio Papa Virgílio, papa da época.

O imperador Justiniano tem seus méritos, inclusive o de ter construído a famosa Igreja de Santa Sofia, obra-prima da arte bizantina, hoje uma mesquita muçulmana.

Era um teólogo que queria saber mais que teologia do que o papa. Sua mulher, a imperatriz Teodora, foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra, que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarnacionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição, sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes.

Como a doutrina da reencarnação pressupõe a da preexistência do espírito, Justiniano e Teodora partiram, primeiro, para desestruturar a da preexistência, com o que estariam, automaticamente, desestruturando a da reencarnação.

Chaves, J.R.; A Reencarnação na Bíblia e na Ciência, cap. VIII, 7ªed., Ed. Ebm

Agora, um texto extraído de Analisando as traduções bíblicas, de Severino Celestino da Silva, Editora Idéia, 4ª ed., cap XI:

Orígenes afirmava ser a doutrina do Carma e do renascimento uma doutrina Cristã.
Devido a esta sua crença, 299 (duzentos e noventa e nove) dias, após sua morte, contra ele a igreja decretou a excomunhão. O segundo Concílio de Constantinopla, no ano de 553, decretou: “Todo aquele que defender a doutrina mística da preexistência da alma e a consequente assombrosa opinião de que ela retorna, seja anátema”[grifo do autor].

Até a época, a doutrina do renascimento e do carma era aceita pela Igreja Cristã.

A história do II Concílio de Constantinopla teve marcante acontecimento com a figura do imperador Justiniano, um teólogo, que queria saber mais teologia do que o papa. Justiniano tentou reinserir os monofisistas no meio dos ortodoxos da Igreja, pois temia que os monofisistas, comandados por Severo de Antioquia, se afastassem e voltassem-se para a Pérsia. Organizou no palácio a primeira conferência entre ortodoxos e monofisistas, para a qual convidou seis ortodoxos e seis monofisistas tentando definir diferenças entre as doutrinas.

O papa, Vigílio, apesar de se encontrar em Constantinopla, recusou-se a participar do concílio convocado pelo imperador e tampouco se fez representar. O Concílio pressionado pelo imperador excomungou o papa. O papa Vigílio acabou reconhecendo o concílio em troca da suspensão de sua excomunhão.

A esposa de Justiniano chamada Teodora, teve muita influência nos assuntos do marido e até no que se referiu à teologia. Foi ela quem acomodou os monges egípcios e os clérigos siríacos nos vários palácios da capital e sobretudo no palácio Hormisdas, que se tornara o centro da propaganda monofisista.

Por ter sido uma prostituta, suas ex-colegas se sentiam orgulhosas e decantavam tal honra. Mas esse fato a revoltava e se constituía numa desonra, fazendo com que mandasse matar todas as quinhentas prostitutas de Constantinopla.

Os cristãos da época passaram a chamá-la de assassina e a dizer que ela deveria ser assassinada, quinhentas vezes, em vidas futuras. Este seria seu carma por ter mandado matar suas quinhentas ex-colegas prostitutas.
A partir daí, Teodora passou a odiar a doutrina da Reencarnação e como mandava e desmandava em meio-mundo através de seu marido, resolveu partir para a perseguição sem tréguas contra essa doutrina e contra maior defensor que era Orígenes.

O concílio tratou de duas questões básicas: o Monofisismo e o Origenismo. O Origenismo defendia a apocatástase do universo (revolução de um astro) e a Reencarnação. O concílio condenou o Origenismo em termos claros e severos.

Para começo de conversa, eu adoraria saber quais foram estes historiadores comentados por Kersten, em quais de suas obras está essa tese de reencarnação na igreja primitiva e em quais capítulos. O único historiador citado, Procópio, dá uma versão “ligeiramente” diferente dos fatos:

(…)Havia uma multidão de mulheres em Bizâncio que realizava em bordéis uma atividade de libertinagem, não por escolha própria, mas sob a força da luxúria. Visto que isto era mantido por cafetões, e as mulheres de tais casas eram obrigadas a toda e qualquer hora a praticar obscenidade e copular de imediato com desconhecidos à medida que apareciam, elas se submetiam aos seus abraços. Já que houvera um numeroso corpo de alcoviteiros na cidade desde os tempos antigos, conduzindo seu tráfico em licenciosidade nos bordéis e vendendo a juventude alheia no mercado público, reduzindo pessoas virtuosas à escravidão. Mas o imperador Justiniano e a Imperatriz Teodora, que sempre compartilhavam uma comum piedade em tudo que faziam, arquitetaram o seguinte plano. Limparam o estado de poluição dos bordéis, banindo o próprio nome dos cafetões e libertaram de uma licenciosidade adequada apenas a escravas as mulheres que estavam lutando com imensa pobreza, provendo-as com sustendo independente e liberando virtude. Isso ele conseguiram da seguinte forma. Próximo à margem do estreito que está à direita dos que navegam em direção ao mar chamado Euxino, eles transformaram o que fora anteriormente um palácio em um imponente mosteiro projetado para servir de refúgio a mulheres que se arrependessem de suas vidas anteriores, de forma que lá, através da ocupação que suas mentes teriam com Deus e com a religião, poderiam ser capazes de limpar os pecados de suas vidas no prostíbulo. Portanto, denominaram o domicílio de tais mulheres de ‘Arrependimento’, em adequação com seu propósito. E estes soberanos dotaram este convento com ampla soma em dinheiro e adicionaram várias construções, a maioria notável por sua beleza e suntuosidade, para servirem de consolo às mulheres, a fim de que nunca se sintam compelidas a se afastar da prática da virtude de uma forma ou de outra.(..)

Procópio, Das Construções (De Aedificiis), livro I, cap. IX.

E, agora, uma variação do mesmo tema:

Teodora também devotou considerável atenção ao castigo de mulheres flagradas em pecado carnal. Ela apanhou quinhentas prostitutas no Fórum, que lá auferiam uma vida miserável se vendendo por três óboles, e as enviou para a margem oposta [do Bósforo], onde foram trancadas no mosteiro chamado Arrependimento, para forçá-las a reformar seu estilo de vida. Algumas delas, porém, atiravam-se à noite dos parapeitos e assim se livravam de uma salvação indesejada.

Procópio, A História Secreta, (Anekdota), cap XVII, “Como Teodora salvou quinhentas prostitutas de uma vida de pecado.”

Os dois relatos de Procópio dão um tratamento radicalmente distinto ao casal imperial. Das Construções é uma propaganda estatal, cheia de elogios às realizações urbanísticas e arquitetônicas do governo de Justiniano. A História Secreta, por sua vez, macula a imagem deles o tempo todo, chegando ao ponto de considerar Justiniano, literalmente, um demônio encarnado (cap. XII). Comparando esses dois extratos, consta-se que Procópio muda o tom de um ato piedoso para uma deportação das prostitutas para fora da capital. Ao que parece, o mosteiro ex-palácio fora convertido numa “gaiola de ouro” para uma espécie de noviciado forçado e perpétuo. Algumas (note bem, algumas) preferiam a liberdade com insegurança àquela vida de beatas e morriam tentando escapar (ou se suicidavam, simplesmente). Nada diz que o mosteiro “Arrependimento” era uma usina de morte como o Auschwitz nazista, onde elas iriam esmagadoramente parar morrer. A não ser morrer de velhas.

Um importante historiador do iluminismo inglês – que, ao contrário dos historiógrafos espiritualistas acima, procurava sempre ler os originais – fez interessante fusão dessas duas passagens de Procópio, fornecendo um panorama intermediário do que pode ter ocorrido:

O nome de Teodora figura com igual distinção em todas as iniciativas piedosas e caritativas de Justiniano; as instituições mais benevolentes do seu reinado podem ser atribuídas à simpatia da imperatriz por suas irmãs menos afortunadas que haviam sido seduzidas ou compelidas a dedicar-se ao ramo da prostituição. Um palácio no lado asiático do Bósforo foi convertido num espaçoso e imponente mosteiro, e um generoso sustento, garantido a quinhentas mulheres recolhidas das ruas e bordéis de Constantinopla. Nesse retiro sacro e seguro, elas se devotavam a um perpétuo confinamento, e o desespero de algumas, que se precipitaram ao mar, foi calado pela gratidão das penitentes libertadas do pecado e da miséria por sua generosa benfeitora.

Edward Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, Cap. XV, Tradução de José Paulo Paes, Companhia das Letras.

Diga-se de passagem que Teodora não era flor que se cheirasse, sendo que tanto Procópio e Gibbon concordam que ela cometeu inúmeras crueldades. Procópio, porém, exagera demais nos ataques à imperatriz, a ponto descrever o voraz apetite sexual da imperatriz, quando solteira, de maneira pouco verossímil (cap. IX). De qualquer forma, nada indica que ela tenha cometido o crime que seria o pivô da condenação de Orígenes. Justiniano não era tão fantoche assim como foi alegado. Ele e Teodora tinham visões políticas diferentes em alguns pontos, sendo que ela advogava uma tolerância religiosa maior do que de seu fanático e intransigente marido, afinal era monofisista.

Outro cronista bizantino, João Malala, deu um curioso relato de uma tentativa de Teodora de erradicar a prostituição:

Naquela época, a piedosa Teodora acrescentou o seguinte a suas outras boas ações. Certos conhecidos cafetões percorriam cada distrito em busca que homens pobres que tivessem filhas e dando-lhes, dizia-se, sua palavra e alguns nomismata, levavam as garotas como se fosse um contrato; transformavam-nas em prostitutas públicas, vestindo-as como sua desventurada sorte exigia e recebendo delas, e miserável preço de seus corpos, forçavam-nas a ingressar na prostituição. Ela ordenou que todos os cafetões deveriam ser presos com urgência. Quando foram apresentados junto com as garotas, ordenou que cada um deles declarasse sob juramento o quanto haviam pagado aos pais das garotas. Disseram que deram a cada um cinco nomismata. Quando todos deram a informação sob juramento, a piedosa imperatriz devolveu o dinheiro e libertou as garotas do jugo de sua desgraçada escravidão, ordenando que a partir daí não houvesse cafetões. Presenteou as garotas com um conjunto de roupas e dispensou-as com um nomismata para cada.

João Malala; Crônicas, Livro XVIII, seção 24

Malala data seu relato em 532-3 d.C. e a partir de 534 começou a ser publicado um conjunto de leis conhecido como Novellae, cujo artigo primeiro do capítulo XIV traz uma condenação de morte aos que perpetrassem o tráfico humano e a cafetinagem, mas é compassivo com as prostitutas. É provável que a indenização relatada por Malala tenha fracassado, pois o dinheiro concedido à cada garota era pequeno demais para recomeçar a vida e dotação mais farta dos agenciadores deve ter servido para realimentar o tráfico humano (1). Uma hipótese aventada é que a construção de “Arrependimento” tenha sido parte dessa nova política social de acabar com a prostituição à força.

Notas:

(1) Cf. Evans, J. A; The Empress Theodora – Partner of Justinian, University of Texas Press, 2002, cap. III, p. 30-32.

Orígenes X Origenismo

Já houve quem dissesse que se Karl Marx estivesse vivo na década de 70 do século XX, com certeza não seria marxista, tamanha a modificação que suas ideias sofreram durante cem anos de rupturas, dissidências e diversos “experimentos práticos”. De maneira análoga, as ideias de Orígenes passaram por uma transformação desde sua morte no século III ao segundo Concílio de Constantinopla no VI. Henri Crouzel (conforme relatado em The School of Alexandria: Origen, cap. IV) relata que se podem distinguir seis momentos sucessivos:

  1. O conjunto de especulações que, por meio da incompreensão de seus sucessores, contribuiu para a base do origenismo posterior;

  2. Origenismo como compreendido pelos detratores dos séculos III e IV: Metódio, Pedro de Alexandria e Eustâncio de Antioquia. Estes foram respondidos por Pânfilo em sua Apologia de Orígenes. Além da preexistência das almas e apocatástase, eles rejeitaram, por uma série de mal-entendidos, a doutrina da ressurreição do corpo e criação eterna;

  3. Origenismo dos monges egípcios e palestinos (na segunda metade do século IV): foi principalmente exposto por Evágro Pôntico em Kephalaia Gnostica. O “escolasticizado” pensamento origenista de Pôntico, suprimindo suas tensões internas e deixando de fora parte de sua doutrina a fim de construir uma sistema com o que restara. [o que teria, segundo os autores de “The School…”, sido o responsável por caráter herético de tal sistema, ao suprimir antíteses que caracterizariam a doutrina cristã];

  4. O mais importante momento de Orígenes foi nos embates entre os antiorigenistas dos séculos IV e V – Epifânio, Jerônimo e Teófilo de Alexandria – contra seus defensores, como João de Jerusalém e Rufino de Aquileia. Eles acusavam Orígenes em vista das heresias de seu próprio tempo como o arianismo. Nunca fizeram estudos sistemáticos do trabalho de Orígenes e baseavam suas acusações em textos isolados, sem levar em conta que explicações muitas vezes podiam ser encontradas no mesmo livro, algumas linhas abaixo. Data do final do século IV e começo do V uma querela em Rufino e Jerônimo quanto a correta tradução latina de De Principiis. Jerônimo acusou o primeiro de ter adulterado e suprimido do texto de forma a tornar Orígenes mais “palatável” ao pensamento tido por “ortodoxo” na época. Jerônimo contra-atacou com sua própria tradução latina, contendo todos os ponto polêmicos. Tal tradução se perdeu, mas uma ideia aproximada dela pode ser extraída da sinopse que Jerônimo faz em sua Carta a Ávito. Rufino defendeu-se assumindo que restaurara ao pensamento original um texto que fora alterado por hereges, tal qual outros escritores cristão tinham sido indevidamente alterados. Um sétimo da obra De Principiis está preservada em antologia feita por Basílio de Cesareia e Gregório Nazianzeno (Philocalia) e sugere que tanto Rufino quanto Jerônimo extrapolaram em suas posições. Este episódio (que, na verdade, envolveu mais personagens e histórias) ficou conhecido como “primeira crise origenista”, situando-a cronologicamente em relação à “segunda crise” que viria sob o reinado de Justiniano;

  5. A controvérsia origenista ampliou-se na primeira metade do século VI, sendo descrita em pormenores em Vida de S. Saba, de Cirilo de Citópolis. O origenismo se propagara principalmente no mosteiro Nova Laura, próximo a Jerusalém. Origenismo, ou melhor, evagrianismo, também se propagou entre os monges palestinos que viviam em mosteiros sob a supervisão de St. Saba. A principal expressão de sua doutrina está no Livro de S. Hieroteos, o trabalho do monge sírio Estevão bar Sudaile, que agravou o “escolaticismo” origenista de Evágrio em um panteísmo radical. Entre as duas intervenções de Justiniano, estes origenistas teriam se dividido em duas facções. J. Meyndorff declara que recentes estudos lançaram nova luz sobre Evágrio Pôntico, que foi o grande intérprete no século IV das ideias origenistas aos monges palestinos e egípcios. Ele e não Orígenes é o responsável pelo sistema origenista. Diz ele: “A recente publicação dos ‘Capítulos Gnósticos’ de Evágrio Pôntico, na qual a doutrina condenada em 553 é encontrada, faz possível medir toda a significância das decisões do quinto concílio. O alvo da assembleia não era um fantasma do origenismo, mas as doutrinas genuínas de um dos mestres do monacato oriental, Evágrio”.

Entre os dois grupos citados em (5), o partido radical dos monges de Jerusalém – chamados de Isochristi – é aquele cujo origenismo se presume ter sido alvo da condenação do imperador Justiniano.

Concílio de Constantinopla: (meias-)verdades e (meias-)mentiras

Se o cristianismo primitivo era reencarnacionista, como alegam muitos espiritualistas, então vem uma pergunta: “por que ele deixou de ser?” A resposta comumente dada é que a reencarnação foi banida do cristianismo no II Concílio de Constantinopla (ou V Concílio Ecumênico), convocado em 553 d.C. pelo imperador do Oriente, Justiniano. Ele teria tomado essa iniciativa a mando de sua esposa Teodora, uma ex-prostituta que mandara matar 500 colegas profissão para apagar seu passado. Para que o povo não a ameaçasse com castigos em outras vidas, ela teria feito a cabeça do marido para banir a reencarnação condenando em Concílio seu principal teólogo: Orígenes de Alexandria.

Mas teria realmente Orígenes ensinado a reencarnação? Era essa doutrina moeda corrente no cristianismo do século sexto? Teodora mandou matar mesmo 500 prostitutas? Teria ela algo a ver com o V Concílio? Tais são as perguntas que serão respondidas nos artigos seguintes e para isso foram realizadas as pesquisas que quase nenhum espiritualista se dignou a fazer.

E um destaque para:

O Sistema Origenista

Há alegações pra lá de forçadas, em geral feitas por seitas Nova Era, de que Orígenes teria pregado a reencarnação. São feitas muitas especulações a partir da leitura parcial deste filósofo cristão, que fazem vista grossa aos pontos críticos de sua doutrina (que não lhes interessam, óbvio). Ele crê na preexistência da alma antes do nascimento e que elas se encontravam primordialmente num estado de igualdade. Só que, ao contrário do espiritismo, as almas não começavam simples e ignorantes, mas numa espécie de situação angelical; afinal:

Quando no começo Ele criou aqueles seres que desejava criar, i.e, de natureza racional, Ele não tinha motivo algum para criá-las de maneira diferente que a em nome de Si mesmo, i.e., Sua divindade. Como então Ele foi a causa das criaturas que viriam a ser criadas, nas quais não havia nenhuma variação, nem mudança, nem ânsia por poder, Ele criou todas das quais fez iguais e similares, porque não havia nEle nenhuma razão para produzir variedade ou diversidade. Mas como essas criaturas racionais por si só (…) estavam dotadas de livre-arbítrio, esta liberdade de escolha incitou cada uma a progredir a Deus por imitação, ou reduzir-se ao erro pela negligência.

De Principiis, livro II, cap IX, VI

Pelo uso do livre arbítrio, elas se cansavam de sua felicidade e se rebelavam, daí a queda delas. Haveria diferentes níveis de queda, seguindo uma gradação: anjos, estrelas (supondo que elas tivessem pensamento), homens e demônios. Tais posições poderiam ser desfeitas, visto que o livre-arbítrio dado poderia permutá-las. Aqui entra o cerne da pregação origenista: o conceito de “aeon” – era – cada mundo corresponderia a uma delas e nossas era atual seria especial no sentido nela ter ocorrido o sacrifício de Cristo, o que acelerou a restauração de todas as coisas. Isto introduz o conceito de “salvação” no sistema origenista.

Mas quanto a este mundo, que é o próprio considerado uma era, diz-se ser a conclusão de muitas eras. Agora que o santo apóstolo ensina que na era que precedeu esta, Cristo não sofreu, nem mesmo ainda na era que precedeu aquela, e não sei se sou capaz de enumerar o número de eras passadas que Ele não sofreu. Mostrarei, porém, de quais palavras de Paulo eu cheguei a este entendimento. Diz ele: “Mas agora na consumação das eras [tempos], Ele se manifestou para tirar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo”. Visto que Ele diz ter sido feito vítima e na consumação das eras manifestou-se para tirar o pecado. Agora após esta era, que é formada pela consumação de outras eras, haverá outras eras por seguir, aprendemos claramente do próprio Paulo, que diz: “nas eras [tempos] vindouras Ele deve mostrar a extraordinária riqueza de Sua graça na Sua bondade para conosco” (Ef. 2.7). Ele não disse “na era vindoura”, nem “nas duas eras vindouras”, daí infiro que, por esta linguagem, muitas eras são indicadas. Agora, se há algo maior que eras, de forma que certas eras devam ser compreendidas entre os seres criados, mas entre outros seres que excedem e ultrapassam as criaturas visíveis, (eras ainda maiores) (que talvez seja o caso na restituição de todas as coisas, quando o universo inteiro virá a um término perfeito), talvez o período em que a consumação de todas as coisas ocorrerá deva ser entendido como algo mais que uma era. Mas aqui a autoridade da sagrada Escritura me persuade ao dizer “Por uma era e mais” (In sæculum et adhuc ). Agora esta palavra “mais” indubitavelmente significa algo maior que uma era; e veja se aquela expressão do Salvador “Estarei onde estou, que estes também estejam comigo e assim como Eu e Tu somos um, que estes sejam um em Nós” (cf. Jo 17:20-22), pode não parece significar algo mais que uma era ou eras, talvez mesmo mais que eras de eras – isto é, aquela época quando todas as coisa que agora são não estiverem mais em uma era, mas quando Deus estiver em todos.

De principiis, Livro II, III. 5.

Ao fim de cada era, haveria uma ressurreição e um julgamento final.

Nosso entendimento dessa passagem é que, na verdade, o apóstolo, desejando descrever a grande diferença entre os que reerguem em glória, i.e., dos santos, tomou emprestado a comparação dos corpos celestes, dizendo “Uma é a glória do sol, outra a glória da lua, outra a glória das estrelas”. E de novo desejando nos ensinar a diferença entre os que virão à ressurreição sem ter se depurado nesta vida, i.e., os pecadores, tomou emprestado uma explanação das coisas terrestres, dizendo, “há uma carne dos pássaros, outra dos peixes”. Pois coisas celestes são merecidamente comparadas aos santos e as terrenas aos pecadores. Estas declarações são feitas em resposta aos que negam a ressurreição dos mortos, i.e., a ressurreição dos corpos.

De principiis, Livro II, cap. X.

Aos pecadores, ainda haveria uma chance de redenção. O “fogo do inferno” não seria um castigo físico, mas um fogo moral e purificador:

O Fogo do Inferno, além disso, e os tormentos com os quais a sagrada escritura ameaça os pecadores são explicados por ele não como punições externas, mas como aflições de consciências pesadas quando, pelo poder de Deus, a memória de nossas transgressões é posta perante nossos olhos. “Toda colheita de nossos pecados cresce de novo das sementes que permanecem na alma e todos os atos desonrosos e indignos são outra vez retratados diante de nossas vistas. Assim é o fogo da consciência e os espinhos do remorso que torturam a mente a medida que ela relembra na referida autoindulgência”. E de novo: “mas talvez este grosseiro e terreno corpo deva ser descrito como névoa e escuridão; pois ao fim deste mundo e quando for necessário passar ao outro, o similar à escuridão levará ao similar nascimento físico [ou fisicamente nascido]”. Falando assim ele claramente pleiteia pela transmigração das almas como ensinado por Pitágoras e Platão.

Jerônimo, Carta a Ávito, 124

Pode ser sugerido acima que na passagem de uma era a outra ocorreria o “reencarne”. Na verdade, há indícios de que a “reencarnação” origenista se daria por alguma forma de continuidade entre um corpo físico e outro, ao menos para a primeira geração da era que se iniciasse (opinião que corroboro de Origen of Alexandria – The Internet Encyclopedia of Philosophy). Talvez o choque de Jerônimo possa ser explicado por passagens de outras obras de Orígenes em que ele fala de transformações, não trocas de corpo:

De acordo com a lei de Moisés está escrito sobre certas coisas que “deitá-las-ei aos cães” [Ex. 22, 31] e foi uma questão referente ao Espírito Santo dar instrução sobre certos alimentos que deveriam ser deixados aos cães. Quantos outros, então, que são estranhos à doutrina da Igreja, assumem que almas passam de corpos de homens para corpos de cães, segundo seu variável grau de iniquidade; mas nós, que não achamos isto na divina Escritura, dizemos que uma condição mais racional muda para uma mais irracional, sofrendo esta modificação como consequência de grande indolência e negligência. Mas também, da mesma forma, um arbítrio que foi mais irracional, por causa de sua negligência da razão, algumas vezes se transforma e se torna racional, de modo que aquele que foi um cão, adorando comer as migalhas que caem da mesa de seus senhor, vai para a condição de filho. Pois virtude contribui enormemente para fazer de alguém um filho de Deus, mas maldade, e fúria enlouquecida em falas licenciosas e descaramento contribuem para a atribuição de um homem do nome de cão, conforme as palavras da Escritura [2 Sm 16:9].

Orígenes, Comentário ao Evangelho de Mateus, cap. XI, 17

Desta forma, Orígenes concilia sua crença em mundos sucessivos com um viés “ortodoxo”. Ele não cria em uma “reencarnação” dentro de nossa era e negou em outras obras a existência disto na Bíblia, o que é perfeitamente coerente com sua ideia de “reencarnação entre eras” (com possível continuidade entre corpos). A medida que seres purificados iam aumentando em número seria chegada a hora da “consumação de todas as coisas”, onde todos os seres racionais seriam restaurados a sua pureza original (apocatástase) e Deus seria “tudo em todos”. O universo chegaria a um fim e os seres racionais dispensariam seus corpos.

Então o fim do mundo e a consumação final ocorrerão quando cada um se sujeitar à punição por seus pecados, uma ocasião que só Deus sabe, quando Ele dará a cada um o que merece. Pensamos, na verdade, que a divindade de Deus, por meio de Seu Cristo, chamará todas as Suas criaturas para um fim, até mesmo Seus inimigos sendo conquistados e subjugados. Pois assim diz a sagrada Escrituras, “E o Senhor dirá ao meu Senhor, ‘Senta-te a minha direita, até que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’ “(Sl 110:1). E se o sentido da linguagem do profeta aqui for menos clara, podemos nos certificar do apóstolo Paulo, que fala mais abertamente assim: “Pois é preciso que Cristo reine até Que Ele ponha todos os inimigos debaixo de Seus pés”(I Cor 15:25). Mas mesmo se tal explícita declaração do apóstolo não nos informa suficientemente quanto ao significado de “inimigos sendo postos debaixo de seus pés”, escute o que ele diz nas seguintes palavras, “Pois todas as coisas devem ser postas sob Ele”. O que então é este “colocando debaixo” pelo qual todas as criaturas devem estar sujeitas a Cristo? Sou da opinião que é esta a mesma sujeição pela qual todos nós também desejamos nos sujeitar a ele, pela qual os apóstolos também foram sujeitos e todos os santos que têm sido seguidores de Cristo. Pois o nome “sujeição”, pela qual estão sujeitos a Cristo, indica que a salvação que procede dele pertence a seus submissos, em concordância com a declaração de Davi, “Não deverá minha alma estar sujeita a Deus? Dele vem minha salvação”.(Sl 62:2)

De principiis, I, VI, 1

Mas este não seria o fim da história. Como não conseguia conceber uma divindade ociosa e seres estáticos, cedo ou tarde o processo recomeçaria com novas quedas:

Então, se essas conclusões parecem válidas, segue que devemos acreditar que nossa condição em algum tempo futuro será incorpórea e se isto for admitido e todos estiverem submetidos a Cristo, essa (incorporeidade) também deve necessariamente concedida a todos a que a sujeição a Cristo se estenda; desde que todos que estão sujeitos a Cristo estarão no final sujeitos a Deus, o Pai, a quem se diz que Cristo envia o reino; e assim parece que, então, também a necessidade de corpos cessará. E se ela cessar, a matéria retornará ao nada, como ela anteriormente inexistia.

Então vejamos o que pode ser dito em resposta àqueles que fazem estas assertivas. Visto que parecerá ser uma necessária consequência que, se a natureza corporal for aniquilada, ela deve ser outra vez restaurada e criada; já que parece algo possível que as criaturas racionais, das quais a faculdade do livre-arbítrio nunca é retirada, possam novamente estar sujeitas a movimentos de alguma forma, por meio de um ato especial do próprio Senhor, talvez a fim de evitar que, se elas estivessem sempre a ocupar uma posição que fosse imutável, devessem ser ignorantes de ter sido pela graça de Deus e não por seu próprio mérito que foram postas naquele estado final de felicidade; e estes movimentos serão indubitavelmente outra vez seguidos por uma variedade e diversidade de corpos, pelos quais o mundo está sempre ornado; nem será composto (de nada) além de variedade e diversidade, – um efeito que não pode ser produzido sem uma matéria corporal.

De Principiis, II, III.3

Resumindo: Orígenes concebeu um sistema de criações sucessivas de mundos antes e posteriores a este. O estado original de todos os seres racionais seria o de uma felicidade plena e incorpórea, mas por descuido ou insubmissão (no caso dos demônios), se afastaram as almas do estado original de graça e Deus teria criado o mundo material e seus corpos físicos para que pudessem se regenerar. Em ordem crescente a queda seria anjos, estrelas, humanos e demônios. Ao fim de cada mundo criado, haveria uma ressurreição e Julgamento Final com a redenção dos “santos” e o fogo do inferno para os pecadores. Tal fogo seria algo moral, uma revisão pela consciência de todos os pecados cometidos a fim de purificar o indivíduos. Os que ainda precisassem de purificação ao fim do processo, passariam ao próximo mundo (semelhante a este ou não), criado em uma nova era (aeon). Devido ao livre-arbítrio, virtuosos de uma era poderiam ser pecadores em outras e vice-versa, para o processo não ser errático, nossa era conheceu o sacrifício de Cristo, que teria um efeito catalisador para as almas escolhessem e optassem pelo caminho do bem. Quando todos estivessem submissos a Cristo, a natureza corporal teria um término e a beatitude original seria restaurada (“o princípio e fim são os mesmo”). Embora cedo ou tarde tudo se reiniciaria mais uma vez, com novas quedas, etc. Uma espécie de tentativa de conciliar o tempo cíclico de algumas correntes do pensamento grego com o tempo linear judaico-cristão.

Há outros textos de Orígenes que contradizem suas teses mais polêmicas, como a caridade dos eleitos no céu não ser devida a uma escolha ou mérito, mas a uma suspensão do livre arbítrio “para tornar o pecado impossível” (Comentário aos Romanos, V, 10). Há estudiosos que alegam não ter sido Orígenes um pensador metódico: o conjunto de sua obra não permite formar um sistema teológico coerente.